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e1 les : O | a a L ier a & FUNDACAO UNIVERSIDADE DE BRASILIA Reitor Timothy Martin Mulholland Vice-Reitor Edgar Nobuo Mamiya Ke UnB Diretor Henryk Siewierski Diretor-Executivo Alexandre Lima Conselho Editorial Beatriz de Freitas Salles Dione Oliveira Moura Henryk Siewierski Jader Soares Marinho Filho Lia Zanotta Machado Maria José Moreira Serra da Silva Paulo César Coelho Abrantes Ricardo Silveira Bernardes Suzete Venturelli Jorn Risen Prof Lubstes id Historia viva Teoria da Historia III: formas ¢ fungdes do conhecimento histérico Tradugao Estevao de Rezende Martins Equipe editorial Rejane de Meneses » Supervisto editorial Sonja Cavalcanti - Acompanhamento editorial ‘Teresa Cristina Brandéo: Preparagdo de originais ¢ revisdo Raimunda Dias . Editoragdo eletrénica Rejane de Meneses ¢ Danizia Maria Queiroz Gama - fndice Tvanise Oliveira de Brito - Capa Elmano Rodrigues Pinheire - Acoripanharnento grafico Copyright © 1986 by Vandenhoeck & Ruprecht Copyright © 2007 by Editora Universidade de Brasilia, pela traducao Titulo original: Lebendige Geschichte: Grundztige ciner Historik Lil: Formen und Funktionen des historischen Wissens impresso no Brasil Colegao Teoria da historia, de Jorn Rasen: Volume 1 - Razio histérica (publicado em 2001) Volume II ~ Reconstrugao da pasado Volume III - Histéria viva Direitos exclusivos para esta edicao: Editora Universidade de Brasilia SCS Q.2 - BlacoC~ nt 78 EAOK andar 70302-907 - Brasilia-DF ‘Tel.: (61) 3035-4211 Fax: (61) 3035-4223 wwweditora.unb.br direcao@editora.unb.br wwwilivrariauniversidade,unb.br Todos os direitos reservados. Nerthuma parte desta publicagao podera ser armazenada ou reproduzida por qualquer meio sem a autorizacio por escrito da Editora. Ficha catalogréfica eluborada pela Biblioteca Central da Universidade de Brasilia R951 Risen, Jorn. Historia viva : teoria da historia : formas ¢ fungacs do conhe- cimento histérico / Jérn Risen ; tradugdo de Estevaa de Rezende Martins. ~ Brasilia : Editora Universidade de Brasilia, 2007. 160 p.; 21. cm. ‘Tradugao de: Lebendige Geschichte: Grundziige einer Historik UL: Formen und Funktionen des historischen Wissens. ISBN: 978-85-230-0974-8 1, Historiografia. 2, Formago histérica. 3. Teoria da historia, 4. Didaticada histéria. 5, Estética da historia, 6, Consciéncia historica, I. Martins, Estevio de Rezende. II. Titulo, CDU 94 Sumario PREFACi0, 7 IntRopucAo, 9 Cariruto 1 TOPICA — FORMAS DA HISTORIOGRAFIA, 17 Pesquisa historica e historiografia, 21 Historiografia como problema teérico, 21 Estética e retérica no discurso da historiografia, 28 Conseqiiéncias da pesquisa, 38 Tipologia da historiografia, 43 Principios da diferenciagao, 44 Constituig¢do tradicional de sentido, 48 Constituicéo exemplar de sentido, 50 Constituigio critica de sentido, 55 Constituigao genética de sentido, 58 Formas e topei complexes, 63 Ciéncia como principio da forma, 68 Ciéncia e sentido historico, 75 CarituLo 2 DIDATICA ~ FUNCOES DO SABER HISTORICO, 85 Teoria da historia e didatica, 88 © que é formagio histérica?, 95 As trés dimensdes de aprendizado da formagiio histérica, 103 A fora cognitiva da cultura histérica, 121 Equipe editorial Rejane de Meneses - Supervisito edttorial Sonja Cavalcanti . Acompanhamento editorial Teresa Cristina Brandio- Preparacao de originais ¢ revisao Raimunda Dias . Editoragdo eletrénica Rejane de Meneses ¢ Deniizia Maria Queiroz Gama - indice Tvanise Oliveira de Brito - Capa Elmano Rodrigues Pinheiro - Acompanhamento grifico Copyright ® 1986 by Vendenhoeck & Ruprecht Copyright © 2007 ty Editora Universidade de Brasilia, pela traducao Titulo original: Lebendige Geschichte: Grundziige einer Histortk III: ormen und Funktionen des historischen Wiscens Impresso no Brasit Coleco Teoria da histéria, de Jorn Risen: ‘Volume I - Razio histérica (publicado em 2001) ‘Volume II - Reconstrugao do passado ‘Volume Il] ~ Histéria viva Direitos exclusivos para esta edi¢ao: Editora Universidade de Brasilia SCS Q. 2 - Bloco C- 1 78 Ed. OK - 1° audar 70302-907 — Brasilia-DF Tel.: (61) 3035-4211 Fax: (61) 3035-4223 wwweditora.unb.br direcan@editora.unb.br werwlivrariauniversidade.unb.br Todos os direitos reservados. Nerihuma parte desta publicagio poderé ser armazenada ou reproduzida por qualquer meio sem a autorizacio por escrito da Editora. Ficha catalogréfica elaborada pela Biblioteca Central da Universidade de Brasflia RIS] Rasen, Jorn, Histéria vive : teoria da historia : formas ¢ fungées do conhe- cimento hist6rico / Jorn Riisen ; tradugao de Estevio de Rezende ‘Martins. ~ Brasilia: Editora Universidade de Brasilia, 2007. Tradugao de: Lebendige Geschichte: Grundziage einer Historik IIL: Formen und Funktionen des historischen Wissens. ISBN: 978-85-230.0974.8 1. Historiografia. 2. Formagao histérica, 3. Teoria da histéria. 4. Didatica da historia. 5, Estética da historia. 6. Consciéncia histérica, I Martins, Estevio de Rezende. II. Titulo. cbus4 Sumario PREFACIO, 7 Inrropucio, 9 Capituto 1 Tortca — FORMAS DA isToRioGRaFiA, 17 Pesquisa histérica ¢ historiografia, 21 Historiografia como problema tedrico, 21 Estetica € retorica no discurso da historiografia, 28 Conseqiiéncias da pesquisa, 38 Tipologia da historiografia, 43 Principios da diferenciagao, 44 Constitui¢do tradicional de sentido, 48 Constituicéo exemplar de sentido, 50 Constituigio critica de sentido, 55 Constituig&o genética de sentido, 58 Formas e zopoi complexos, 63 Ciéncia como principio da forma, 68 Ciéncia e sentido hist6rico, 75 CapiruLo 2 DMATICA — FUNCOES DO SABER HISTORICO, 85 Teoria da historia e didatica, 88 O que é formagiio histérica?, 95 As trés dimensdes de aprendizado da formagao histérica, 103 A forca cognitiva da cultura historica, 121 Equipe editorial Rejane de Meneses - Supervisio editorial Sonja Cavalcanti . Acompanhamento editorial ‘Teresa Cristina Branddo- Preparagao de originais ¢ revisto Raimunda Dias . Editoragdo eletrénica Rejane de Meneses ¢ Danazia Maria Queiroz Gama - indice Tvanise Oliveira de Brito Capa Elmano Rodrigues Pinheiro - Acompanhamento grafico Copyright © 1986 by Vandenhoeck & Ruprecht Copyright © 2007 by Editora Universidade de Brasilia, pela traducio Titulo original: Lebendige Geschichte: Grundziige einer Historik III: Formen und Funktionen des historischen Wissens Impresso ro Brasit Colecdo Teoria da historia, de jOrn Rasen: Volume I - Razao histérica (publicado em 2001) Volume il - Reconstrucio do pasado Volume III ~ Histéria viva Direitos exclusivos para esta edigao: Editora Universidade de Brasilia SCS Q.2- Boca C - n?78 Ed OK - 1 andar 70302-907 - Brasilia-DF Tel.:(61) 3035-4211 Fax: (61) 3035-4223 ww editora.unb.br direcao@editora.unb.br wwwilivrariauniversidade.unb.br Todos os direitos reservados, Nenhuma parte desta publicagio poderd ser armazenada ou reproduzida por qualquer meio semi a autorizagio por escrito da Editora. Ficha catalogréfica elaborada pela Biblioteca Central da Universidade de Brasilia R95] Riise, Jorn. Historia viva : teoria da historia : formas e fungdes do conhe- Cimento histérien / Jarn Riisen ; traducio de Estevio de Rezende Martins. - Brasflia ; Editora Universidade de Brasilia, 2007. 160 p.: 21. em. ‘Tradugao de: Lebendige Geschichte: Grundzlige einer Historik IIL: Formen und Funktionen des historischen Wissens. ISBN: 978-85-230-0974-8 1. Historiografia, 2, Formagio hist6riea. 3, Teoria da histéria. 4. Didatica da historia. 5, Estética da historia. 6. Consciencia histérica, I. Martins, Estevio de Rezende. II. Titulo. cpus Sumario PREFACIO, 7 IntRopucao, 9 CapituLo 1 Trica ~ FORMAS DA HISTORIOGRAFIA, 7 Pesquisa histérica ¢ historiografia, 21 Historiografia como problema tedrico, 24 Estética e retérica no discurso da historiografia, 28 Conseqiiéncias da pesquisa, 38 Tipologia da historiografia, 43 Principios da diferenciagao, 44 Constituicao tradicional de sentido, 48 Constituigdo exemplar de sentido, 50 Constituigao critica de sentido, 55 Constituigao genética de sentido, 58 Formas € fopei complexos, 63 Ciéncia como principio da forma, 68 Ciéncia e sentido histérico, 75 CariruLo 2 DIWATICA — FUNCGES DO SABER HISTORICO, 85 Teoria da histéria e didatica, 88 O que é formapio histérica?, 95 As trés dimensdes de aprendizado da formagao histérica, 103 A forca cognitiva da cultura histérica, 121 6 Jorn Rasen ConcLusio Utopia, ALTERIDADE, KAIROS ~ 0 FUTURO DO passavo, 135 Breuiocraria, 151 inoice, 157 Prefacio Este € 0 terceiro e ultimo volume da série em que consignei minha tentativa de desenvolver um conjunto sistematico de argumen- tos para apresentar a teoria da histéria como autocompreensao da ciéncia da histéria quanto a seus fundamentos ¢ 4 sua matriz disci- plinar. A pretensiio sistematica deve certamente reforcar a impressao de provisoriedade do resultado obtido. Os temas que sao tratados agora (historiografia ¢ formagio histérica) requerem uma reflexdo mais pormenorizada sobre modos de pensar ¢ contetidos do saber de outras disciplinas (como, por exemplo, a linguistica, a pedagogia, a psicologia, a teoria da literatura) do que o dia-a-dia da vida acadé- mica e os mites previstos para o volume permitem. O compromisso que teve de ser encontrado obedeceu ao critério de delimitar o cam- po das questdes abordadas e clarificar como devem ser tratadas. Encerro meu trabalho com uma mescla de trés sentimentos: receio, alivio e gratidéo. Receio quanto a distancia entre o que ten- cionava € 0 que apresento. Alivio, pois consegui colocar um ponto final (mesmo se provisério) e posso me dedicar a outros assuntos no- vos. E gratidao, pois pude contar com muita ajuda, apoio ¢ incentive no longo periddo da incubagao dos argumentos ¢ da elaboracao dos enunciados deste trabalho. Inicialmente, gostaria de registrar meus agradecimentos a Fundagdo Volkswagenwerk por um scmestre sabatico adicional. Nao sei como teria conseguido concluir a reda- 80 sem a bolsa cientifica. Em seguida, agradego cordiaimente aos colegas Frank Ankersmit (Groningen), Chang-Tse Hu (Taichun), Floris van Jaarsveld (Pretoria) e Augustin Wernet (Sido Paulo), cujo interesse e entusiasmo me impulsionaram nos ultimos anos a perse- yerar no labirinto da teoria da historia, malgrado muitos historiado- Tes considerarem que nele o ar é demasiado rarefeito. Klaus Fréhlich 8 Jom Risen Karl-Ernst Jeismann foram de grande valia, ao sustentarem que essa atmosfera faz bem igualmente a didatica da historia. Junte-se a isso a longa amizade ¢ colaboragdo em projetos de didatica da historia com Ursula A. J. Becher, Klaus Bergmann, Bodo von Borries, Annette Kuhn, Hans-Jiirgen Pandel, Gerhard Schneider e Rolf Schérken. Todos contribuiram para relembrar a utilidade.da reflexdo sobre os fundamentos para a didatica da historia. Hildegard Vords-Radema- cher e Jiirgen Jahnke convenceram-me que minhas reflexdes sobre a didatica da historia, por causa ou apesar de sua forte conotacio teéri- ca, podem ser de valia para a pratica do ensino. Horst Walter Blanke, Klaus Bergmann, Klaus Frohlich « Hans-Jargen Pandel tiveram a paciéncia de ler o manuscrito. Nao hesitaram em opinar e fazer boas sugestes de aperfeicoamento. Ursula Jansen e Christel Schmid merecem meus agradeci- mentos pela trabalheira com o manuscrito ¢ com o manuscio, por vezes frustrante, do progresso tecnoldgico em forma de computa- der, Agradego a Thomas Sandkuhier pela leitura atenta e critica do manuscrito e das provas, mas sobretudo pelo seu apoio constante no uso do computador. A ele ¢ a Udo Dreher meu agradecimento pela montagem € corregao dos indices. Bochum, agosto de 1988. Introduc¢ao O historiador deve poder infundir presente no passado, tal como o profeta Ezequiel: ele caminha por entre um emaranhado de esqueletos, mas medida que anda, por detrés dele eclode nova vida. Karl Lamprecht! A questau das formas ¢ fungdes do saber histérico parece, a primeira vista, desviar-se da tematica prdpria a teoria da histéria. Pois agora ja nao se trataria mais da histéria como ciéncia, nem da regulag’o metédica que fundamenta a cientificidade do conhe- cimento ¢ sua pretensdo especifica de verdade. Diante dessa ra- cionalidade intrinseca do saber histérico, de sua clareza apolinea, formas e fungdes parecem pertencer a um outro lado da ciéncia, 4 sua vivacidade dionisiaca, na qual se trata nao das regras ¢ das fundamentagées, mas das formas estéticas, das intengdes retoricas e do uso pratico. Em suas formas e com suas fungées, o saber histérico parece evadir-se de sua cientificidade propria e indicar, assim, os limites da cientificidade no processo do conhecimento histérico. Inquirir novamente e com profundidade as regras metodicas da historiografia, como é indispensavel 4 histria como ciéncia, seria aqui descabido, quando nao abstruso. Surgiria assim uma teoria da arte historiografica, na qual “método” significaria coisa completamente ''K. Lamprecht. Paralipomena der Deutschen Geschichte (1910), Ausgewdhlte Schriften zur Wirtschafts- und Kulturgeschichte und zur Theorie der Geschichts- wissenschaft. Aalen, 1974, p. 719-724, cit. p. 719. 10 Jorn Rusen distinta dos principios do procedimento para assegurar a validade do conhecimento, de que se serve a historia como cigncia. Método, apenas como regra canénica da composicao historiografica, seria entendido como uma restri¢éo das possibilidades de dar forma 4 historiografia, um enfraquecimento de suas potencialidades. Sua eventual exigéncia seria certamente recusada pela maioria dos historiadores. A pretens%o de entender as repercussées praticas do saber histérico como decorrentes de principios metédicos, obri- gatérios de um jeito ou de outro em nome da ciéncia, parece sem sentido. Pensar que os resultados adviriam somente da prescrigao metédica ¢ altamente problematico. Esse automatismo metédico estaria perto demais das rigidezes dogmaticas, mediante as quais determinadas posigSes seriam impostas autoritariamente como pontos de vista da vida pratica. Tal imposigSo estaria cm contradi- ¢&o com um principio fundamental para a historia como ciéncia: 0 da livre argumentagao. Por outro lado, o processo cientitico do conhecimento histé- rico n&o pode ser pensado sem os fatores “formas” ¢ “fungdes”. Nenhum saber histérico é amorfo. O saber histérico desempenha sempre fungGes na vida cultural do tempo presente. Forma e funcado so essenciais ao trabalho do historiador, E mesmo em sua forma e em suas fungdes que o saber histérico se completa, Somente nelas 6 que ele toma vida. E com elas que cle responde as caréncias de orientagao que suscitou. Sao elas que tormam necessarios e signifi- cativos todos os esforgos de reflexio da histéria como ciéncia. Se é por suas formas e fungSes que o saber histérico se torna verdadei- ramente vivo, seré que essa vida nfo se daria as custas de sua cien- tificidade? E, assim, a teoria da historia, que se ocupa em descobrir ¢ fundamentar os principios do pensamento que asseguram a cienti- ficidade da historia, ndo estaria 4 busca de resolver a quadratura do circulo? Ela se preocupa com cientificidade onde justamente nada parece cientifico, onde nenhuma regra metédica da pesquisa parece determinar o trabalho do historiador. ‘Nao é por acaso que a questo da forma e da fung4o do saber hist6rico esté no centro das preacupagdes dos historiadores, mes- mo quando ainda no consideram seu oficio primariamente como Historia viva un cientifico,? Na tradigao retérica da teoria da historia cuidava-se, so- bretudo, das regras da escrita historiografica, da poética normativa da historiografia. Tal poética ensinaria aos historiadores como escre- ver obras “faceis de ler”, ou seja: de boa repercussdo, A obra deveria dirigir-se ao “coragio” do leitor. A historiografia deveria habilité-lo a agir praticamente. Com a cientificizagao da historiografia, o mi- cleo das reflexées metédicas dos historiadores mudou. Ele passou da formatago da historiografia para as regras da pesquisa histdrica. O aspecto da forma e da repercussfo deslocou-se para a margem da profissionalizacao, quando nao para fora dela, como mero acessério, extemo a especializagao. Assim, por exemplo, a didatica da histéria, por muito tempo, no era considerada parte integrante da disciplina especializada “‘histéria”, mas apenas como aplicagao pedagdgica, referente apenas ao uso externo do saber histérico. N&o obstante, as formas e as fungées do saber histérico siio dois fatores originais e essenciais da matriz disciplinar da ciéncia da his- téria. Eles so e permanecem elementos integrantes do trabalho de obten¢ao do conhecimento cientifico. Afinal, a histéria continua pre- cisando ser “escrita”, ou seja, apresentada de alguma maneira, e toda historiografia — em que forma seja — esta inserida em um contexto pratico de fungées, Deixar as duas de lado scria uma limitagio inadmissivel do campo da ciéncia da historia, Digamos que 0 carter especificamen- te cientifico sé fosse reconhecido na forma de apresentacgao de uma monografia ou de uma edigao critica de fontes, bem préxima das praticas de pesquisa. Mesmo assim, ainda se impée reconhecer que esse resultado teve de receber determinada forma (embora limitada) de especificidade histérica, pois do contrario se chegaria 4 negagao ? Acerca do desenvolvimento da teoria da histéria, ver as concludes de H. W. Blanke, no artigo intitulado Georg Andreas Wills “Einleitung in die historische Gelahrheit” (1766) und die Anfiinge moderner Historik-Vorlesungen in Deutsch- land. Ditthey.Jahrbuch fir Philosophie und Geschichte der Geisteswissenschaf- ten, 2, 1984, p. 193-265, exp. p. 196-206. Ver também J. Risen. Geschichesschrei- bung als Theorieproblem (14).* *N. doE.: A exemplo desta nota, 0s titulos que aparecem neste ou nos volumes an- teriores desta série so citados com o nome do editor, titulo abreviado e o mimero, entre parénteses, da parte numerada da bibliografia. R Jorn Risen dos resultados historiograficos obtidos pela histéria como ciéncia em sua pratica de pesquisa. O mesmo vale para a fungSo pratica do saber histérico, Esse saber sempre tem um efeito determinante sobre 0 processo histéri- co de conhecimento (mesmo se por vias transversas), em particular sobre seu ponto inicial, a pergunta historica. Excluir esse fator da especificidade cicntifica da historia traria apenas descontrole sobre sua repercussdo, uma espécie de inconsciéncia acerca da praxis his- toriografica. Ademais, os historiadores, com sua competéncia pro- fissional, ficariam impedidos de tomar posig&o direta quanto ao uso pratico do saber histérico que produziram. A legitimagao histérica da politica, o ensino da histéria na educaco ou a apresentagao das experiéncias e interpretacdes historicas em museus — isso e muito mais seria subtraide 4 competéncia do historiador, se nio lhe fosse permitido exprimir, na forma ¢ nas fungdcs do saber histérico, seu proprio entendimento como cientistas. Como isso é possivel? A formatac4o do saber histérico obtido pela pesquisa e sua fun- go na vida pratica dos historiadores ¢ das historiadoras tém de ser seriamente levados em copta, em sua concepgdo da especialidade, como fatores originais ¢ essenciais da matriz disciplinar da ciéncia da hist6ria. Sao justamente essas propriedades, pelas quais a forma- tagao historiografica e o uso pritico do saber histérico parecem afas- tar-se da cientificidade do processo de conhecimente histérico, que devem ser examinadas como grandezas determinantes da pesquisa hist6rica. Como a teoria da histéria se pergunta, em primeiro lugar, em que consiste o conhecimento histérico necessario, historia, como ciéncia, deve-se colocar, com respeito aos fatores “formas ¢ fun- gGes”, duas questdes. (1) A que esquemas ordenadores esses fatores esto submetidos no processo de obtencio do conhecimento histé- tico? (2) Como esses esquemas se articulam com 0 principio da ga- rantia discursiva de validade, constitutivo da historia como ciéncia especializada? Quando os historiadores redigem textos e se referem aos desafios da vida cultural de seu tempo (por exemplo: 4 preten- sao politica de legitimar as dominagdes, aos problemas pedagdgicos do ensino de histéria, 4 organizagéio dos museus), ou quando atuam Historia viva RB nela— o que fazem de sua ciéncia? Que procedimentos adotam? Que regras observam? Existem formas dessas regras das quais se possa dizer que corespondem 4 especificidade do pensamento histérico, tipica da histéria como ciéncia? Seria um equivoco querer definir modelos historiograficos e didatico-politicos para 0s csquemas de ordenamento cientifico da pesquisa historica e do resultado pratico do saber historico. Por mais desejaveis que sejam a retorica sistematizada e a competéncia di- datico-politica dos historiadores, quando se trata da importancia do saber histérico como fator relevante para a orientagdo da vida pra- tica, a teoria da historia nao ¢ um livro de receitas — afinal, prescri- gées em forma de receita so contrarias 4 inovagao. Como a ciéncia é uma oportunidade institucionalizada de inovagdo, esquemas de ordenamento desse¢ tipo teriam efeito contraproducente se assumis- sem a forma de modelos. Por outro lado, o oposto a esterilidade das receitas prontas nao é a desordem ou um deserto dionisiaco nos fundamentos da forma historiografica ou no efeito pratico do saber