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Mjrmo Charles Baudelaire O Pintor da Vida moderna CONCEPCAO £ ORGANIZACAO Jéréme Dufilho ¢ Tomaz Tadeu TRADUGAO E NOTAS Tomaz Tadeu auténtica Copyright da traducio e das notas © 2010 Tomaz Tadeu Copyright das imagens das obras do Museu do Louvre e do Museu das Artes Decorativas © Auténtica Editors Copyright das imagens das obras da Coleco Emile Hermés, Pais © Associacao EMH Copyright das imagens das obras da Colegao Particular LG.-H., Paris © Colecionador 1G +H Le Pentre dela Vie moderne ‘Museu do Louwe, Paris Museu das Artes Decorativas, UCAD, Pars. Coleco Emile Hermes, Pars Colegao particular GH. Paris, ‘erome Dull (Museu do Louvre @ Museu das Artes Decoratvas) Benoit Dui (Colecéo Emile Hermes, Colegao Particular 1G +H, retoques) asta GASEO € EDTORACAD ETHONA Diogo Droschi ewsto ‘Ana Carolina Lins Cecilia Martins Graca tina Rejane Dias Revisado conforme 0 Novo Acordo Ortogratico, ‘dose dietos reservados pela Autntica Ecitora. Nena parte desta pubicacao podera ser eproduzida, seja por meios mecanicos,eletrdnicos, seja va copia xerogratica, sem a autorizacao prévia da Edtora AUTENTICA EDITORA LTDA. us Aimovés, 981, 8° andar Funcionasios 30140.071 . Belo Horizonte. MG Tok (5 3193222 68 19 ‘evens: 0800 283 13.22 ver autenticaeditors.com.be Dados Internacionais de Catalogacéo na Publica (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) (cir) Baudelaire, Charles, 1821-1867 (0 Pintor da Vida moderna / Charles Baudelaire ; oncopego e organizacso sérome Dato e Toma Tadeu: traducio e notas Tomaz Tadeu Belo Hoxizonte ‘Autentica Ecitora, 2010. (Colegso Mimo ; 7) “Titulo original: Le Peintre dela Vie moderne ISBN 978-85-7526-486-7 1, Baudelaire, Charles, 1821-1867. 0 Pintor da Vida moderna - Citica « interpretacdo 2. Dandismo na literatura 3. Guys, Constantin, 1802-1892 4. Uteratua francesa -Século 19 - Histviaecrtica 5 Pntura francesa ~Século 196. Poe, Edgar Alan, 1803-1849 7. Literatura americana -Século 191. Dufiho, seme. I Tadeu, Toma. Ii. Titulo, WV. Série. 1067827 cop-843.09, Indices para catélogo sistematica 1 Dandismna na erature 843.09, O Pintor da Vida moderna Charles Baudelaire I. O belo, a moda e a felicidade = Hino mundo, ¢ até mesmo no mundo dos artistas, pessoas que vio a0 Museu do Lotwvre e que, sem Ihes conceder um olhar, passam rapidamente pela frente de uma quantidade de quadros muito interessantes, ainda que de segunda categoria, ¢ se plantam, sonhadoras, diante de um Ticino ou de um Rafael, um desses que a gravura mais popularizou; ¢ depois saem satisteitas, mais de uma dizendo para si propria:“Conhego o meu museu”. Hé também pessoas que, por terem algum dia lido Bossuet e Racine, pensam que domi- nam a historia da literatura. Por sorte, surge de tempos em tempos quem cologue as coisas no devido lugar: eriticos, amantes da arte, espiritos inquisitivos, que afirmam que nem tudo esti em Rafael, que nem tudo esti em Racine, que os poetae minores tém alguma coisa de bom, de sélido e de agradavel; e, enfim, que por mais que se ame a beleza geral, que se exprime pelos poetas ¢ artistas clissicos,ndo se est menos equivocado em se negligenciar a beleza particular, a beleza de circunstincia e 0s costumes de época Devo dizer que © mundo, de alguns anos para c4, melhorou um pou- co. O prego que os amantes da arte atribuem hoje as mimos entalhados e coloridos do tlio século prova que houve uma reago do tipo que 0 ptiblico sava, Debucourt, 0s Saint-Aubins e muitos outros entraram para 6 dicionirio dos artistas dignos de serem estudados. Mas eles representam 6 passado; ora, € 4 pintura de costumes do presente que quero me prender hoje. © passado € interessante no s6 pela beleza que dele souberam extrait os artistas para os quais cle era o presente, mas também como passado, por seu valor histérico. O mesmo se passa com o presente, © prazer que extraimos da representagio do presente deve-se ndo apenas 4 beleza de que pode esta revestido, mas também a stia qualidade essencial de presente Tenho diante dos olhos.uma série de gravuras de modas' que co- mega com a Revolugio ¢ termina, aproximadamente, no Consulado. Esses trajes, que fazem rir muitas pessoas pouco reflexivas, essas pessoas gr: ves sem verdadeira gravidade, apresentam um encanto de dupla natureza: ar~ tistica e hist rica. Muito frequent desenhados; ma mente, sio bonitos ¢ espirituosamente © que importa, ao menos tanto quanto isso, e 0 que me alegra encontrar em todos ou quase todos, é. moral ¢ a estética da época ‘A ideia que 0 homem tem do belo imprime-se em todo o sew arranjo. amarrota ou alinha o seu traje, suaviza ou enrijece o seu gesto, ¢ chega a imppregnar, sutilmente, ao final, os tragos de seu rosto. O homem acaba por ficar parecido com aquilo que gostaria de ser. Essas gravuras podem ter uma tradugao feia ou uma tradugio bonita: na bonita, elas se tornam caricaturas: na feia, estécuas antigas As mulheres que se cobriam. com essas roupas pareciam-se mais ou menos umas com as outras, depend dade com que ndo do grau de poesia ou de vulgari- © apresentavam.A matéria viva tornava ondulante 6 que nos parece demasiadamente rigido.A imagir agi do espectador pode, ainda hoje, fazer com que esta tiinica ¢ este xale se ponham a andar e a se agitar. Um dia desses, talvez, apareceri uma pega, num teatro qualquer, na qual veremos a ressurreicao dessas roupas sob as quais nossos pais se consideravam to en- cantadores quanto nds mesmos em nossas pobre vestes (as quais também tém sua gra a, é verdade, mas de uma natureza sobretudo moral c espiritual) ¢ se forem envergadas ¢ animadas por atrizes ¢ atores inteligentes, nés nos admiraremos de que tenha sido possivel terem tio tolamente se rido delas. O passado, som deixar de conservar o atrativo do fantasma, retomard a luz © © movimento da vida e se tornari presente. Se um homem impareial repassasse unna a uma fodas as mod: de a origem da Franga até os dias de hoje, nada encontratia de chocante s francesas des nem mesmo de surpreendente, As transigdes seriam, nesse caso, tio graduais quanto 0 sio na escala do mundo animal. Nenhuma lacuna e, portanto, ne nhuma tazio para surpresa. E, se a vinheta que representa cada época, cle junta se 0 pensamento filoséfico que mais a ocupou ou agitou, pensamento cuja lembranga a vinheta inevitavelmente sugere, v ja que profunda har- monia rege todos os elementos da hist6ria e que, até mesmo nos séculos que nos parecem ser os mais monstriiosos ¢ louces, o imortal apetite pelo belo sempre encontrou sta satisfagio Esta é, na verdade, uma boa ocasiio para desenvolver uma teoria ra cional e histérica do belo, em oposigio a teoria do belo tinico ¢ absoluto: para mostrar que 0 belo é, sempre ¢ inevitavelmente, de uma composigio dupla, embora a impressio que produz seja tinica; pois a dificuldade em discernir os elementos variiveis do belo na unidade da impressio em nada prejudica a necessidade da variedade em sua composigio. © belo é feito de um elemento eterno, invariavel, cuja quantidade ¢ muito dificil de ser determinada, e de um elemento relativo, circunstancial, que seri — como preferirem: um a cada vez ou todos ao mesmo tempo — a época,a moda, a moral, a paixio. Sem esse segundo elemento, que € como que a envoleura deleitivel, provocante, apetitosa do divino manjar, 0 primeiro elemento seria indigerivel, imperceptivel, pouco adequado e pouco apropriado a natureza human. Desafio a que se encontre algum espécime de beleza que nio contenha esses dois elementos. Tomo, se thes convém, os dois niveis extremos da historia, Na arte hic ritica,a dualidade torna-se visivel ao