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K. LANGER SUE Ei ama GUL) estudos estudos estudos Z * EDITORA PERSPECTIVA =S>"" RR Awe EDITORA PERSPECTIVA Préximo lancamento A Politica e 0 Conhecimento Sociolégico F. G. Castles A contribuigio de Susanne Langer para a Teoria do Conhecimento a Estética é reconhecidamente uma das mais importantes do pensamento contemporineo. Desenvolvendo principalmente as propostas filosdficas de Whitehead e Cassirer, escreveu uma obra, Filosofia em Nova Chave, que marcou fundo as pesquisas sobre o papel da estrutura simbélica nos varios dominios da atividade e criatividade hu Sentimento ¢ Forma leva a frente e as ultimas conseqiiéncias a tarefa anteriormente esbocada por via analitica. Agora, Susanne Langer propie-se a copeciticar no sentido mais rigoroso o significado de conceitos como Expressiio, Criacio, Simbolo, Importe, Intuicao, Vitalidade e Forma Organica, de modo a esclarecer a natureza da Arte € sua relagao com 0 sentimento, a autonomia relativa das varias artes e sua unidade fundamental na propria “‘Arte”’, as fungdes do tema ¢ do meio, os problemas epistemologicos da ‘‘verdade”’ e “comunicagao’’ artisticas. Muitos outros problemas siio analisados: pi desempenho € ‘‘criacio”’, “‘recriagdo”’ ou ‘mera habilidade’”’, se 0 teatro ¢ literatura ou niio, por que a danca alcanga 0 zénite de desenvolvimento no estadio primitivo de uma cultura em que outras artes apenas comecam a despontar no horizonte étnico, Todos estes aspectos decorrem evidentemente de questées centrais e, como estas, sio abordadas em sua plenitude. Assim, pode-se descrever 0 propésito rincipal de Sentimento ¢ Forma como o de estabelecer uma infra-estrutura intelectual para estudos filoséficos gerais ou pormenorizados, com respeito a Arte. or exemplo, se 0 Colegio Estudos Dirigida por J. Guinsburg WI tonllenyae ‘Tradugho: Ana _M, Goldberger Coelho e Pade LM Minto” Martins Filho. Susanne K. Langer SENTIMENTO E FORMA Uma Teoria da Arte desenvolvida a partir de Filosofia em Nova Chave Wy, =e 2 EDITORAPERSPEC GF, 2 TIVA Zi Titulo do original Feeling and Form Copyright © 1953, by Charles Scribner’s Sons A meméria de Kenst’ Cassirer Pan Oe ea eee ‘ Maal tty Antinie U4 (an aul imal | epotrme a ia alte Sumario Introdugaio Parte I: O Si{MBOLO DA ARTE . A Medida das Idéias .........0....00 esse sees Filosofia, o estudo de conceitos basicos — doutrinas rivais, um sinal de conceitos inadequados — a teoria da arte, cheia de confusées — seus problemas bAsicos, nao formulados — “falécia da abstragio ébvia” — metodologia e método — generalidades e generalizagdes — requisitos do pensamento filosético — principio de generalizagéo — princfpio de fe- cundidade — fung&o de um problema central — problema da criag%o artistica — emergéncia sistematica de conceitos gerais e problemas especiais — dificuldades e promessas deste empreendimento, . Paradoxos Idéias-chave na estética, heterogéneas — cada uma d& ori- gem a um tipo especial de teoria — complicacdo posterior devida a dois pontos de vista — expressio e impressio — tendéncia das teorias a serem paradoxais — “polaridade” de sentimento e forma — sentimentos na arte, nao senti- tidos — paradoxo do “sentimento objetivo” Baensch, e © sentimento como qualidade — suas distingdes — a velha questéo da “Forma Significante”. 13 VI SUMARIO 3. O Simbolo do Sentimento .......0.....sceeeeeeeee Varios sentidos de “expressio” — todos os tipos encontra- dos na arte — a maioria de tais tipos, nfo peculiares A arte — sumério da teoria especial da misica em Filosofia em Nova Chave — misica, uma expressfio simbélica do senti- mento — sumério da teoria semantica — formas articula- das — import vital — significado de “forma significan- te” em miisica — Clive Bell ¢ a arte plastica — Bell, ¢ a “emogio estética” — “atitude estética” — fonte do conceito — supostas dificuldades da atitude — critica da aborda- gem psicolégica — o sfmbolo da arte — técnica — defini- gio de “arte”. Parte I: A ELABORACAO DO SIMBOLO 4. Semelhanga ........ 