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© Cosae Nalfy, 2007 © Mostra Imernacional de Cinema, 2007 capa: © Hirg/Getty Images CCoordenasdo editorial ALwAKO MACHADO Projeto gr AVIA CASTANHEIKA © JUSSARA FINO Proparaio GISIAINE MARIA BA SILVA Revisio REGINA SOARES e GISCATST MARTA DA SILVA 28 pp 12 it ‘-Toubiana, Serge H.Frodon, Jean-Michel 1, Rezo Rua Antonio Carlos, 288, (1309-010 Sto Paulo SP Tel. [55 11] 3241 2548 Fax [55 11] 3266 7066 Rua General Jardim, 770, Tel [55 14] 3218 1444 wwww.cosacnaly.com, br Atela do fantasma Bazin e as Quando se interroga sobre o cinema,’ André Bazin sempre encontra suas res- postas em filmes marginais. Documentarios, reportagens, filmes “poéticos” ou “feitos a0 vivo” permitem formular com clareza uma lei fundamental para ele: todas as vezes em que é possivel colocar no mesmo enquadramento dois ele- mentos het rogéneos, a montagem torna-se proibida. Nesse contexto, vamos ver que a esséncia do cinema torna-se uma historia de feras, Julguemos: “E verdade que outros procedimentos, tais como a transparéncia, permitem ter no mesmo plano dois elementos, por exemplo o tigre e a star, cuja contigiii- dade criaria na vida alguns problemas”. Ou ainda: “Mas eis que, para nossa surpresa, o diretor abandona os planos aproximados, isolando os protagonistas do drama, para nos oferecer simultaneamente, no mesmo plano geral, os pais, a crianga e a fera”. E, enfim: “No entanto, no mesmo filme [Louisiana Story", 0 32° Sobretudo em Quest-ce gue le tomo t (ed. Du Cerf), nos seguintes artigos rie” ["Montagem proibida”, p. 117], das as tardes", p. 165), “Le Monde du silence” [“0 mundo do silencio”, p. 58], “Le Paraclis es honemes” ["0 paraiso dos homens A le Jean Painlevé” ["Sabre ean nieve”, p. 37), "A propos de po ous combattons” "Sobre por que is combate mos", p31) 34 Exibido no Brasil como 4 fe Louisiana, docudrama de Robert J, Flaherty (1884 Joem 1948, no sul dos E plano-seqiéncia do crocodilo apanhando a garga, filmado em uma iinica pano- ramica, é simplesmente admirave Vemos que 0 que justifica a proibigao da montagem, da fragmemtagao, nao € apenas, como muito foi dito, a liber da profundidade de campo, © nascimento do cinemascope ou a mobilidade sempre crescente da car em um espago cada vez mais homogéneo, mas mbém, e principalmente, a natureza do que é filmado, o status dos figurantes (aqui se trata de homens e animais) obrigados a dividir a tela, pondo em ri ‘0 algumas vezes a propria vida, A proibigo da montagem decorre desse risco. Bazin nao cogita abso: lutamente reivindicar um cinema nao-montado; esse ponto de vista extremo nao Ihe pertence; simplesmente: “ha certos casos onde longe de constituit a esséncia do cinema, a montagem é a sua negacio”. Porque a coexisténcia, diante da camera, do crocodilo e da garca, do tigre e da star, nao deixa de provocar problemas (sobretudo para a garca e para a star); falar de ele mentos “het srogéncos” é um cufemismo aqui, uma vez que se trata de uma incompatibilidade violenta, de uma luta até a morte, E, portanto, a possibilida be a montagem. A montagem odiada em segredo por Bazin: um tipo de morte a 9 P p de filmar a morte que, “em certos casos”, proi generalizada, abstrata, facil, criando automaticamente sentido, atuando nas lacunas do texto. Se é proibida, é porque nao deixa ler “aquilo que se diz nas entrelinhas”, porque procedendo de saltos qualitativos, priva 0 obsessi- vo de sua fantasia: aproveitar-se da passagem, nao por um jogo de remissies passado-futuro, mas como um eterno presente. A diferenga, a ruptura, a des: continuidade nao estdo ausentes no discurso de Bazin nem no cinema que ele defende; estao, sim, bastante presentes, a ponto de “queimar a tela”. O cinema da continuidade e da transparéncia a todo prego ¢ idéntico ao que sonha filmar a descontinuidade e a diferenga enquanto tais, E pode fazer isso, bastando introduzi-las como objetos de representagao, Nao para esfacelar a tela, mas para fazer com que o esfacelamento apare- a (“em L’Afrique vous parle [A Africa vos fala], um negro € devorado por um crocodilo”); nao para romper uma continuidade, mas para provocar uma 56 ruptura sobre do, sublimando uma pre: senga F quadramento ¢ continuidade”, falar delas mest quebrar a unid, rativo (a unidad ‘ou suspenso (as é sempre aque: diferenca, que Para Bazin, a cinema. Até li renga que const Jo é a realidac histéria, e a tek enunciado: “Ser tica da realidad: outro lado a rea Certamente obec: aquilo que mais Assim o cinet ‘0 impede. Ele et existe. O fetichi tamente”, hoje t © aparecimento, sempre entre 0° séncia do cinem: cada vez mais 1 mais perto de re: ruptura sobre a esteira rolante da presenga, “negar evidenciando, idealizan- do, sublimando em uma interioridade amnésica, internalizando a diferenga em uma presenga para si mesmo” (Derrida). Levar o proibido ao interior do en- quadramento e destinar 4 montagem um papel menor: uma pratica da “boa continuidade”, a continuidade invisivel que permite as coisas, em tiltimo case falar delas mesmas. “Revelar 0 sentido escondido dos seres ¢ das coisas, sem quebrar a unidade temporal”: numa tal