primeiro olhar:a parcela de beleza eterna niio se manifesta a no ser com a permissio ¢ de acordo com a regra da religiio A qual pertence o artista. A dualidade torn, ¢ igualmente evidente na mais firivola das obras de um artista refinado que pertenga a uma das épocas que qualificamos bastante pretensiosamente de civilizadas;a porgdo eterna de beleza estar, ao mesmo tempo, encoberta e evidente, se Mo pela moda, ao menos pelo témperamente particular do autor.A dualidade da arte é uma consequéncia fi da dualidade do homem. Considerem, se Ihes agrada, a porga io eternamente subsistente como a alma da arte, e o elemento variavel como o seu corpo. E por isso que Stendhal, espirito impertinente, provocador, reptignante até, mas cujas impertinéncias provocam proveitosamente a meditagio, chegou perto da verdade, mais que muitos outros, ao dizer que 0 Belo sido é senda a promessa da felicidade.? Essa definigio é certamente exagerada; ela submete, além da medida, © belo ao ideal infinitamente variavel da felicidade; ela subtrai ao belo, de uma maneira muito ficil, o seu carter aristocratico; mas tem o grande mérito de evitar decisivamente 0 erro dos académicos. Ji expliquei essas coisas mais de uma vez; estas linhas sio © bastante para os que gostam dos jogos do pensamento abstrato; mas sei que, em sua maioria, 0s leitores franceses nao se divertem muito com isso, ¢ eu proprio tenho pressa em entrar na parte afirmativa ¢ real de meu tema: Prostinutas descendo de uma cateche, em Nipoles II. O croqui de costumes - Para o croqui de costumes, para a representagio da vida burguess e para os espeticulos da moda, o meio mais expedito € menos custoso é evi © artista, mais a dentemente o melhor. Quanto mais beleza imprimir-lhe obra sera preciosa; mas hi, na vida ordindria, na metamorfose cotidiana das coisas exteriores, um movimento rapide que exige do artista igual veloci dade de execucao. As gravuras de tons variados do século dezoito ganharam 13 novamente a preferéncia da moda, como eu dizia ha pouco; o pastel, a 4 forte, a Agua-tinta forneceram, sucessivamente, seus contingentes para esse imenso dicionario da vida moderna espalhado pelas bibliotecas, pelas pastas de cartolina dos amantes da atte ¢ pelas vitrines das lojas mais vulgares. Assim orm que surgiu, a litografia logo se mostrou extremamente apta para ess tarefa, de tio frivola aparéncia. Temos, nese género, verdadeiros monumer ‘As obras de Gavarni e de Daumier foram, com justia, qualificadas de com: plementos d’A comédia humana, Estou bastante convencido de que 0 propri Balzac nao estivera longe de adotar essa idcia, que & tanto mais justa quanto 6 genio do artista que € pintor de costumes ¢ um génio de natureza mista, isto & em que entra uma boa dose de espirito literiri. Observador, flénen, fil6sofo, qualifiquem-no como quiserem; mas vocés serio certamente levados, para caracterizar esse artista, a agracid-lo com um epiteto que no poderiam aplicar a0 pintor de coisas eternas ou, ao menos, mais duradouras, a0 pintor de coisas heroicas ou religiosa As vezes ele @ poeta; mais frequentemente, aproxima-se do romancista ou do moralista; ele € © pintor da circunstincia e de tudo o que ela sugere de eterno. Toda nagio, para sua felicidade ¢ glé ria, teve alguns homens desse tipo. Em nossa propria época, a Daumier ¢ a Gavarni, primeiros nomes que nos vém 4 meméria, podemos acrescentar Devéria, Maurin, Numa, historiadores das gragas ambiguas da Restauragio; Wattier, Tassaert, Eugéne Lami, o primeiro deles quase inglés devido ao amor pelos elementos aristocriticos;¢ até mesmo Trimolet eTravids, esses cronistas da pobreza ¢ da vida ordinaria. IIL. O artista, homem do mundo, homem das multiddes e crianga Quero, agora, entreter o piiblico, falando de um homem singular, de uma originalidade tio forte ¢ decidida que se basta a si mesma e nem sequer busca aprovacio. Nenhum de seus desenhos ¢ assinado, se qualificamos de assinatura essa fileira de letras, facil ate falsificaveis, que simbolizam um nome, e que tantos outros apdem faustosamente ao pé de seus mais des uidados croquis. Mas todas as suas obras sac sinadas com sua alma radiante, ¢ os amantes de arte que as viram ¢ apreciaram facilmente as reconhecerio na descri¢io que delas pretendo fazer. Grande amante da multidio e do incégnito, o St. C. G. leva a originalidade ao extremo da modéstia, O St. Thackeray, que, como se sabe, tem grande inter se pelas coisas da arte € que faz, ele proprio, as ius- ragSes de seus romances, mencionou, um dia, o Sr. G., num pequeno jornal de Londres. ao seu pudor. Ainda recentemente, quando soube que eu me propunha fazer uma aprec ss0 0 ofendeu ao ponto de ele chegar a considera-lo um ultraje acio de seu espirito ¢ de seu talento, ele me suplicou, de uma maneira bastante imperiosa, que suprimisse seu nome ¢ que s6 falasse de stuas obras como se obras de um andnimo fossem. Obedecerei humildemente a esse estranho desejo. Fingiremos acreditar, 0 leitor e que 0 Sr. G. nio existe, ¢ nos ocuparemos de seus desenhos ¢ de suas aquarelas, pelos quais ele professa um desdém de nobre, como fariam estudiosos que tive: em qu julgar preciosos documentos hist6ricos, proporcionados pelo acaso, ¢ cujo autor devesse continuar eternamente desc hecido. Assim, para tranquilizar inteiramente minha consciéncia, suporemos que tudo o que tenho a dizer a respeito de sua natureza tio curiosa ¢ misteriosamente brilhante & de forma mais ot menos justa, sugerido pelas obras em questio; pura hipdtese poética, conjetura, trabalho de imaginagio. O Sr.G.é um homem de idade.? Jean-Jacques [Rousseau] comecou a escrever, diz-se, aos quarenta ¢ dois anos. Foi talvez ao redor dessa idade que 0 Sr.G., obcecado por todas as imagens que ocupavam o seu cérebro, teve a audacia de lancar tintas ¢ cores sobre uma folha em branco. Pata dizer a ver- dade, ele desenhava como um barbaro, como uma crianga, irritando-se com a falta de jeito de seus dedos e com a desobediéncia de seu instrumento. Vi tum grande niimero dessas garatujas primitivas e confesso que a maioria das pessoas que entende ou pretende entender disso poderia, sem demérito algum, nao ter adivinhado © génio latente que habitava esses esbogos tenebrosos Hoje, 0 Sr. G., que descobrin, inteiramente s6, todos os pequenos truques do oficio € que construiu, sem conselhos, sua propria educagio, tornou-se, {sua maneira, um influente mestre, € conservou, de sua ingenuidade inicial, apenas 0 necessitio para dar is suas ricas capacidades um tempero imprevisto. Quando encontra um desses ensaios de sta fage juvenil, ele 0 rasga ou queima com uma vergonha das mais cmicas. , Mantive, durante dez anos, o desejo de conhecer o Sr. G., que é por natureza, muito afeito as viagens ¢ basta nte cosmopolita. Eu sabia que ele estivera, por muito tempo, vinculado a um jornal inglés ilustrado,* e que ha- via ali publicado gravuras feitas a partir de seus croquis de viagem (Espana, Tarquia, Crimeia).Vi, desde entdo, uma quantidade considerdvel desses de- senhos improvisadamente feitos nos proprios locais ¢ pude ler, assim, um relato minucioso ¢ diério da campanha da Crime a, altamente preferivel a qualquer outro, © mesmo jornal tinha também publicado, sempre sem assi- natura, numerosas composicdes do mesmo autor, tendo como tema os novos balés ¢ as novas 6peras. Quando, enfim, encontrei-o, vi imediatamente que me defrontava nao exatamente com um. artista, mas, antes, com um hor do mundo. Entendam aqui, suplico-lhes, a palavra artista num sentido muito restrito, ¢ a expresso homem do mundo num sentido muito amplo. Honent do mundo, isto é, homem do mundo