histérico. Seria pensavel, contudo, conceber os principios ou refletir sobre os pontos de vista que atuariam na formatagZo historiografica € nos efeitos culturais do saber histérico, por forga da cientificidade da historia. E necessario que se trate de principios e pontos de vista que permitam medir ¢ avaliar a relevancia da formatagaio e do efeito cultural para a regulagio metédica da pesquisa histérica. Para além dessa relevancia, quem sabe existam ~ até no aparente distancia- mento da cientificidade, em que atuariam a forma de apresentagao ¢ 0 efeito politico-cultural — principios de formatagfo dessa atuagao que ajam complementarmente a cientificidade do saber histérico, de cuja vida se trata aqui. Essa questao nos remete ao ponto de partida desta teoria da his- t6ria. Tratava-se da conexdo direta da cientificidade da histéria com a especificidade do pensamento histérico. A racionalidade peculiar do conhecimento histérico deve tornar-se visivel desde sua origem na vida comum. A questéo da vivacidade historiografica e politico- cultural do saber historico remete diretamente a essa origem na vida comum. O olhar critico da teoria da histéria, que se volta para as formas c as funcdes do pensamento histérico, dirige-se em seguida “4 Jorn Risen Para 0s processos elementares ¢ gerais da constituicao narrativa de sentido mediante as operacdes da consciéncia histérica. Cabe, todavia, especificar também a questio da insercao do sa- ber histérico na vida comum, de modo semelhante ao que se fez com respeite aos fundamentos da pesquisa histérica no quotidiano. Ela se torna ainda mais critica ao deter-se nos principios metodolé- gicos da garantia discursiva de validade, determinantes da historia como ciéncia. S30 esses principios que transformam o pensamento histérico em processo de pesquisa, A questiio da narrativa histérica Jé nao trata mais, agora, das operagdes fundamentais da consciéncia historica em geral e em seu conjunto, mas do proceso de formagiio do saber histérico, que se distingue do processo cognitivo da pesqui- sa histérica ¢ que, come tal, pode ser sistematicamente relacionado 4 pesquisa. Nao resta divida de que essa relacdo consiste em um fator essencial da cientificidade da forma historiogrdfica. Mesmo quando a teoria da histéria vai além da formacdo do saber histérico ¢ suscita a questao de suas funcdes culturais, sempre se tem na narrativa histérica uma operaco basilar da consciéncia histérica. Trata-se agora de descobrir o que faz dessa narrativa um fato social. Lida-se aqui com a aplicagdo e com o uso de “histérias” na vida cultural de uma sociedade. Para a teoria da historia, o que interessa ¢ correlacao desse uso com a ciéncia. O que advém, para a historia como ciéneia, do uso pratico do modo tipico de narrar hist6rias? Que papel pode e deve desempenhar a estrutura argumen- tativa da constituigao histérica de sentido na vida cultural de uma socicdade? Como pode ¢ deve a histéria como ciéncia corresponder a esse papel? Antes como agora o que interessa é a razdo determinante da historia como ciéncia. Essa raz&o assegura as chances da garantia discursiva de validade quando se lida interpretativamente com o passado humano. Com relagaio 4 formatacao historiografica, a ques- t&o da razio dirige-se ao problema da articulagio entre pesquisa historica e formatag%o historiografica. Como é que se mantém, na apresentagio de intcrpretagdes histéricas, a discursividade que lida, interpretativamente, com a experiéncia histérica e que é determi- nante da pesquisa? De que modo essa discursividade estd presente Historia viva 15. especificamente na historiografia? A resposta a essa pergunta diz respeito a um ponto de vista decisivo para a praxis historiografica: a relagdo com os destinatarios, com o publico-alvo. Esse ponto de vista pode assumir as mais diversas formas. Uma teoria da historia, que trata da historia como ciéncia, leva em considerac4o 0 espago das possibilidades historiograficas sob 0 ponto de vista da maneira como a racionalidade dos destinatarios pode ser reforgada pelo con- tacto com o saber histérico e com a experiéncia histérica. Quando se volta para a constitui¢do narrativa de sentido pela consciéncia histérica como fato social, a teoria da historia pergunta- se entdo se e como a ciéncia da histéria se relaciona, na vida pratica dos historiadores, com o uso pratico do saber histérico produzido por ela. Em uma de suas operagdes cognitivas mais proprias, a historia como ciéncia esta intimamente conectada com a vida pratica. Com respeito a esta, nao lhe é possivel reivindicar qualquer neutralidade estrutural. E esse o resultado a que chegaram as mais criticas das teflexdes produzidas sobre o problema da objetividade.* No entanto, quando se esta debatendo as funcdes praticas do saber historico, nio basta apenas lembrar as formas da objetividade histérica determi- nantes da historia como ciéncia. Pelo contrario: refletir sobre o uso pratico do saber histérico é um requisito basico da ciéncia da histé- ria. (E € uma exigéncia aos especialistas, para que ndo confundam o fundamento de sua ciéncia na vida com uma torre de marfim perdida no espago.) Deve-se investigar, explicitar ¢ fundamentar os pontos de vista ¢ os principios particulares que se aplicam ao uso prati- co do saber historic. A relagdo para com a vida, inerente a praxis cientifica mesma, precisa ser refletida. Essa relagdo pode entio ser utilizada conscientemente quando a ciéncia da histdria (melhor: os historiadores) é chamada a explicitd-la. E os especialistas séo cons- tantemente chamados (quando nao, forgados) a isso, por exemplo, na elaboracao de diretrizes curriculares para o ensino de histéria, na elaboragdo de projetos de pesquisa ou nos comités de planejamento de muscus. 86 essas circunstancias j4 bastariam para evidenciar que a relagdo do saber histérico com a pratica niio se esgota no debate + CEL NG. 16 Jorn Rasen sobre se a objetividade pode ser garantida ou salva. Tem-se aqui um problema mais complexo, que associa a formatacio ativa pelos historiadores com a autocompreensio da ciéncia da histéria e que requer andlise ¢ sistematizacio. Seja como for, a histéria, como ciéncia especializada, est4 sem- pre em relacdo intima com a educagio, a politica e a arte. Ela ne- cessita articular-se no 4mbito dessa relagdo, sem que disso resulte uma amputagao fatal da autocompreensio dos historiadores profis- sionais, que consistiria em achar que a mera execugao do projeto de pesquisa ja bastaria para realizar essa relacéo. Nao se deve deixar para os outros a Teflexao e a sistematizac&o das regras decorrentes da pratica do saber histérico, que se distinguem das regras proprias da pesquisa e da historiografia desta decorrente. Existem, pois, fungdes culturais do saber hist6rico que nao estao plenamente exercidas s6 porque esse saber foi expresso em termos historiograficos. Ademais, nao se entende porque a ciéncia da histéria deve ficar alienada des- sas fungdcs, Ela ndo deve ficar alicnada dessas fungées porque scu trabalho cognitive nasce de impulsos que conduzem a elas. Com a questo das formas e das fungdes do saber histérico, a reflexdo da teoria da histéria retorna a seu comego, no qual a origem do pensamento histérico deve ser evidenciada nos produtos cultu- rais da vida humana pratica. Com esse retorno, deve ficar claro que © resultado das reflexdes feitas até aqui, que a demonstragao das chances de racionalidade do pensamento histérico — essenciais para a histéria como ciéncia — consistem em afirmar que a ciéncia da histéria abre uma chance de vida em seu 4mbito. O que seria de uma razdo, de que a histéria como ciéncia fosse capaz, se nao se dirigisse 4 raiz mesma da ciéncia: os processos com os quais os homens se esforcam por viver humanamente. Capitulo 1 Tépica - formas da historiografia Se aprender historia é preciso, merece nossa gratiddo aquele que a transforma de drida em encantadora ciéncta. Friedrich Schiller! Ao palavreado retérico da histéria universal dou forma por meu préprio engenho. Verifico 0 que a une para sempre... Hobble Frank? Escrever histéria é a tarefa dos historiadores. Isso ¢ trivial. Como fazé-lo, 6 um problema. Os procedimentos da escrita da his- téria perdem-se, no trabalho de reflexdo sobre os fundamentos da ciéncia da historia, na ambigitidade de um processo nao esclarecido. Esse processo € realizado com naturalidade, recebe reconhecimento publico ¢ nao raro € premiado. No entanto, se comparada com o cuidado metodolégico aplicado a pesquisa, a praxis historiografica profissional mostra-se infensa a um tegramento andlogo. Ela é atri- buida a um engenho de competéncia literéria, cuja importancia ndo édiscutida, mas que nao obstante se encontra numa relagfo confusa com a profissionalizacao da pesquisa histérica. A telacao confusa entre cientificidade e arte historiografica, con- tudo, no se constitui necessariamente, para a teoria da histéria, em. desvantagem. Ao revés, essa relagao pode ser oportuna, enquanto ) Carta a Kémer, de 8 de janeiro de 1788, 2 Bm K. May. Der Geist der Liana estakado. B. Koscinszko (Ed.). Stuttgart, 1984, p. 49. Jérn Risen forga produtiva da forma literaria, cujo desregramento beneficiaria a ciéncia da histéria com maior eficdcia de resultados. A ambigtiidade da avaliag&o do que os historiadores fazem e tal duplicidade de pa- drdes de regramento continuam, todavia, a constituir problema, pois atingem a Idgica do conhecimento histérico, o estatuto da histéria como ciéncia, suas pretenses de validade ¢ a representacao de seu papel na vida cultural da sociedade. , Ranke formulou o problema relativo 4 questao do estatuto da histéria da seguinte maneira: Ahistéria distingue-se das demais ciéncias Por ser, simultaneamente, arte. Ela é ciéncia ao coletar, achar, investigar. Fla é arte ao dar forma ao colhido, ao conhecido e ao representé-los. Outras ciéncias satisfa- zem-se em mostrar o achado meramente como achado. Na histéria, opera a Faculdade da reconstituigdo. Como ciéncia, ela é aparentada 4 filosofia; como arte, a poesia? Ranke via a diferenca da cigncia da histéria com respeito a fi- losofia e 4 arte no caréter investigativo das operagdes cognitivas da historia: no colher, achar ¢ investigar da heuristica, da critica e da interpretagdo. Até hoje nada mudou nesse particular. E certo que sabemos mais, entrementes, sobre o “parentesco” entre histéria ¢ filosofia, pelo menos na medida em que s¢ pode identificar ¢ des- crever os procedimentos especificos da pesquisa, da elaboracao de teorias e das explicagdes histéricas enquadradas teoricamente.‘ Res- tam, contudo, questdes abertas sobre o “parentesco” entre a pesquisa hist6rica e a arte, sobre 0 significado da “faculdade da reconstitui- go” da historiografia com relagao 4 racionalidade metédica da pes- quisa histérica, sobre a historiografia Jancar mao dessa faculdade. deixando de lado principios racionais. Por um longo periodo essas quest0es néo foram prioritarias para a ciéncia da historia. Ranke, Por exemplo, considerava que importava, antes de tudo, “investigar "L. von Ranke. Die Idee det Universalhistorie (1835). Vorlesungseinleitungen, v. Doterweich (Ed.); W. P. Fuchs (Werk und Nachlass, v. 4), Munchen, 1975, p.72. ‘ * Ver Il, 23 5. Historia viva 19 cuidadosamente o individual”, ficando o resto “ao Deus dard”. Ele via a formataciio historiografica do saber obtido pela pesquisa, pois, como uma conseqiiéncia automatica da pesquisa. O potencial criti- co da pesquisa foi sempre energicamente contraposto 4 “densidade” de uma tradicao historiografica, que recorresse aos meios da ficgdo literaria para representar processos histéricos.' Com respeito a essa questo, o debate no campo da teoria da histéria trata o problema da formatagao do saber historico considerando argumentos lingitiisticos como decisivos para o estatuto cognitive e para a fungao cultural do pensamento hist6rico, daquele decorrente. A historiografia foi posta 4 luz de um principio que coloca a pesquisa c suas opcragées metédicas na sombra da uma racionali- zagio meramente secundaria, a servico das constituigdes primarias de sentido de cunho poético ou retérico. Afinal: a historiografia é fungdo da pesquisa ou a pesquisa é fungdo da historiografia? Considero essa alternativa improdutiva, pois trata de fatores es- senciais e originarios da matriz disciplinar de modo que o esclare- cimento de um levaria ao obscurecimento do outro. Ora, a questao esta em analisar o construto complexo de suas relagées sistematicas como base de um trabalho de conhecimento histérico consistente. Para tanto, necessita-se de inicio p6r a quest4o das formas da apre- sentacao historica, de modo a ir além da orbita dos principios da pesquisa histérica, no interior da qual a pretensiio de cientificidade da histria costuma confinar a autocompreensio dos historiadores. Em um estagio anterior da evolugao da ciéncia, pesquisa ¢ apresentag¢io podiam ser subsumidas sob um mesmo conceito abrangente de método. Na primeira versdo de sua Teoria da hist6- ria, Droysen ainda considerava a apresentagio como uma opera- ¢&o cognitiva que poderia ser associada sem restrigdes 4 operacdo interpretativa.* No entanto, quanto mais se refinava a andlise do 5 Cito as criticas de Ranke 20 que ele considerava as “falsas narrativas” de Guic- ciardini. L. von Ranke. Zur Kritik neuerer Geschichtschreibung. 2. ed. Leipzig, 1874, p. 24. © Yer J. Riisen. Bemerkungen zu Droysens Typologie der Geschichtsschreibung, em R. Koselleck et alii (Org.). Formen der Geschichtsschreibung (14), p. 192- 200. 20 Jom Risen tegramento do conhecimento histérico, que o define como processo de pesquisa, tanto mais se distinguia dele a apresentacao, como uma opetacao de tipo proprio. Essa distingo consiste no fato de que a pesquisa se refere por principio aos contetdos da experiéncia do passado ¢ de que 2 apresentacdio histérica se dirige ao publico do presente. Essa relagdo com o publico-alvo confere ao fator “formas da apresentagfo” sua especificidade e seu Peso proprio no processo do conhecimento histérico. E com ele que a historiografia se orga- niza, de acordo com Tegramentos prdprios, distintos dos aplicados a pesquisa. No que segue, gostaria de desenvolver, inicialmente, essa dis- tingdo de principio entre a formatagao historiografica e a pesquisa histérica. E certo que, para isso, ndo basta remeter a circunstancia de o saber histérico estar marcado pela relagio que sua formatagao tem com 0 publico-alvo e a0 modo como isso ocorre. A remissio da historiografia 4 pesquisa nao pode faltar, pois é com ela que a historiografia se aiticula para corresponder 4 pretensSo de validade do saber histérico, que reproduz em si como tesultado da pesquisa. Nao se trata, entretanto, apenas de expandir a riqueza e a varieda- de das possibilidades historiograficas de apresentagao dos resulta- dos da pesquisa nem meramente de explicitar seu cardter literdrio, A questo nao estd numa falta eventual de conhecimentos em teoria da literatura, mas sim em um Ponto sistematico: no Ambito da teoria da histéria, da cigncia da historia que reflete sobre seus fundamentos com o fito de especificar e sustentar sua Pretensdo propria de racio- nalidade como ciéncia. Nesse contexto, racionalidade é entendida como a stimula dos principios cognitivos que asseguram a validade. Isso se aplica igualmente ao fator da formatagao historiografica do saber histrico. A teoria da literatura interessa-se pelas possibilida- des estéticas, pelas propriedades e pela qualidade da historiografia. Um tal interesse pode facilmente deixar de lado a especificidade da Taz4o metddica que constitui a ciéncia. Por esse motivo, a teoria da histéria deve ocupar-se, em primeiro lugar, de investigar essa racio- nalidade na historiografia. Nao obsiante, convém evitar a alternativa improdutiva “ciéncia ou literatura” e renovar a Proposta rankeana da unidade de ciéncia e Histéria viva a literatura. Por isso, a primeira questiio a ser trabalhada, quanto a formatacao historiografica, ¢ a dos processos elementares ¢ gerais da constituigao histérica de sentido, nos quais a consciéncia historica elabora e produz suas termbrangas. Minha inten¢ao & pois, de inves- tigar “pela base” a distin¢do entre elementos cientificos e elementos literarios do conhecimento histérico, ao examinar seus fundamentos na vida pratica. Em primeiro lugar, cabe explicitar a formatayao his- toriografica como um modo pratico de Operar da consciéncia histé- rica, que se apresenta na forma de narrativa histérica. Ao examinar essa formatag%o, quero concentrar-me no espectro dos modos es pecificamente histéricos de constituir sentido acerca da experiéncia do tempo. Essa constituigao de sentido sera qualificada mediante uma tipologia da narrativa historica. A tipologia permitird ordenar ¢ caracterizar categorialmente as multiplas formas da historiografia. Somente com 0 quadro dessa tipologia se consegue identificar como se apresenta, na historiografia, o ganho de racionalidade obtido pelo pensamento histérico mediante os procedimentos da pesquisa. Para concluir, examinarei a questiio de como os resultados da pesquisa se consolidam nos processos narrativos de constituigac de sentide realizados pela consciéncia histérica, cujas formas préprias serao articuladas tipologicamente. Pesquisa histérica e historiografia Historiografia como problema teorico A pesquisa e a historiografia sao dois lados, mas também duas fases do processo histérico do conhecimento. Distingui-los é um mero artificio. Toda pesquisa tem por objetivo transformar- se em historiografia, néo sé porque seus resultados hecessitam ser expressos em linguagem, mas também porque cles funcionam como componentes de uma histéria e assim so vistos. As ques- tdes resolvidas pela pesquisa esto sempre enquadradas em histé- rias. Elas servem para esclarecer processos temporais em contextos abrangentes de uma apresentagao que articula o passado, 0 presente 2 Jorn Risen o futuro em um construte significativo que funciona como refe- téncia pratica de orientacdo no tempo.’ Inversamente, nao ha his- toriografia que nao pretenda ser verdadeira, o que a remete forgo- samente 4 pesquisa. Por mais que a pesquisa e a historiografia se entrelacem ou se- jam lados de uma mesma coisa, perfeitamente plausivel distingui- las (mesmo se forma abstrata) como duas fases do Processo histéri- co de conhecimento. Essa distingiio se baseia nos dois principios ja mencionados: no principio da relaco a experiéncia (que o conheci- mento histérico mantém na pesquisa) e no Principio da relagio ao piiblico-alvo (na apresentagao historica). Ambos os principios deter- minam 0s aspectos formais do conhecimento histérico. Na pesquisa, trata-se de uma forma cognitiva, de uma estrutura de persamento, baseada nas regras dos procedimentos adotados para lidar com a experiéncia, ou seja, em Pprincipios metédicos. Na apresentacdo, tra- ta-se de uma forma expressiva, de formatacio lingitistico-“literaria”, baseada nas regras dos procedimentos adotados para lidar eam o interesse histérico, ou seja, em principios estéticos e ret6ticos, Ambos os aspectos formais aparecem sempre juntos. Por que entdo existiria um problema da telacdo de um com 0 outro (so- bretudo se for algo que v4 além da gencralidade e da radicalidade do problema do pensar ¢ falar, que obviamente escapa a teoria da histéria)? Para a problematica dessa Telagdo hé razes mais histéri- cas do que légicas. No processo de Cientificizagiio do pensamento histérico, a Pesquisa tomou-se auténoma, como construgdo propria as instituigdes académicas. A investigago dos fatos histdricos e a fundamentagao de sua facticidade sto elementos de toda historio- grafia (mesmo se ocorre grande variagao, ao longo do tempo ¢ na diversidade das culturas, sobre o que se entende por facticidade € sua plausibilidade). Com a ciéncia da historia, contudo, a pes- quisa ganhou peso préprio no processo do conhecimento histérico. A formatagao historiografica dos resultados da Pesquisa, no entan- to, pareceu secundaria, até mesmo mera fungiio da pesquisa. Como a cientificidade do conhecimento histérico foi identificada com seu * Ver mais pormenores em I, 56 ss. Historia viva 23 carater investigativo, 0 processo de formatagao historiogrifica pare- ceu ser algo externo a ciéncia. A expressio anti-retérica de Ranke, 3 verdade nua, sem nenhum ornamento”,* subentendia que © resulta lo decisivo, obtido pela constituigdo de sentido operada pelo comheci- mento histérico, decorre do processo de pesquisa. Como se tratava de estabelccer empiricamente o contexto histésico especifico dos fatos do passado, obtidos pela critica das fontes, nao sobrava hada de bem especifico para a apresentaca4o, do ponto de vista cognitivo. Essa apresentagdo deveria contentar-se em dar forma adequada 4 icidade investigada. , : ate cbstante, essa forma sc destacou por uma qualidade lite- raria tao peculiar, que a Histéria de Roma de Theodor Mommsen veio a ser agraciada com o Prémio Nobel de Literatura, em 1902, Isso em nada atenua, todavia, que a autocompreensao dos historia- dores profissionais considere suspcitos todos os elementos e fatores da formatacao historiogréfica que nao se relacionem diretamente com a pesquisa, Esses elementos e@ fatores estariam contaminados pelo gosto da literatura acientifica. A estrita relagao @ pesquisa é © nico critério adequado a historia como ciéncia a ser levado em. conia quando ‘se aborde a historiografia.” Mesmo a mais claborada teoria da ciéncia da histéria no 4mbito do historicismo, a Tépica de Droysen, estabelece uma tipologia das formas historiograficas quc, ao fim ¢ ao cabo, se baseia no Pressuposto de que todas as operagdes cognitivas da interpretagéo histérica esto relacionadas as diversas dimensGes da consciéncia historica dos destinat S O que houvesse de literério, mediante o qual as formas historio- graficas se distinguiriam dos procedimentos concretos da pesquisa histérica, conteria um elemento proprio de conhecimento ndio Te- dutivel 4 forma cognitiva da pesquisa, ao qual a estética filosofica se aplicaria, Esse componente literdrio sempre aparece como fonte TTT Be rit . . 