6. .ceeeee eee ees “Atitude estética” provocada pela obra — ilusio — ima- gens — o carter virtual destas — semelhanga — Schiller, ea funcgio de Schein — abstragao da forma — forma e contetido — significagéo, como o contetido das formas ar- tisticas — Prall, e as formas sensoriais — sobre o senti- mento na arte — limitagio de seus princfpios — criagio de formas virtuais — a inteng&o como légica da visio ar- tistica — relagaio com o sentimento — movimento e cres- cimento — “forma viva” — criagio. 5, Espaco Virtual Motivos — nfo obras, mas engenhos — formatos sugestivos — forma e representaciio — a pura decoracio expressiva — representagio como motivo — articulacaio visual, o objetivo de toda arte plastica — conformagio do espacgo — espago real e espago virtual — ilusio priméria da arte plastica — seu cardter auténomo — Hildebrand, e 0 “espago perceptive” — “processo arquiteténico” — o plano da pin- tura — terceira dimenséo — “forma real” e “forma percep- tiva” — unidade do espago perceptivo — valores visuais — imitagio e criagio — o espacgo tornado visivel — “vic em obras de arte — expresso de sentimento vital — na- tureza da “expressividade” lusdo priméria, a criagfo ba- sica — elementos e materiais — modos, 6. Os Modos do Espaco Virtual “Cena” virtual — falsa a generalizagio de Hildebrand — forma organica da escultura — “volume cinético” — espa- go subjetivo objetificado — arquitetura e espaco virtual — arranjo e criagio — “dominio étnico” — articulagao organica do lugar — relagio entre escultura e arquitetura — autonomia e unidade das artes. 7. A Imagem de Tempo Interesse nos materiais — teorias do som e audig¢aio — nao teoria musical — respostas nervosas — vibragées — ele- mentos musicais sio formas audiveis — ilusério, seu mo- vimento — ilusdo primdria 6 o tempo virtual — diferenga do “tempo do relégio” — niio unidimensional — a passa- 47 B 91 111 12. . Poderes Virtuais SUMARIO gem, nio uma sucessiio de “cstados” — tensdes incomen- surdveis — tempo musical e pura duragio — a falha de Bergson — misica e a durée réelle de Bergson — misicos, seus criticos realmente construtivos — sem fundamento o temor da “espacializagio” — “espacgo musical” — para- Telos com concepgées de espaco plasticas — outros pro- blemas. A Matriz Musical ... Composigao e apresentagéo — todo organico, a concepgao essencial — “forma dominante” e composic¢io — nao a mesma coisa que a Urlinie — princfpios da arte e princi- pais recursos — muitos tipos de musica — definigo de ritmo — maior ritmo, a “forma dominante” — objetividade da matriz musical. . A Obra Viva ...... cece eee ee tereeeesoeeerresesctens Ambigilidade de “a pega” — audicgao interior e audigio fi- sica — poesia e mdsica néo comparaveis em termos simples — fatores essenciais na audi¢ao fisica — na audicao interior — composig&o incompleta — execugdo, seu acabamento — controlado pela matriz musical — ato de expressar — ex- pressio artistica e auto-expressio — sentimento real pela pega — pathos da voz — formalizagio — imaginacio mu- sical versus “mera técnica” — poder de ouvir — desenvol- vido pela pratica — radio e discos — vantagens e perigos. . O Principio de Assimilagio ........... cece eee eee eeee Palavras e musica — teoria e pratica freqiientemente em desacordo — palavras tornam-se elementos musicais — mas néo meros sons — “superficie estética”, nao a forma perceptiva — a forma “incorpora” materiais estranhos — formas poéticas cindidas — miisica incorpora o teatro — Staiger, sobre Wagner e Gluck — misica sugestiva — princfpios hermenéuticos como motivos — irrelevancia das associagées — o devaneio “incorpora” a musica — é pos- sivel que outras artes fagam o mesmo, A estética da danga