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"VITALISMO" E "ABERTURA" NO BARROCO BRASILEIRO MELANIA SILVA DE AGUIAR* RESUMO Pretende-se demonstrar aqui que certas categorias eriticas, como "vitalismo" e “abertura", freqiiente mente utilizadas em estudos sobre o barroco euro- peu, sao inadequadas na maior parte dos casos ao barroco literario no Brasil e, em especial, a cer- ta porgao de poemas de Gregério de Matos em que a sujeigao ao modelo limita o véo criativo e a multi vocidade de sentidos. Nos dias de hoje, uma das nogées mais freqiientemente as- sociadas 4 obra de arte moderna e, por extensdo, 4 obra de ar te barroca, é a nogao de “abertura”, chegando mesmo o composi tor francés Pierre Boulez a manifestar "o seu desinteresse por uma obra de arte 'perfeita', 'classica', ‘tipo diamante’, de- elarando-se por outro lado a favor de uma ‘obra aberta', como um ‘barroco moderno', mais apta a interpretar as necessidades de expresso e de comunicagdo da arte contemporanea" .1 Esta abertura, concebida por Umberto Eco como "campo de possibili- dades" e como “ambigiiidade", nogdes correlatas como se pode inferir, estéo em perfeita coeréncia com a “tendéncia vitalis ta", também atribuida 4 estética barroca, tendéncia segundo a qual a natureza com suas cascatas, transparéncias, curvas e assimetrias seria o modelo vivo da obra de arte do tempo, su- jeita a perspectivas miltiplas e variadas. A este respeito observa Umberto Eco: "As posticas contemporaneas, ao propor estrutu- ras artisticas que exigem do fruidor um empenho_ au tdnomo especial, fregiientemente uma reconstrucao, sempre variavel, do material proposto,refletem uma tendéncia geral de nossa cultura em diregao Aque- les processos em que, ao invés de uma seqiiéncia *Professora adjunta da Universidade Federal de Minas Gerais. Doutora em Literatura Brasileira. 0 Eixo e a Roda, Belo Horizonte, (5): p. 87 - 94,1986. 88 univoca e necessAria de eventos, se estabelece como que um_campo de probabilidades, uma “ambigiiidade"de situagado, capaz de estimular escolhas operativas ou interpretativas sempre diferentes”. De modo andlogo, falando do Barroco nas artes plasticas, dir Affonso Avila: “A_obra de arte contemporanea se oferece aqui através de pontos de vista, Angulos ou perspectivas que quebram a linearidade e a rigidez classicas,con vidando-nos a uma relagao visual mais rica de possi bilidades fruitivas, em que se ampliam e excitam mais livremente as nossas disponibilidades para a experiéncia dos sentidos e o gozo da inteligéncia’3 £ ainda Affonso Avila quem observa, focalizando agora a literatura: “Se transferirmos nossa atengio para a criagao literaria, ainda ali iremos encontrar a mesma carac teristica formal do barroco, isto é, uma concep¢ao € uma expressao que tambén se resolvem em nivel ‘de abertura, de multivocidade". Se observarmos bem a literatura produzida no Brasil no seiscentos e mesmo no periodo que se seguiu, em Minas Gerais, veremos que esta "abertura” e este "vitalismo" est@o sob de- terminados aspectos altamente comprometidos, primeiro porque "abertura" e “vitalismo”, fazendo supor multiplicidade de pon tos de vista sabiamente fornecidos pelo artista ao destinata- rio/receptor/decodificador de sua mensagem, estao em relagao intima com a capacidade de criar coisas novas e surpreenden- tes, que rompam com a regra, a partir, evidentemente, de uma base conhecida (se tudo fosse novo n&o haveria comunicagao); segundo, porque estes termos, “abertura” e "vitalismo", suge- xem fluidez, maleabilidade de significados, certa naturalida- de aparente de expressdo e nado & isto, exatamente, o que en- contramos nesta literatura. A idéia de criagdo, de rompimento com uma ordem consagrada, est implicita na origem mesma do Barroco. Assim, 6 a novidade, o surpreendente, o variado, “a desordem organizada" criativamente o que orienta a obra de Ma O Eixo e a Roda, Belo