8),p.24. * Liv Ranke. Zur Kritik nenerer Geschichtschreibung (ver nota a 5 Acerca dessa reflexdo ver a investigagdo pioneira de H.-J. Pandel. Mimesis und Apodeixis (14). ; ; ; Ver 1. Risen. Bemerkungen zu Droysens Typologie der Geschichisschreibung. In: R, Koselleck et ali (Org,). Formen der Geschichtsschreibung (14), p. 192-2005 W. Schieffer. Theorien der Geschichtschreibung (14). 24 Jom Rusen de inquietagao ¢ de dissensiio na autocompreensao dos historiado- Tes profissionais. Desde a controvérsia entre Bury e Trevelyan, na virada do século XIX para o século XX,'! encadeia-se até hoje uma polémica constante, na qual o carter especificamente cientifico e baseado nos procedimentos da pesquisa da historiografia é contra- posto 4 sua qualidade estética como Produto e manifestacao da for- mata¢ao lingiistica que elabora. Exemplos recentes dessa polémica s&0 o debate entre Golo Mann e Hans-Ulrich Wehler," 0 livro de Lawrence Stone sobre retorno da narrativa, assim como as discus- sdes que provocaram." No debate mais atual sobre o estatuto cientifico da histériae sua proximidade com a arte, a contraposigdo das perspectivas aplicaveis ao oficio do historiador acentuou-se fortemente. De um lado, tem-se uma consciéncia crescente da ciéncia da historia acerca de suas pre- tensdes de racionalidade, Essas pretensdes se fundam nas conquis- tas do método analitico ¢ no emprego de construtos tedricos para uma reconstruydo explicativa do passado. Nesse sentido, © carater atlisticu da historiogratia seria {mais) um resquicio de tradig6es his- toriograficas ndo superadas. A racionalidade inetédica contrapde-se a formatagao estética. “Zt will never be literature” [Nunca sera lite- tatura!] — essa exclamagao de um Tepresentante da New Economic History [nova historia econdmica] assinala a contraposigao."* De outro lado, cresce a aceitagfio de que ndo se tem como aban- donar os elementos narrativos na apresentacao da histéria (‘“narrati- vo” entendido aqui como uma forma Possivel de apresentagiio histo- riografica, dentre outras).'* Alm disso, a0 se examinar mais de perto "Documentado ex F. Stern (Ed.). Geschichte und Geschichisschreibung, Mégli- chheiten, Aufgaben, Methoden, Texte von Voltaire bis zur Gegenwart, Miinchen, 1966, p. 214-252. "°). Kocka; T. Nippetdey (Bd). Theovie und Eroahlung in der Geschichte (Theorie der Geschichte. Beitrdige zur Historik, v.3), Miinchen, 1979, p. 17-62. SL, Stone. The revival of narrative: reflections on a new old history, Past and Present, 85, 1979, p, 3-24; E. J. Hobsbwam. The revival of narrative: some com. ments. Past and Present, 86, 1980, p. 3-8. “L. E, Davis. The new economic history: a critique. in: R. L. Andreano (Ed). The mew economic history: recent papers on methodology. Nova York, 1970, p. 65, A Zeitschrift fir Geschicheswissenschaft dedicou a ease tema um niinero espe- cial: 34, 1986, n. 2. Histéria viva 25 essa questo, encontra-se que um significado especial é atribuido A estrutura narrativa do saber histérico, Essa estrutura diz respeito a peculiaridade Logica do conhecimento histérico. Actesce que um olhar mais detido sobre as operagées narrativas da consciéncia his- térica traz a luz fatores do conhecimento historico que dificilmente podem ser reduzidos 4 concepgao corriqueira de tacionalidade cien- tifica (desenvolvida obviamente a partir do paradigmna das ciéncias naturais matematizadas). Os critérios de sentido decisivos para o pensamento histérico, com os quais acontecimentos passados sio ordenados em um contexto especificamente histérico (post festum), possuem uma qualidade especial. Hayden White os descreveu como “poéticos” e alcangou, com isso, uma influéncia altamente benéfi- ca sobre o debate na teoria da histdria."*" Com cssa peculiaridade narrativa ou até pogtica, o pensamento histérico protege-se de sua subsungdo a uma concep¢4o unitaria da ciéncia, dependente de uma racionalidade nomoldgica. O anguls lingiistico dessa concepgao de {mota)tooria da ciéncia histérica vale para os procedimentos lingiis- ticos mediante os quais os fatos obtidos das fontes pela pesquisa ad- quirem seu sentido historico especifico. Esse sentido se constitui na conex4o narrativa que os articula, transformando assim “passado’ em “historia”. Tais procedimentos constituem uma profunda dimen- sao da historiografia, na qual sdo evidentes surprecndentes pontos em comum com as formas literdrias da constituigao de sentido. Na interpretacao ¢ apresentacao, pela ciéncia da historia, dos contextos histéricos, consolidam-se os modos fundamentais de atribuicio de sentido, pela linguagem, a fatos que vinham sendo consignados praticamente sé em textos literdrios. Hayden White classificou tipologicamente esses modos como metéfora, metonimia, sinédo- que ¢ ironia. Interpretou-os como “tropos” da constituigdo historica de sentido.” Sao cles que, afinal, determinam a interpretagio dos fatos obtidos pela critica das fontes. Eles conférem ao contexto tem- poral desses fatos seu sentido especificamente histérico. A uz de uma tal concep¢io, a pesquisa aparece como mera racionalizagdo de ‘SH. White. Metahistory (14), Tropics of discourse (15), The content of the form (5). "H. White. Metahistory (14).p. 31s. 26 Jérn Rasen tais atribuicdes de sentido. A pesquisa é entdo submetida ao crivo de principios lingitisticos que integrariam doravante o estoque de ins- trumentos de qualquer ser humano em sua telacio lingiiistica com 0 mundo e em sua auto-interpretagio, Esses principios precederiam e fundamentariam os procedimentos met6dicos da pesquisa. A afirmagio de que os pontos de vista determinantes da in- terpretacao hisiérica sao critérios poéticos de sentido abalou for- temente 0 estatuto cientifico da historia. Essa afirmagao decorre quase inevitavelmente da concepedo tradicional de ciéneia, que a ciéncia da historia utilizou para distinguir-se de sua tradiga0 pré- cientifica, retérica. Com essa concepedo, a pesquisa histérica ga- rante uma facticidade pela qual as apresentacées historiograficas relacionadas com a pesquisa se diferenciam substantivamente das produgées literdrias. Ficgdo é 0 conceito que se opée a essa factici- dade, de modo a referir 0 cardter “literario” ou “artistico” das cons- tituigGes ndo-cientificas de sentido na narrativa. Facticidade contra ficcionalidade — é disso que se tratava ontem, € disso que se trata hoje. Apenas o significado do ficcional modificou-se tadicalmente: deixou de ser o “outro” do historico, mas seu proprio fundamento, ao menos uma parte essencial dele. A ciéncia da histéria fiou-se longo tempo em sua capacidade de obter, das fontes, fatos {informagdes) comprovaveis intersubjeti- vamente (por certo nao se pode colocar em divida os tesultados da critica das fontes). Isso conduziu, no entanto, a conferir, ao contexto construfde pela interpretago histérica a partir dos fatos sustentados pelas fontes, uma facticidade scmelhante a que se reconhece a estes. A presungo “factualista” da critica das fontes transferiu-se para in- terpretagdo propriamente histérica do passado, Com isso, a ciéncia da histéria usufruiu do Prestigio cultural das ciéncias naturais en- tendidas como positivistas e empiristas."* Em uma tat concepgao da ciéncia nio t8m lugar, naturalmente, critérios de sentido que "Ver R. Barthes. Die Historie und ihr Diskurs (14); H. R. Jauss. Der Gebrauch der Fiktion in Formen der Anschauung und Darstellung der Geschichte. In: R. Koselleck et alii (Org). Formen der Geschichisschreibung (14), p. 415-451. "Um exemplo pico encontra-se em B. H. v. Sybel. Uber die Gesetze des historis- chen Wissens (1864). Fortrage und Aufsdize. Berlim, 1874, p. 1-20. Historia viva 27 correlacionem o significado da facticidade do passado com os pro- blemas de orientaca4o do presente, submetidos a regras. No dmbito de uma concepeao restrita de ciéncia, como a Positivista-empirista, esses pontos de vista sé podem valer como ndo-cientificos ou exter- nos 4 ciéncia. Eles siio confinados na esfera da atribuigao de sentido e da auto-interpretagao que, como arte, compensa, com atribuigdes de sentido e significado, a neutralidade valorativa da ciéncia. A teoria contemporanea da literatura igualmente se fiou ampla- mente na possibilidade de questionar a pretensio de cientificidade da histéria, mediante o mito da facticidade da histéria que se obtém a partir de dados adquiridos, interpretativamente, pela critica das fontes.” Sua critica continua na dependéncia de uma concepgao po- sitivista da ciéncia. Nao se levou em conta que esse positivismo nao é apropriado a descrever adequadamente as operagGes metodicas de- terminantes da historia como ciéncia. Se a interpretagao da realidade depender exclusivamente da alternativa entre facticidade dos dados das fontes ¢ fiecionalidade dos contextos de sentido e significado, entio a operagao cognitiva da pesquisa especificamente histérica, a interpretagao, deve ser vinculada 4 segunda opcao. Sé assim € que se pode opor o carater poético-retérico ao carater cientifico da ciéncia da historia. , A propria pesquisa j4 produz sentido cm scu procedimento de interpretardo. Por esse motivo, é possivel caracterizar, até certo Ponto, como “ficgées” os contextos histéricos reconstruidos pela pesquisa, por contraste com a facticidade dos dados obtidos pela critica das fontes. Isso s6 ¢ admissivel, contudo, quando se admite um concei- to duvidoso de realidade, que a define como facticidade pura (sem sentido ou significado) de dados ou informagdes. O que se ganha, no entanto, com isso? Mesmo com 0 entendimento de que o contexto histérico possui um outro estatuto ontolégico do que o fato obtido das fontes, a interpretacio nio deixa de ser uma operagGo especifi- camente cientifica. O historiador se beneficia do brilho poético da constitui¢do narrativa de sentido inclusive quando, como pesquisa- dor, lida com as fontes de metédica e regradamente. Deve sobrar » Assim por exemplo R. Barthes. Die Historie und ihr Diskurs (14). 28 Jorn Ruser ainda, para a historiografia, alguma coisa desse britho, para produ- zir uma constitui¢ao narrativa de sentido proprio, peculiar. Colocar problemas, nos quais a pesquisa e a apresentacdo absurvem uma a outra ou se instrumentalizam mutuamente, é improdutivo. A pesqui- Sa € a apresentagao devem ser vistas, analisadas e entendidas como dois Processos distintos de um mesmo procedimento abrangente diferenciado de constituicao narrativa do sentido da experiéncia do tempo. Suas diferencas podem ser abordadas produtivamente com a questdio de que pontos de vista ou Tegramentos sao necessdrios para a tealizagao respectiva da constitui¢do narrativa de sentido pela pes- qutsa ¢ pela historiografia. Estética e retorica no discurso da historiografia Pesquisa é 0 processo da constituigéo narrativa de sentido, no qual a relagao a experiéncia, presente cm todo pensamenta historico, se exprime de mancira a que essa constituigao de sentido adquira de- terminada relevdncia cognitiva. Essa televancia cognitiva consiste em um grau elevado do contetido empirico ¢ da forma explicativa das histérias, Relacionadas a pesquisa, elas so narradas de maneira a serem mais bem fundamentadas empiricamente e explicadas teo- nicamente, A apresentacao historiografica é, por conseguintc, um modo da Constitui¢ao narrativa de sentido, no qual domina o fator da relacao 20 publico-alvo, de dirigir-se a alguém mediante o pensamento his- térico (que, alids, sempre ¢ pensado para alguém, para um publico ou para um grupo de pesquisadores, por exemplo). E determinante desse modo e de sua especificidade cientifica o ponto de vista da relevancia comunicativa. Ela diz respeito 4 receptividade das histo- rias. Ela consiste em que a recepeao do saber histérico apresentado pela historiografia possa ocorrer, na vida pratica, de modo sustentavel, Essa “insergao na vida” a que se destina todo saber hist6rico - Seja mediado como for - é tratada hoje em dia pela categoria do ‘discurso”. O discurso histérico é 0 tipo de discurso em que “subsis- te” o saber histérico, isto é, em que aparece como parte integrante da Historia viva 2° orientacdo existencial, constituindo um elemento essencial da re- lag4o social na vida humana pratica. No discurso historico, o saber histérico torna-se um fator da cultura da interpretagdo, um meio da socializagdo ¢ da individuacdo. Como discurso, atua sobre o modo como as condi¢des atuais da vida sic experimentadas, interpreta- das e, 4 luz das interpretagées, gerenciadas praticamente. Relevancia comunicativa significa que o saber historico pode exercer essa fingio mediante seu tipo de apresentacfo, de forma bem engajada e muito bem sucedida. A “verdade nua”, que Ranke havia definido como objetivo da pesquisa para o saber historico,”! deve ser entendida da seguinte forma: esse saber deve estar formu- lado de tal modo que possa inscrir-se nos processos culturais da vida humana pratica, que lida com a experiéncia, a interpretacdo ¢ a gestdo das mudangas no tempo. A historiografia tem de apresentar (mediante a pesquisa) o tempo interpretado de maneira que se torne parte da vida, que recebe dela direcionamento temporal efetivo, ao ser transposta para as intengdes concretas do agir dos sujeitos. Essa vivéncia, essa participagao do saber histérico na mobilidade cultural da vida pratica humana, aparece na historiografia como coeréncia estética e retérica da apresentagiio histérica. Os termos “estética” ¢ “retorica” carecem de explicitagao, Am- bos devem exprimir o que se passa quando se formata historiogra- ficamente o saber historico, na medida em que essa formatacio é mais da que se da no pensamento histdérico durante a pesquisa, ¢ é diferente dela. “Fstética” designa aqui duas coisas: um plano e uma inten¢do, mediante os quais qualquer pessoa é interpelada pela apresentagao histérica. E estético o plano pré-cognitivo da comunicagiio simbé- lica, sobre o qual tém de se basear construtos cognitivos como o conhecimento ¢ o saber, na medida em que influenciam culturai- mente a vida de uma sociedade ou de um individuo. O elemento estético da formatagiio historiografica permite a percepgdo do saber histérico, abre-lhe a possibilidade da imediatez ¢ da forga de con- vencimento da percepcao sensivel. 2 Ver p. 23 e nota 6. 30 Jom Risen O que se entende por isso pode ser exemplificado de maneira bastante trivial. No ensino de historia, o saber histérico pode vir a ser percebido pelas alunas ¢ pelos alunos como um ramo morto de sua arvore do conhecimento. Aparece, assim, como massa de infor- magOes a serem decoradas e repetidas para satisfazer os professores, com 0 mero objetivo de tirar boas notas, Perde qualquer valor rela- tivo no modo como as criangas e os jovens pensam seu tempo, sua vida ¢ scu mundo. Em momentos de crise, até mesmo professores de historia chegam a admitir que muitos dos conteudos tratados nas aulas possuem esse cardter disfuncional ¢ que dificilmente desem- Ppenharae qualquer papel decisivo em situagSes concretas da vida, Posteriormente. De outro lado, tem-se — para a satisfacao dos profes- sores — a experiéncia de que o saber histérico pode contribuir para a auto-afirmagdo e autocompreensio das criangas e dos jovens ao longo do tempo de suas vidas préprias. Ademais, a sabedoria peda- gégica universal adverte que essa insergao do saber historico depen- de cum grande parte de seu tratamento comunicativo em sala de aula. E-ihe necessdrio desenvolver uma vivacidade que conduza seus destinatarios a vé-lo e aproprid-lo como parte de sua vida pessoal. 0 termo “estética” exprime, pois, que essa vivacidade Ppossui uma dimensio pré-cognitiva e uma dimensao metacognitiva, nas quais as formas cognitivas e os conteidos do conhecimento histérico tém de estar enraizadas, se sua interpretagio do tempo busca ter influéncia sobre as disposigdes mentais profundas do agir. Um outro exemplo: a critica da “frieza”, que certos historiado- res do quotidiano dirigem a historia social que recorre as teorias, diz Tespeito 4 sua capacidade de lograr tal chraizamento. Trata-se, ao final de contas, de um argumento esiético, que remete a relevancia comunicativa do saber hist6rico e nao, em primeiro lugar, a rele- vancia cognitiva. Por esse motivo, nao deve ser debatido apenas no plano da pesquisa, mas antes no da historiografia. A dimensio estética da historiografia consiste na incluséo, na formatagao do saber historico, de elementos lingitisticos que se re- ferem a dimensdes pré e extracognitivas do discurso histérico. Com esses elementos a subjetividade dos destinatarios é interpelada no plano em que lida com a forga sensorial, simbdlica ¢ representativa Historia viva 31 da relago com o mundo, da auto-expressao e da autocompreensao. Nao se trata mais apenas da qualidade literaria dos textos historio- graficos. A questio esta agora na fora interpeladora do discurso, na qual, em Ultima instancia, também reside a qualidade literaria desses textos. Ela torna vidvel a aptiddo a apresentar as constituig6es de sentido de maneira que suscitem, nos destinatarios, sua propria capacidade de constituir sentido, o que leva 4 ampliagéio ¢ ao apro- fundamento de sua competéncia para tanto. Temos assim ja um segundo significado para o termo “estéti- ca”. Bo que consigna uma determinada inten¢ao da formatagiio his- toriografica no plano pré e extracognitivo. Essa intengio relaciona a percepcao sensivel ¢ a forga das representacdes imageéticas, como fontes da vida pratica do saber histérico, aos contetdos cognitivos da apresentacao histérica. Essa relagao se da de maneira a que o entendimento histérico das energias da vida pratica atue de modo libertador, sempre que haja interesse cm agir. Com suas proprie- dades estéticas, a historiografia nado apenas enraiza o saber histéri- co nas dimensées intencionais profundas da vida pratica humana, como produz também o entendimente histérico como compensagio das coergées do agir, possibilitando assim uma relagao livre ¢ in- condicionada dos destinatarios com sua memoria historica. A inten- ao da estética de fomentar a liberdade provém da filosofia classica da arte (Kant, Schiller, Hegel). Ela pode ser mostrada também como elemento formador da historiografia. Seus efeitos aparecem quando o saber histérico esta a tal ponte enraizado nos impulses intencionais da vida pratica, que a meméria histérica se abre a re- presentagdes do passado nao predeterminadas. Os elementos es- téticos da historiografia introduzem o saber histérico como fator de libertacdo na motivagao para o agiz, que depende das memérias histdricas. As coergdes tomam-se assim t4o visiveis, que podem ser vencidas. A subjetividade dos destinatarios é inserida no movimento de participagao ativa na meméria, do que extrai sua forga criativa para dar forma ao futuro. Da-se pela historiografia uma espécie de ® Acorca da estética de Hegel, ver mirha interprotagiio em J. Risen. Asthetik und Geschichte (15), p. 41 s. 2 Jorn Rusen catarse da memoria. Por seu intermédio, os destinatarios alcangam um entendimento aprofundado de si mesmos e de sua historicidade, Ganham, ademais, uma motivagao para agir, na qual seu proprio eu se vé liberado das coeredes decorrentes de um passado incom- preendido no presente, que pesaria como um lastro. Uma catarse assim libertadora ¢ estimulante se funda na cocréncia estética da formatagao historiografica. Gostaria de explicitar esse ponto recorrendo aos exemplos j4 trazidos. O saber histérico pode ser aproximado das criangas e dos jovens, como meio de sua orientacdo existencial, de diferentes ma- ueiras. Eles podem ser manipulados para assumir atitudes politi- cas determinadas, com as quais se entregam incondicionalmente aos poderes dominantes. Essa vivéncia do saber histérico seria um fracasso estético. Inversamente, eles podem se tornar senhores de si nas atitudes que assumam com relagéio aos'poderes dominantes, habilitar-se para serem eles mesmos a darem forma a suas vidas. Um saber histérico com essa furga de vida seria um sucesso estéti- co. Quanto ao argumento estetico, de que o uso analitico de teorias levaria a0 “esftiamento” da relagio com a experiéncia histérica, deve-se insistir em que 0 “calor? exigido, como proximidade da vida pratica e da experiéncia pessoal, sé pode ser historiogratica- mente plausivel se aprofundar e ampliar o entendimento histérico, € ndo as suas custas. Na estética classica,” 0 processo pré-cognitivo da subjetivi dade humana, no qual s&o produzidas as impressdes sensiveis, é caracterizado como um movimento €spontaneo da imaginagdo, que corre sem sé opor as Operagdes cognitivas intelectuais ¢ conceituais da consciéncia. Pelo contrario: o movimento da imaginagio é con- siderado como um complemento, quando nao um Pptessuposto da producao de conhecimento, Dentre as fungdes de complemento ou de fundamento das operagées estéticas da consciéncia cabe desta- Car 0 peso estético especifico que a formatacao historiografica ad- quire sobre a pesquisa histérica. Nao se pode esquecer, todavia, que ®Penso sobretudo na Critica do juizo (1790), de Kant, e em Schiller (Uber die &sthetische Erziehung des Menschen, in einer Reihe Von Briefen, 1795). Historia viva 33 a imaginagiio representativa da consciéncia histérica esté sempre limitada — enquadrada mesmo ~ sistematicamente pela relagao da pesquisa a experiéncia. Herder bem retratou esse limite: ‘oO poeta é sufocado se o olharmos como historiador”.