apresenta dificuldades especiais — a danga como uma arte musical — opinides e evidéncia em contrario — a danga como arte independente — Nover- re — como arte dramatica — objegdes — a danga, uma arte independente — o gesto, sua abstragio basica — natureza complexa do gesto — subjetivo e objetivo — gestos reais como material — gesto virtual — forgas vitais — forcas da danga como poderes virtuais — os dangarinos e a auto- expressio — a pratica desmente a teoria — sentimento imaginado — semelhanga de auto-expressio — confusio de aspectos reais e virtuais — personagens da danca co- mo seres virtuais — Scheingefiihle — andlise dos proble- mas envolvidos — afirmacées miticas resolvidas — valor da teoria. O Circulo M&gico ......cce ssc scene cece ee eeenere Concepgiio primitiva dos Poderes — o Mundo do Espirito — Cassirer e a “consciéncia mitica” — senso de poder objetificado na danca — evolugdo pré-histérica da danga — Vit 127 139 155 177 197 Vu SUMARIO 13. 14, . Meméria Virtual ........ peeeeeeeee - Curt Sachs e tipos de mente — formas naturais como motivos — o que é criado — ilusio de libertagaio de forgas reais — balé — a danga como aparigio — o dangarino e seu “mundo” — a misica como elemento da danga — espago e tempo balético — efeito da audiéncia passiva — efeitos da secularizagao — entretenimento — efeito da danga na musica — confuséo de pensamento e clareza de intuic&o nos dangarinos — a danga como arte pura. Poesis .....cseececceteenes teen cece nee ee ee eneee A literatura chamada de. arte mas tratada como afirmagio — discurso, seu material — maneiras de dizer coisas — critica e paréfrase — I, A. Richards e compreender a poesia — dizer e criar — a iluséo poética feita pelo dis- curso — vida virtual — toda arte literdria, poética — dois sentidos de “vida” — semelhanga de eventos — forma sub- jetiva — eventos, a abstracio bésica — filosofia na poesia — ficgao e fato — dialeto. — Tillyard e a poesia “direta” e “obliqua” — faldcia dos “significados mais profundos” — poesia nenhuma é afirmacao — legftimos os temas morais — leis da légica e da imaginagio — arte e vida. Vida ¢ Sua Imagem ..........0.seeee eee eeeeeene rene A imaginagaio como desvio da razio — Cassirer, a lingua- gem e a imaginacgéo — Barfield e a linguagem e mito — Freud e os simbolos nao-discursivos — “significados” p: canaliticos, nfo significagéo artistica — significagdo artist ca nao escondida — o estudo de Freud sobre a “légica” nao-discursiva — principio da sobredeterminagio — da ambivaléncia — da auséncia de negativas — da condensa- gio — “obra de sonho” e obra de arte — escolas e Te- cursos poéticos — o ideal da “poesia pura” — a poesia definida como uma experiéncia — como um tipo de lin- guagem — impropriedade de tais tratamentos — a poesia como semelhanga de eventos admite todas as obras poé- ticas — toda poesia boa é “pura” — a realidade de sua significagéo — fontes na vida real — nenhum tema é tabu — transformagio de fato — prosa, uma forma poé- tica. Poesia lirica, 0 caso mais patente de linguagem criativa — niio uma arte de destaque — 0 tempo presente da Ifrica — narrativa, um dos principais recursos literérios — mudanga para o tempo perfeito — forma fechada do passa- do — meméria virtual — caprichos aparentes de tempo (@m_ fungées criativas tempos misturados nas baladas mito ¢ lenda, materiais literérios — nenhuma composi- yen Kom nutoria pessoal — poesia, nao necessariamente ural cnpucidade de ler e escrever e as artes poéticas. Aa Chandos Formas Literérias .,. Cunvengoon poéticas — formas literérias originam-se de fevtitaim oxpecliix — nenhum “valor” liter4rio absolute — {acihan # popdasitos criativos — meios vigorosos tornam AH ee pT Tho técnica da balada — romance — o vere (iin as dlapensivel — ficgéo em prosa — novela, HH CON fener freqlientemente encarada como co- 217 245 269 291 17. 18. 