Horizonte, (5): p. 87-94, 1986, 89 xino, de Géngora, de Calderén etc. Ora, a simples leitura de certa porcao de poemas de Gregério de Matos (nado de todos, é bem verdade), para ficar no nome de maior expressio do barro- co brasileiro, poemas escritos na segunda metade do século XVII, quando o barroco europeu j4 se exauria, revela a ausén- cia desta fluidez, da rica multivocidade e da surpresa, tendo j4 perdido a metdfora, os jogos de palavras e demais recursos © frescor da coisa nova, original. Nao se trata aqui de desme recer a poesia de Gregério, sempre bem-vinda, com ou sem as ressonancias de Géngora ou Quevedo, nem de levantar o proble- ma 34 por demais debatido do "plagio" em Gregério. Gregério, como todo artista brasileiro, viu-se entre o desejo de se ex- pressar poeticamente e a necessidade de nao perder de vista o modelo aprovado e sacramentado pelos detentores da verdade po litica e estética. A sua obra é assim, pelo menos em parte,es pelho fiel do original vindo de Espanha, cujo dominio politi- co no Brasil, quando Gregério produz a sua obra, & ainda mui- to recente, sendo o peso da estética espanhola do tempo mais que consideravel. Nao se trata, pois, de verificar o valor li terGrio maior ou menor de Gregério em fungao deste ou daquele critério. Trata-se de verificar até que ponto certas catego- xias criticas, como por exemplo “abertura" e “vitalismo", cos tumeiramente aplicaveis ao barroco europeu, poderao funcionar para a literatura barroca no Brasil. Tomemos como exemplo 0 poema de Gregério de Matos: "Retrata o poeta as perfeigdes de sua senhora (D. Angela) 4 imitagado de outro soneto que fez Felipe IV a uma dama, somente com traduzi-lo na lingua portu- guesa" Se_ha de ver-vos, quem ha de retratar-vos, E & forgoso cegar quem chega a ver-vos, Sem agravar meus olhos e ofender-vos Nao ha de ser possivel copiar-vos. Com neve e rosas quis assemelhar-vos, Mas fora honrar as flores e abater-vos, Dois zéfiros por olhos quis fazer-vos, Mas quando sonham eles de imitar-vos? 0 Eixo e a Roda, Belo Horizonte, (5): p. 87 -94, 1986, 90 Vendo que a impossiveis me aparelho, Desconfiei da minha tinta imprépria E a obra encomendei a vosso espelho. Porque nele_com luz e cor mais prépria Serei (se nao me engana o meu_conselho) Pintor, Pintura, Original e Cépia.5 Neste poema, como se vé, o poeta delega ao espelho a ta~ xefa de retratar sua senhora, visto que se sente incapaz, em face da beleza enceguecedora de Angela, de reproduzi-la fiel- mente. A comparagao da amada & neve e 4s rosas sé faz desmere cer sua beleza, o mesmo ocorrendo se comparados a zéfiros os seus olhos. 0 espelho, frio, neutro, “tabula rasa", (usando Propositalmente uma express&o do gosto de Silviano Santiago) §, cumprira a tarefa, ja que nela, em sua imagem duplicada, a mu lher sera ao mesmo tempo pintor, pintura, original e cdpia. Por um uso que se tornou verdadeiro chavdo no tempo, pois nao h& escritor que se preze que nao tenha recorrido a estas meta foras, a neve é associada 4 brancura da amada e as rosas 4 co loragao suave de suas faces. Vencida a barreira inicial da significagao, tanto menos opaca quanto mais afeito aos poemas da &poca estiver o leitor, nada de menos ambiguo e de menos xico de sugestdes significativas que o poema acima. £ bem vex dade que a lembranga de poemas anteriores que exploram o mes- mo tipo de recursos, no dialogo intertextual, enriquece de su gestSes o novo texto, aumenta sua ressonancia, mas isto ja nado est4 propriamente na natureza do texto, mas nas circuns- tancias histéricas que envolvem sua recepgéo. Em outras pala- vras, © poema, 4 forga da falta de originalidade e da utiliza gao de “achados" j4 estratificados pelo uso, fecha-se 4 multi vocidade, 4 pluralidade dos pontos de vista, aqui jA defini- dos em esquemas pré-fabricados. Por outro lado, chama a aten- gio a simetria com que se distribuem aos pares certos vocabu- los-chave