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RESENHA Uma outra economia é possivel. Paul Singer e a economia solidaria André Ricardo Souza; Gabriela Cavalcante Cunha e Regina Yoneko Dakuzaku (Orgs.) por Monika Dowbor’ Se uma outra economia é possivel, como afirma o titulo da segunda coletinea dedicada A economia soliddria publicada pela editora Contexto!, essa possibilidade encontra-se num equilibrio instivel entre aquilo que se apresenta como seu projeto e a realidade constituida por empreendimentos soliddrios. Esta parece ser a tonica predominante desse livro, que oferece tanto ao leitor alheio A economia solidaria * Mestranda no Programa de Pés-graduagi0 en Soviologia éa Universidade de $0 Paulo © primeiro volume, organizado por Paul Singer € André Ricardo Souza. foi A economia soliléria ne Brasil: a aurogestao. come resposta an desemprego. S30 Paulo: Contexto, 2000, Plural; Sociotogia, USPS. Paulo, 11: 141-145, 2° sem. 2004 quanto ao seu militante uma fonte atualizada e bem organizada das diversas facetas de econo- mia solidaria no Brasil e de duas experiéncias de referéncia no mundo, os kibutzim israclen- ses € 0 complexo cooperative de Mondragén na Espanha Os caminhos da reflexdo tomados por esse grupo de autores que, além de pesquisa- dores, na sua maioria atuaram ou ainda atuam em entidades e agéncias de fomento de eco- nomia solidéria, percorrem a anélise das con- digdes necessirias para a consolidagio desta economia como uma alternativa com forga para disputar um lugar ao sol, as interpreta- goes acerca de suas origens e de contornos de sua identidade, os ensaios sobre as possibi- 141 lidades de existéncia e instauragdo da autogestao como modo de trabalhar e de se relacionar com os outros e a interpretaciio critica e desmistificada dos casos concretos de formas cooperativistas no Brasil e no mundo. No que se refere 4 organizagio de informag6es e conhecimentos, atividade re- levante num campo tio novo como é o da economia solidaria, merecem destaque o ar- tigo de Gabriela Cavalcanti Cunha que é uma excelente sistematizagdo da discussaio de contrapontos, diferengas e semelhangas en- tre os estudiosos desse campo em diversos pafses, e 0 de Denise Gomide no qual a au- tora apresenta a fascinante e sinuosa hist6- ria dos kibutzim. O livro é também uma homenagem ao professor Paul Singer, um intelectual e mili- tante da economia solidria. No entrelagado de depoimentos do proprio homenageado com os de seus discipulos, no texto de Paulo de Salles Oliveira, revela-se aos leitores um homem de rara coeréncia entre a teoria ea prética. A importancia de Singer vem tam- bém a tona nas refer€ncias que quase todos 08 artigos fazem aos seus escritos. E 0 did- logo com quem € considerado 0 emblema da economia soliddria no Brasil lembra muito oclima de suas aulas: parte-se de seus pres- supostos, mas vai-se em diversas diregdes, desbravando, arriscando novas hipéteses, contestando e propondo. Um desses debates, para 0 qual gosta- ria de chamar atengio, gira em torno daquilo que vem a ser ou pode vir a ser a economia solidaria’, E uma outra economia ou um novo 142 cooperativismo? Um movimento social ou po- litico? Trata-se de isolados implantes socia- listas ou de uma revolugao social? E uma alternativa ao sistema capitalista ou uma resposta & crise de desemprego? Ao mesmo tempo que estas diversas denominagées de- nunciam um esforgo de conceituagiia de algo muito recente, podemos considerd-las também como elementos da construgio de identidade daqueles que se sentem parte da economia solidaria. Isto fica bem claro, quando tratam de dizer 0 que nao € a economia solidéria. Ela é contraposta ao cooperativismo tradici~ onal, “burocratizado”, “degenerado em bus- ca de eficiéncia no mercado", representado pela Organizagao das Cooperativas Brasilei- ras, entidade de representagiio politica cons- tituida em 1971, que representa as sete mil ¢ trezentos e cinglienta e cinco cooperativas de treze ramos e cinco milhées € setecentos & sessenta ¢ dois mil cooperados que a ela sio filiadas’. Uma segunda oposigio € forjada em 2 in 2003. 