inteiro, homem que compreende o mundo € as razdes misteriosas e legitimas de todos os seus usos; artista, isto & especialista, Grisettes homem preso 4 sua palheta como 0 servo 4 sua gleba. O Sr. G. nao gosta de ser chamado de artista. Nao tem ele um pouco de razio? Ele se interessa pelo mundo inteiro; quer saber, compreender, Fpreciar tudo 0 que se passa na superficie de nosso esferoide. O artista vive muito pouco, ou mesmo nada, no mundo moral ¢ politico. O que mora no quartier Breda ignora © que se passa no faubourg Saint-Germain, Salvo duas ou trés excegdes que nao vale a pena mencionar, os artistas, em sua maioria, sio, é preciso dizé-lo, uns brutos muito habeis, simples trabalhadores bragais, inteligéncias interioranas, men- talidades de arrabalde. Sua fala, forcosamente limitada a um circulo bastante estreito, torna-se muito rapidamente insuportavel para © homem do nnudo, 4 para o cidadio espiritual do universe. Assim, para chegar a compreender o Sr. G.,tomem imediatamente nota dissora curiosidade pode ser considerada como 0 ponto de partida de seu genio. Lembram-se de um quadro (trata-se verdadeiramente de um quadro!) escrito pela mais vigorosa pena desta época € que tem por titulo O hom da multidao? Atras da vidraga de um café, um convalescente, contemplando com prazer a multidio, mistufa-se, pelo pensamento, a todos os pensamentos = agitam em torno dele. Tendo voltado recentemente das sombras da pe no Bois de Boulogne em ficton de dama morte, ele aspira com gosto todos os germes ¢ eftivios da vida; como esteve a ponto de tudo esquecer, recorda-se, ¢ quer ardentemente recordar-se, de wud Finalmentl, precipita-se para o meio dessa multidao, em busca de um desconhecido cuja fisionomia, num relance vislambrada, tinha-o fascinado. A curiosidade tornara- uma paixio fatal, irresistivel! Imaginem um artista que estivesse sempre, espiritualmente, em estado de convalescéncia, ¢ terio a chave do carater do Sr.G Ora, a convalescéncia € como um retorno 4 infancia. O convalescente goza, no mais alto grau, tal como a crianga, da faculdade de se inter sar vivamente pelas coisas, até mesmo por aquelas mais aparentem: te triviais. Recuemos, se pudermos, por um esforco retrospectivo da imaginacio, is mais frescas, As mai mos que elas tém um matinais de nossas impresses, e ver singular parentesco com as impresses, tio vivamente coloridas, que recebe mos, mais tarde, apés uma doenga fisica, no pressuposto de que essa doenga tenha deixado puras € intatas nossas faculdades espirituais. A crianga vé tudo como novidade; ela est’ sempre inebriada. Nada se assemelha mais Aquilo que chamamos de inspiragio do que a a ria com a qual a crianga absorve a forma ¢ a cor. Eu ousaria ir mais longe; afirmo que a inspiracio tem al ma relagdo com a congestdv, e que todo pensamento sublime vem acompanhado de um espasmo nervoso, mais ou menos forte, que reverbera até no cerebelo. O homem de génio tem os nervos sélidos;a crianga tem-nos fracos. Num, a razio tomou um espaco considerivel; na outra, a sensibilidade ocupa quase todo 0 ser. O génio nio é entretanto, senio a infaincia controladamente recu- perada, a infincia agora dotada, para expressar-se, de drgios viris e do espirito analitico que lhe permitem ordenar a soma involuntariamente acumulada de materiais, E a essa curiosidade profinda e alegre que se-deye atribuir o olhar fixo ¢ i y acionalmente extitico das criangas diante dé nove, qualquer que seja ele, rosto ou paisagem, luz, dourado, cores, tecidos furta: ores, encantamento da beléza embelezada pela toalete. Um de meus amigos dizia-me um dia que, bem pequeno, acompanhava a toalete de seu pai, ¢ que entio contemplava, com um misto de espanto e deleite, os masculos dos bracos, as gradacdes de cores da pele matizada de rosa ¢ amarelo ¢ a rede azulada das veias. O quadro da vida exterior inculcava-the j o respeito e apoderava-se de seu cérebro, A forma jé 0 obcecava e o possuia. A predestinagdo deixava-se precocemente adivinhar. A danagao estava feita. Preciso dizer que essa crianga & hoje um pintor célebre? Suplicava-lhes ha pouco que considerassem o Sr.G.como um eterno convalescente; para completar essa concep¢io, considerem-no também como uum homens-crianga, como um homem quie possui,a eada minuto, o génio da infancfa, isto é, um génio para o qual nenhum aspecto da vida esti emborado. Disse-Ihes que me repugnava qualificé-lo como puro artista ¢ que ele proprio se recusava esse titulo com uma modéstia matizada de pudor aristo- cratico. De bom grado eu 0 qualificaria de dindi, e para isso teria algumas boas razSes: pois a palavra déndé i nplica uma quintesséncia de cariter e um entendimento sutil de todo o mecanismo moral deste mundo; mas, por ou~ r. C 6 por sua vez, dominado por uma paixio insacidvel, a de ver ¢ de sentir, se aparta violentamente do dandismo. Amabam amare [Amava amar], dizia Santo tro lado, o dindi aspira 4 insensibilidade, e por essa razio que o $ .que Agostinho.““Amo apaixonadamente a paixio”, diria, sem dificuldade, o Sr. G. © dandi é indiferente, ou finge s¢-lo, por politica € razio de casta. O Sr. G. tem horror a pessoas indiferentes. Ele é dono da tio dificil arte (os espiritos refinados me compreenderiio) de ser sincero sem ridicular de bom grado, o titulo de filésofo, a0 qual ele tem direito por mais de uma izar. Conceder-lhe-ia, razio, se seu amor excessivo pelas coisas visiveis, tangiveis, condensadas no estado plistico, nao Ihe inspirasse uma certa repugnancia pelas que constituem 28+ Blegantes discutinds diante de em 6 reino impalpayel do metafisico. Reduzamo-lo, pois, como La Bruyé condigaio de puro moralista pitoresco. A multidio é seu dominio, como o ar é o do passaro, como a Agua, 0 do peis perfeito flénet . Sua paixao e Sita profissio consistem em esposar a multiddo. Para 0 . para,o observador apaixonado, constitui um grande prazer fixar domicilio no mimero, no inconstante, no movimento, no fugidio € no infinito. Estar fora de casa e, no entanto, sentir-se em casa em toda parte; ver © mundo, estar no centro do mundo e continuar escondido do mundo, esses sio alguns dos pequenos prazeres desses espiritos independentes, apaixonados, mparciais, que a lingua nao pode definir sendo canhestramente. O observador é um principe que usuftui, em toda parte, de sua condi¢io de incégnito. O amante da vida faz do mundo sua familia, tal como 0 amante do belo sexo compée sua familia com todas as belezas encontradas, encontriveis e inen- contriveis;ou, tal como 0 amante de pinturas, vive numa sociedade encantada, de sonhos pintados sobre a tela. O amante da vida universal entra, assim, na multiddo como num imenso reservatério de eletricidade. Pode-se também compari-lo, esse individuo, a um espelho tio grande quanto essa multida um caleidoscdpio dotado de consciéncia que,a cada um de seus movimentos representa a vida miltipla ¢ a graga cambiante de todos os eleme vida, B um ew insaciavel do ndo-ev, que.a cada instante, o traduz ¢ o exprime em imagens mais vivas que a propria vida, sempre instivel fugidia.