do poema, mantido um valor positivo ou negativo, co mo se todo o poema se articulasse rigidamente em torno de um eixo divisério, de uma espinha dorsal, em que tomam valores de antitese "ver-vos" e “retratar-vos"; "cegar" e "ver - vos"; "agravar meus olhos" e “ofender-vos"; “honrar as flores" e “aba 0 Eixo e a Roda, Belo Honézonte, (5): p. 67 - 94 11986, 91 ter-vos". A idéia de recolha de elementos ndo expressos, mas sugeridos no in{cio - pintor, pintura, original e cépia, so- mente ocorrera no fim do poema, como que amarrando ou ordenan do formalmente o que aparentemente poderia ser tomado como de sordem inicial. J& que nado pode, por nao conseguir enxergar com clareza e precisdo o modelo, ou por lhe faltaremos ele- mentos adequados 4 pintura (e leia~se aqui pintura ou poema), A que. nao pode igualar a cépia ao modelo ou o “outro” ao"mes mo “ na reduplicagao do "mesmo", o poeta/pintor recorre ao es pelho que o substituira porque é capaz de ser fiel e de, por- tanto, reproduzir as perfeigdes do modelo. Tao estratificada fica a imagem, presa ao espelho, quanto a prépria linguagem do texto, amarrada e conclusa, ou quanto o préprio poema pre- so ao original, ou quanto nosso poeta submetido ao modelo es- panhol. Poder-se-ia objetar que o tema deste poema, demons- trando a faléncia do recurso convencional a elementos da natu reza, & antes cldssico que barroco e que Gregério ai nada mais faz que seguir um veio de sabor classicista do tempo,con fessando sua incapacidade diante da imensa beleza da amada.En tretanto, se tematicamente isto pode ser verdadeiro, o que ve mos aqui primeiramente é a rigorosa organizagio do discurso, tal qual a encontramos em outros poemas do tempo, europeus ou no, e nos quais se poderia enxergar aquele “xadrez de pala- vras" de que nos fala Vieira no “Sermao da Sexagésima" em cri tica famosa aos sermdes do tempo. E em segundo lugar uma es- tratificagZo do sentido que, evidentemente, empobrece ou limi ta as sugestées de significado. De um modo geral, os. poemas de Gregério, e notadamente os poemas liricos, manifestam-se num “xadrez de palavras" em que as antiteses, freqiientemente falsas antiteses como as janelas falsas de fachadas barrocas que buscam a ordem aparente das simetrias, os poemas de Gregé xio (e por que nao dizer de Manuel Botelho de Oliveira e ou- tros) somente reforgam a idéia da rigidez e da definigio no sentido da mensagem, o nao contribuindo para definir o 4im e vice-versa. A verificagao de que existe o mesmo “amarramento" na poesia barroca espanhola, italiana ou francesa (sabe-se co mo Gérard Genette se referiu a textos franceses da época: 0 Eixo e a Roda, Belo Horizonte, (5): p.87 - 94,1986. 92 da de menos fluido, de menos difuso, de mais abrupto que a vi sao que neles se exprime")’ apenas reforga a idéia de que os conceitos de “abertura" e "vitalismo" somente sob alguns as- pectos e em parte poderéo ser aplicados 4 literatura barroca e, no Brasil, em especial, por outras razdes, ainda com mais reservas. Vejamos. Lendo este poema como uma metafora da pré- pria situagéo do artista brasileiro, e isto evidentemente nado est& implicito no poema, maior serA sua contribui¢ao para uma certa ordem de consideragées. Pelo titulo (do poema), somos levados a ver que o poema & composto 4 imitagio de outro sone to feito por Felipe IV a uma dama. Portanto, o poeta imitou ou traduziu poemas nao sé de Géngora mas de outros; do mesmo modo. o espelho imita ou traduz a mulher em suas perfeicdes.As sim, “pintor" ou "poeta", “espelho", “cépia" e "poema de Gre- g6rio" se correlacionam de um lado, frente a outra série “mu- iher", "pintura", “original” e “poema espanhol" de outro, a que podemos acrescentar "modelo". Gregério, sem perceber, re- trata a situagao efetivamente constante e dramatica do artis- ta brasileiro dos primeiros séculos, enceguecido pelos valo- res europeus, situagao que se perpetua de