0 govern federal institu a Secretaria Nacional de Economia Soliris. biigada pelo Ministério do Tiabalhoe Em prego ¢ conduzido pelo professor Singer. Em mai de 2008 foi Tangado o Sistema Nacional de Informagées em Ecoocmia So: liddvia (SHES), composto por inforragies de Empreendimen: tos Econdmicos Solidirios (EES) de Entidades de Apoio, As- sessoria © Pomeito (EAF) “com 0 objelive de proporcionar a yisibilidade. a articulagdo da economia soliddria ¢ oferecer sub- sidios nos processos de formulagso de politicas publicas. est realizancio o mapeamento da economia salidéria no Brasil” (exc uth. gos by/Temas/EconomiaSolidariasconteuday lefaleaap ) Atco presente momento, fica font nacional de adios abrange apenas 0 cooperatvismo e &produrids pela Or- mizagdo das Cooperativas Brasleieas * Dados de 2003, provenientes do pizina da Organizagio das Cooperativas Brasieiras: wows.ocb.org.br Plurat; Sociologia. USP, S. Paulo, 11:141-145, 2° sem, 2008 relagdo ao “pseudocooperativismo”, os famo- sos “cooperagatos” -, isto €, as empresas que funciona sob a forma juridica de cooperati- va, mas ebjetivam apenas fugir dos encargos trabalhistas. As definigdes por negagio aparecem em quase todos 0s textos e se a énfase existe € por- que 0 tisco de ser confundido e de se confundir com aqueles é iminente. Os riscos so varios: ser confundido, por exemplo. por grupos que querem constituir um empreendimento coletivo em seguida procuram amparo em agéncias de fomento; ser confundido pelo Ministério Pabli co que, preocupado em denunciar aquilo que nio considera como “cooperativismo auténtico”, niio otha muito a origem ou ainda pela populaggo em geral, que pouco sabe do cooperativismo da economia solidéria ¢ muito menos das dife- rengas entre os movimentos. Se o que acaba- mos de dizer nada mais é do que uma hipétese, uma impressio advinda da experiéncia profis- sional no cooperativismo da autora dessa rese- ha, 0 risco de se confundir, no sentido de nao poder se distinguir, € algo que os proprios tex- tos apontam, Esse risco reside no fato de que as, vivéncias democraticas autogestionarias im- plicam em um longo processo de mudanga nas posturas das pessoas (tanto de trabalhadores quanto de assessores, técnicos, militantes etc), ameacado constantemente pelos retrocessos ou degeneragio. Por isso aquilo que identifica a economia solidéria, isto é, empreendimentos com uma “orientago igualitiria democritica”, como define André Ricardo de Souza, “onde as pessoas se associam com base em relagdes de reciprocidade e igualdade”, segundo Gabriela Plural; Sociologia. USP, S. Paulo, 11:141-145, 2 sem. 2004 Cavalcanti Cunha e “baseados em formas de- moerétieas”, conforme Henrique Zoqui Martins Parra, entre outros, no parece ser um dado in- contestavel e hegem6nico da realidade e mais um projeto politico a ser defendido, debatido, implementado e consolidado constantemente. E foi nestes termos que nos refeerfamos a um equi- Mbrio instével que aparece com bastante intensi- dade enue & primeita parte do livro dedicada & perspectiva histérica e polftica’e as trés demais, voltadas, respectivamente, ao cooperativismo in- ternacional, as experiéncias cooperativistas bra- sileiras € 20 processo de formagao. Assim, 0s estudos de casos descritos na coletdnea, que certamente nao pretendem ser representativos mas permitem experimentar “um gostinho” da riqueza e diversidade de ca~ minhos trilhados pelos empreendimentos soli- darios ou denominados como tais, assinalam que © cariter solidario talvez: nao seja tio marcante como se gostaria nas pessoas que se organi- zam de maneira coletiva. Isto , 0 cooperativi mo! de economia solidéria na pritica cotidiana pode prescindir da vontade das pessoas de transformar posturas € valores em diregio & autogestiio, solidariedade e democracia. O tex- tode Regina Dakuzaku, por exemplo, demons- tra uma diversidade de razdes e interesses em toro da formacao de cooperativas pelos defi- cientes, entre os quais o prazer de se trabalhar em grupo, uma proposta para envolver os fa- “ Usamos a denominagio cooperativa, pois os estudos de easos focam somente esta forma de economia solidaria, Valesia saber ‘que justifica essa escolha. miliares dos usuarios, ambos objetivos distan- tes duquilo que estd nos postulados prioritarios de economia solidaria. Uma andlise semelhante no que se refere as razées da participagiio en- contramos no artigo de Maria Regina Cardeal “Cooperativa Habitacional dos Jornalistas: uma histéria inconclusa™, entre as quais a par- ticipagao aparece como a forma mais barata de se conseguir uma moradia. Motivos parecidos, pautados em ques- Wes outras que o projeto autogestiondrio & participative dos empreendimentos, parecem possuir um mérito menor ou sequer serem le- vados em consideragio como um trago consti- tuinte dos empreendimentos classificados como economia solidaria no Brasil. A nega- do ou silenciamento de uma parte da realida- de parece colaborar para com a idéia da construgio da economia solidéria também como um projeto politico de um conjunto de pessoas, na maior parte pertencentes ao circuito de agéncias de