19. SUMARIO mentirio, nfio como arte — ilusfio de “vida sentida” — est6ria e contador de estérias — criagio de personagens — Clive Bell e Proust — ilusdes secunddrias na literatura — 0 fato como o “modelo” — nio-ficgdo como arte apli- cada — explorag&io da forma discursiva como motivo — especializagao de formas — o épico como matriz de todas as formas literdrias. A Ilusio Dramatica Drama € poesia, mas nfo “literatura” — abstragao Dasica, © ato — modo da meméria e modo do Destino — futuro virtual — Morgan e a “forma em suspenso” — inteireza da ag&io dramatica — forma org&nica 4 — situagio — “lo- calizagio” versus “ambiente” — drama, uma arte de cola- boragao — o poeta fornece os discursos — discurso como a culminagéo da aco — deve ser representada — sentimen- to real e ficticio — teoria do faz-de-conta dramatico — Bullough e a “DistAncia psfquica” — o drama como ritual — como divertimento — como obra-de-todas-as-artes — teoria hindu — desmentida pelas prdticas teatrais hindus — o drama como dancga — o drama “incorpora” a danga — Rasa — o drama oriental representa objetos fisicos — todos os elementos do drama so poéticos. As Grandes Formas Dramiticas: O Ritmo Cémico .... Moralismo na teoria dramatica — comédia como critica social — trégico ¢ cémico como pontos de vista — na realidade, estruturas diferentes — senso universal de vida — vida e morte — o ritmo cémico — o destino como Fortuna — o ritmo trégico — 0 destino como Fado — a comédia séria — a “Divina Comédia” — a Nataka — pecas herédicas — comédia e humor — teorias do riso — todas ignoram a “Distancia psiquica” — o humor, um elemento estrutural da comédia — o buféo — o humor como esplendor do drama — muitas fontes da comédia — resposta da audiéncia, nfo um riso comum — o ritmo da vida universal. As Grandes Formas Dramiticas: O Ritmo Tragico .... O ritmo trégico — potencialidade ¢ realizagio — a vida com uma agao total — Fado — tragédia nao é conhecida em todas as partes — “forma dominante” da a¢éo — vida condensada — o “erro tragico” — a tragédia néo ilustra o Fado, mas cria sua imagem — elementos cémicos — subestrutura cémica — fungao do espetaculo — mero espe- t&culo — o drama, nao uma arte hibrida — sua real re- lagao com a vida. Parte III: © PODER DO SiMBOLO Expressividade ....... sees eeeeeeeeeeee siiveuine eres Simbolo da arte, nio um simbolismo — questdes centrais na filosofia da arte — projegdes nao-temporais do senti- mento — vida de sentimento — todos os padrées vitais so organicos — idéias associadas podem variar — in- tuitiva a percepgfo da significagio — Bergson e a intuigdo 1X 319 339 365 383 x SUMARIO — Croce ¢ a intuicio e expressio — conseqiiéncias de sua teoria — Cassirer e a abstracio e insight — o simbolo de arte nio “faz referéncias” ou “comunica” — Collingwood e a arte como “linguagem” — e a sinceridade e corrupgio — ea irrelevancia da técnica — critica de seu livro — te- mor da teoria do simbolo — perigos e vigor de tal teoria — arte e oficio — arte e personalidade — o empreendimen- to do artista. 21. A Obra e Seu Pablico .. Artista e piiblico — objetividade — o esp problemas da percepgao da arte — siguifieagso attistica, nao comentério — sempre sustentada no simbolo — rela- cio de quem percebe nfo com o artista, mas com a obra — natureza real da “emogio estética” — beleza — pri- mazia da responsividade — liberdade e frustracdo da res- posta — antecipagio de forma — efeito da arte na vida — educagfo do sentimento — arte e religiio — efeitos da secularizagio — entretenimento — nao o mesmo que diver- timento — critica de arte — talento e génio — “tempera- mento artistico” — a arte como heranga cultural. Apéndice Uma Nota Sobre o Filme ...........seeeeseceneeees 427 Filme nao é teatro — nfo é pantomima — nao é uma arte plastica — “incorpora” todos os materiais — € um modo poético separado — “presente virtual”, 0 modo do sonho — abstragdo basica € o “carater de ser dado” — camara mével — cardter criativo do filme. Bibliografia 433 Introducao Em Filosofia em Nova Chave* foi dito que a teoria do simbolismo ali desenvolvida deveria levar a uma critica da arte tio séria e de alcance tao amplo quanto a critica da ciéncia que se origina da andlise do simbolismo discursivo. Sentimento e Forma propée-se realizar essa promessa, ser essa critica da arte. Uma vez que essa filosofia da arte apéia-se diretamen- te na teoria semntica acima mencionada, o presente livro nao pode sendo pressupor o conhecimento do anterior pelo leitor; cle tem, de fato, a natureza de uma continuacdo. Prefe- tiria té-lo feito independente do primeiro, mas seu préprio tema é téo vasto — apesar da forma esquematizada que assu- miu algumas vezes — que, para repetir os tépicos relevantes ou, mesmo, os mais essenciais do livro anterior, seriam necessdrios dois volumes, sendo que o primeiro, é claro, teria praticamente repetido o trabalho que ja existe. Assim, devo pedir ao leitor que considere Sentimento e Forma como, efetivamente, o segundo volume do estudo sobre sim- bolismo que se iniciou com Filosofia em Nova Chave. Um livro, tal como um ser humano, nao pode fazer tudo; no pode responder, numas poucas centenas de pé- ginas, todas as perguntas que o Filhote de Elefante, em * Publicado por esta editora, na coleciio Debates, n.° 33. xiL INTRODUCAO sua curiosidade insacidvel, poderia resolver fazer. Assim, posso muito bem afirmar imediatamente o que este livro n4o tenta fazer. Nao oferece critérios para julgar “obras-pri- mas”, nem mesmo para julgar obras menores de um certo sucesso em cOmparacgao com obras menores mal sucedidas — pinturas, poemas, pecas musicais, dangas, ou quaisquer ou- tras. Nao estabelece cAnones de gosto. Nao prediz o que € possivel ou impossivel dentro dos limites de qualquer arte, quais os materiais que podem ser empregados nela, quais os temas que lhe seraéo adequados, etc. N&o auxiliaré nin- guém a ter uma concepgdo artistica, nem o ensinaré como concretiz4-la em meio algum. Todas essas normas e regras parecem-me estar fora do campo do filésofo. O préprio da filosofia é esclarecer e organizar conceitos, dar significados de- finidos e satisfatérios aos termos que empregamos ao falar de qualquer assunto (neste caso, de arte); é como disse Charles Peirce, “tornar claras nossas idéias.” Este livro tampouco coordena teorias da arte com pers- pectivas metafisicas, “hipdéteses mundiais” no dizer de Stephen Pepper. Essa meta nao esta fora da filosofia, mas est4 além do alcance de meu presente estudo filoséfico. Dentro dos limites por mim tragados, posso desenvolver apenas uma teoria da arte, e ndo construir a “hipétese mundial” que po- deria abrangé-la — sem falar de comparar um sistema con- ceitual assim téo vasto com qualquer outro sistema alterna- tivo. Além do mais, existem limitagdes que tenho de aceitar simplesmente com o fim de que minhas prdprias idéias e sua apresentagdo continuem manejaveis. A primeira limitagao & nao rebater explicitamente as muitas teorias, classicas ou correntes, que contradizem a minha em pontos cruciais. Se eu fosse seguir toda refutagdo de outras doutrinas que implica minha linha de argumentagdo, esta ficaria perdida num emaranhado de controvérsias. Conseqiientemente, evi- tei as polémicas tanto quanto possivel (embora nao de todo, evidentemente) © apresentei para discusséo principalmente aquclas idéias de meus colegas e predecessores, baseada na quais posso construir algo, dirigindo criticas contra o que me parecem ser suas limitagdes ou erros. Além disso, tanto quanto foi possivel, releguei os materiais comparativos as notus de rodapé. Isso provoca muitas anotagdes (especial- mente nos capitulos sobre poesia, ficgao e teatro, assuntos tradicionalmente estudados por eruditos, de forma que a