* A formatacao historio- grafica esté sempre estruturalmente enquadrada por um limite que fica aquém da imaginagao, que produz sentido estético sempre em so utdpico. ; eee limite nao pode ser caracterizado pela distingaa entre facti- cidade e ficcionalidade, pois a articulagdo entre sentido e significado dos fatos do passado vai além de sua facticidade. Justamente se se desejar considerar a facticidade pura de que determinada ocoméncia foi o caso em determinado tempo e lugar, de determinada maneira por determinadas razGes, como a esséncia da facticidade historica, entdo o especificamente histérico dessa facticidade estard sendo tratado nao factual, mas ficcionalmente. No entanto, se “ficcional devesse significar que 0 contexto histérico dos fatos nao Possui fac- ticidade alguma, desapareceriam os limites 4 imaginagao utopica no pensamento historico. Nao faria mais sentido, entio, discutir ¢ cri- ticar as interpretagdes histéricas desde o ponto de vista de saber em que medida lidam ou nao com a experiéncia histérica. Ora, uma historia ndo é narrada sob a pressdo esquizofrénica de ser ou a pura facticidade das informagdes das Fontes, de um lado, ou a imaginacdo ficcional de seu cardter historico. Sua fac- ticidade propria, muito mais real do que a facticidade dos dados das fontes, encontra-se na forma em que o passado se torna um elemento influente na vida humana pratica no presente. A memoria historica nao catapulta representagdes imagindrias, por passe de magica, de um passado factual longinquo para a proximidade da orientagdo concreta do agir humano. Ela se esforca, isso sim, e por vezes com grande dificuldade, por amenizar, mediante 0 tra- balho interpretative da consciéncia histérica, o peso determinante do passado sobre a vida presente ¢ suas perspectivas de futuro. A consciéncia histérica tem por objetivo, pois, extrair do lastro do passado pontos de vista ¢ perspectivas para a orientagao do agir, * Obras, ed. B. Suphan, v. 11, p. 76. 34 Jorn Rasen nos quais tenham espaco a subjetividade dos agentes e sua busca de uma relagao livre consigo mesmos ¢ com scu mundo. Essa li- berdade e a qualidade estética mencionada acima s4o entendidas como metas da apresentacio histérica.?> A pressdo do passado sobre os pressupostos e as circunstéincias da vida humana pratica atual é tao real quanto.o so os elementos inten- cionais dessa praxis, com os quais os individuos buscam transformar tal pressiio em impulsos de seu agir auténomo. Essa realidade atraves- Sa a distingdo entre facticidade e ficcionalidade no processo de memé- tia da consciéncia histética. O limite das possibilidades estéticas da apresentacao historica esta no ponto em que a imaginapao simbélica da interpretagfio do mundo, da autocompreensio e da autoconcep¢ao descole dessa realidade e introduza uma dimensio utépica do tempo na determinagao do sentido do agir e o transforme em simulagao.”6 Naturalmente, esse limite separa, do potencial estético da constituigade histérica de sentido, todos os campos da constituigdo estética de sen- tide, na medida cu yue estes se subtraiam a Pressao experiencial dos Pprocessos temporais reais, liberando a imaginacao. A coeréncia formal com que a historiografia leva em conta a televdneia comunicativa, necessaria ao processo de constituigao de sentido pela consciéncia historica, ndo se esgota na qualidade esté- tica, A categoria da estética € demasiado estreita. Desconectada da qualidade paraut6pica de sua ultrapassagem da realidade pela imagi- nagao, a estética estreita a vistio da constituigao de sentido produzi- da pela formatacao historiografica. $6 com ela nao é possivel expli- citamente suficientemente 0 que a categoria da retérica representa para a historiografia. Nessa categoria encontra-se a telagdo pragmatica a realidade, na qual © potencial significativo da historiografia se distingue nao negativa, mas positivamente das constituigdes “puramente” estéti- cas de sentido na arte (entendidas como ultrapassagem da realidade pela imaginagao). Embora as dimensies estética ¢ retorica das cons- tituigées narrativas de sentido sempre se superponham, a intencao 25-Ver p. 30. Isso no quer dizer que os construtos utépicos de sentide no possam gerar impul- 80S produtivos para a historiografia. Ver p. 135 8. Histéria viva 35 de surtir efcito sobre os destinatarios, prdpria a toda formatagiio lingitistica do saber hist6rico, é mais bem-apreendida pela categoria da retorica do que pela categoria da estética. Esta ocupa-se mais da eficacia ou do potencial que possa alcangar por forca de seus com- ponentes imaginativos. A qualidade retérica de um texto historio- grafico esta, ao invés, em sua estrutura de interpelagdo, na maneira ena forma com que motiva o destinatario a conceber inten¢des que se desdobram em sua disposi¢ao para agir (com relagdo a si ou a outros). Essa relag4o as disposigdes para o agir e 4 autoconcepeao pratica ¢ assegurada pela forma significativa com que uma detenmi- nada interpretagdo da experiéncia do tempo é expressa pelos modos lingilisticos, que so, simultaneamente, os modos praticos de pro- mover orientag&o para o agir e constituig&o de identidade. A reto- rica da historiografia articula a linguagem do saber histdérico a lin- guagem falada pelos préprios destinatarios. Com outras palavras: a linguagem que sempre falaram, pois sua relagéo consigo mesmos e€ com 0 mundo estd fundamentalmente determinada pelas interpreta- gdes do tempo, pelas atitudes quanto as experiéncias do tempo, por modelos de interpretagdes do tempo. “Tépos histérico” é 0 termo que se utiliza para designar os tipos de discurso ou de linguagem que conectam os historiadores e seu publico-alvo, nos quais o agir a constituicio da identidade so orientados no tempo.” Ao utilizar a designagdo “tdpos” para caracterizar sua reflexao sobre a historiografia, a teoria da histéria afirma que o ponto de vista da relevancia comunicativa, determinante da historiografia, aponta para o papel que o saber histérico desempenha no discurso cultural da respectiva sociedade. “RetOrica” € toda e qualquer historiografia, uma vez que esta sempre determinada pelas intengGes de seu autor, dirigidas aos seus destinatarios potenciais. Essa intencionalidade pode ser mais bem explicitada: ela se dirige (evidentemente pelos mais diversos graus de mediac&o) ao ponto da vida humana pratica, © Acerca da t6pica ¢ da retorica, em geral, ver o insteutive panorama de L. Fischer. Topik, Rhetorik. In: H. L. Arnold; V. Sinemus (Ed.). Grundsiige der Literatur- und Sprachwissenschaft, v. 1: Literaturwissenschaft, Miinchen, 1973, p. 134-156, 157-164. Para os fundamentos, ver Bornscheuer. Zopik (15). Uma visio de con- junto do debate atual est4 em Brever; Schanze, Ed. Topik (15). 36 Jom Risen em que os significados do tempo interpretado cxercem uma fun¢ao de orientagao pratica da relacao dos sujeitos consigo mesmos ¢ com o mundo. Essa teleologia retérica manifesta-se nos modos “tépicos” do discurso historiografico, no uso de modelos histéricos de pensa- mento e de argumentagdo, que possuem um papel decisivo na ges- tao da vida pratica. Um édpos articula “a intengdo de sistematizar e a vontade de convencer de maneira nao-impositiva”.”* A tépica da historiografia demonstra que modelos culturalmente elaborados sao utilizados para a interpretacg&o do tempo, ¢ de que modo atuam quan- do o saber histérico busca ter influéncia sobre seus destinatérios. Estética e retorica sdo dimens6es da formatacio historiografica, mediante as quais o saber hist6rico adquire as propriedades com as quais pode “inserir-se na vida”. Na dimensio estética, pela lingua- gem, que abarca as disposicdes ¢ intengdes pré © extracognitivas dos sujeitos interpelados. Na dimensdo retérica, pela teleologia da interpelagao, que abarca os modos, modelos e estratégias da argu- mentacao lingilistica sempre presentes na orientagdo pratica da vida na constituigio da identidade. Ou seja: abarca o discurso histérico, que opera como cédigo cultural em uma dada sociedade. A relevancia comunicativa da historiografia expressa-se na coeréncia estética e retérica de cada formatagdo lingiiistica histo- tiogrdfica. Com respeito 4 dimensio estética, pode-se chamar essa coeréncia de “beleza”. Com respeito 4 dimensdo retérica, pode-se chamar essa coeréncia de “eficacia”. Presta-se, assim, homenagem 4 conhecida classificagio das fungSes da poesia por Horacio, re- conhecendo o prodesse ¢ 0 delectare. A formatagio historiografi- ca é coerente esteticamente se apresenta o saber historico com as expressées lingtifsticas significativas que satisfagam 4 caréncia de sentido e 4 capacidade de constituir sentido dos destinatarios. Algo semelhante vale para o critério historiografico da coeréncia reté- rica: ele é satisfeito por formatacgées que respondam aos sujeitos interpelados justamente no ponto em que agem praticamente por teferéncia a constitui¢ao histérica de sentido. 3D. Harth. Strukturprobleme der Literaturwissenschaft. In: D. Harth; P. Gebhardt (Ed.). Erkerminis der Literatur, Theorien, Konzepte, Methoden der Literaturwis- senschaft, Stuttgart, 1982, p. 7. Historia viva 37 Como se relacionam a estética e a retérica da historiografia? Aresposta mais comum a essa pergunta é que uma dimensdo esta subordinada 4 outra e dela depende. Isso decorre da evolugio di- vergente desses dois tipos de reflexdo sobre a comunicagiio humana. Aestética desenvolveu-se como uma disciplina filos6fica, cuja visio da arte teve um efeito fortemente anti-retérico. A beleza, como qua- lidade cognitiva particular da percep¢do sensorial, foi rigorosamente separada da eficacia pratica, e mesmo oposta a ela, de modo que a qualidade estética de uma forma de significado seria medida pelo quanto ela evita interferir nas intencdes do agir. O desinteresse valia como qualidade essencial da estética. A coeréncia estética de um construto significativo estaria ent&io em fomentar nos destinatarios uma relagao de liberdade com as determinacées do agir em suas vi- das concretas. Ao invés de induzir os sujeitos a agir de determinada maneira, libera-os da pressao para agir e habilita-os a conhecer me- thor as circunstancias de suas vidas, que lhes ficariam veladas na ro- tina quotidiana do agir por interesse. A cocréncia estética predispoc para a libertac&o do sujeito dos constrangimentos para agir. Por sua vez, essa liberagao confere 4s intengdes orientadoras do agir uma nova qualidade: entendimento dos contextos de sentido que envol- vem 0 agit, liberdade como motivo ¢ intengdo do agir. Essa fungio libertadora da estética faz a retérica aparecer como um contra-senso, pois ela vincula os destinatarios de um significado a determinadas induces a agir, de que a qualidade estética da imaginagdo os quer justamente libertar. Diante desse quadro, a retorica tende a conceber a coeréncia histérica como um fépos histérico, que tem por objetivo determina- das disposi¢6es para o agir. Isso ndo é incorreto, na medida em que, pela coeréncia estética, a referida liberdade de agir ¢ uma qualidade que serve de motivo para agir. E nao se trata de uma qualidade qual- quer dentre outras, mas a qualidade do agir humano por exceléncia. Esse motivo suscita um agir em que os seres humanos se véem mu- tuamente como fins em si mesmos e nao como meios para a realiza- go de fins particulares. Estética e retérica nado precisam se contradizer ¢ tampouco se subordinar uma 4 outta. Sua articulagao é mais bem explanada 38 Jom Rusen assim: a retérica concentra-se, na estética, no efeito que o cons- truto lingitistico de sentido tem no agir, liberando os sujeitos de constrangimentos prévios para determinada ag&o, fomentado sua reflexdo sobre outras formas de acdo, dispondo-os, assim, a um agir novo, qualitativamente diferente. Na estética, a retérica torna-se metapragmitica: ela faz lidar com o proprio agir, provoca tomada de posigao dos sujeitos agentes quanto ao agit, fazendo-os ganhar mais liberdade. | oO que significa tudo isso para a historiografia? Trata-se da re- levancia comunicativa da formatagdo historiogréfica, com a qual ela vai além das intengées prdticas de influir (no mais das vezes politicamente), capacitando seus destinatarios a entender as cir- cunsténcias temporais de sua vida pratica, que admitem outras in- tengdes praticas. A historiografia de Ranke, por exemplo, esta sem dtivida alguma impregnada Por representagGes politicas conserva- doras, mas sua qualidade esictica, tao apreciada, agrada também ao publico que assume outras posigdes politicas. Essa historiogra- fia Apresenta-lhe outros entendimentos historicos, que podem ser de interesse mesmo se originada em posturas politicas ¢ interesses divergentes do seu. Arelevancia comunicativa da historiografia consiste, pois, em um contexto de mediagAo entre a coeréncia estética ea coeréncia retorica. Nesse contexto, os elementos cognitivos desempenham um Papel es Sencial. Para a teoria da historia, 4 qual interessa explicitar a historia como ciéncia, é decisiva a perspectiva historiografica em que a fer- mentagdo cognitiva de sua televancia comunicativa prevalece. E-lhe necessario colocar a questo da relacdo da historiografia 4 pesquisa, como fator de sua coeréncia estética ¢ retérica, Que papel desempe- nha a relevancia cognitiva, constituida pela pesquisa no pensamento hist6rico, na relevancia comunicativa propria 4 historiografia? Conseqtiéncias da pesquisa Para poder responder a essa pergunta, é preciso levar em conta © Passo que, no processo do conhecimento histérico, vai da pesquisa Historia viva # a apresentagdo. A pesquisa, como ja foi dito, esta tendencialmente sempre dirigida 4 apresentagdo. Todo resultado de pesquisa s6 pode ser entendido como componente de uma histéria, e 6 assim a pode produzir. No entanto, essa tendéncia, essa virtualidade, requet ser transformada em manifestagio, cm atualidade. Para tornar claro o que ocorre ai, deve-se lembrar, previamente, 0 que acontece quando a pesquisa se pde em movimento. A pesquisa comega com certas abstracdes. Essas abstragdes precisam ser compensadas pela histo- riografia no nivel cognitive do saber histérico alcangado pela pré- pria pesquisa. E fato que a pesquisa se articula com as caréncias de orientacao da vida pratica pelas operacdes cognitivas da heuristica. A pesquisa sublima essas caréncias, transformando-as em perspec- tivas quanto a experiéncia acumulada, na qual o passado remanesce presente. O sujeito do conhecimento, ao voltar-se decididamente na pesquisa 4 investigagdo empirica do passado (“voltar as fontes mes- mas”), da as costas a seu presente. O quadro tedrico de referéncias da pesquisa ¢ da intorpretagio histéricas é por certo algo distinto da orientacao da vida pratica no tempo, embora estejam imbricados. A pesquisa nao exclui a base existencial do pensamento his- torico, a inquietagéo da experiéncia do tempo, que engendram as questdes histéricas, sob o pretexto de um ponto de vista neutro, fora de seu tempo. Pelo contrario, cla as inclui. As inquictagées sao apaziguadas pelos procedimentos regulares do trabalho com © material das fontes. Além disso, como a pesquisa, por definigao, desbrava caminhos novos do saber histérico, vem a colocar entre parénteses 0 acervo de conhecimento jé acumulado. E assim que 0 complexo processo do questionamento mais ou menos tedrico das fontes e da interpretacgao de seus dados gira, primariamente, nao em torno dos abalos e das tentativas de estabilizagao da identidade histérica (por mais que cssa scja a origem de todo questionamento histérico), mas sim em torno da questdo de “como foi mesmo que tudo ocorreu”’. Ao fim do processo, entretanto, quando a pesquisa encontrou as respostas as perguntas formuladas e trata-se de formular essas respostas de maneira inteligivel ¢ eficaz, o saber histérico aleancado pela pesquisa precisa ser reintegrado ao acervo de conhecimento ja a0 Jorn Riisen acumulado. Nesse ponto, surge a questéio dos pontos de vista que orientam essa reintegragao, o que em qual perspectiva deve ser mais ou menos importante. Essa questo leva de volta as inquietantes ex- periéncias do tempo e a busca de identidade histérica no contexto Pratico da vida em que se produz o conhecimento histérico, Se esse contexto havia sido colocado entre parénteses por exigéncia da re- levancia cognitiva do saber histérico, agora esses parénteses tém de Ser retirados no ato da formatagao historiografica do saber histérico obtido pela pesquisa. Naturalmente, faz diferenca se o resultado da pesquisa € di- tigido em primeiro lugar aos especialistas ou ao publico em geral {por isso mesmo inespecifico). O gran de inovago que a pesqui- sa introduz, com relagao a0 acervo de conhecimento acumulado, amitde vai além do circulo estreito dos especialistas ¢ dirige-se a interessados em geral. No primeiro caso (o dos especialistas), a re- consideracao do sujeito do conhecimento da vida concreta presente bermanece um momente implicito da formatagao historiografica. E preciso ler muito nas entrelinhas para descobrir-se onde e como a experigncia do presente influcnciou ou até engendrou a realizacao da pesquisa. No segundo caso (o do pubblico em geral), esse cardter implicito nao existe; a historiografia assume a plenitude de sua re- levancia comunicativa. Como fazer valer, entio, as conquistas cognitivas da pesquisa, quando o conhecimento histérico retoma, na formatacao historio- grafica, as suas origens no contexto existencial? A tesposta dada pela tradipdo cientifica a essa questio, ainda valida na autocompre- ensao cotidiana dos historiadores profissionais, é a “des-retoriza- s4o”” das apresentagées historiograficas. Como um fio condutor, encontram-se as observacdes anti-retéricas nos textos em que a autocompreensdo da historia se enuncia programaticamente como ciéncia especializada.” O que se quer dizer com esse tépos, que ® Sobre esse conceito e sua problemitica, ver II, 15s. Eo que declara a Revue Historique — para citar apenas um exemplo — ne mani- festo introdut6rio de seu primeiro nimero: “... que cada afirmagio seja acom- Parthada de provas, de remissiio as fontes e de citagdes, excluinda com rigor as generalidades vagas e os arroubos otatérios ...” [tradugde da citaeao do original Historia viva 4 a historiografia orientada cientificamente nada teria a ver com a retorica? E corriqueira a concepoao de que a historiografia baseada em pesquisa nada mais diz do que teria ocorrido. No sentido de uma objetividade cientifica entendida como neutralidade, a histo- riografia nao estaria de nenhum modo relevante vinculada a praxis. Ranke deu a essa concepcAo sua formulapao mais forte: “A verdade nua, sem nenhum ornamento. Investigaga4o profunda do individual; o resto ao deus-dara. Nada de poesia, nadinha, nada de elucubra- gio”.*! Uma concep¢ao dessa expulsa do processo de conhecimento historico 0 peso proprio e a especificidade da apresentacdo histo- riografica. Mesmo assim, Ranke ainda admite que ha um “resto”. Na pratica, ¢ muito menos ao deus-dard do que 4 maneira como sua historiografia dominou magistralmente seus temas que ele obteve reconhecimento, pois soube inserir o resultado de suas pesquisas na forma estética de uma grande historiografia épica, Nao resta divida de que essa épica se compée de elementos retéricos, de que decorre a influéncia da historiografia de Ranke sobre a cultura politica dos alemaes. O tépos anti-retérico opde-se explicitamente tanto a linguagem historiografica empolada, que aparece como fim em si mesma, quan- to 4 utilizag&o de clementos ficcionais na historiografia. Para Ranke, esses elementos ficcionais sdo os discursos ficticios que Guicciardi- ni inseriu em sua apresentagdo, mediante os quais os agentes forne- ceriam ao leitor os motivos explicativos de suas agdes. Mesmo se essas duas exclusdes parecem justificadas, no plano da historiogra~ fia baseada em pesquisa, em nada contribuem para compreender o estatuto de seus elementos estéticos e retéricos. Esses elementos nao s&o imunes 4 relevancia cognitiva que a pesquisa confere ao pensamento historico. As conquistas cognitivas, aleangadas por este pensamento na pesquisa, entram na relevancia comunicativa da historiografia. A historiografia resultante da pesquisa ganha, com isso, uma quatidade que a diferencia de outras formas de formata- go histérica. francés, N.T.]