“Todo homem”, dizia um ia o Sr. G., numa dessas conversas que ele ilumina com um olhar intenso e€ com um gesto evocativo, “todo homem que nao esteja oprimido por uma dessas afligaes de natureza demasiadamente reais para nio absorver todas as faculdades e ainda assim se enfada no meio da multidéo € um idiota! um idiota! e eu o desprezo!” Quando, ao acordar, o Sr. G.abre os olhos e vé 0 sol falgurante invadir as vidracas das janelas, diz para si mesmo, com pesar:““Que ordem imperiosa! Que fanfarra de luz! Ha muitas horas ja, luz por tudo! Luz perdida por causa de meu sono! Quantas coisas iltintinadas podia ter visto ¢ nio vil”. E sai! E ve correr 0 rio da vitalidade, tio majestoso ¢ tao brilhante. Admira a eterna beleza ea admirivel harmonia da vida nas capitais, harmonia tio providencialmente mantida no tumulto da liberdade humana. Contempla s paisagens da grande cidade, paisagens de pedra acariciadas pela bruma ou batidas pelas lufadas do sol. Delicia-se com as lindas equipagens, os cavalos imponentes, 0 asseio Encontro no Bois de Bo impressionante dos cavalaricos, a destreza dos pajens,o meneio do andar das mulheres, as belas criangas, felizes pela vida e pelas boas roupas; em uma pala- vra,com a vida universal. Se uma moda, um corte de roupa foi ligeiramente transformado, se os lagos de fita, os lagarotes foram destronados pelos cocares, se a aba da tou ficou mais larga ¢ se o coque caiu um dedo sobre a nuca,se a cintura subiu e a saia se tornou mais ampla, de longe, creiam-me, seu olho de dguia ja 0 tera adivinhado. Um regimento passa, a caminho talvez do fim do mundo, langando no ar dos bulevares suas fanfarras arrebatadoras ¢ leves como a esperanga; ¢ eis que o olho do Sr. G. ja viu, examinou, analisou as armas, porte € a fisionomia dessa tropa, Fardas, cintilagdes, miasic: olhares decididos, bigodes fartos e sérios, tudo isso entra nele de roldio; e em alguns minutos o poema que disso resulta estar virtualmente composto. E cis que sua alma vive com a alma desse regimento que marcha como um s6 animal, altiva imagem da alegria na obediéncia! Mas é chegada a noite. E hora estranha e incerta em que as cortinas do céu se fecham, em que as cidades se iluminam. © lampiao de gis mancha a purpura do sol poente. Honestos ou desonestos, sensatos ow insanos, os homens dizem para si mesmos:“Enfim, 0 dia acabou Os homenis de conhe- cimento € os de ma vida pensam no prazer ¢ correm todos ao lugar de sua preferéncia para beber a taga do olvido. O Sr. G. seri o se embora de onde quer que possa resplandecer a luz, ecoar a poesia, fervilhar a vida, vibrar a ttisica; de onde quer que uma paixio possa posar para o seu olliar, timo ai de onde quer que o homem natural ¢ 0 homem de convengio se mostrem ~ numa beleza estranha, de onde quer que o sol ilur ine as alegrias passageiras do animal depravadol* “Bis ai, certamente, um dia bem empregado”, diz para si mesmo certo leitor que todos alguma vez conhecemos, “cada um de nds tem génio suficiente para preenché-lo da m ma maneira”. Nao! Poucos sic os homens dotados da faculdade da visio; s30 menos ainda os que possuem a capacidade de expres Jo. Agora, no momento em que os outros dormem, esse homem est curvado sobre a mesa, lan ndo sobre uma folha de papel 0 mesmo olhar que hi pouco fixava sobre as coisas, esgrimindo com seu lipis, sua caneta, seu pincel, respingando no teto a 4gua do copo, limpando a pena na camisa, apressado, violento, ativo, como se temesse que as imagens Ihe escapassein, brigando sozinho, esbarrando em si mesmo. E as coisas renase m sobre o papel, naturais,e mais que naturais; belas, e mais que belas;singulares ¢ dotadas, como a alma do autor, de uma vida em estado de exaltaga A fantasmagoria, ele a extraiu da natureza. Todos os materiais que abarrotavam a meméria agora se ordenam, se arranjam, se harmonizam e sofrem essa idealizagio forgada que 0 resultado de uma percepgao infanil, isto 6, de uma percepgio aguda migica, gragas 4 ingenuidade! IV. A modernidade Assim ele vai, corre, procura, Que procura ele? Com toda certeza, esse homem, tal como o esbocei, esse solitario dotado de uma imaginagio ativa, sempre viajando através do grande deserto de homens, tem um alvo mais elevado que o de um simples fideur, um alvo mais geral que nao o do prazer fugaz da chreunstincia, Procura alguma coisa que nos seré permitido chamar de modernidade, pois nio se apresenta palavra melhor para exprimir a ideia em questio, Trata-se, para ele, de liberar, no histérico da moda, 0 que ela pode conter de poético, de extrair o eterno do transitério. Se observarmos as ex- posigdes de quadros modernos, ficaremos impressionados com a tendéncia geral dos artistas a vestir todos os personagens com trajes antigos. Quase todos se valem das modas ¢ dos méveis da Renascenga, como David se valia das modas e dos méveis rom: nos. Hi, entretanto, una diferenga: David, tendo escolhido personagens particularmente gregos ou romanos, 1 10 podia senio los 3 antiga, enquanto os pintores atuais, escolhendo personagens de uma natureza geral, aplicivel a todas as Epocas, teimam em envolyé-los em vest trajes da Idade Média, da Renascenga ou do Oriente. Trata-se, evidentemente, de sinal de grande preguiga, pois é muito mais comodo declarar que tudo ¢ absolutamente feio no vestuario de uma época do que se esforgar por extrair a beleza misteriosa que ele possa conter, por mais escassa ou insignificante que seja. A modernidade € 0 transitério, o fugidio, o contingente, a metade da art cuja outra metade é 0 eterno ¢ o imutivel. Houve uma modernidade para cada pintor antigo; na maior parte dos belos retratos que nos restam de periodos anteriores o que vemos sio trajes da época. Bles sao perfeit mente harmoniosos porque 6 traje, o penteado ¢ até mesmo o gesto, o olhar ¢ 0 sor so (cada época tem seu porte, seu olhar e seu sorriso) constituem um todo de uma completa vitalidade. Esse elemento transitério, fagidio, cujas metamorfoses so tio frequentes, no se tem o d zito de desprezi-lo ou de dispensi-lo. Ao suprimi-lo, recai-se forgosamente no vazio de uma beleza abstrata ¢ indefinivel, como a da tnica mulher antes do pecado original. Quando se substitui o vestudrio da época, que necessariamente se impde por um outro, comete-se um contrassenso, s6 desculpavel no caso de uma extravagincia ditada pela moda. Assim, as deusas, as ninfas ¢ as sultanas do século dezoito sio retratos moralmente parecidos. E muito bom, sem ditvida, estud, os mestres antigos para aprender pintar, mas isso poder’ nao passar de um exercicio supérfiuo se o objetivo for o de compreender o carter da beleza presente. Os panejamentos de Rube s ou de Veronese nao ensinario ninguém a fazer 0 moiré antigo, 0 cetint real, ow qualquer outra fazenda de nossas manufaturas ~sustentada ¢ equilibrada pela crinolina ou pelos saiotes de musselina engomada, A trama € a text sio iguais as das fa a nao zendas da antiga Veneza ou as que eram usadas na corte de Catarina. Acrescente-se ainda que 0 corte da saia e do corpete é comple- taniente diferente, que as pregas estio dispostas segundo um novo sistema ¢, enfim, que © gesto e o porte da mulher de hoje dao a seu vestido uma vida e uma fisionomia que nio sio as da mulher de outrora. Numa palavra, para que toda modemidade seja digna de se tornar antiguidade, & preciso que dela se extraia a-beleza misteriosa que a vida humana involuntariamente Ihe outorga. Ea essa tarefa em particular que o Sr. G. se dedica. Disse ha pouco que cada época tem seu porte, seu olhar e seu gesto. F sobretudo numa vasta galeria de retratos (a de Versalhes, por exemplo) que essa proposi¢io pode ser facilmente verificada. Mas pode-se ir além nessa verificagio. Na unidade que se chama na¢io, as profissdes,as castas, os séculos introduzem a variedade ndo apenas nos gestos ¢ nas maneiras, mas até na forma do proprio rosto, Este nariz, esta boca, esta fronte cobrem um periodo de tempo que nao pretendo determinar aqui, mas que certamente pode ser calculado. Consideragdes desse tipo no sio suficientemente conhecidas dos retratistas;¢ o grande defeito do Sr. Ingres, em particular, é 0 de querer impor a cada individuo que posa diante de seus olhos um aperfeigoamento mais ou menos completo, tomado de empréstimo ao repertorio das ideias clissicas Seria ficil ¢ mesmo legitimo, em tal questo, raciocinar a priori. A correlacio perpétua entre o que chamamos alia ¢ 0 que chamamos corpo explica muito bem como tudo aquilo que € eflavio ou matéria do espiritual representa ¢ representaré sempre o espiritual de onde provém. Se um pintor paciente e minucioso,mas de uma imaginacio mediocre, inspira-se (a palavra consagrada), para pintar uma cortesi da época atual, numa cortesi deTiciano ow de Rafael, é muitissimo provavel que produzira uma obra falsa, ambigua © obscura. O estudo de uma obra-prima daquela época ¢ daquele género I, nem o nio Ihe ensinara nem a atitude, nem o olhar, nem a expressio fac aspecto vital de uma dessas criaturas que o diciondrio da moda classificou, 4 Cumprimentas no Bo Borlogne, cavateiros ¢ vei sucessivamente, pelos nomes ofensivos ou jocosos de impuras, de mantetidas, de loreites ¢ de biches.