fomento. A hipétese seria um tanto dbvia, se no fosse o fato de que este carter da economia solidaria € um tanto si- lenciado para nfo ofuscar as origens popula- res dessa economia. Um outro trago interessante sublinha- do pelos autores é a dimensio da formagao politica e civica mais geral em empreendi- mentos solidérios. Ao autogerirem seu em- preendimento, as trabalhadoras e os trabalhadores adquirem uma pratica demo- critica gue pode ser aplicada em outros es- pacos sociaise politicos. Dada a importancia da vaziio do econémico para o politico, as manifestagdes de degradagdo dos espagos autogestiondrios alarmam e preocupam. mais inclusive do que a viabilidade econémica. tema secundério desta coletanea (com exce- go do texto de Juan Cruz-Moreira sobre co- operativas populares de confecgao no estado de Sio Paulo). Do conjunto dos artigos, emerge uma representagdo da participagio como uma obrigagio, um credo, uma exigén- cia quase moral ou resultado de maior rele- vancia, desde que garantidos os espacos ¢ as condigées favordveis para tanto. Como se no pudessem existir entre os trabalhadores gradagées nas vontades de participar, inte- resses ou atividades mais envolventes do que © empreendimento do qual se faz parte As experiéncias internacionais langam uma luz interessante sobre essa questo. Tan- to.ocaso de Mondragén quanto o de kibutzim israclenses, na interpretagdo dos autores Pablo Ortellado € Denise Gomide, assinalam o distanciamento do idedrio de seus precurso- res ¢ pioneiros e apresentam consegiiéncias de influéncias externas de diversas ordens ~ econémica, social e cultural — que impactam fortemente no seu funcionamento. Estes dois, icones de cooperativismo mundial vivem di- lemas ou contradigdes semethantes ao que & ou pode ser encontrado em empreendimen- tos soliddrios. As hipéteses contidas no texto de Egeu Esteves “Os desafios & igualdade nas cooperativas autogestiondrias” encontram res- soniincia no artigo "Mondragén ¢ os impasses do cooperativismo”, dentre as quais vale destacara desigualdade erescente dos rendimen- tos, 0 encolhimento de espacos de participa 0 democtiticas, controle sobre o trabalho e Plural; Sociologia. USP. S. Paulo, 11:141-145, 2° sem 2004 a divisdo entre os trabalhos de diregio de execucio. ‘Como ndo poderia deixar de ser dentro de um campo em construgdo e em busca de identi- dade 0s artigos contém propostas, indicagdes & apontamentos de caminhos para que “uma outra economia seja possivel”. Entre os mais abran- gentes. encontramos a necessidade de transfor- magio da economia solidéria em um movimento politico, a urgéncia da articulagiio de empreendi- Mentos entre si, com outros movimentos sociais € politicos e poder piiblico, a politizagao de suas, unidades, a integrago em um amplo movimen- to politico, ideolégico e cultural. No patamar dos empreendimentos, emerge a necessidade da for maco dos trabalhadores ¢ da melhoria de asses- soria por parte das agéncias de fomento, entre outros. A amplidio do leque reflete o grau de efervescéncia e da penetragio da economia sol daria em diversos Ambitos sociais. Sem divida importantes, os postulados supramencionados no surpreendem, mas 0 que deixa a discussao mais tensionada e desa~ fiadora aida sio os caminhos possiveis das experiéncias intemacionais. Denise Gomide, por exemplo, aponta, a partir da experiéncia acumulada de kibutzim, a necessidade de seu continuo redefinir-se e recriar-se nas sucessi- vas geragdes para estabelecer comprometimen- to e satisfagao para com ¢ entre os associados. Pablo Ortellado, por sua vez, diante das con- tradig6es do complexo Mondragén. clama pelo reconhecimento transparente das divergéncias entre a pratica e o plano ideal como parte inte- grante dos empreendimentos cooperativistas. E se, como propria Denise Gomide as- sinala, trata-se de interpretagoes brasileiras € que portanto devem dizer algo a respeito de nossa realidade, seus apontamentos vo ao en- contro do sofisticado e raro argumento de André Barreto em seu “Cultura da coopera io: subsidios para uma economia solidéria” “necessitamos transformar também o capita- lismo incorporado em nés”. A primeira pes- soa do plural é um detalhe que faz toda diferenga, isto é, implica todos no processo aqui ¢ agora: dos empreendimentos as agén- cias de fomento que os circundam e os apéi- am na construgao da economia solidéria, ainda que isto signifique assumir a existéncia de tendéncias contraditérias, mas nem por isso menos belas e promissoras. Pagan, Plural; Sociologia. USP. $. Paulo, 11:141-145, 2 sein. 2008 14s

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