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NINGUÉM SABE O QUE É MORRER

O barulho familiar, acolhedor do vento a dançar numa ceara de trigo, o calor


no rosto aquecido pelo sol inundavam o corpo de Verónica com uma agradável
sensação de segurança e conforto, este era um lugar mágico, tranquilo que a
enchia de uma agradável sensação de paz.
Pouco a pouco verónica abriu os olhos, os seus sentidos não a enganaram,
estava no meio de uma ceara de trigo a dançar ao sabor do vento Por cima de
si o céu era tão azul quanto seria alguma vez possível e o sol aquecia o seu
corpo, mais uma vez foi inundada por uma indescritível sensação de paz.
Sentia como se fosse possível abrir os braços e voar, mergulhar na imensidão
do céu azul, daquele azul impossível de existir nalgum outro sítio que não no
seu amado Alentejo.
Aquele azul era hipnotizante, o seu corpo ondulava ao sabor do vento como se
fosse apenas mais uma espiga de trigo, como se nada mais fosse do que uma
simples criatura em contacto com a terra, em paz. Lentamente fechou os olhos
concentrado-se no barulho do vento, tentando não sentir mais nada do que
aquele som, bloqueou todos os outros sentidos senão o som: “ousshh! Ousshh!
Ousshhi! oushii! oshhiii!” algo estava errado, aquele não era o som do vento,
transformara-se num barulho agudo que parecia penetrar no seu coração, o
seu corpo estava quente, a arder! Já não sentia o conforto do calor do sol na
sua pele, sentia como uma febre a queimar o seu corpo, sufocava! Aquele
barulho agudo “Shhii” Shhhii!!” cada vez mais alto na sua cabeça, parecia que
ia rebentar. Queria gritar, ir para longe do desconforto, mas não encontrava o
seu corpo, a sua garganta estava seca, sufocava naquele calor que a
consumia. O seu corpo, não lhe obedecia, não conseguia abrir os olhos, e o
barulho “ iiiiip, iiiip” cada vez mais insuportável, que barulho era aquele?
Dor! Repentinamente todo o seu corpo doía, a dor abafou o som “biiip, biiip,
beeep, beeeep”. As pálpebras pesadas como se fossem de chumbo, queria
ver, mas á sua frente só havia escuridão. Sabia que já não estava no campo de
trigo, teria alguma vez estado? Sentia-se sufocar, mas já não era o calor que a
consumia, a dor tinha chegado implacável, a garganta e a boca prontas a
rebentar, secas, sufocava!

Criado por Isabel Pereira


Á sua volta começaram a paracer imagens desfocadas, um quarto branco e
verde, estava deitada? Onde estava? Porque é o que o seu corpo parecia não
lhe obedecer, queria falar, mas não podia! Tinha um tubo na boca! O pânico
instalou-se na sua cabeça à medida que as imagens à sua volta começaram a
ganhar nitidez e se tornavam cada vez mais, aterradoramente, familiares.
Frio! O seu corpo que parecia em chamas há poucos segundos agora parecia
atingir o ponto de congelação, tremia e com cada tremor uma dor intensa,
surreal, percorria todo o seu corpo.
Estou a sonhar! Pensou com esperança de poder acordar e sair daquela dor
imensa. Sentiu a cara molhada e abriu definitavente os olhos, apenas para ver
que não tinha estado a sonhar, simplesmente tinha acordado para um dos seus
piores pesadelos, chorava enquanto reconhecia sem sombra de dúvidas onde
estava.
Aquele quarto, quantas vezes ali estivera? Mas nunca fora a pessoa deitada
imóvel na cama, sempre fora a pessoa a cuidar dos que estavam na posição
que agora ocupava. Quantas noites passara àquela cabeceira? À sua direita
estava o tripé com o soro, o monitor cardíaco, e sim, estava entubada era por
isso que não conseguia falar, por isso que a sua garganta tinha uma atenção
especial por parte da dor que dominava o seu corpo. Ao focar a sua atenção no
seu lado esquerdo sentiu uma agradável sensação de calor na sua mão
esquerda, alguém segurava na sua mão! Lentamente focou o seu olhar nessa
direcção, sorrindo para si estava o Dr. Miguel Costa, mas o seu sorriso era
triste, vazio.
Quantas vezes fui eu quem segurou na mão de tantos estranhos? Quantas
vezes terá sido aquele sorriso sem esperança a primeira coisa que viram ao
acordarem confusos, com dores. Terlhes-ei dado algum conforto? A esperança
que não tenho agora? O Miguel não consegue dissimular o suficientemente
bem para mim...estou em maus lençóis é fácil de perceber...
- Verónica! Sabes onde estás?
Pisquei os olhos. Uma vez para sim, duas para não, aquele era o mais básico
meio de comunicação que utilizávamos com os pacientes que não podiam
falar.
-Sabes quem sou?
Sim.