° A mesma critica aplica-se rigorosamente ao estudo do militar, do dindi, e até do animal, cio ou cavalo, e de tudo 0 que compée a vida exterior de um século. Infeliz daquele que estuda no passado outra coisa que nio a arte pura, a lagica, 0 método geral! De tanto deix se impregnar por ele, acaba perdendo a meméria do presente ¢ abdicando do valor ¢ dos privilégios propiciados pela circunstincia, pois quase toda a nossa originalidade provém da marca que © tempo imprime as nossas sensagdes. © leitor compreende desde ji que eu poderia facilmente comprovar minhas assergdes por meio de muitos outros objetos que no a mulher. Que diriam vocés, por exemplo. de um pintor de marinhas (levo a hipétese ao extremo) que, para reproduzir a beleza sobria ¢ clegante do navio moderno, cansasse seus olhos estudando as formas sobrecarregadas, rebuscadas, a popa monumental do navio antigo ¢ os velames complicados do século dezesseis? E que pensariam vocés de um m tivessem encomen ue, célebre artista a qu Jado o retrato de um puro-si nos espeticulos do turfe, se ele confinasse suas contemplagdes aos museus se ele se contentasse em observar © cavalo nas galerias do passado, em Van Dyck, Bourguignon ou Van der Meulen? O St. G.,guiado pela natureza, tiranizado pela circunstancia, tomou um caminho bem diferente. Comecou por contemplar a vida e sé tardiamente empenhou-se em aprender os meios para expressi-la, O resultado disso foi uma originalidade impressionante, na qual o que pode restar de birbaro ¢ de ingénuo mostra-se como uma nova prova de obediéncia 4 impressio causada, como uma lisonja & verdade, Para a maioria de nés,sobretudo para as pessoas de negécios, aos olhos das quais a natureza nio existe a nao ser nas relagdes de utilidade que ela mantém com suas transagdes, 0 real fantastico da vida esti singularmente embotado. O Sr. G. absorve-o incessantemente: sua memoria € seus olhos estio repletos dele. V. A arte mneménica Esta palavéa, barbérie, que talvez tenha aparecido com demasiada fre quéncia sob minha pena, poderia induzir algumas pessoas a crer que se trata aqui de alguns desenhos informes que s6 a imaginagio do espectador con- segue transformar em coisas perfeitas. Isso significaria compreender-me mal Quero falar de uma barbaric inevitivel, sintética, infant Permanece visivel numa arte perfeita (mexicana, egipcia ou ninivita) & que provém da necessidade de ver as coisas globalmente, de consideri-las, sobre tudo, no seu efeito de conjunto. Nao é supérfluo observar aqui que muitas pessoas tém acusado de bar , que muitas vezes todos 05 pintores cujo olhar é sintético ¢ abreviativo: 0 Sr. Corot, por exemplo, que se dedica, desde o inicio, a tracar as linhas prineipais de uma p: sagem, sua ossatura ¢ sua fisionomie. O Sr G., traduzindo fielmente suas préprias impresses, marca, assim, com uma energia instintiva, os pontos culminantes ou luminosos de um objeto (eles podem ser culmin ntes ou luminosos do ponto de vista dramitico), ou stuas principais caracteristicas, algumas vezes até mesmo com um certo exagero, titil para a meméria humana; € a imaginagio do espectador, submetida, por sua vez, a essa mnemdnica tao despotica, vé com nitidez a impressio produzida pelas coisas sobre o espirito do Sr. G.O espectador é aqui 9 tradutor de uma tradugio sempre clara e inebriante Ha um aspecto que muito contribui para a forca vital dessa traducio lendaria da vida exterior. Falo do método de desenhar do Sr. le desenha de meméria,¢ nio segundo um modelo, exceto no caso (a guerra da Crimeia, por exemplo) rapidas, fn que haja necessidade urgente de tomar notas imediatas = de fixar as linhas principais de um tema. Na verdade, todos os bons ¢ verdadeiros desenhistas desenham segundo a imagem que se inscreve em seu cérebro, ¢ nio segundo a natureza. Se nos contrapuserem os admiraveis croquis de Rafael, de Watteau e de muitos outros, diremos que se trata, nesses casos, de notas: muito minuciosas, é verdade, mas simples notas. Quando um verdadciro artista atinge a execucio definitiva de sua obra, o modelo ser-lhe mais um estorve do que um recurso. Pode até acontecer que homens como Daumier ¢ 0 St. G.,acostumados, desde hé muito, a exercitar sua meméria © a rechea-la de imagens, tenham, ao se verem diante do modelo ¢ da multi- plicidade de detalhes que ele comporta, sua faculdade principal perturbada © como que paralisada. Estabelece-se, entio, um duelo entre, de um lado, a vontade de tudo ver, de nada esquecer e, de outro,a faculdade da meméria que adquiriu o habit de absorver vivamente a cor geral ¢ a sillueta, o arabesco do contorno. Um artista que tenha o sentimento perfeito da forma, sobretudo sua mas acostumado a exercitar meméria € sua imaginagao, vé-se, entio, como que assaltado por uma rebeliio de detalhes, todos exigindo justiga, com a fitria de uma turba desejosa de igualdade absoluta. Toda justiga vé-se forgosamente violada; toda harmonia é destruida, sacrificada; muita trivialidade ganha foros de im- port ncia; muita miudeza artoga-se direitos indevidos. Quanto mais o artista se debruga, com imparcialidade, sobre © detalhe, mais a anargu aumenta. arquia ¢ toda subordinacio desaparecem. Trata-se de um acidente que se apresenta frequentemente nas obras de um de nossos pintores mais em voga, cujos defeitos, alis, sio «20 apropriados Seja ele miope ou presbita, toda hit aos da turba, que eles tém singularmente contribuido para sua popularida- de. A mesma analogia deixa-se adivinhar na pritica da arte do ator, arte tho misteriosa, tio profunda, hoje mergulhada na confusio das decadéncias. O Sr. Frédérick-Lemaitre constroi um papel com a amplitude ¢ a largueza do génio. Por mais salpicado de estrelas que seja seu jogo de detalhes luminosos, ele continua sintético e escultural. O Sr. Bouffé constréi os seus com uma mindcia de miope e de burocrata. Nele tudo brilha, mas nada se deixa ver, guardado na meméria Duas coisas revelam-se, assim, na execugio do St. G.:a primeira, um exige se: esforco ressuscitador, evocati vo, da memoria, uma meméria que diz a cada coisa: “Lazaro, levanta-te!”; a segunda, um ardor, uma embriaguez de lapis, de pincel, que parece quase um furor. & 0 medo de nao agir com suficiente 40 Um ecepeae na Cort rapidez, de deixar o fantasma fugir antes de extrair ¢ colher a sua sintese se terrivel medo que se apodera de todos os grandes artistas ¢ que os faz tio ardentemente desejar apropri rem-se de todos os meios de expresso para que as ordens do espirito jamais sejam alteradas pelas hesitagdes da mio: para que, finalmente,a execugio, a execugio ideal se torne tio inconsciente tio espontdnea quanto a digestio para o cérebro