. G. Monod, G. Fagniez. Avant propos. Revue Historique, 1, 1876, p. 1-4, cit. p. 2. » Ver nota &. 2 Jorn Risen Bascar-se na pesquisa € 0 objetivo da relacao estética e retérica da historiografia com o publico. O movimento estético da imagi- nacdo aponta para a vivificacdo das faculdades cognitivas. A inter- pelagao retorica das estratégias topicas da orientagdo do agir e da constituigado da identidade aponta para a tomada de posigao. Esta articula a satisfacdo dos interesses e as pretensdes de validade no formato de uma argumentagao. A forga da imaginagao é dirigida para o conhecimento e a forga de convencimento dos fopoi histéri- cos é dirigida para a experiéncia ¢ para o entendimento. As faculdades cognitivas e os elementos da argumentag4o es- téo sempre presentes e ativos na vida humana pratica, inclusive na orientagdo temporal do agir. Elas sfio o fundamento de qualquer ra- zo pratica. Na historiografia, sao reforgadas pela rclagdo a experién- cia como modo da interpelagao do publico. A historiografia wanspde a racionalidade da relagdo 4 experiéncia e da andlise tedrica, que o saber histérico obtém pela pesquisa, para a razdo pratica, que pode ser alcangada na relagio cstétiea ao sujcito c na relagio retérica & praxis. Ela transforma a racionalidade metédica da pesquisa em um potencial racional das formas de vida. Os elementos de orientacdo temporal, sempre presentes na praxis humana, so esciarecidos pela historiografia baseada na pesquisa. Os elementos de sentido do tem- po, sempre presentes na autocompreensao humana, na interpretagado significativa e na orienta¢4o intencional da vida pratica, so enrique- cidos com as potencialidades do pensamento argumentativo e com a reflexZo sobre a experiéncia da vida, Sentido é vinculado a razio. Com isso, o sentido é “esclarecido”, isto é, vinculado aos resultados intelectivos do conhecimento hist6rico. Inversamente, esses resul- tados intelectivos séo relacionados ao sentido que determina o agir, tornando-se assim praticos. O esclarecimento que a historiografia se toma capaz de pro- duzir, mediante sua vinculag&o sistematica 4 pesquisa histdrica, da especificidade a seus fatores estético e retérico. Eles se com- péem nas apresentagdes histéricas que s’o consideradas como especificamente cientificas ou, pelo menos, proximas ou afins & ciéncia. A cientificidade, para a interpelagdo estética dos potenciais de sentido pré ou extracognitivos da vida pratica, significa que as Historia viva 43 potencialidades imaginativas da constituigao narrativa de sentido sho dirigidas 4s competéncias cognitivas dos sujeitos interpelados. Pensamentos histéricos ténues s&o reforgados pela vivacidade das atitudes ¢ motivagdes emocionais. Inversamente, a forga dionisiaca do belo é transmutada na clareza dos construtos apolinico-racio- nais de sentido. Para a interpelagdo retdrica das intengées praticas, cientificidade significa que a vontade de poder, de que os sujeitos sempre revestem suas intengGes priaticas, ¢ civilizada pela vontade de verdade, que vincula a busca de validade dos agentes aos proce- dimentos do entendimento que Ihes torna a vida social suportavel. Tipologia da historiografia Para se poder caracterizar a fungao de esclarecimento que a relagfio 4 pesquisa exerce no campo da historiografia, é necessario yoltar 4 basc cxistencial das opcragdes cognitivas da consciéncia historica.” Essas operagdes bdsicas precisam ser explicitadas de forma que a dimens&o comunicativa do saber histérico fique clara. A historiografia pode ser caracterizada como o processo da cons- tituig&o narrativa de sentido, na qual o saber histérico ¢ inserido {mediante narrativa) nos processos comunicativos da vida humana pratica. E nesses processos que o agir humano e a autocompreensio dos sujeitos se orientam pelas representagdes das mudangas tempo- rais significativas. No que segue, nao trato de avaliar a amplitude das possibili- dades de apresentacao literdria de que a historiografia lanca mao e de esbogar uma poética dos géneros historiograficos (conquan- to uma tipologia dos géneros historiogrficos seja um desiderato urgente da teoria da histéria). Minha intenc&o é, antes, expandir conceitualmente 0 espectro das constituigdes narrativas de sentido e ordend-las categorialmente. Gostaria, pois, de esclarecer como 0 superavit cognitive, que o pensamento histérico ganha mediante a pesquisa histérica cientifica, entra na relagdo da historiografia com Ver I, 568. “4 Jorn Rusen seus destinatarios. Para tanto requer-se classificar essa relagio aos destinatarios em uma estrutura do discurso historiografico, esbocan- do ao mesmo tempo uma gramatica da historiografia como operago cognitiva da “topologizagiio” do saber histérico. Desejo apresentar essa proposta sob a forma de uma tipologia da constituigao histérica de sentido, que acompanhe os pontos de vista determinantes dessa constituicao de sentido. Ao fazé-lo, dedicarei atencio especial ao aspecto comunicativo, que a historiografia confere ao saber histérico. Principios da diferenciagdo As distingdes “tépicas” ¢ as diferenciagées da constituicao historica de sentido podem ser esquematizadas de acordo com os pontos de vista decorrentes da fungao de orientacio que possui o saber histérico. Que condigdes devem ser satisfeitas, para que a vida humana prética possa ser oricntada no tempo ¢ realizada, Icvando-se em conta suas experiéncias contingentes, em cujo meio a meméria histérica é constituida de modo a fazer sentido? A resposta a essa pergunta € fornecida por uma série de principios da orientagdo his- térica, que deve ser elaborada de modo que cada principio seja ne- cessdrio € seu conjunto suficiente para que o saber histérico exerca sua fungdo de orientagdo. Elaborada essa série, cada principio eo conjunto deles ainda pode ser diferenciado de acordo com as pers- pectivas que determinam a especificidade da constituigdo histérica de sentido, dentro do contexto da interpretagZo do tempo pela narra- tiva. Essas perspectivas sao: a elaboracdo da experiéncia do tempo por meio da memaéria histérica, a formacao de uma representacdo da mudanga temporal (“continuidade”), que sintetize as trés dimen- sdes do tempo num construto abrangente de sentido e, por fim, a fungdo de constituicdo de identidade, que articula a representagao da mudanga temporal, enriquecida com a interpretagdio da experién- cia histérica, com a vida concreta dos sujeitos. Essa fungo deve ser considerada sobretudo quanto a forma comunicativa em que s¢ realiza. E nessa forma que a historiografia corresponde ao principio tegulativo da relevancia cognitiva. Historia viva 45 Segundo que pontos de vistas fundamentais, entéo, a vida hu- mana pratica ¢ historicamente orientada? O primeiro ¢ 0 ponto de vista da orientacao por afirmagdo. Toda orientagao histérica da vida humana pratica baseia-se no pressuposto incontomavel de que a vida pratica ja é orientada, ainda mesmo antes de qualquer constituigdo natrativa de sentido. Assim, toda forma de tratamento comunicativo das perspectivas temporais das relagdes sociais est4 necessariamen- te conectada ao pressuposto de um entendimento prévio de todos os participantes. Que as pessoas possam entender-se ¢ que se te- nham sempre entendido é condigao de qualquer comunicacao. Essa condi¢ao vale também para as situagdes de conflita na orientagao histérica, pois é preciso que haja entendimento ao menos sobre 0 que é dissens&o, pois de outra forma nao se poderia esperar vencer o debate. Essa circunstaéncia prévia da orientagae histérica, como condigdo da possibilidade da vida humana pratica, é a base objetiva ¢ 0 ponto de partida subjetivo de toda atividade da consciéncia hist6- rica € de todo entendimento comunicativo dos construtos narrativos de sentido. Pode ser descrita como fradicdo, como presenga pura ¢ simples do passado no presente.” Nela, a hist6ria ~ objetiva e sub- jetivamente — esta sempre “viva”, como forga influente das chances de vida previamente decididas e como apreensio significativa do processo temporal dos atos que fazem a vida humana. Nessa vida e nessa eficacia da tradigao se enquadra toda orientacao histérica consciente. Afirmagao, como condicao necessaria da orientacdo his- térica, constitui o topos da narrativa tradicional e o tipo de consti- tuig&o narrativa de sentido que lhe corresponde. Um segundo principio da diferenciagdo tipolégica torna-se visivel quando nos é presente que o entendimento prévio acerca de orientacio histérica, no modo da tradigo, nfo basta, nem de longe. Sempre que as tradigdes chegam ao limite de sua (estreita) capacidade de elaborar a experiéncia, quando se necessita superar uma experiéncia da contingéncia, que nao tenha sido trabalhada anteriormente na constituigdo tradicional de sentido, surgem outros pontos de vista da constituigdo narrativa de sentido. O préximo ¢ » A esse respeito, ver I, 81 s. 6 Jorn Rasen o da regularidade. Esse critério de sentido distingue-se do critério da afirmagao por uma relagdo mais ampla com a experiéncia e por um grau mais elevado de abstracdo. Fle permite que sejam sinteti- zadas diversas tradi¢des em interpretagdes unificadas das experién- cias temporais e que seja estendido significativamente o alcance das experiéncias histéricas relevantes para a orientagdo, As regularidades sao o inventdrio necessario das interpretagées das experiéncias que influenciam o agir e a capacidade reguladora é um elemento essen- cial da forga da identidade. Como pontos de vista da comunicagiio, as regras abrem o espago de atuacdo da argumentacdo sobre experiéncia ¢ interesses diversos, assim como articula essa diversidade na pos- sibilidade de formagao de consenso, mediante o recurso abstrato a pontos de vista gerais, baseados na experiéncia. Esse principio da tegularidade constitui o topos da narrativa histérica exemplar ¢ 0 tipo de constituigao narrativa de sentido que The corresponde. Um terceiro principio de diferenciagao baseia-se no fato ele- mentar de que toda comunicag&o (inclusive, pois, a prdpria ao dis- curso histérico) pressupde que os sujeitos, em cujas vidas se dio as orientagées histéricas, sao diversos (individuos, grupos, sociedades, culturas). Esses sujeitos as compartilham, utilizam-nas na luta pelo reconhecimento e pelo poder, podendo ganhd-las para si. Indepen- dentemente de que maneira as formas ¢ as estratégias da comunica- gao sao empregadas por meio da constituigdo narrativa de sentido, todos os sujeitos participantes colocam nelas sua diversidade e sua contraposigao. O principio da negagdo ou da contraposigdo expri- me sistematicamente essa diversidade e essa oposigao. E necessario haver orientagées histéricas, nas quais ¢ com as quais os sujeitos exprimam sua diversidade e sua contraposig&o a outros sujeitos Com essas orientagées, os sujeitos tornam-se proprios ~ recusam orientagSes prévias ou impostas e desenvolvem suas préprias orien- tagées, que exprimem sua particularidade, sua diversidade, sua con- traposigao. Esse principio da negagdo constitui o tapos da narrativa histérica critica e o tipo de constituigao narrativa de sentido que Ihe corresponde. Os principios de diferenciag4o da oricntagdo histérica mencio- nados até aqui coincidem em um ponto: os trés dirigem 0 trabalho Historia viva 47 de constitui¢ao de sentido da consciéncia histérica, em tempos de inquietagao e de mudancas constantes, desafiadoras, do homem e de seu mundo, para produzir ou recuperar uma representagao do tempo em que prevalecam a quietude ¢ a constincia. Isso, contudo, sé pode ocorrer dentro de determinados limites, que precisam ser supcrados, se a consciéncia historica com efeito deve controlar a experiéncia do tempo que a constitui. A mudanca temporal deve poder receber uma qualidade de sentido apta a orientar o agir, pois ela ndo se aquieta no mero sentido guardado na memoria e carece de ser significada em si mesma. Isso ocorre mediante 0 principio da transformacdo. Por ele, a propria mudanga temporal toma-se ponto de vista orientador da vida pratica e da formagdo da identidade. As diferengas e as di- versidades diacrénicas ndo sio mais mantidas afastadas, de acordo com a tradigao, no se abstrai mats delas por recurso 4 argumentagao tegrada, nao se nega mais simplesmente as orientagdes precedentes. Pelo contrario, diferengas e diversidades podem e devem ser elabo- radas positivamente (se se almeja que a comunicagdo seja efetiva). As orientagées histéricas so colocadas, assim, em perspectiva pe- las mais diversas posigdes. As perspectivas e as posigdes sao, por sua vez, integradas na representacio de uma unidade abrangente e dinamica do tempo. Esse principio constitui o topos da narrativa histérica genética ¢ 0 tipo de constituigdo narrativa de sentido que Ihe corresponde. Os quatro principios pertencem a um contexto sistematico. Uma orientagao histérica que dependesse exclusivamente de um de- les nado é pensavel. Cada principio traz forg¢osamente os demais ¢ somente os quatro em conjunto constituem condigao suficiente para a orientagao bem-sucedida no tempo. Os principios estao interligados de forma extremamente com- plexa. Condicionam-se mutuamente e opdem-se ao mesmo tempo. Constituem um conjunto de relacdes dindmicas, cujo formato varia conforme as circunst4ncias sob as quais as orientagGes histéricas se tornam necessarias na vida pratica. Essa dindmica corresponde a dinamica temporal intrinseca 4 vida humana pratica. Ela estabelece logicamente a historicidade interna das orientagdes histéricas. Isto pode ser especificado, para a formatagao historiografica do saber 48 Jorn Rasen histérico, como a correlagio dos pontos de vista necessdrios 4 rela- ¢4o historiografica aos destinatarios do saber histérico. Como fopai da narrativa histérica, os quatro principios formam uma rede de caracteristicas topicas da historiografta, que abrange a totalidade do campo das estratégias histéricas de argumenta¢io. Em suas diferentes conformagées, os quatro fopoi constituem o discurso histérico. E, como tipos da constituigao narrativa de sentido, que é determinante do ordenamento narrativo de uma hist6ria, eles assu- mem conformagdes que fomecem 0 formato significativo especifico das histérias, podendo ser identificados exatamente como tais. Constituigao tradicional de sentido A narrativa tradicional é a forma da constituicéo narrativa de sentido e um fépos da argumentacao histérica que interpreta as mudangas temporais do homem e do mundo com a representa¢4o da durag&o das ordens do mundo e das formas de vida. Historias que obedecem a esse formato ¢ a esse dOpos remetem as origens, que se impdem as condigdes contemporaneas da vida, e que se querem manter inalteradas, presentes e resistentes ao longo das mudangas no tempo. O mito da origem seria uma forma especialmente “pura” desse tipo. As agdes do discurso histérico, em que as orientagdes historicas tradicionais se tealizam socialmente, séo de cunho ritual. Nao deixam de existir, contudo, iniimeros exemplos desse tipo de discurso histérico em sociedades seculares ¢ no cotidiano contem- poraneo. Discursos comemorativos de jubileus, por exemplo, nos quais o ponto de vista de uma origem impositiva dé a partida reté- rica e que tém em si, indubitavelmente, algo de ritual. (O buqué de flores na mesa dos oradores levou o historiador alemao Karl-Ernst Jeismann a falar de uma “fung30 cosmética” do pensamento histéri- co,** demasiado facilmente a servico da legitimagao tradicional, sem fazer valer sistematicamente o potencial critico da ciéncia.) “Comentario durante um debate em um congresso na Academia Evangélica de Locum (da Igreja luterano-evangélica de Hannover, Alemanha). Historia viva 9 A categoria da continuidade, determinante para a interpre- tagdo da experiéncia do tempo, é elaborada como representacdo da duragao na mudanga. Isso pode ocorrer de diversas manciras. Pode-se constatar empiricamente ¢ apresentar como formas de vida reguladas normativamente se mantém. Pode-se ainda produ- zit a representacdo das origens ocultas, que so aparecem de tempos em tempos, como garantias de uma vida estavel, etc. Em todos os casos, 4 inquietagdo provocante das mudangas no tempo da vida humana é domesticada pela representagdo, na profundeza ou na raiz do tempo, da permanéncia dos principios que, empiricamente, produzem a ordem. A identidade forma-se, nesse discurso, como enraizamento das formas sociais tradicionais da subjetividade em atitudes, motivagdes e modelos de percep¢4o e interpretagéo profundamente inseridos nas mentalidades. Histérias desse tipo funcionam como formado- ras de identidade, na medida em que interpelam seus destinatarios areproduzir modelos de comportamento. A identidade sexual é um bom exemplo da identidade profunda formulada tradicionalmente e estabilizada pelos discursos da tradigao. A forga da constituigdo tradicional de sentido, nas profundezas da exisiéncia humana, pode ser identificada, tipologica ¢ topologicamente, com facilidade, no campo da socializagao e da individuagao humana. Igualmente elementares so as formas de comunicago desse discurso. Ele institui um entendimento origindrio que pode chegar até ao limite do inquestionavel, indizivel, ébvio. (E certo que até 0 que apareca como ébvio requer uma afirmagao histérica, se essa obviedade deve sobreviver 4 evolugdo do tempo.) As formas de orientagdo histérica expostas aqui sio uma apresentagio expressi- va (mas também explicativa ¢ argumentativa) de um sentimento do “nds”, de um pertencimento coletivo a uma (como se diz hoje em dia) “comunidade de valores”, que se baseia em pré-hist6rias comuns as circunstancias dadas da vida (no mais das vezes apresentadas como “destino”). O critério de sentido determinante para essa forma de constituicao narrativa de sentido ¢ 0 enraizamento do ordenamento da vida e do mundo na profundeza inconsciente do tempo em movi- mento. Por ele, o tempo é eternizado como sentido. 50 Jorn Rasen No campo da historiografia académica, o “Lutero” de Gerhard Ritter € um bom exemplo dessa constituigao tradicional de sentido e dos fopoi e recursos lingiiisticos proprios a ela.** Ritter (1962) gene- taliza a experiéncia da crise da Primeira Guerra Mundial e do inicio da Republica de Weimar para tepresentar a decadéncia cultural do Ocidente. Ele considera indispensavel a pergunta pelas “fontes da for- ga espiritual” (idem, p. 5) que devem ser novamente acionadas para renovar e assegurar “nossa existéncia espiritual”. Com Lutero, Ritter recorda com énfase a tradi¢ao da fé cristd. Somente essa {é estaria em condig&es de superar a crise cultural do tempo presente. Além disso, a rememoracio de Lutero contribuiria para estabilizar a identidade alem, fortemente abalada. Com Lutero renova-se no apenas “‘o mis- tério religioso do cristianismo primitivo ... com uma forga originaria misteriosa” (p. 33) (de forma paradigmiética para o presente), mas ele € também o alemao por exceléncia: sua vida e sua obra pertencem “a um destino que ... forjou ... com a maior forga a forma da esséncia alema’ (p. 8). Lutero representa, “om todo o seu ser”, “a nds, ale- mies” (p. 186). Ritter enuncia o saber histérico sobre Lutero com a clara intengdo de que “‘nés busquemos compreender a nés mesmos na esséncia de Martinho Lutero” (p. 187). O modo de comunicagao historiografica depende também do idpos tradicional. Ritter associa 0 Icitor com 0 uso freqiiente do “nés” em formulacdes interpelantes, que apresentam o “mistério proprio” (p. 13% de Lutero, uma f po- derosa, originria, quase meta-historica, ativa. E com ela que se pode interpretar a experiéncia, formar a identidade, orientar 0 agir. Constituigdo exemplar de sentido O tipo da constituigao exemplar de sentido é uma forma da narra- tiva historica ¢ um ‘dpos da argumentagao historica que se distingue *G, Ritter. Luther. Gesiale und Tat. 1. ed., 1925, reedigoes inalteradas em 1943 e 1959. As citagdes foram tiradas da edigao de bolso, Stuttgart, 1962. 