certo modo até hoje: a de submeter-se ao modelo estrangeiro, tido como o melhor e mais perfeito, e omitir-se enquanto ser pensante e capaz de crdar uma obra individual, numa cultura prépria e, se nao in- dependente, pelo menos diferente e com outros valores. Este drama, sentiu-o e manifestou-o como nenhum outro em sua obra o barroco poeta Arcade Cléudio Manuel da Costa. Numa trajetéria que vai da humilde submiss’o ao modelo barroco,pas sando pela experiéncia aprisionante do Arcadismo a que nado conseguiu submeter-se tao inteiramente, até a experiéncia de suas Gltimas composi¢ées, esteve sempre presente em Claudio o drama da fidelidade as origens e o rompimento com o modelo.Na Gltima fase de sua poesia, as “dureas Minas", que ele eleva ria 4 categoria do mito, vao constituir o verdadeiro e princi pal objeto de sua ateng&o. A bipolaridade "paisagem arcadica", imposta esteticamente, e “paisagem natal", a que se liga afe- tivamente, leva-o a uma oscilagao que bem traduz 0 conflito do poeta, desterrado em sua prépria terra. Se a valorizagao 0 Eixo e a Roda, Belo Horizonte, (5]: p.87 - 94, 1986. 93 do elemento nacional é ou nado indfcio em Claudio de uma oposi. ¢gdo consciente 4 Metrépole, nao sabemos dizer; pode-se contu- do observar que, nesta valorizagado da terra, confirma-se mais uma vez aquela consciéncia critica, literaria, j4 testemunha- da no prélogo das Obras. Esta consciéncia critica, que 0 Romantismo iria aprofun- dar, nao se verificara ainda - pelo menos no grau em que se manifestou em Claudio - em Gregério de Matos e seus coetaneos. Espelho fiel do modelo europeu ou inclinado a criar seu mode- lo préprio, o escritor brasileiro se viu sempre asfixiado pe- lo peso da tradigdo cultuada, que sé em parte é sua. Numa perspectiva histérica, em que os textos de uma cul- tura dependente vém inevitavelmente acorrentados a outros tex tos seus antecessores, modelares, numa cadeia de tradigao es- tabelecida pela meméria comprometida, é impossivel falar-se de “vitalismo" e “abertura", pois, se tais categorias,nem com relagao as préprias fontes podem ser tomadas como absolutas, quanto mais se pretenderem explicar uma produgdo/espelho/cd pia estratificada, vedada ao impulso criador e sem frestas por onde se insinuem a ruptura e 0 descontentamento! Recorrer indiscriminadamente a tais categorias para explicar 0 barroco brasileiro apenas testemunha a continuidade de um tipo de su- jeigao - a submissao intelectual a um modelo critico mais so fisticado que nos seduz pelo seu brilho, como a mulher do poe ma ou o texto estrangeiro seduziram o poeta Gregério. Dentro desta perspectiva, impde-se toda uma reviséo do barroco no Brasil a que no poderao faltar novos parametros de andlise e critica. ‘ A Wilton Cardoso, Mestre do Barroco, de Machado e das cantigas d‘'amigo, oferego estas consideragées. NOTAS 1. Apud Giovanni Cuttolo na sua introdugao a Obra aberta, Um berto Eco. Sdéo Paulo, Perspectiva, 1968. p. 9. 0 Eixo e a Roda, Belo Horizonte, (5): p.87- 94, 1986. 94 2. Op. cit., p. 93. 3. In 0 Lidico e as projecées do mundo barroco. So Paulo, Perspectiva, 1971. p. 19-20. 4. Id., p.20, 5. Extraido de Gregdnio de Matos. Estudo e AntoLogia. Maria de Lourdes Teixeira. Brasilia, Melhoramentos/INL, 1977. 6. Segundo Silviano Santiago era assim que o colonizador via © nosso indio, “tabula rasa", um ser desprovido de sinais culturais sob o qual se poderia imprimir totalmente as mar cas da colonizagao; assim como uma esponja que absorve o que quer que seja. £ assim que Gregério de Matos vé o espe iho e estas sao as qualidades que admira nele. Veja-se Sil viano Santiago. Vale quanto pesa: ensaios sobre questoes po Litico-culturais. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982. p.15. 7. In Figunas. Sdo Paulo, Perspectiva, 1972. p. 31. 0 Eixo e a Roda, Belo Horizonte, (5): p.87- 94, 1986.

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