do homem saudavel que terminou de jantar. O Sr. G. inicia por ligeiras indicagées a c vio, que prati- camente apenas definem o lugar que 0s objetos devem ocupar no espaco. Os planos principais sto, em seguida, indicados por tinta em aguada, por massas vagamente, levemente coloridas no inicio, porém mais tarde retomadas ¢ sucessivamente reforgadas com core nais intensas. No tiltimo momento, ¢ contorno dos objet é definitivamente fixado a tinta. Nao se adivinhariam, 1 menos que se 6s tenham visto, os eft s surpreendentes que ele pode obte por esse método tio simples e quase elementar, Ele tem esta incomparivel vantagem: a qualquer etapa de seu desenvolvimento, cada desenho tem uma aparéncia suficientemente acabada; chamem isso de esbogo, se quiserem ~ um esboco perfeito, porém. Todos os seus valores estio em perfeita harmonia, ¢ se ele desejar levi-los mais longe, eles caminhario sempre juntos em di- regio ao aperfeigoamento desejado. Ele prepara, assim, vinte desenhos ao mesmo tempo, com uma exuberincia e uma alegria encantadoras — que sio divertidas até mesmo para ele proprio; os croquis empilham-se ¢ se superpdem as dezenas, as centenas, aos milhares, De vez em quando ele os percorre, folheia, examina e, depois, escolhe alguns dentre eles para dar Ihes mais ou menos intensidade, reforgar-Ihes as sombras ¢ acentuar-lhes progressivamente as luzes. Ele da grande importincia aos fundos, os quais, enérgicos ou delicados, sio sempre de uma qualidade ¢ de uma natureza apropriadas js‘figuras.A gama de tons ¢ a harmonia geral sio estritamente observadas, com um génio que provém mais do instinto que do estudo. Pois o Sr. G. possui naturalmente esse talento misterioso do colo ta, verdadeiro dom que 0 estudo pode reforgar, as que, por si mesmo, é, ereio, incapaz de criar, Para dizer tudo numa palavra, nosso singular artista exprime ao mesmo tempo o gesto € a atitude solenes ou grotescas dos seres € a sta explosio luminosa no espago. VI. Os anais da guerra A Bulgiria, a Turquia, a Crimeia, a Espanha foram grandes festas para 05 olhos do Sr. G., ou melhor, do artista imagindrio que convencionamos chamar de Sr. G.; pois de vez em quando me lembro de que prometi a mim mesmo, para satisfizer a0 maximo sua modéstia, supor que cle nio existe Compulsei esses arquives da guerra do Oriente (campos de batalha cobertos de restos mortais, carrogas de materiais, embarques de gados e de cavalos), quadros vivos ¢ surpreendentes, calcados na prépria vida, elementos de um pitoresco precioso que muitos pintores de renome, colocados nas mesmias circunstincias, teriam apressadamente negligenciado: de bom grado abrirei uma excecio, entretanto, para o Sr. Horace Vernet, verdadeiramente um documentarista, mais do que, essencialmente, um pintor, ¢ com o qual 0 Sr G., artista mais sensivel, tem conexées evidentes, desde que consideremos 0 primeiro como mero arquivista da vida. Posso afirmar que nenhum jornal nenhum relato es to, nenhum livro exprime tio bem, em todos os sew Guardas carte Inkerma detalhes dolorosos ¢ sua sinistra amplitude, essa grande epopeia da guerra 4 da “rimeia. O olho passeia, sucessivamente, pelas margens do Dantibio, pelas praias do Bésforo, pelo cabo Kerson, pela planicie de Balaclava, pelos campos de Inkerman, pelos acampamentos ingleses, franc es, turcos € piemonteses pelas ruas de Constantinopla, pelos hospitais € por todas as solenidades reli- iosas ¢ militares. Uma das composigdes que mais ficaram gravadas no meu espirito a Consagragio de um campo mortudrio em Soutari pelo bispo de Gibraltar O carater pitoresco da cena, que consiste no contraste entre a natureza orie tal circundante e as atitudes ¢ os uniformes ocidentais dos espec- tadores, é apresentado de uma maneira impressionante, sugestiva € plena de devancios. Os soldados e 0 oficiais tém aquele ar indelével — resoluto ¢ discreto — de gentlemen, que levam junto até ao fim do mundo, até as guarnigdes da colénia do Cabo e aos povoamentos da india: 0s pastores anglicanos fazem pensar vagamente em oficiais de justi¢a ou em agentes de cimbio que portassem barretes e peitilhos. Aqui, nesta outra, estamos em Schumla, na residéncia de Omar- Paxa: hospitalidade turca, cachimbos ¢ café; os visitantes estao enfileirados em divas, acomodando aos libios cachimbos longos como zarabatanas, cujos fornilhos repousam a seus pés. Aqui, so os Curdos ent Sautari, tropas 4 tchmet-Paxs, diante estranhas cujo aspecto faz pensar numa invasio de hordas barba baqui-bu ‘as; ali, os ques,” 1 cendrios a servigo dos turcos, nio menos singulares com seus oficiais europeus, htingaros ¢ poloneses, cujas fisionomias de dindis formam um estranho contraste com a aparéncia barrocamente oriental de seus soldados. Deparo-me com um d nho magnifico no qual: se ergue um tinico personagem, grande, robusto, com ar ao mesmo tempo pensativo, despreoct- pado € audacioso; grandes botas sobem-lhe acima dos joelhos; seu uniforme militar est escondido por um pesado © enorme casaco ¢ upulosamente abotoado; ele contempla, através da fumaca de seu charuto, o horizonte sinistro € nebuloso; um de seus bracos, ferido, sustenta-se numa gravata A maneira de tipoia. Embaixo, leio, rabiscadas a lapis, estas palavras: Canrobert on the battlefield of Inkerman. Taken on th spot [Canrobert no campo de batalha de Inkermat to na hora Quem seri « cavaleiro, de bigodes brancos, com uma fisionomia tio vivamente desei nhada que, a cabeca levantada, parece aspirar a terrivel poesia de um campo de batalha, enquanto seu cavalo, farejando a terra, busca seu caminho entre os cadiveres amontoados, pernas para 0 at, rostos crispados em estranhas poses? Embaixo do desenho, num canto, leem-se estas palavras Myself at Inkerman [Eu, em Inkerman| Vetcranos do Grande Exércite de Napoleds 1, junto & Colwna Vendéme Julgo reconhecer o Sr. Baraguay d’Hilliers, com © Seraskier [coman- dante-em-chefe], passando em revista a artilharia, em Besiktas. Raramente vi um retrato militar mais parecido, burilado por uma mao mais determinada € mais arguta, Um nome, sinistramente ilustre desde os desastres da Siria,* apresenta-se & minha vista: Achmet-Paxd, comandante-en-chefe, em Calafate, em pé diante de sua tenda com seu estado-maior, faz a apresentacao de dois oficiais europeus. Apesar da amplitude de sua panga turea, Achmet-Paxt tem, na postura e no rosto, o imponente ar aristocratic que é proprio, em geral, das ragas dominantes, A batalha de Balaclava apresenta-se diversas vezes, ¢ sob diferentes aspec- tos, nessa curiosa recolha. Entre os mais impressionantes, eis aqui a histérica carga de cavalaria cantada pelo heroico clarim de Alfred Tennyson, poeta da rainha: uma multidio de cavaleiros movimenta-se, entre as pesadas nuvens da artilharia, com uma velocidade prodigiosa, em diregio ao horizonte. Ao fando, a paisagem é recortada por uma linha de colinas verdejantes, De vez em quando, quadros religiosos servem de repouso para 0 olho entristecido por todo esse caos de poeira e por essas turbuléncias mortiferas. Em neio a soldados ingleses de diferentes armas, entre os quais se de: aca o pitor co uniforme de saias dos escoceses, um pastor anglicano Ié 0 oficio do domin: trés tambores, um deles apoiado sobre os outros dois, servem-lhe de puilpito. £ dificil, na verdade, para uma simples pena, traduzir esse poem: feito de mil croquis, tio imenso e tio complicado, e exprimir a embria- guez que se desprende de todo esse pitoresco (doloroso muitas vezes, mas nunca lacrimoso) reunido em algumas centenas de paginas, cujas manchas © rasgaduras revelam, a seu modo, a perturbagio ¢ © tumulto em meio 08 quais © artista ai depositava suas lembrangas do dia. A boca da noite, © correio recolhia, com destino a Londres, as notas ¢ os desenhos do Sr. G.,€ muitas vezes esse tiltimo confiava-lhe, assim, mais de dez croquis improvisados, em papel de seda, que os gravadores ¢ os assinantes do jornal aguardavam impacientemente. Neste aqui, aparecem ambulatérios nos quais a propria atmosfera par enferma, triste e pesada: cada um dos leitos contém uma dor; nesse outro, & © hospital de Pera, em que vejo, conversando com duas irmas de caridade espichadas, pilidas e rigidas como figuras de Lesueur, um visitante vestid com desleixo, assinalado por esta estranha legenda: My humble self [Minha humilde pessoa]. Neste outro, ainda, por veredas agrestes € tortuosas, cobertas pelos destrocos de um combate j4 antigo, marcham Jentamente animais, mulas, burros ou cavalos, que carregam, nas costas, em duas toscas cadeiras, feridos lividos e inertes. Por imensidées de neve, camelos, com peitos majestosos a cabeg 2 erguida, conduzidos por tartaros, arrastam provisées ou munigdes 49 de todo 0 tipo: é todo um mundo guerreiro, vivo, atarefado ¢ silencioso; sio acampamentos, feiras, em que se expdem amostras de todos os produtos, espécies de cidades barbaras, improvisadas de acordo com a circunstancia Por essas barracas, por esses caminhos pedregosos ou cobertos de neve, por esses desfiladeitos, circulam uniformes de diversas nages, mais ou menos desgastados pela guerra ou desfigurados pela sobreposi¢ao de grossas pelicas e de pesadas botas . £ lastimavel que este album, espalhado agora por diversos lugares, © cujas paginas preciosas foram retidas pelos gravadores encarregados de reproduzitas ou pelos redatores do Illustrated London News, nao tenha pas- sado pela vista do Imperador. Imagino que ele teria examinado, com certa complacéncia e nio sem alguma emogio, os feitos e gestos de seus soldados, todos minuciosamente mostrados, dia apés dia, desde as mais extraordinarias ages até As ocupagdes mais triviais da vida, por essa mao de soldado-artista, tio firme: tio inteligente. VII. Pompas e solenidades Além disso, a Turquia propiciou, a0 nosso caro G., admiriveis motives para composigdes: as festas do bait o, esplendores profindos ¢ exuberantes, 20 funclo dos quais aparece, como um sol pilido, o tédio permanente do sultio defianto: alinhados 3 esquerda do soberano, todos 0s oficiais da ordem civil: 4 sua direita, todos os da ordem militar, dos quais 0 primeito 6 Said-Paxi. sultio do Egito, entio em visita a Constantinopla; cortejos e pompas solenes desfilando em diregio 4 pequena mesquita proxima do palicio ¢, em meio a essa multidio, funciondrios turcos, verdadeiras caricaturas de decadéncia, esmagando seus magnificos cavalos sob 0 peso de uma obesidade fantistica; as pesadas ¢ macigas viaturas, espécies de carruagens a Luis XIV, douradas ¢ ornamentadas pelo capricho oriental, de onde faiscam as vezes, por entre a restrita faixa que as fitas de musselina coladas ao rosto franqueiam aos olhos, olhares femininos de curiosidade dangas fren6ticas dos bailarinos do terceiro ° (nunca a divertida expressiio de Balzac foi tio bem aplicada quanto no caso presente, pois, sob as palpitagSes dessas luzes tremulantes, sob a agitagio se dessas amplas vestes, sob essa ardente maquilagem das faces, dos olhos ¢ das sobrancelhas, nesses gestos histéricos ¢ convulsivos, nessas longas cabeleiras ondulando sobre os ombros, seria, para vocés, dificil, para nao dizer impossivel. adivinhar a virilidade); finalmente, as mull s galantes (e, todavia, pode-se Parte do harém do Sulsio utilizar a palavra “galanteria” a propésito do Oriente), em geral hiingaras, va- iquias, judias, polonesas gregas e arménias; pois, sob um governo despético, so as racas oprimidas — ¢, dentre elas sobretudo as que mais tém a softer — que mais gente fornecem a prostituigio. Dessas mulheres, umas conservaram a ves- timenta nacional, os casaquinhos de mangas curtas com bordados, a echarpe s listradas ou lame. ladas ¢ todo o fiulgor do pais natal; outras, ¢ sfio as mais numerosas, adotaram caida, as calgas largas, as sandélias recurvadas, as musselins 0 simbolo:principal da civilizagéo que, para uma mulher, é, invariavelmente, a crinolina, conservando, entretanto, nalgum recanto de seu vestuirio, um leve toque caracteristico do Oriente, de maneira que elas tém o ar de parisienses que tivessem querido se fantasiar. O Sr.G. brilha na pintura do fausto das cenas oficiais, das pompas & das solenidades nacionais, nao friamente, didaticamente, como os pintores que nio veem estas obras mais do que como encargos lucrativos, mas com todo o ardor de um homem apaixonado pelo espaco, pela perspectiva, pela luz que apenas serve de cortina ou que explode, € que se gruda, em gotas ou em centelhas, is asperezas dos uniformes e das toaletes de corte. A festa déncia na catedral de Atenas fornece um curioso exe! comemorativa da indepen nplo Mutheres do distrito de Janissey, nos arredores de Pera desse talento. Todos esses pequenos personagens, cada um no seu preciso lugar, cornam mais profiando © espaco que os contém. A catedral é enorme ¢ decorada com tapecarias solenes. O rei Oto ¢ a rainba, em pé sobre um estrado, esti cobertos com a roupagem tradicional, que vestem com uma desenvoltura maravilhosa, como que para dar provas da sinceridade de sua adogao ¢ do mais refinado patriotismo helénico. A cintura do rei esta cingida como a do mais coquete palicdrio, ¢ a sua saia se abre em rodado com todo © exagero do dandismo nacional. Diante deles caminha o patriarca, um velho homem de costas curvadas, longa barba branca, os pequenos olhos protegidos por éculos verdes, deixando transparecer em todo o seu ser os sinais de uma consut yada fleuma oriental.,Todos os personagens que povoam essa compo: siglo sto r tratos, ¢ um dos mais curiosos, pela estranheza de sua fisionomia tio pouco helénica quanto possivel, € 0 de uma dama alemé, a servigo da rainha e postada ao seu lado. Vé-se, fiequentement e, nas colecées do Sr. G., o imperador dos fran eses, cuja figura cle soube reduzir, sem prejuizo da semelhanga,a um croqui infalivel, que 6 executado com a certeza de quem apée uma rubrica. Dest vez, 0 imperador passa as tropas em revista, levado pelo galope de seu cavalo € acompanhado por oficiais cujos tragos sio facilmente reconheciveis, ou por principes estrang: ros, euFOpeus, asiiticos ou afticanos, aos quais presta, por assim dizer, as honras de Paris, Outras vezes, ¢ td imavel sol uni cavalo cujos pés sio tio firmes quanto os de uma mesa, tendo 4 sua esquerda a imperatriz em trajes de amazona e 4 sua direita 0 principezinho ir perial, coberto por um gorro de pele € equilibrando-se 3 maneira militar sobre um cavalinho. erigado como os pdneis que os artistas ingleses frequentemente incluem em suas paisagens;is vezes, desaparecem, em meio a um turbilhio de luz ¢ poeira nas alamedas do Bois de Boulogne; outras vezes, passeiam lentamente por entre as aclamagées do fuuibourg Saint-Antoine. Uma, sobretudo, dentre estas aquarelas, me deixou, por seu carter mi ico, deslumbrado. Sobre o peitoril de um camarote de uma riqueza cartegada ¢ principesca, a imperatriz aparece numa atitude tranquila e repousada;o imperador inclina-se levemente como que para enxergar melhor o teatro; embaixo, dois guardas imperiais, de pé, numa imobilidade militar e quase hieratica, recebem sobre seus brilhantes mulheres em crinolina, num café de Istambul | | uniformes os reflexos das luzes da ribalta. Por detris da faixa de luz, na atmosfe ideal da cena, os atores cantam, declamam, gesticulam harmoniosamente; do