3 “mistério” que Lutero apresenta & andlise histérica, ¢ que pode ser decifrado por essa anilise como solugo para a identidade alemi e para a fé cristi, atravessa lingitis- ticamente toda a obra de Ritter, como um fio condutor (14, 24, 32, 182, 195, etc). Historia viva 51 do tipo da constituigao tradicional de sentido por uma ampliagao do campo da experiéncia ¢ por um nivel mais clevado de abstragao na relacéo normativa do saber historico a pratica. Os limites estreitos, jmpostos por uma constituig¢ao tradicional de sentido 4 elaboracio da experiéncia do tempo, so ultrapassados. Nao se trata mais dos processos ¢ acontecimentos do passado nos quais se constitui o sen- tido necessdrio para dar conta de situagdes concretas do agir hoje. A questao agora é de ter presentes todos os contetidos da experiéncia nos quais as determinagdes de sentido relevantes para a vida pratica concreta aparecem, consolidam-se e podem ser demonstradas. Nes- se processo, as determinagées de sentido tomam uma forma abstrata: ndo aparecem mais como realidades concretas na vida pratica, mas s&o pensadas como regras, pontos de vista, principios. A constitui- gio exemplar de sentido segue a famosa divisa “Historia magistra yitae” 37 A histéria ensina, a partir dos inumeros acontecimentos do pas- sado que transmite, regras gerais do agir. A memoria hist6rica volta-se para os conteudos da experiencia do passado que representam, como casos concretos de mudangas no tempo (no mais das vezes por cau- sadas agdes intencionais), regras ou principios tomados como validos para toda mudanga no tempo e para o agir humano que nela ocorte. As histérias que contam dos senhores, por exemplo, ensinam regras do bem-mandar. Histérias do surgimento, da evolugdo e do desapare- cimento de estruturas politicas transmitem os ensinamentos de como a dominaco se modifica sob determinadas circunst&ncias. Os entendi- mentos abstratos e gerais, aparentados as regras, sao transpostos para uma série de exemplos historicos e, por meio deles, consolidados. A unidade do tempo faz os acontecimentos lembrados e toma- dos presentes pela historiografia serem significativos para o presen- te e faz esperar que 0 futuro seja orientado pela experiéncia. Essa unidade esté na generalidade abstraida dos tempos, gerada a partir dos acontecimentos histéricos e nas regras do agir concretamente 3" Descrito magistralmente por R. Koselleck. Historia magisira vitae. Uber die Auf- lésung des Topos im Horizont neuzeitlich bewegter Geschichte. In: R. Kosel- leck. Vergangene Zukunft. Zur Semantik geschichtlicher Zeiten. Frankfurt, 1979, p. 38-66. Futuro passado: contribuicdo a semdntica dos tempos histéricos. Rio de Janeiro; PUC-Rio/Contrapento, 2006. 52 Jorn Risen observadas neles. A continuidade histérica, que torna compreensi- vel e operivel a experiéncia do tempo presente, ja nfo esté mais conexa primariamente a um processo temporal interno (como no caso dos ordenamentos de sentido do tempo arcaico, estabelecidos pela constitui¢ao tradicional), mas sublimada na generalidade de um sistema de regras. Esse sistema inclui a plenitude e a diversidade dos tempos. Na generalidade, as circunsténcias da vida presente so subsumidas ¢ a mudanga no tempo submetida a um agir sob regras. Com a validade atemporal das regras gerais, a histéria ensina sua propria supratemporalidade como sua “moral”, com a qual ganharia significado para a vida pratica atual. Esse ensinamento institui uma comunicacgdo livre entre seus destinatérios, na qual os contetidos da experiéncia e do saber so tra- tados de maneira que os participantes se ponham de acordo quan- to a regras e principios e os utilizem como fundamento de suas agSes. Essa comunica¢ao vincula a diversidade das situagdes do agit concretv a comunidade das regras e dos principios abrangentes. A argumentagao histérica desenvolve-se no ambito de uma facul- dade de julgar, no qual se produzem regras gerais a partir de casos particulares e no qual as regras gerais sio concretizadas nos casos particulares, A historiografia é uma escola da faculdade de julgar. Como formulou Tucidides ¢ imimeros historiadores 0 repetiram até a mudanga epocal em meados do século XVIII, a histéria, pelos casos do passado, torna-nos sabios para sempre. A historiografia apresenta o saber histérico numa forma que faz das mudangas no tempo uma “posse duradoura” e que insere a massa dos acontecimentos em que os homens esto envolvidos no entendimento de sua natureza. Essa forma possibilita estipular, consciente ¢ sistematicamente, como os homens podem ou devem agir em determinadas situagdes ou sob determinadas condigées.”* Nesse tipo de constituigio narrativa de sentido, a identidade histérica assume a forma de uma competéncia reguladora que torna a praxis possivel. As representagées do ordenamento da vida, que *Tucidides. Geschichte des Peloponnesischen Krieges. Your. ¢ trad. de G. P. Land- mann, Zurique/Munique, 1976, I, 22. Histéria viva 33 constituem a identidade, passam a ser criticaveis e fundamentdveis 4 luz de principios. Com os modos da fundamentagio critica e da criti- ca fundante, a identidade histérica ultrapassa os limites da atribuigéo tradicional dos papéis sociais, ao assumir a autofundamentagao por recurso a principios gerais. Quem sou ou quem somos nés depende da medida de minha ou de nossa capacidade de realizar por mim ou por nés mesmos os principios do ordenamento da vida que se considera obrigatérios em geral. (E possivel formular isso de forma negativa: em toda forma de identidade constituida tradicionalmente estd presente uma dose de dogmatismo, na medida em que a limita- do ¢ a particularidade das tradigdes constituintes de identidade sao sempre tomadas pelo todo ¢ pelo préprio, de modo que desvios 36 podem ser sancionados negativamente. Esse dogmatismo se trans- forma no tipo de constituig&o exemplar de sentido, ao ultrapassar os limites para o abstrato-geral. Transforma-se ainda na arrogancia de principio, que atribui 4 sua propria vida a dignidade de ser a mani- festagao por exceléncia da regra geral ¢ tende a ver em vulros mudus de vida formas mais fracas ou fracassadas.) SA0 casos da identidade histérica formada pelo tépos da constituig¢do exemplar de sentido as identidades nacionais marcadas pela universalizagao de seus pontos de vista sobre a humanidade (come € 0 caso dos direitos do homem e dos cidadaos americanos e franceses). Em suma, o tipo historiografico da constituigao exemplar de sentido, com respeito a experiéncia histérica que consigna e 4 con- cepcio de um contexto abrangente da comunicac4o que possibilita, pode ser caracterizado como uma forma do saber histérico que apre- senta o contexto de sentido dos fenémenos temporais na supratern- poralidade dos principios e das regras. O tempo é espessado como sentido. Isto é, estipulada qualitativamente a igualdade de sentido com qualquer passado conhecido, o tempo adquire uma nova dimen- sHo experiencial. Essa dimensao permite levar em conta, na orienta- 40 histérica, diversas tradigdes ¢ ordenamentos de vida. E isso de modo que a particularidade da situag&o de um fique clara em compa- racao com a de outros. Ao mesmo tempo, lidar com essa situacdo de vida continua submetido sistematicamente as regras gerais do agir, nas quais a validade supratemporal dos principios esta contida. 34 Jorn Rusen Casos de argumentagaio e de pensamento para os quais “a his- t6ria” “ensina” algo de universal e supratemporal abundam na vida cotidiana. No discurso politico, por exemplo, acontecimentos € situa- gées presentes sdo freqticntemente remetidos a casos histéricos, de modo a deixar entender que ambas as circunsténcias obedecem aos mesmos principios gerais e que a experiéncia do passado deve ser- vir de lig&o para o presente. A lembranca dos crimes nazistas pode servir a um jornal liberal sul-africano para fustigar as praticas da politica do apartheid. Qualquer cidadao critico da Alemanha de hoje conhece a exemplaridade histérica da Repablica de Weimar para lidar com a autocompreensao e com a critica da vida e das ocorréncias politicas da Republica Federal. No plano da historiografia produzida cientificamente, é difi- cil encontrar exemplos de formas “puras” (no sentido de simples) de constituigdo exemplar de sentido. A cientificizagao da histdéria transformou o tipo da constituigéo exemplar de sentido, até entao culturaimente dominante, no tipo da constituigde genética”? Nao obstante encontram-se ocasionalmente exempios do pensamento exemplar nos planos da apresentago e dos apelos presentes na historiografia. Sobretudo em temas histéricos que tém diretamente a ver com a autocompreenséo c para a interpretagdo politica apare- cem fopoi exemplares € os correspondentes modelos de apresen- tagdo. A historiografia académica comporta-se nesse particular de modo muito semelhante 4 propaganda politica, como mostram os trabalhos sobre a Republica de Weimar ou sobre o nazismo, que se tornaram muito influentes na formagao politica. O uso das teo- tias do totalitarismo na interpretacao histérica esta determinado, por razées ldgicas, pelo tipo exemplar da constituigfo de sentido. O exemple histérico é evidenciado nesses casos como estrutura universal das relagdes politicas (por certo nao na supratemporali- dade das teorias politicas classicas, mas pelo menos aplicado ao século XX). *Ver J. Risen. Von der Aufklarung zum Historismus. Idealtypische Perspektiven eines Strukturwandels. In: H.W. Blanke; J. Risen (Org). Vou der Aufildrung zum Historismus. Zum Strukwurwandel des historischen Denkens. Paderborn, 1984, p. 15-58. Historia viva 35 Mesmo quando essa concep¢ao da interpretapdo é recusada, pois se alega existirem diferencas histéricas entre os diversos sis- temas totalitarios - ¢, no caso alemao, ainda mais marcantes —, nao se deixa de empregar modelos lingilisticos e topoi retoricos de tipo exemplar. Assim 0 ensaio de Hans Mommsen sobre “O peso do pas- sado”, por cxemplo, que esclarece a situagiio da Republica Federal da Alemanha ao final dos anos 1970 a luz da experiéncia historica da Republica de Weimar e do Terceiro Reich. Também aqui a historia é a mestra da vida: “A experiéncia ... ensina que ...”.“° Tais recur- sos estilisticos utilizam os acontecimentos da Republica de Weimar, sobretudo seu fracasso, para abordar criticamente a evolugdo da Re- publica Federal ao final dos anos 1970. Constituiedo critica de sentido O tipo da constituigao critica de sentido surge nas formas da narrativa histérica e nos iopoi de uma argumentagao histérica que trata sobretudo de esvaziar os modelos de interpretagiio histérica culiuralmente influentes, mediante a mobilizagdo da interpretagao alternativa das experiéncias histricas conflitantes. Modelos consa- grados de autocompreensao e da legitimaciio histéricas das relagdes sociais so desmantelados quando contrastados com as possibilida- des alternativas da memoria histérica. Do mesmo modo, as interpre- tages hist6ricas das circunstancias atuais da vida, € as perspectivas de futuro da vida pratica que delas decorrem, s4o desconstruidas pelo conflito das experiéncias histéricas, abrindo espago para outros ¢ novos modelos de interpretacdo. Aconstituicao critica de sentido € o meio de uma comunicagao intercultural, na qual o discurso histérico se modifica radicalmen- te, quando novas representagées substituem as antigas, ou mesmo quando uma linguagem simbélica do histérico, inteiramente nova, varre a precedente. A forga de convencimento de uma linguagem “H, Mommsen. Die Last der Vergangenheit. In: J. Habermas (Bd.). Stichworte zur ‘Geistigen Situation der Zeit’, v.1: Nation und Republik. FrankfurtMeno, 1979, p. 164-184, cit. p. 167. 56 Jorn Rusen historica, com suas formas usuais de apresentacado e modelos cos- tumeiros de argumentardo, deve ser sistematicamente reinstituida por meio da prépria linguagem, se o discurso histérico deve ser renovado, em beneficio de novas orientagdes. Isso se da com a forga explosiva da constitui¢do critica de sentido ¢ de suas formas e topoi Upicos para o pensamento histérico. A historiografia critica apresenta uma experiéncia histérica que problematiza ¢ relativiza o modelo precedente de interpretagdo histérica, abalando os fundamentos de sua plausibilidade. A histo- riografia fala a linguagem dos contra-exemplos, de uma subversdo empirica que abala a naturalidade aparente e a saturagdo experien- cial das perspectivas histéricas da vida pratica ¢ da autocompreen- sd. Voltaire, por exemplo, gostava de reescrever as passagens da Sagrada Escritura, cujos episdios exemplificam a historia da salva- ¢ao, fazendo-as parecer crénicas escandalosas. Colocava-as assim sob um Angulo irénico, no qual o significativo salvifico se desfazia. Por outro lado, cra capaz de amplia o horizunte experiencial da histéria com exemplos de fora da Europa, de modo que se abriam perspectivas de novas dimensées “humanitarias” de uma identidade historicamente formada.*! Arepresentacao do contexto temporal, decisiva para a constitui- ¢ao critica de sentido, ¢ a da ruptura da continuidade. A marca filo- s6fica dessa constitui¢ao critica de sentido na historia é sua relagiio negativa com as concep¢ées fundamentais do sentido histdrico. Ela desestrutura narrativas mestras e rompe com os construtos catego- tiais, destruindo conceitos-chave, categorias e simbolos. Esse traba- lho de negacao histérica dos modelos de interpretagiio e das formas de pensar consagrados culturalmente pode ser observado nas cor- rentes de pensamento contempordneas, conhecidas sob a designacao genérica de “pés-modernismo”” ou “pés-estruturalismo”.” Michel *' Assim, por exemplo, no Essai sur les moeurs et l’esprit des nations. “ Ver J. Rilsen, Historische Aufklanung im Angesicht der Post-Modeme: Geschichte im Zeitalter der “neuen Uniibersichtlichkeit”. Streipfall deuische Geschichte, Geschickis- und Gegenwartshewusstsein in den 80er Jahren, publicado pela Landescentcale fis politische Bildung (Rendnia do Norte/Vestfilia). Essen, 1988, p. 17-38. * Ver M. Frank. Was ist Neostrukturalismus? Frankfurt, 1984. Historia viva S7 Foucault, por exemplo, apresentou contra-histérias impressionantes com relagao as histérias do progresso da modemizagiio, com o fito de deslegitimar sua representatividade cultural. Com as formas e os fopoi da constituicado critica de sentido pSe-se em movimento uma comunicagao que se pde a servigo do distanciamento dos modelos consagrados de interpretacdo histérica do tempo ¢ de formacio de identidade. Abre-se uma comunicagdo na qual a dificuldade de dizer nao ¢ minimizada pelo saber ¢ pela argumentacao historica. Com a forga da negagiio, os sujeitas ga- nham dominio sobre si mesmos, oferecendo resisténcia ds tentativas das dominantes culturais de os absorver ¢ de se reforcar com cles. A identidade histérica forma-se como divergéncia, como autocon- trole pela afirmacao de ser diferente. A forga da negatividade es- tabiliza o poder do ser “eu proprio”. Com as formas e os topoi da constituigio critica de sentido, os sujeitos adquirem a especificidade do poder ser “eu” ou “nds”. No debate que envolve a orientagao his- torica de seu presente, os sujeitos tomam partido, conscientemente, rompendo com as posi¢ées preexistentes. Essas posigdes, alias, com freqiiéncia sé aparecem como tais na ocasido dessa contraposigao. O Esclarecimento (Iluminismo) ¢ aqui um exemplo de escol. Ele afastou a pressaio da conformidade ao particularismo dos estados mediante o critério de uma concep¢ao propria de humanidade, cuja universalidade moral abriu o espaco da subjetividade burguesa, no ambito do qual puderam ser formadas identidades individuais e co- letivas inteiramente novas (como, por exemplo, a nacional). A forga de convencimento das formas criticas da linguagem e das figuras de argumentagao vinculadas a prixis depende, é bom lembrar, daquilo contra o que se voltam. Ela se reforca na descons- trugdo de acervos de conhecimento, representagdes do tempo e auto- compreensées preexistentes. Com a dissolugao da forga cultural de um discurso preexistente, dissolve-se igualmente a forga lingilistica de sua desconstrugao. A constituicdo narrativa de sentido ganha, com a estética ¢ a retérica do distanciamento histérico, potencialidades lingiiisticas que podem ser caracterizadas da seguinte forma: 0 tempo, como sentido, torna-se julgdvel. Ao dizer “néio”, 0 sujeito contrapde-se 58 Jorn Risen a seu confinamento nas mudancas temporais. E nessa contraposi- ¢8o que se enuncia o sentido, constituido lingilisticamente, do tem- po interpretado historicamente. No distanciamento dos sentidos da experiéncia previamente dados ¢ na critica 4 pressio da conformi- dade que as mudangas temporais trazem em si, como sinal de sua significacdo, os sujeitos ganham folego para modelar culturalmente seu proprio tempo, da maneira que créem poder ¢ querer, por meio da meméria histérica. Exemplos marcantes desse distanciamento dos modelos hist6- ticos consagrados, no plano da historiografia académica, € a historia das mulheres. Boa parte de sua forga de convencimento decorre de seu rigoroso distanciamento dos esteredtipos de género cultural- mente preexistentes, contra cuja pressaéo por conformidade se bus- ca lograr, por meio da meméria histérica, novas chances e espacos para o feminino.“ Surgem assim novas abordagens da experiéncia histérica, que séo abrangentes (¢ nao isentas de partidarismos), pois a sexualidade ¢ um fator fundamental e altamente inftuente nos pro- cessos de formago da identidade humana. Constituigdo genética de sentido O tipo genético de constituicao narrativa de sentido aparece nas formas e topoi historiograficos que pdem o momento da mudanca temporal no centro do trabalho de interpretagio histérica. Tempo, como mudan¢a, adquire uma qualidade positiva, toma-se qualidade portadora de sentido. De ameaga a ser reelaborada historicamente, o tempo passa a ser percebido como qualidade das formas da vida humana, como chance de superar os padrdes de qualidade de vida alcangados, como abertura de perspectivas de futuro, que vaio qua- litativamente além do horizonte do que se obteve até o momento. A inquietude do tempo nfo é sepultada na etema profundidade de uma determinada forma de vida a ser mantida, nem escamoteada na * Acerca desse debate, ver U. A. J. Becher: J. Rasen (Org.). Weiblichkeit in ges- chichtlicher Perspektive, Fallstudien und Reflexionen zu Grundproblemen der historischen Frauenforschung. Frankfurt, 1988. Historia viva 59 validade supratemporal de sistemas de regras e principios do agir, nem tampouco diluida na negaciio abstrata dos ordenamentos da vida até hoje acumulados. Ela € disposta como motor do ganho da vida, estilizada historiograficamente como grandeza instituidora de formas de vida capazes de consenso, ordenada topicamente A vida pratica como impulso de novas mudangas. No modo da constituigao genética de sentido, a experiéncia his- tOrica adquire uma nova qualidade temporal. Ela passa a ser determi- nada categorialmente pela divergéncia estrutural entre a experiéncia de tudo o que se acumulou até agora e a expectativa do inteiramente diverso. O presente entra no campo tenso da transi¢ao de uma a outra. Esse carater de transigao ¢ destacado nos processos e acontecimentos do passado, historicamente lembrados, como portador de sentido. A concepcao determinante, pela qual o passado dinamizado temporalmente ¢ articulado com a pratica concreta do presente, de modo que o futuro aparega como chance de superagdo, é a da mudan¢a constante, qualitativamente resistente. A plenitude das mudangas temporais, que se rememora, é integrada numa determi- nagdo de sentido (direpao), que remete a um futuro para além do momento presente, ¢ faz aparecerem como transitOrias as circuns- tancias atuais da vida. As expressées lingilisticas utilizadas para ca- tacterizar esse direcionamento temporal, uma vez desvencilhadas das aparéncias de circularidade, provém da experiéncia da nature- za ¢ referem-se a processos de mudanca regrados, por isso mesmo significativos. A mais conhecida dessas expressdes é “desenvolvi- mento”, entrementes promovida ao plano de uma categoria histo- tica altamente eficaz. Ainda mais eficaz culturalmente do que essa categoria ¢ a de progresso, que constitui o exemplo mais marcante da linha de raciocinio dessa representacio do processo temporal.* Outros exemplos do critério de sentido da interpretaciio genética da experiéncia do tempo sao “processo”, “evolupao” e sua aceleracio, “revolugao”, “*Ver J. Risen, Fortschritt, Geschichisdidaktische Uberlegungen zur Fragwitr- digkcit ciner historischen Kategorie. Geschichte lernen, Geschichisunterricht heute, 1, 1987, 9. 1, p. 8-12. 