Criado por Isabel Pereira


-Sabes que dia é hoje?
Não. Na verdade não fazia ideia de como tinha ali chegado ou como tinha
ficado na situação em que me encontrava, podiam ter passado dias, meses
talvez, anos não porque o Miguel estava exactamente como sempre o
conhecera, talvez não exactamente, o seu rosto estava cansado e as suas
olheiras eram mais profundas do que me lembrava, ainda assim as
modificações no seu rosto não eram obra da passagem do tempo.
-Tives-te um acidente. O teu carro foi albaroado por um camião, é um milagre
que estajas viva...
A sua voz enfraqueceu até se tornar um murmúrio e os olhos verificaram todas
as indicações que as máquinas lhe davam, incapaz de continuar a olhar nos
olhos a sua colega que por um mórbido caso do destino era agora sua
paciente.
Um acidente? Não me lembro de nada, a minha última recordação é de ser
Sexta – feira e sair do Hospital para ir para casa, nessa noite era suposto irmos
jantar fora e dançar, com a eqipa toda, até tinhamos planeado ir levar uns
bolos para o pequeno –almoço dos colegas que iam ficar a fazer o turno da
noite. Acho que nunca cheguei ao jantar, na verdade nem me lembro de
chegar a casa...
-Tenta não pensar demasiado, por agora descansa. Estives-te em coma
durante uma semana. Nós tratamos de ti.
E com estas palavras injectou um sedativo no soro. O corpo de Verónica
recebeu com agrado o efeito da droga, à medida que o seu corpo relaxou e os
barulhos começaram a ficar cada vez mais distantes, “beeeep, beeep, biiip,
biiip,” o seu corpo já não lhe pertencia, novamente, “iiiiip, Shhii, Ousshhi! oushii
Ousshh!ousshh!”, a paz invadiu-a novamente, era o barulho do vento a
envolvê-la. Abriu os olhos e estava no campo sentada no meio do trigo, tudo o
que os seus olhos alcaçavam era o dourado das espigas e o magnífico azul do
céu, o calor do sol abraçava o seu corpo.

Dor, novamente a dor implacável e um cansaço de morte, o corpo pesado


como se ao invés de pernas e braços os seus membros tivessem sido
susbstituídos por rochas inamovíveis. Abruptamente abriu os olhos lembrando-
se de onde estava. Sim, continuava no mesmo quarto com tudo o que a

Criado por Isabel Pereira


medicina moderna tem para oferecer, “só é uma pena que não seja eu a
oferecer em vez de estar aqui a receber...” pensou com a ironia que lhe era
característica. O barulho de vozes chamou a sua atenção, eram vozes
familiares mas não as conseguia reconhecer nem distinguir claramente o que
diziam para além do seu nome. Desta vez iria manter-se alerta e esperar que
alguém lhe explicasse a sua condição, se ao menos consegui-se ler a sua
ficha...Miguel! era voz do Miguel, estava a aproximar-se e falava dela!
Subitamente o pânico apoderou-se de si e fechou os olhos numa tentativa de
se controlar, tinha de manter a calma ou não lhe diriam nada, simplesmente
voltariam a sedá-la, com tristeza pensou na sua fama de ser uma pessoa
capaz de manter o sangue frio nas piores das situações e agora que mais o
necessitava o seu auto-controlo parecia ser inexistente.
- A Drª Verónica tem uma ressonância magnética marcado para hoje às 14h e
uma TAC para amanhã às 9h, vamos avaliar as lesões medulares e o
hematoma subdural, esperançosamente estará a evoluir positivamente, mas
como não quero correr nenhum risco, marquem o bloco para as 17h de
amanhã, caso a pressão intracraniana não tenha diminuido vamos ter de
chamar o neurocirurgião...

Criado por Isabel Pereira

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