outro lado estendem-se um abismo de luz vaga e um espago circular abarrotado de figuras humanas em todos os niveis: de um lado, o lust le outro, 0 pitblico. Os movimentos populares, os clubes ¢ as solenidades de 1848 forne- coram igualmente ao St. G. uma série de composigdes pitorescas das quais a maior parte foi reproduzida pelo Illustrated London News. Ha alguns anos, apés uma estada na Espana, muito produtiva para o seu talento, ele compés um Album de mesma natureza, do qual nio vi sendo alguns fragmentos. A facilidade com a qual ele di ou empresta seus desenhos expSem-no frequen- temente a perdas irreparaveis. VIII. O militar Para definir uma vez mais 0 género de temas preferidos pelo artista, diremos que é a pompa da vida, tal como ela se oferece nas capitais do mundo civilizado; a pompa da vida militar, da vida elegante, da vida galante, Nosso observador est’ sempre pontualmente a postos onde quer que corram, pro~ fundos e impetuosos, os desejos: 10s Orenocos do coracio humano, na guerra, no amor, no jogo; onde quer que se agitem as festas € as fiegdes que ponham, em cena esses importantes fatores de Felicidade e de infortinio. Mas ele mostra uma predilegio muito acentuada pelo militar, pelo soldado, afeicio, acredito, que provém nfo apenas das virtudes & das qualidades que, originando-se na alma do guerreiro, transparecem forcosamente em sta atitude ¢ em seu rosto, mas também do aderego vistoso com que sua profissio 0 recobre. O Sr. Paul de Molénes escreveu algumas paginas tio encantadoras quanto sensatas sobre 6 coquetismo militar ¢ sobre o sentido moral desses aderegos fulgurantes com que todos os governos se comprazem em cobrir as suas tropas. O Sr. G. certamente subscreveria estas linhas. J falamos da beleza propria de cada época ¢ observamos que cada século tinha, por assim dizer, sua graga pessoal. A mesma observagio pode extrai sua beleza exterior das leis ser aplicada as profissées; cada uma delas morais as quais esti submetida. Nalgumas, essa beleza sera marcada pela ra os sinais visiveis do écio. E como que o emble- ma do carter, a estampa da fatalidade, © militar, considerado de ma energia; noutras, carreg neira geral, tem sua beleza, como o dindi ¢ a mulher galante tm a sua, de um gosto essencialmente diferente. Nao se estranhara que eu deixe de fora as uniformes os reflexos das luzes da ribalta. Por detris da faixa de luz, na atmosfera ideal da cena, os atores cantam, declamam, gesticulam harmoniosamente; do outro lado estendem-se um abismo de luz vaga e um espago circular abarrotado de figuras humanas em todos os niveis: de um lado, o lustre; de outro, 0 pétblico. Os movimentos populares, os clubes ¢ as solenidades de 1848 forne- ceram igualmente ao St. G. uma série de composigdes pitorescas das quais a maior parte foi reproduzida pelo Illustrated London News. Ha alguns anos, apés uma estada na Espanha, muito produtiva para o seu talento, ele compés um album de mesma natureza, do qual no vi sendo alguns fragmentos. A facilidade com a qual ele di ou empresta seus desenhos expdem-no frequen- temente a perdas irrepariveis. VIII. O militar Para definir uma vez mais 0 género de temas preferidos pelo artista, diremos que é a pompa da vida, tal como ela se oferece nas capitais do mundo civilizado;a pompa da vida militar, da vida elegante, da vida galante, Nosso observador esta sempre pontualmente a postos onde quer que corram, pro~ fandos e impetuosos, os desejos: nos Orenoces do coragio humano, na guerra, no amor, no jogo; onde quer que se agitem as festas € as fiegdes que ponham, em cena esses importantes fatores de Felicidade e de infortinio. Mas ele mostra uma predilegio muito acentuada pelo militar, pelo soldado, afeicdo, acredito, que provém nfo apenas das virtudes e das qualidades que, originando-se na alma do guerreiro, transparecem forgosamente em sua atitude € em seu rosto, mas também do adereco vistoso com que sta profissio 0 recobre. O Sr. Paul de Molénes escreveu algumas paginas to encantadoras quanto sensatas sobre 6 coquetismo militar ¢ sobre o sentido moral desses aderegos fulgurantes com que todos os governos se comprazem em cobrir as suas tropas. O Sr. G. certamente subscreveria estas linhas. = cada Jf falamos da beleza propria de cada época ¢ observamos qu século tinha, por assim dizer, sua graga pessoal.A mesma observagio pode ser aplicada 3s profissSes; cada uma delas extrai sua beleza exterior das leis morais as quais esté submetida. Nalgumas, essa beleza sera mareada pela energia; noutras, carregaré os sinais visiveis do 6cio. E como que o emble~ ma do carter, a estampa da fatalidade. © militar, considerado de maneira geral, tem sua beleza, como o dindi ¢ a mulher galante tém a sua, de um gosto essencialmente diferente. Nao se estranhara que eu deixe de fora as profissdes em que uum exercicio exchusivo e violento deforma os misculos e deixa no rosto a marca da servidio. Acostumado ao inesperado, o militar dificilmente se surpreende. O signo particular da beleza seri, pois, aqui, uma imperturbabilidade marcial, uma singular mescla de placidez e audcias rata se de uma beleza que provém da necessidade de estar preparado para morrer no proximo minuto. Mas. rosto do militar ideal devers estar marcado por uma grande simplicidade; pois, vivendo em comum, tal como os monges ¢ os estudantes internos, habituados a deixar as preocupagdes cotidianas da vida aos ettidados de uma paternidade abstrata, os soldados so, em miuitas coisas, tZo simples quanto as criangas; e, tal como as criangas, uma vez 0 de ver cumprido, divertem-se com facilidade, com inclinagio para as diversoes violentas. Nio creio que exagero ao afirmar que todas essas consideragSes morais brotam naturalmente dos croquis € das aquarelas do Sr. G. Nao falta ai nenhum tipo militar € sio, todos, captados com uma espécie de alegria apaixonada: 0 velho oficial de infantaria, sério ¢ triste, castigando, com sua obesidade, cavalo; 0 formoso oficial de estado-maior, a cintura apertada, balancando os ombros, inclinando-se sem timidez sobre a poltrona das damas € que, visto de costas, faz pensar nos mais esbeltos ¢ elegantes insetos; 0 2tiavo eo artilheiro colonial, deixando transparecer no porte um traco excessive de audicia e de independéncia e como que um sentimento mais vivo de respon- sabilidade pessoal;a desenvoltura agile alegre da cavalaria ligeira;a fisionomia vagamente professoral e académica dos corpos especiais, como a artilharia ¢ a engenharia, frequentemente confirmada pelo aparato pouco guerreiro dos Sculos; nenhuma dessas nuances, nenhum desses modelos sio descurados & sio, todos, sintetizados, definidos, com 0 mesmo amor ¢ o mesmo espirito. Tenho diante dos olhos, neste momento, uma dessas composi¢des de uma aparéncia ger coluna de infantaria | verdadeiramente heroica, que representa uma cabeca de talvez esses homens estejam voltando da Itélia ¢ tenham feito uma parada em homenagem ao entusia mo da multidio; talvez estejam no fim de uma longa marcha pelas estradas da Lombardia; nao sei. O que & visivel, plenamente inteligivel, é 0 carter firme, audacioso, na sua tranquili- dade mesma, de todos esses rostos curtidos pelo sol, pela chuva ¢ pelo vento Ve-se perfeitamente, aqui, a uniformidade de expressio produzida pela obediéncia € pelas dores suportadas em comum, 0 ar resignado da coragem posta 4 prova pelo esforgo prolongado. As calgas arregagadas presas as polainas, os capotes consumidos pela pocira, levemente desbotados, todo o equipamento, enfim, adquiriu, ele proprio, a indestrutivel aparéncia 60

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