60 Jorn Risen Nas formas e nos fopoi da constitui¢ao genética de sentido o saber histérico tora-se o meio de uma comunicagao na qual o es- pectro da diversidade de seus sujeitos se expande qualitativamente, para além da submissao comum a sistemas de tegras e principios ¢ para além da distingao critica e contraposipao entre eles. Os sujeitos que se comunicam podem perceber em si ¢ nos outros, por intermé- dio da historiografia genética, as qualidades da altcridade, os modos do ser outro e utilizar essa percepg&o como chance de consolida¢i0 da identidade pelo reconhecimento. O movimento, préprio a expe- riéncia histérica no quadro significativo da qualidade do sentido da mudanga temporal, transpde-se para o discurso histérico. Neste, os interlocutores podem comunicar-se sobre historias, de maneira que seus préprios eus e sua percepcao do ser outro dos demais se péem em movimento, A mudanga pode ser afirmada, vivenciada e reconhecida como uma qualidade positiva da subjetividade. As po- sigdes a serem tomadas nao sAo mais reproduzidas mimeticamente, nem meramente subsumidas a sistemas de regras e principios, nem tampouco contrapostas negativamente. Pelo contrario, tornam-se permeaveis comunicativamente, perdem sua estreiteza, sua negati- vidade, seu carater abstrato. Entram em um movimento em que sua diversidade se interrelaciona, tornando-as capazes de consenso, sem ter, em principio, de abandonar sua diversidade. Com outras palavras: o discurso histérico, pela memoria histéri- ca, abre aos sujeitos chances de individuagao. Isso vale nado somente para individues isoladamente, mas também para grupos, sociedades, culturas inteiras. O sentido proprio, que cada sujeito tende a fazer valer em sua interagdo com os outros e que possibilita o surgimento do processo ou fenémeno da comunicagio, reflete-se no sentido pré- prio dos demais ¢ enriquece sua qualidade pelo mecanismo do re- conhecimento miituo. Isso nao significa o desaparecimento da con- corréncia pelo predominio de pretensdes saciais de validade, que se manifesta na realidade cultural como comunicagio. Ela toma apenas novas formas, adota novas estratégias, Nestas, atuam novas quali- dades da subjetividade, nelas sao enunciadas novas e mais elevadas pretensées de vatidade, pois nelas 0 sujeito leva sua individualidade as Ultimas conseqiiéncias. A luta pelo reconhecimento intensifica-se Histéria viva 61 na medida em que as chances de um novo modo de consenso emer- gem ao aumento das perspectivas histéricas de posturas sociais proprias. Trata-se do modo do reconhecimento miutuo da alteridade como chance de ser por si mesmo. A autocompreensdo historica, possibilitada pelas formas histo- riograficas ¢ pelos topei retéricos da constituigéo genética de sen- tido, ganha uma nova temporalidade. Ela responde a experiéncia dinamizada do tempo presente nos saberes histéricos elaborados ge- neticamente. Ela corresponde 4 representago do tempo transversal a todos os acontecimentos, caracterizado pela perspectiva da mu- danga. Enfim, ela leva em conta as chances de individuago tomadas possiveis pelo discurso histérico. Enunciando-se por meio do saber historico, a coeréncia temporal do prdprio eu esta condicionada pela mudanga. Ser por si mesmo ¢ uma determinagdo, uma diretriz da mudanga do que se ¢. Lembrar-se daquilo que era ¢ de como se tor- nou o que é, faz plausivel, para o sujeito, tornar-se outro. O ser por Si consiste yustamente nesse constante tornar-se. Poder-se-ia talar, ironicamente, de uma neurose estrutural da identidade histérica, a que 0 tipo genético da constituigéo narrativa de sentido conduziria. Otenmo classico para designar essa forma tipica da identidade histé- rica, por certo, nao é neurose, mas individuacdo mediante formagio. Um exemplo destacado dessa concepedo da identidade histérica é a representa¢do historicista da identidade nacional, que se teria cons- tituido no curso de um longo processo de formagao cultural de um povo (em contraste com a representacao tradicional da identidade nacional, para a qual as qualidades essenciais de uma nago se man- tm ao longo do tempo ¢, no maximo, se ajustam). Em resumo, 0 tipo da constituigao genética de sentido pode ser caracterizada come uma forma do saber historico, na qual o tempo, como mudanga, tor- na-se o sentido histérico mesmo do passado lembrado. O tempo, como sentido, é temporalizado. Como a historiografia, no processe de sua cientificizacao, desde finais do século XVIII, fez predominar 0 modelo da constituic¢déo genética de sentido, ha inumeros exemplos desse tipo. Isso ¢ assim, malgrado existam apresentacdes da categoria de progresso, em di- versas obras, nas quais o progresso foi transformado cm tradig4o, ou mya i HW Historia viva 63 4 62 Jorn Rasen | i 7 seja: sua dindmica temporal intema foi derrotada pela permanéncia 8 18 g 34 de um mesmo tipo ou de uma mesma qualidade de mudanga. Hoje . 3 . = ye nw 2] 3 g 038 8. ode ¥ em dia, os modelos consagrados de interpretag4o da constituicao ge- : 3 EoD & ; . . - . + . & zB 8 3 ag 3 BS 4 & a 3 : nética de sentido vém sendo submetidos a intensa critica, do que Ba 5 225 25s 258 pode resultar o predominio de formas (pés)modemas de constitui- = e “ o g&o critica de sentido, Trata-se, no entanto, de uma questéio ainda sé 5 z g aberta, saber se com isso esté quebrada de vez a hegemonia cultural 3 38 =e b% 2 z zs 3 da constituigao genética de sentido nas formas mais elaboradas da 2 3 bs S as s 3 ' é se autocompreensao historiografica das sociedades modernas. Hl b/ Sg) 2228 gee Zé i S) 35a) 222% 238 = f £8 efak ate 3 : i ast & : B83 aoe ze Formas e topoi complexos 2 Bi sab s 2 g 88 8 8 A tipologia esbogada acima pode servir para entender a histo- iE : 3 5 3 3 re 5 B22 tiografia a partir dos pontos de vista regulativos, que dizem respcito = goe¢ ¥ BS s were xy linofiict;, We 5 8 8 29 8 Bees 2 al/s88s g especificamente ao histdérico no processo de formatago lingiiistica. 5 E E E 3 E q ee ‘ 5s i 2 g e 2 E certo que também outros pontos de vista funcionam como regras. ° 3 3 BS 3 : BE EE g ge 5 rt Que historiografia no segue, de um jeito ou de outro, paradigmas - - ~ = literdrios e que estilo historiografico ndo estaria, consciente ou in- & ge. Ba ag «2°! conscientemente, influenciado por modelos de escrita origindrios de $ ¢ a E 5 g = é € 5 38 3 outros campos da literatura, que nao o da historiografia? No entanto, 3 q 3 3 é z § & a as 3 g s sempre que 0 processo de formatacao deve corresponder a especifi- =| ba |32.282) $22 [32955 cidade do formatado, vale dizer, ao carater historico do saber histéri- E0588 & a 0 sabe 0 6 5 5 2 ga2 3 5 g é a 22 & 3g co apresentado, encontram-se esses tipos de formatagao e é possivel es 5 S ont | Ee |Sbsees BES 58285 caracterizé-los em detalhe. - ‘| g 2ea Nenhum tipo aparece, todavia, de forma pura. As descrigdes ti- e|3 Es 8 g a a 8 & 5 Ge pologicas isolam, artificialmente, os diversos elementos que atuam, e/2t2 z 5 = gees Se ga no processo de formatagiio, sempre articulados uns aos outros, em g g ge on E Be E gz a a £23 |3 ssa? contextos complexos. Esses contextos obedecem a légica propria, ; 2 as g z 5 & 3 a6 a & g g 3 3 € que requer ser mais detidamente esclarecida.** HA dois modos de Sas feos 2 . . - Sees == cs ee === contexte que se destacam. Os diferentes tipos implicam-se mutua- = g 3 mente, ou seja: um niio pode ser pensado sem os demais. Ademis, ‘il 38 & g az 3 3 sob condigdes determinadas, a passagem de uns aos outros nao se ; 2) 25 23 23 23 “| 22 a4 2% 28 eg 36 sg 23 “Flementos dessa teflexdo podem ser encontrados em J. Risen, Die vier Typen 288 e8 oS Eh (15), p. $63 ss. 64 Jorn Rusen faz de modo arbitrario. O contexto da implicagde significa que os elementos formais dos quatro tipos aparecem conjuntamente em toda formatacao historiografica. Sua ponderagao nao ¢, naturalmen- te, uniforme, mas ddé-se em mesclas varidveis, sem que isso impega reconhecer com clareza que elementos essenciais de um tipo estao relacionados a elementos andlogos dos demais tipos. Essa relacéo constitui o fio condutor da formataciio historiografica, seu “‘autégra- fo”, sua forma interna propria. A relacdo de transcendéncia introduz uma tensao na correlacao dos elementos tipicos, constituindo assim uma espécie de historicidade interna da formatagao historiografica. Essa tensio pode ser descrita, abstratamente, como uma tendén- cia do tipo da constituicdo tradicional de sentido, de transmutar-se em exemplar, e do tipo exemplar, de transmutar-se em genético. O tipo da constitui¢ao critica de sentido funciona como o meio ¢ 0 catalisador da transig&o. Ao longo dessas transmutagSes, aumen- tam o contetido experiencial da historiografia ¢ a compleaidade da interpelacado dos sujeitos, a que interessa diretamente o leor da identidade historica. Essas mudangas ocorrem dentro de uma rede relacional de tipos, por pressfo da experiéncia e pelo esforco dos sujeitos de se fazer valer. O alcance da experiéncia do tempo, que a interpretagdo elabora, ¢ a capacidade diferenciadora da formagao histérica da identidade extendem-se ao longo da transi¢ao da forma de constituigao de sentido tradicional, 4 exemplar e, em seguida, 4 genética, por intermédio da critica. E muito mais do gue um recurso de ultima insténcia, quando se diz ser “dialética” a interrelagao dos quatro tipos, na formatagao historiografica do saber hist6rico. A dialética articula a implicagao e a transcendéncia como relagdo légica. Trata-se de um contexto que reine efetivamente as partes ¢ as coloca ao mesmo tempo em “con- tradi¢ao” — ou seja, contém momentos de negatividade que vivificam © processo da formatacao historiografica com uma tensdo interna entre os elementos tipicos das diversas formas. Essa tens%o confere 4 historiografia uma historicidade interna propria. Com esta, a histo- riografia ganha atratividade propria e a possibilidade de aparecer ao ptblico como algo mais do que um mero modeto pré-fabricado de interpretacfio hist6rica, destinado a absorver novos conhecimentos. Historia viva 65 Esse algo mais consiste justamente em fomentar no prdprio sujeito —¢ é nisso que reside a inovagdo essencial da historiografia — 0 mo- vimento de transformar os modelos recebidos. Essa tipologia permite investigar o processo de formatacao historiografica do saber histérico sob diversos 4ngulos. A tipologia pode ser empregada, inicialmente, como um instrumental analitico da andlise empirica dos fenémenos historiograficos. Nesse ponto, a tipologia exerce a func’o de uma conccituagao teérica. Por meio dela, é possivel estabelecer e¢ interpretar a especificidade da forma- taco historiografica justamente quando se trata da peculiaridade do histérico. A especificidade de um texto historiografico pode ser identificada como uma conjugacdo de clementos tipicos. Isso vale igualmente para a especificidade dos tipos de texto historiografico. Ademais, as apresentagdes ou grupos de apresentacées podem ser comparados sistematicamente entre si. Para tanto, a conceituaco tipolégica serve de parametro. Enfim, a tipologia permite recons- (ruir as mudancas na formataydo de saber historic promovidas por opgées teéricas. Nessa atividade, a tensdo conceitual na rela¢ao sis- teméatica dos quatro tipos ganha significado especial. Com efeito, teforga-se o entendimento tedrico de que a historiografia, sob de- terminadas condig6es, tende a passar de um tipo a outro de modo nao-arbitrario. A tipologia possibilita a construcdo de perspectivas histéricas com respeito ao que ha de especificamente histérico nas formatagdes historiograficas. Ela fornece uma moldura conceitual, com a qual se pode evidenciar ¢ demonstrar como a historiografia produz, ela mesma, no cere da formatagao historiografica, mudan- gas histéricas da vida pratica humana. Além dessa fungéio analitica, a tipologia pode exercer também uma fun¢do pragmatica. Essa fungdo se realiza quando a teoria da historia se toma diretamente um elemento ativo na historiografia. Ela abre, assim, um espago de possibilidades de organizar 0 saber histérico obtide pela pesquisa de maneira que penetre eficazmente no discurso histérico do presente. Nao penso, aqui, em uma nor- matizacdo poetolégica da historiografia, mas remeto apenas ao po- tencial reflexivo do processo mesmo da formatagao historiografica. A questo de saber se ¢ como esse potencial pode ou nfo ser utilizado ' i ll 66 Jorn Rusen Histéria viva 67 nao esta entregue ao arbitrio dos historiadores, quando concorrem pelo prestigio da cientificidade, ou seja, porque escrevem histéria com base na pesquisa. O fundamento na pesquisa é um elemento intrinseco 4 formatagao historiografica e a historiografia é wibutaria dos atos lingitisticos de suas fundamentagées argumentativas. In- cumbe a essas fundamentagdes tornar possivel, para os destinatarios potenciais, o reconhecimento dos pontos de vista determinantes da constituigdo narrativa de sentido e a reflex4o sobre eles.” Winfried Schulze chamou a aten¢ao para um dado notdvel: a historiografia recente caracteriza-se por um grau surpreendente de reflexividade interna.” Eu vejo nisso um indicador da racionalidade especifica da ciéncia. A regulagaio de uma reflexdo desse tipo, sobre os principios organizacionais e formatadores do saber histérico, determinantes da historiografta, ndo esta em contradig&o com a “liberdade artistica” do historiador. Decisivo ¢ que cssa liberdade encontre seu limite nas piclensdes de verdade especificas da ciéncia. Isso quer dizer mais do que a mera regra anti-retérica, que o historiador nao deve afirmar quaisquer fatos que estejam em contradicdo com as infor- magées das fontes. O que se afirma ¢ que a historiografia néo pode produzir a aparéncia de um contexto narrative de sentido que esteja em contradicao com as regras metédicas da interpretagao historica. Por mais tentador que possa ser preencher os déficits de sentido dei- xados em aberto pela fundamentagao da pesquisa histérica, a titulo de compensag4o, com os meios estético-retéricos da historiografia, a funcdo orientadora do saber histérico, para cuja efetivacao se faz pesquisa, nada ganha com isso. No final das contas, os destinaté- tios seriam enganados, pela aparéncia de uma harmonia estética do mundo historico, quanto a realidade em que descjam orientar-se por meio da memoria historica, A tipologia da constitui¢ado narrativa de sentido pode exercer, pois, uma fungao esclarecedora em sua reflexdo sobre os funda- mentos da histéria como ciéncia. Ela pode tornar-se um meio da 4 Ver L, 123 ss. * Ver W. Schulze. Furmen der Prdsentation der Geschichte (14). formatagao historiogrifica, quando esta tenciona dar, reflexiva- mente, informagées sobre seus pontos de vista determinantes. A ti- pologia torna-se assim o 6rganon da racionalidade historiografica. Por seu intermédio é possivel esclarecer com que contetdo argu- mentativo e a que tipo de destinatarios potenciais o saber histérico se dirige, cstética ¢ retoricamente. Alguns podem achar que se trata de um processo em que a vivacidade da escrita da histéria seria debilitada pela secura de pensamento da pesquisa e da reflexdo, e preferir a imediatez pré-reflexiva do apelo estético das imagens da histéria. A faceta dionisiaca da consciéncia histérica, sistematica- mente reprimida na pesquisa pela regulapdo metédica da relagio A experiéncia, poderia entao ser compensada historiograficamente ~ desde que se suponha que existam historiadores que, além de sua competéncia profissional, possuam suficiente talento dionisiaco para escrever. O apelo estético da imagem na histéria encontra-se, contudo, em uma relagdo problematica com a relevancia cognitiva da pesquisa. O discurso hist6rico perderia seu poderio critico, po- deria desenvolver uma dindmica propria, que privaria a conscién- cia histéria efetiva dos frutos da pesquisa histérica. Talvez o perigo inverso seja ainda maior: que a historiografia acene com um gesto de cientificidade, no qual, sob a aparéncia de objetividade, se transmitam contetidos politicos. A relagaio da historiografia com a ciéncia e com a pesquisa tornar-se-ia, assim, uma bolha retérica, um mero encobrimento de intencdes politicas, subtraindo-se a reflex4o critica sobre suas posigdes, reflexdo que & essencial 4 objetividade do pensamente histérico.”* A cientificida- de tornar-se-ia mera aparéncia retérica, transmutada em seu oposto por um modo determinado de formatacao historiografica autorita- ria. Diante dessa possibilidade, a historiografia estaria mais préxi- ma do padrao cientifico se fornecesse informagio refietida sobre a dirego que imprime a formatagao historiogréfica que utiliza para seu saber histérico. O apelo 4 emogao do destinatario nao ignora sua inteligéncia. “ Ver I, 108 ss. 68 Jorn Risen Ciéncia como principio da forma As observagées precedentes sobre a reflexividade interna que a telagao 4 pesquisa confere 4 historiografia j4 introduzem o proble- ma de saber como a historia como ciéncia se realiza na formatagao historiografica do saber histérico. Ja deve ter ficado claro que néo ha tipos separados de constituicZo histérica, especificamente cien- tifica, de sentido, que subsistissem fora dos quatro tipos descritos, ou acima deles. Cigncia é, antes, um modo determinado do pensa- mento histérico, que transparece no formato dos quatro tipos e em suas configuragées. Historiografia, como formatagao do saber his- tdrico, tem de ser vista como um fator relativamente auténomo da matriz disciplinar da ciéncia da historia. Como aparece nesse fator a cientificidade, essa limpidez da consciéncia, essa reflexividade in- terna que a relag&o sistematica & pesquisa confere 4 historiografia? Gostaria de watar dessa quest&o tipologicamente, isto ¢, investigar como a relacdo esclarecedora da historiografia 4 ciéncia aparece nos elementos tipicos que lhe sao essenciais, e em sua articulagao sistematica. Que pontos de vista especificamente cientificos sao utilizades no processo de formatagao historiogrdfica do saber histérico obtido pela pesquisa? Trata-se naturalmente das trés estratégias da garantia de validade da constituigao narrativa de sentido que ja apresentei ao abordar a questio da especificidade cientifica do pensamento his- torico:* um aprofundamento sistematico do contetido experiencial, uma ampliacdo sistematica da perspectiva historica vinculada a pon- tos de vista e um reforgo sistematico da formagio da identidade hu- mana mediante pensamento histérice. Vinculados aos trés principios tacionais do pensamento histérico, os quatro tipos da constituigao de sentido adquirem uma dindmica interna propria, entram numa espécie de inquietag4o argumentativa, que reforga sua tendéncia a transmutat-se em nivcis de maior complexidade. A cientificidade inocula-os com a sofreguidio de subir de nivel, que leva das formas e dos topoi tradicionais as estruturas exemplares, das exemplares 5)'Ver 1, 95 ss. Historia viva oF As genéticas. A forma e o fopos da consituigao critica de sentido funcionam nessa dinamica como meio da transmutagao. Em outras palavras: 0 tipo critico insere-se, via cientificidade do pensamento histérico, nos demais tipos, imprimindo-lhes uma dinaémica de mu- danc¢a formal que tansmuta os elementos tradicionais da constitui- ¢%o de sentido em exemplares, e os exemplares em genéticos. Isso n&o quer dizer, contudo, que os elementos exemplares e genéticos desaparecem nessa dindmica, mas sim que sua posi¢io relativa na configuragao dos elementos tipicos de um se subordinam sucessiva~ mente aos de outros. (a) Acientificidade, nas formas e nos topoi da constitui¢ao tra- dicional de sentido, é fundamentalmente critica da tradigfo. Ela in- troduz, nas orientagdes existenciais marcadas pelas tradigdes, um elemento de critica e de fundamentacdo, que libera os sujeitos ~ a0 menos em tese — da press&o por adaptar-se a ordenamentos prévios da vida. Isso nao significa sempre ¢ em todos os casos negagao da tradigao, mas apcnas que sc ganha uma oportunidade de sc posi- cionar conscientemente com respeito a tradic¢des, eventualmente de assumi-las e de preserva-las. O existir precedentemente, puro ¢ simples, o carater existencial a priori das interpretacdes histéricas, presente nas circunstancias culturais objetivas da vida pratica, é telativizado, posto na dependéncia de fundamentagoes. Isso ocorre igualmente no plano pré-cientifico do trabalho — culturalmente ne- cessario — da memoria, pois as orientacdes historicas tradicionais somente séo eficazes quando apropriadas, ou seja, quando tornadas vivazes na forma de histérias. Nessa vivacidade, a ciéncia introduz o elemento do controle critico e da fundamentagao argumentativa. Ela opera criticamente, sobretudo quanto ao conteiido experiencial das orientagées histéricas tradicionais. Esse contetdo 6 expandido, em principio, pela pesquisa, com o que se rompe a estreiteza do horizonte experiencial das autocompreensdes historicas tradicionais. A for¢a normativa que os fatos do passado, rememorados, exercem sobre o tempo presente, é rompida pelo entendimento de que o pas- sado pode ter sido outro. Fates ¢ normas comegam a desconstituir- se e ingressam em relagdes complexas de troca, Nestas, as tradic¢des nao continuam simplesmente a valer, mas necessitam ser revistas e 70 Jorn Rasen reelaboradas para continuarem a ser eficazes (‘sé dominas 0 que conquistas”). O entendimento crescente da alteridade do passado torna a relac&o ao presente necessaria, se as tradigdes devem seguir valendo, Pode-se considerar, e mesmo lamentar, que o dever de criticar e fundamentar, imposto pela relacdo a ciéncia 4 constituigdo tradi- cional de sentido na formatagio tépica e estética do saber histérico, resulte em um abalo do fundamento sdlido que as tradigdes toma- das como validas representariam. A ciéncia, como meio da memo- ria histérica, aparece entao como uma forga desconstituidora, como parte de uma racionalizagao do mundo humano, que esvaziaria seus potencias de sentido ¢ que no passaria de uma espécie de muscu imaginario do saber histérico elaborado metodicamente, a titulo de compensacdo pela perda de sentido.