literatura erflica sobre eles € enorme), mas permite que o texto prossiga, sem embaragos de quaisquer arabescos de INTRODUCAO XUL saber eclético, e tao diretamente quanto possivel, com o desenvolvimento de seu préprio tema principal. As notas de rodapé tornaram-se assim mais do que meras referéncias a citagdes corroborativas do afirmado, e sao destinadas ao Icitor comum, bem como ao estudioso especializado; abando- nei, portanto, o costume estrito de deixar as citagdes de autores estrangeiros na lingua original e traduzi todas essas Ppassagens para o inglés, tanto nas notas quanto no texto. Portanto, quando nao se menciona nenhum tradutor de um trabalho com titulo em outra lingua, a traducgdo é minha. Finalmente, nada neste livro 6 tratado exaustivamente. Todo assunto, nele, exige posterior andlise, pesquisa, inven- cio. Isso ocorre porque é essencialmene um trabalho de exploracgéo, que — como Whitehead uma vez disse, referin- do-se ao pragmatismo de William James — “levanta princi- palmente uma porgdo de lebres para que as pessoas cacem”. O que Sentimento e Forma propée-se fazer é especificar os significados das palavras: expressio, criagéo, simbolo, significagéo (import), intuigao, vitalidade, e forma organica, de tal modo que possamos entender, em seus termos, a na- tureza da arte e sua relacéo com o sentimento, a autonomia relativa das varias artes e sua unidade fundamental na pré- pria “Arte”, as fungdes do tema e do meio, os problemas epistemolégicos da “verdade” e “comunicagao” artisticas. Muitos outros problemas — por exemplo, se o desempenho & “criagéo”, “recriagéo” ou “mera habilidade”, se o tetatro 6 “literatura” ou néo, por que a danga muitas vezes alcanca © zénite de seu desenvolvimento no estddio primitive de uma cultura onde outras artes estéo apenas surgindo em seu horizonte étnico, para mencionar apenas alguns — decorrem dos problemas centrais e, como estes, assumem uma forma que permite respondé-los. O propésito principal do livro, portanto, pode ser descrito como sendo a construgéo de uma infra-estrutura intelectual para estudos filos6ficos, gerais ou detalhados, relacionados com a arte. Ha certas dificuldades peculiares a este empreendimen- to, algumas das quais de natureza prdtica e outras de nature- za semantica. Em primeiro lugar, a filosofia da arte deve- tia, creio, comegar no estidio, niéo na galeria, auditdério ou biblioteca. Da mesma forma como a filosofia da ciéncia exigiu, para seu desenvolvimento adequado, o ponto de vista dos cientistas, néo o de homens como Comte, Buechner, Spencer e Haeckel, que viam a “ciéncia” como um todo, mas sem nenhuma concepgo de seus problemas reais e XIV INTRODUCAO conceitos operacionais, assim a filosofia da arte exige o ponto de vista do artista para pér a prova a forca de seus conceitos e evitar generalizagées vazias ou ingénuas. O filésofo deve conhecer as artes, por assim dizer, “de dentro”. Mas ninguém pode conhecer todas as artes dessa forma. Isso acarreta uma quantidade 4rdua de estudo nado-académi- co, Seus professores, além do mais, s4o artistas, e estes falam sua prépria linguagem, que resiste amplamente a uma tradugdo para o vocabulério mais cuidadoso, literal, da filo- sofia. E provdvel que isso deixe impaciente o filésofo. Mas, de fato, é impossivel falar sobre arte sem adotar, numa certa medida, a linguagem dos artistas. A razaio pela qual eles falam como o fazem nao é inteiramente (embora seja parcialmente) porque carecam de um treinamento no dis- curso e sejam populares em sua fala; nem eles aceitam, de- sencaminhados por “maus habitos de fala”, uma visio do homem do tipo “fantasma na mAquina”, como sustenta Gilbert Ryle. Seu vocabuldrio é metaférico porque precisa ter plasticidade e¢ forca a fim de permitir-lhes exprimir seus pensamentos sérios e freqiientemente diffceis. Nao podem encarar a arte como sendo “meramente” este ou aquele fenémeno facilmente compreensivel; estio por demais interessados nela para fazerem concessdes a linguagem. O critico que despreza sua fala poética provavelmente esta- r4 sendo superficial ao examind-la, e lhes atribuird idéias que nao defendem, em vez de descobrir 0 que realmente pensam e conhecem. Mas nao basta aprender a linguagem dos estidios; sua tarefa como filésofo, afinal, é empregar o que sabe para construir uma teoria, nado um “mito operacional”. EB, quando ele se dirige a seus préprios colegas, encontra uma nova dificuldade semantica: em vez de interpretar as metdforas dos artistas, agora tem de lutar contra as excentricidades do uso profissional. Palavras empregadas por ele com toda sobriedade e exatidiéo podem ser usadas em sentidos intei- ramente diferentes por escritores tio sérios quanto ele. Considere-se, por exemplo, uma palavra em torno da qual todo este livro est4 construido: “simbolo”. Cecil Day Lewis, em seu excelente livro The Poetic Image, atribui-lhe sempre o significado daquilo que chamei de “simbolo atri- ‘buido”, um signo com um significado literal fixado por con- -vengéo; Collingwood vai ainda mais longe e limita o termo a signos escolhidos propositalmente, tais como os simbolos da légica simbélica. Depois ele estende o termo “lingua- gem” a fim de cobrir tudo o que eu chamaria de “simbolos”, INTRODUCAO. XV incluindo {cones religiosos, ritos e obras de arte. Albert Cook, por outro lado, opée “simbolo” a “‘conceito”; por este, entende o que Day Lewis significa com “‘simbolo’, mais tudo © que ele (Cook) condena como “mecénico”, tal como a comédia de Rabelais. Fala da “infinita sugestividade do wimbolo”?, Evidentemente, “simbolo” significa algo vaga- mente honroso, mas no sei o qué. David Daiches tem ainda outro uso e, de fato, uma definig&io: “Como usado uqui”, diz ele em A Study of Literature, “ele (‘simbolo’) simplesmente significa uma expressio que sugere mais do que diz”3, Mas logo depois restringe seu sentido de maneira muito radical: “Um sfmbolo é algo em que os homens sen- s{veis reconhecem seu destino potencial...”*. Aqui o signifi- cndo de “simbolo” pode ser ou nao o mesmo que Cook tem em mente. ‘Tudo o que os pobres filésofos podem fazer é definir suas palavras e confiar em que o leitor tenha a definigio em mente. Freqiientemente, entretanto, o leitor nao est4 pronto pura aceitar uma definigéo — especialmente se esta, de algum modo, for pouco usual — até ver o que o autor pretende com ela, até ver por que a palayra deve ser assim definida; e pode ser que isso ocorra quando a leitura do livro j4 esteja bem adiantada. Minha prépria definigao de “simbolo” ocorre, exatamente por essa razio, no Cap. 20; ¢ como ele se acha realmente muito longe, talvez seja melhor exp6-la aqui, com a promessa de que o livro a elucidaré e justificara: Simbolo é qualquer artificio gragas ao qual po- demos fazer uma abstracao. Quase todas as palavras-chave num discurso filo- s6fico sofrem da ampla variedade de significados que lhes foram atribufdos na literatura anterior. Assim, Eisenstein, em The Film Sense, usa “representagéo” para o que geral- mente chamamos de “imagem”, e “imagem” para algo nao ne- cessariamente concreto — o que eu chamaria de “impressio”. Porém sua palavra “imagem” tem algo em comum com “imagem poética” de Day Lewis; além disso, cumpre dizer oO seguinte em seu favor: ambos sabiam, e nos dao a sa- ber, o que querem dizer com ela. Um termo mais dificil, e de fundamental importancia neste livro, é “ilusio”. Ele é geralmente confundido com “delusio”, motivo pelo qual fazer-Ihe mengao em conexao 1. Uma discussio bastante completa do trabalho de Collingwood 6 apresentada mais adiante, no Cap. 20, 2. The Dark Voyage and the Golden Mean, p. 173. 3. Ibid, p. 36. 4. Loe,’ cit., infra.

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