*’ Quem considera, porém, que a ciéncia é uma invasdo de racionalidade fatal na vivacidade da orien- tago tradicional da existéncia, desconhece que a propria cientifici- dade repousa sobre tradigéo ¢ pode scr, perfcitamente, um meio de dar vida a ela, mesmo se sob outras formas, diferentes de uma vali- dade incriticAvel sé porque preexistisse e fosse culturalmente eficaz. A ciéncia pode revelar tradi¢des sepultadas, pode ser o meio de um cuidado consciente da tradigio e pode, enfim, obter novos potenciais de sentido da meméria historica. Tudo sé Ihe é possivel, por forga dos principios determinantes de sua argumentacdo racional, de um certo modo: as tradigdes so vinculadas 4 validade de boas razdes ¢ cficazes porque é em seu meio que se da a fundamentacdo. Em sua relago critica 4 validade tradicional prévia, inquestionada, das orientacées histéricas, a cién- cia constitui-se em metatradi¢do. Ela no destroi as tradi¢des, mas eleva-as a um determinado nivel cognitivo. Como ja dito, as orienta- goes histéricas tradicionais precisam ser relativizadas nos processos da constituicao narrativa de sentido da consciéncia histérica, preci- sam ser narradas como histérias para ser eficazes. A cientificidade & um modo dessa relativizaco. Assim entendida, ela pode, certamente, tomnar-se um fator de reforgo das tradic¢ées — reforgo pela densidade * Assim, por exemplo, A. Heuss. Verlust der Geschichte. Gottingen, 1956. Historia viva 7 experiencial ¢ pela superacao critica de horizontes temporais estrei- tos. Afinal, é a forca da expansio experiencial e da ampliagao de ho- rizontes que conduz as formas e os fopoi tradicionais da constituigdo nartativa de sentido a aproximarem-se da exemplar. Com respeito a comunicagdo vinculada aos sopoi histéricos, isso quer dizer que a naturalidade implicita do entendimento, de que todos pertencem aos mesmos ordenamentos tradicionais da vida, ¢ transposta para a linguagem de entendimentos explicitos. O enten- dimento vira compreensao, abre-se 4 forga argumentativa dos prin- cipios e das regras gerais. Em paralelo, no ambito da constituigao nartativa de sentido, alarga-se o processo de formag4o histérica da identidadc. Ela progride, por assim dizer, para o plano consciente do desempenho cognitivo. As chances da liberdade abertas assim aos sujeitos podem ser formuladas, na linguagem da teoria dos pa- péis sociais, da seguinte maneira: 0 assumir papéis (como forma de identidade produzida pela constituigao tradicional de sentido) passa a estar vinculado 4 autocompreensao conscicnte dos sujcitos, € enri- quecido por novos elementos constitutivos desses papéis. Os sujei- tos sdo interpelados pela historiografia para tornar-se, eles mesmos, co-autores conscientes das tradigdes histéricas. (b) A relag&o da formatagao historiografica a ciéncia introduz um elemento critico fundamental também nas formas e nos fopoi da constituigdo exemplar de sentido. A critica dirigia-se agora a supratemporalidade das regras do agir e dos principios da organi- zacgao da vida, apresentados por exemplos historicos. A experiéncia histérica ganha peso proprio, com o qual relativiza, temporaliza, as mesmas regras que aplica. Isso tem conseqiiéncias ambivalentes. De um lado, as regras do agir perdem a forga de convencimento da validade supratcmporal, sio cnvolvidas pela bruma do relativismo. De outro lado, aumenta a poténcia da faculdade historica de julgar. O entendimento da especificidade temporal das regras do agir re- forga seu grau de concretude historica. Simultaneamente, amplia- se, na consciéncia dos sujeitos, a diversidade e a multiplicidade das regulagées da vida humana pratica. Seu agir ganha, mediante sua orientagAo histérica propria, novos espacos e novas chances de inovagao. 72 Jorn Rasen Correspondentemente, cresce também a capacidade comunica- tiva dos sujeitos por meio da meméria histérica. A simples subsun- 80 de casos controvertides a regras, que tornariam incontroverso 9 tratamento desses casos, cede lugar a um debate muito mais amplo ¢ complexo, acerca de que experiéncias convém a que regras, ¢ inversamente. Ademais, coloca-se inevitavelmente a questdo de saber se nfo existem metarregras, com as quais se possa trabalhar cognitivamente a diferenciagio efetuada pela faculdade historica de julgar. A cientificidade do pensamento historico pode entio ser introduzida como essa metarregra e operar eficazmente como ele- mento da formatagao historiografica. Os principios determinantes de sua argumentagio resistem, assim, 4 presto de uma relativiza- go temporal das regras do agir, ao organizarem diretamente a apre- sentagao historiografica dessa relatividade e ao conferir-lhe algum sentido. E certo que essa metatregra da cientificidade permanece abstrata e relativamente vazia de impulsos para agir que requeiram oricntagao histérica. ‘Nas formas € nos topoi da constituigdo exemplar de sentido, a cientificidade abre novas possibilidades de comunicagio. A auto- compreensdo histdrica ganha uma série de pontos de vista, enri- quece-se com as orientagSes regradas do agir ¢ com as experién- cias que lhes correspondem. A relatividade temporal dos sistemas de regras do agir amplia o espago do discurso histérico. Coisas tidas como naturais no plano dos principios e das regras abstratas passam a ser expressas pela linguagem c submetidas ao balanso dos prés ¢ contras de seu contetido experiencial e de sua capaci- dade de generalizacado. Nas mesmas proporgdes, cresce a com- peténcia reguladora dos proprios sujeitos. Eles enriquecem sua identidade histérica com o saber acerca de sistemas divergentes de regras presentes em suas vidas e reforgam sua capacidade de arbitrar essa divergéncia aplicando pontos de vista supra-ordena- dos, ou seja: submeté-la a um sistema de regras estabelecido por eles mesmos. (c) Nas formas ¢ nos topoi da constituicde critica de sentido, a cientificidade opera como a ambivaléncia especifica da atiude critica, com a qual a validade das orientacdes histéricas deve ser Historia viva 73 enfraquecida: ela se volta contra st mesma. Perde a inocéncia de uma alternativa simples e ganha a reflexividade acerca da circunstancia de que a posigdo contréria nado necessariamente tem de estar errada em todos os aspectos. A forca desconstituidora das préprias contra- histérias, contudo, também esta vinculada a regras de fundamenta- gao. Essas regras submetem as experiéncias historicas referidas ao desafio do inteiramente outro do que se tem até agora, ¢ expdem as normas, que conferem significagao histérica a essas experiéncias, a0 desafio do incondicionado. Essas diferenciagies nao enfraquecem necessariamente a capacidade historica de dizer “nao”. No entanto, é certo que elas néo mais admitem a coagiio retérica como alavanca da reorientagdo historica. Por outro lado, conferem a recusa de aderir as perspectivas histéricas orientadoras da praxis e formadoras de iden- tidade a pertinéncia adequada a demonstragao das falhas da funda- mentagéo. O que vale, por exemplo, um titulo de direito, se se baseia em documentos falsificados? Que forga ainda tem uma tradig4o se as expectativas do presente se opdem a seu contetdo empirico? Com a cientificidade, aumenta a capacidade discursiva da constituigdo critica de sentido. Ela desafia o opositor a apresentar argumentos melhores ¢ abre-se, assim, 4 mediago entre posicdes € perspectivas opostas. Entra, enfim, como uma espécie de fermen- to produtivo em um amplo processo de constituicao de sentido, que ndo mais depende daquilo contra o que se volta (com o que somente poderia pretender a meia verdade), mas assume a forca da contraposi¢éo como movimento ampliador e aprofundante do entendimento. A rispidez de um “nao” abrupto, com o qual a identi- dade histérica se afirma como delimitagio e rejeicaio, ameniza-se no sentido proprio que deixa, ao outro, uma chance de ser outro, sem logo sucumbir ao veredicto de nada constituir de essencial. De certa maneira, a constituicao critica de sentido concentra-se nas formas especificamente cientificas: ela nio deixa fora de si aquilo contra o que se volta, mas leva-o consigo para outras formas de constituigdo histérica de sentido, como fator da forga argumentativa especifica da ciéncia. (d) Também nas formas e fopoi da constituigdo genética de sentido a cientificidade opera como critica, aprofundamento da 74 Jorn Rasen relacdo a experiéncia, aumento da complexidade dos significados histéricos, ampliagdo das possibilidades de comunicagao e con- solidag&o da identidade histérica. A experiéncia histérica obtida pela pesquisa critica, em primeiro lugar, representacdes do tempo nas quais a constancia de estados de coisas e de circunstancias da vida desempenham algum papel. As qualidades naturais da vida humana rotineira sao historicizadas (por exemplo, a sexualida- de). A cientificidade, na constituigdo genética de sentido, mede-se pelo grau de temporalizag&o das circunstancias da vida humana. A cientificidade significa também, todavia, um modo novo da pré- pria temporalizacdo. Ela leva a critica das unilateralidades ¢ das coergdes nas representacdes genéticas do processo do tempo. Ela as transpée para as diversidades, divergéncias, mesmo contrapo- sigdes dos processes. Com isso, aumentam 0 espaco, no discurso histérico, das perspectivas divergentes, cujas posigées se podem transformar em orientacdes histéricas. Ao mesmo tempo, amplia a flexibilidade da formagao histérica de identidade mediante a forga hermenéutica de reconhecer o outro em sua alteridade. A diregao temporal que cada um obtém pela orientacao histérica adquire scu perfil proprio, individual, ao articular-se com os tempos dos outros sujeitos, articulacio na qual uns ¢ outros se reconhecem ¢ afirmam mutuamente. Esse aumento de diversidade e divergéncia problematiza, natu- ralmente, a unidade genética do contexto temporal. Em que poderia ainda consistir 0 sentido de uma representag4o abrangente do tempo, como esta, se cada tempo proprio, individuatizado, a confina em um momento limitado dela? Existiria algo como uma metagenética dos processos histéricos, a que conduziria essa fermentagdo das cons- tituigdes genéticas de sentido pela cientificidade? A cientificidade possui, com efeito, os tragos de uma tal metadindmica de proces- sos, na medida em que a propria ciéncia apresenta uma dindmica do conhecimento, que s6 se pode conceber adequadamente como um Pprocesso mantido em movimento por sua racionalidade metddica, Bastaria esse carater processual para garantir o contexto de sentido Historia viva 75 Ciéncia e sentido histérico A regulagdo metédica da pesquisa é formal, sem conteido. A ciéncia tem de ser entendida, afinal, como uma estrutura formal das constituigdes histéricas de sentido, que nao abrange suficien- temente os conteudos que conferem significado 4 historia a ser escrita, como grandeza orientadora da vida humana pratica. Uma tal concepg&o da ciéncia corresponde a experiéncia cotidiana do trabalho cientifico, que se comporta de modo neutro, e de certa ma- neira mesmo contrario, com respeito as expectativas de sentido dos Sujeitos (inclusive dos cientistas). (Assim, por exemplo, a série de comentarios que um texto traz sobre a natureza de sua cientificida- de est4 na proporcdo inversa 4 sua capacidade de absorver 0 saber histérico que enuncia como grandeza significativa para o quadro de orientagao da vida pratica.) Chega-se assim ao problema central da historiografia. De onde provém os pontos de vista que o saber histérico retira seu poder cultural de orientacao existencial? A regulacdo metédica da garantia de validade, sozinha, nao basta, pois possui cardter apenas formal, enquanto o sentido histérico tem de estar sempre ancorado em con- tetidos, acontecimentos, dados, processos, evolugdes, ocorréncias, estruturas. A racionalidade metédica do pensamento histérico é de- terminante para a histéria como ciéncia, cujas formas dela depen- dem. Como se articula essa racionalidade com os contetidos desse peusamento, de modo que surja um construto de sentido capaz de ser aplicado, eficaz para orientar, ou seja, uma boa historia? E facil togo conceber a historiografia como um ato de criacie de sentido, no qual o pensamento histérico supera a formalidade de sua Tegulacao metédica e passa 4 materialidade de uma forma significa- tiva do saber historico. Por longo tempo, a ciéncia da histéria com- Prouve-se com essa competéncia para instituir sentido para a histo- Tiografia. No entanto, nunca conseguiu identificar essa competéncia, irrestritamente, com a especializacao profissional. O entendimento especializado néo conduz automaticamente a criacdo de sentido na historiografia. Pelo contrério! Sua aridez contrasta fortemente com as possibilidades estéticas e retéricas de tornar 0 sentido atrativo. de temporalidades divergentes? 7% Jorn Rusen Com efeito, a argumentacao discursiva propria a hist6ria como cién- cia ndo coincide com o sentido historiograficamente instituido. Mas a historia sé ¢ plenamente ciéncia se, com as formas, articular os con- teudos. A historiografia especificamente cientifica é uma formatacao do saber histérico que esteia a forma discursiva da argumenta- go cientifica nos conteidos da experiéncia historica apresentada. A raz4o cientifica ingressa no significado de uma historia na qual a experiéncia do passado possua sentido para o presente. Ela cola nos fatos. Melhor dizendo: ela se torna o fermento do contexto temporal dos fatos apresentado historiograficamente como his- toria. A historiografia recebe o selo da cientificidade quando, ao narrar uma histéria, narra igualmente o modo como lidou cientifi- camente com ela, e de maneira que esta integre aquela. A razao do pensamento histérico, que a ciéneia da histéria reivindica para si, tem de deixar reconhecer, nos contetidos apresentados, sua cicn- tificidade. De outra maneira, ficando meramente formal-abstrata, permaneceria fora do que interessa aqui, que é a orientagao hist6- rica da vida humana pratica. Ela precisa inserit-se nos conteudos da experiéncia histérica, refletir-se neles ou transparecer neles, de modo a tornar-se efetivamente parte integrante da histéria narrada (e nao ficar entrincheirada no mero aparato das notas, que distraem do texto). Como é isso possivel? Essa questo me permite trazer novamente os quatro tipos da constitui¢o histérica de sentido. Agora, porém, na diregao inversa: da genética pela exemplar, de volta a tradicional (a critica conti- nua sendo tomada como meio necess4rio a esse percurso). O olhar volta-se na diregdo inversa porque a unidade de forma e conteido analisada da-se originalmente na tradig&o. Aqui, sentido ja é coi- sa e coisa ja ¢ sentido. Essa unidade vale sistematicamente como principio da mediacao entre racionalidade metdédica e experiéncia histérica na formatagdo do saber histérico. Nos tipos da consti- tuigdo narrativa de sentido, cla habilita a historiografia a tornar-se metatradi¢ao, metarregra e contexto temporal abrangente. Nao se pensa aqui numa regressdio de construcdes divergentes de tem- pos, vazias de experiéncia, 4 solidez de uma determinada tradigfo, Historia viva 77 altamente particular, 4 qual a universalidade das pretensées cienti- fica de validade deveria ser reduzida. O que eu quero dizer ¢ outra coisa. Na amplitude e na diversidade das possibilidades de apre- sentagao elaboradas de modo especificamente cientifico deve-se encontrar um equivalente a tradigfo. Este deve conter, entretanto, a ampliacdo ¢ 0 aprofundamento sisteméticos da constituigao nar- rativa de sentido em fun¢ao do principio da cientificidade. Trata-se aqui do ponto de vista da universalidade antropolégica, que possui igualmente a aptidio para criar o sentido das tradi¢des. Essa univer- salidade corresponde 4 metatradi¢do, 4 metarregra e 4 metaevolugdo do pensamento histérico. Com a aptidao das tradigdes a constituir sentido, esse pensamento poderia relacionar-se eficazmente a vida pratica, Esse ponto de vista existe? Caso sim, como mostrar sua plausibilidade? Para deixar claro do que se trata aqui, gostaria de refletir sobre o Papel que a constitui¢ao de sentido pode desempenhar na historiogra- fia. Sob o ponto de vista de uma relagiio de principio, da historiografia a ci8ncia, a constituigiio de sentido nao pode significar que o proprio historiador aparega como criador de sentido. Ele sé poderia fazé-lo na forma de uma criagao de sentido estético-artistica, religiosa ou ideolégica. Nos trés casos, a relagdo da historiografia 4 ciéncia se- ria ofuscada, restringida ou até excluida pela arte, pela religifio ou pela ideologia.* O historiador deixaria de ser cientista e tornaria-se artista, “profeta” (no sentido de Max Weber) ou ideélogo. Nesse caso, a racionalidade metédica da ciéncia da histéria seria instru- mentalizada por essa fonte de sentido. Arte, religiio ¢ idcologia distinguem-se da ciéncia da historia ao reivindicar a competéncia para criar sentido. Recorrem a fontes préprias de sentido. Reconhe- cida 4 historiografia uma funcdio constituidora de sentido, importa demonstrar a plausibilidade de como essas outras fontes de sentido podem contribuir para as formas do pensamente histérico, enquanto % Por ideologia entendo uma cosmovisdo conceitual pensada com a pretenstio de valer incondicionalmente para a orientagio da vida pratiea. Diversamente da Teligido, a ideologia recorre exclusivamente a experiéncias profanas, atribuindo 4 cientificidade do pensamento - no mais das vezes— uma capacidade universal de explicagdo e orientagao. 78 Jorn Risen Histéria viva 79 submetidas aos mecanismos da garantia de validade especifica da ciéncia. Levada essa condigSo a sério, arte, religido ¢ ideologia recuam para 0 referido metaplano da constituigdo narrativa de senti- do. Mas como poderiam elas utilizar a forga criadora de sentido, que pretendem possuir, sem submeter-se ao principio da racionalidade metédica? Nao desejo afirmar que a racionalidade metédica da ciéncia da histéria simplesmente descarte as fontes de sentido da arte, da religi&o e da ideologia. Pelo contrario, para poder atuar na vida cul- tural do presente, os saberes histéricos necessitam ser fertilizados com os potencias de sentido estéticos, religiosos ¢ ideolégicos. Mas como? Se o historiador aparece como criador estético de sentido, como instituidor religioso de sentido ou como fornecedor ideolégico de sentido, entao ele seria mais do que um historiador. Sim, quase inevitavelmente sua especializagao profissional seria absorvida pela atitude estética, religiosa e ideolégica. Se essa especializagio, po- rém, deve ser preservada, pois de outra forma perderia a forga de convencimento do saber especificamente cientifico, entéo o historia- dor deve renunciar 4 competéncia de criar sentido em nome de sua ciéncia. Mas no perderia ele assim, por sua vez, inexoravelmente, os potenciais de sentido a que sua ciéncia nao pode renunciar, se nao a0 prego de abandonar sua posi¢éo cultural privilegiada como meio da orientagao histérica da vida pratica? Esse certamente nao € 0 caso, quando os potenciais de sentido da formatacao historiografica so ativados por meio da memoria his- térica, ou seja, quando a consciéncia histérica e suas operagdes de constituigao de sentido encontram sua posig&o cultural especifica. Aqui nao se trata, originalmente, de criar sentido, mas de rememo- rar sentido. A historiografia tornar-se, assim, simultaneamente mais modesta ¢ mais plausivel. Mais modesta pela renuncia 4 criago de sentido; mais plausivel porque recorre ao sentido ja instituido e exis- tente no mundo dos homens. A historiografia nao cuida de criar sentido, mas de rememorar sentido. E o faz de maneira que esse sentido seja tomado apto a contribuir para solucionar os problemas de orientagio da conscién- cia histérica no tempo presente, mediante o arsenal de recursos da garantia cientifica de validade (vale dizer: mediante critica do sen- tido pelo controle da experiéncia, reflexdo sobre as posigées de ori- gens e€ teorizacg4o). O passado é sempre mais do que um acumulo de fatos sem sentido, que teriam de ser articulados posteriormente em um contexto significative (“historico”)}. O passado sempre esta presente como significative nos processes culturais da memoria. O historiador nado pode pretender privilégio algum para o poten- cial de sentido que formula e torna presente pela escrita, pois esse potencial sempre esta presente e manifesto nos tempos respectivos. A umnidade de forma ¢ contetido produzida pela historiografia ja esta pré-formada pela experiéncia histérica. Ameméria histérica preserva do passado apenas 0 que Ihe parece — seja 14 como for — consenténeo com o significado do agir humano. A correlacao entre significado e agir estende-se ao pensamento histdrico ¢ adquirc sua forma eficaz ha historiografia. O metanivel da constituigao de sentido especifica- mente cientifica, nas formas e topoi tradicionais, exemplares e gené- ticos, que se interpenetram dinamicamente por meio da constitui¢ao critica de sentido, situa-se nesse conteiido prévio da memoria his- torica. Esse conteido deve ser elaborado ¢ apresentado nas formas especificamente cientificas do pensamento historico. Naturalmente, os conteados prévios da memoria histérica nado esto imunes 4 maneira pela qual a historiografia enuncia o reme- morado. A cientificidade, como elemento formatador, conduz a uma certa modificagéo. Tendencialmente, ela desenvolve, a partir dos contetidos prévios da memoria histérica (originalmente tradicio- nais), pontos de vista de um significado histérico que consideram a espécie humana, a “humanidade”, como critério empirico ¢ norma- tivo da formagao histérica da identidade. Essa universalizacao para toda a humanidade esta presente j4 na pretensao de racionalidade com que a ciéncia da histéria se engaja no discurso histérico de seu tempo presente, Ela fundamenta essa pretensdo na capacida- de racional de todos os sujeitos interpelados pelos problemas da orientagdo historica. Essa capacidade é suposta como propria a0 homem como ser-espécie e se manifesta em todos os resquicios histéricos do agir e do padecer humanos passados, “falando” assim ao presente.

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