frase, é 0 segundo termo que é impe ativo (a unidade), porque o sentido, ele pode sem danos continuar escondido ou suspenso (as coisas sdo tagarclas, mas dizem qualquer coisa). E essa unidade € sempre aquela do continuum espaco-tempo da representagao, Inter diferenga, quer dizer salvar a representacao. Para Bazin, a historia do cinema tem como horizonte desaparecimento do cinema, Até la, essa historia se confunde com aquela de uma pequena dife renga que constitui 0 objeto de uma incessante recusa: sei bem (que a imagem ndo € a realidade), mas ainda assim... A cada mutagao técnica a transparén cia aumenta, a diferenga parece tornar-se menor, a pelicula torna-se a pele da historia, ¢ a tela, uma janela aberta para o mundo. O limite é algumas vezes cenunciado: “Sem atores, sem histéria, sem diregio, isto é, perfeita ilusio esté tica da realidade: sem cinema”, Aquele que, atravessando a tela, encontra do ro lado a realidade, fot além do gozo. Se ele retorna (mas em qual estado? Certamente obcecado), e se ele ainda fala, sr um discurso sobre aquilo que mais Ihe fez falta: 0 proibido, Assim o cinema da transparéncia se apaixona apenas por aquilo que o limita, o impede. Fle cria um culto apenas porque sabe que ~ de todo modo ~ ela nio existe. O fetichismo tem seu prego. Certos promotores dessa ideologia do “dite- tamente”, hoje to popular e da qual Bazin tem, no plano da teoria, facilitado 0 aparecimento, sio prisionelros desse fetichismo. Bazin, mais malandro, oscila empre entre o “eu sei bem” e “mas de todo modo”. Ora ele vé claramente a ¢s- séncia do cinema realizar-se ~ com a ajuda da técnica em diregio a um realismo cada vez mais maior: é o famoso ““ganho de realidade”. E, em outro momento, mais perto de reconhecer sua prépria fantasia, ele constata que a cada ganho de 57 realidade corresponde uma certa “perda de realidade” com 0 retorno insidioso da abstra Jo. No tomo 1v de Qu’est-ce qu le cinéma? [O que é 0 cinema?), ele ad- jue "sera preciso sempre sacrificar algo da realidade para a realidade Sacrificar 0 qué? A pele, justamente, O continuo-transparéncia que, colado a0 real, assume seu molde, as ataduras que conservam para nés a miimia da rea: lidade, seu c , sua atualidade ete ver sempre V 0 que nos permite ver e protege-nos do que ¢ visto: a tela. O que sobredetermina a fantasia baza niana, e, na seqiiéncia, toda uma banda do discurso idealista sobre o cinema, ¢ a visio cémica da tela como o fundo de uma panela Tefal (em vidro) feita para fritar (como na culinéria) o significante. A tela, a pele, a pelicula, o fundo da pancla expostos ao fogo do real, superficie sobre a qual vird inscrever-se ~ me- taforicamente, figurativamente ~ tudo 0 que poderia mati-los. Se ¢ preciso salvar a tela para que a representagao viva, 0 que representar em seguida, a no ser esse salvamento? A pequena di tada continua bela, mas no é mais a mesma mulher”. A obscenidade do est erenga, a tela: “Seguramente”, diz Bazin, “uma mulher violem da realidade nao pode remeter ao estupro da mulher, ea tela ao himen. A ambi- gitidade fundamental do real é como a diivida quanto a virgindade: esse quase nada que muda tudo. O apego a representagao, o gosto pelo simulacro, um certo i ego a rey P amor pelo cinema (cinefilia) evidenciam menos a ontologia do que a neurose obsessiva. proprio desta abrigar-se naquela: “A preferéncia dos obcecados pela incerteza e pela diivida torna-se para eles um motivo para aplicar seus pensamentos a temas que sdo incertos para todos os homens € para os quais nossos conhecimentos ¢ nosso julgamento devem necessariamente permancecer submetidos a diivida” (Freud, O homem das ratos). Pensamos aqui em Buituel, no porque ele teria escapado de uma tal fantasia (grosso modo, a da imaculada concepgio), mas porque aconteceu a ele de filmé-la como tal. Como na cena em que enguanto sua mulher dorme numa determinada noite, o heréi de El [0 alu- cinado] apanha cordas, uma lamina de barbear, linha e u agulha curva A tela salva, a repr em rebaixada: 6 sobre tagio reconduzida, a mont esse fuindo homogeneo ¢ continuo que serio climinadas ~ sob a forma de tem literarios ou acid nadas luta (con Luta Modelo: u Quem, por neces! pouco suspeito, mo, alids todos 0 Assim: “Eu nio t mada de conscié: co)", escreve Ba nuimero 91). Exemplos: Anin Hi um momento procurado tio crt sente-se a0s pour mento dos mamif um peixe” (p. 64 dois animais em li nhecimento abstr torna-se um subs mens, destinatéri representados: en literdrios ou acidentes de filmagem ~as rupturas e as diferengas. Sejam relacio- nadas a luta (combate) ou a transformagao (a metamorfose). Luta Modelo: um/outro, homem/animal Quem, por necessidade da causa e da simetria vai ocupar esse lugar sempre um pouco suspeito, interpretar o papel-fantoche do “todo outro”? O etnocentris- ‘mo, aliés todos os centrismos nao seriam viaveis sem seu contrério ciimplice Assim: “Eu nao hesitaria afirmar que 0 cinema raramente foi tao longe na to. mada de consciéncia do fato de ser homem (e também, depois de tudo, de ser esereve Bazin sobre L 10 D. (tomo 1v, p. gt). Bazin adorava os ani mais ¢ vivia com um iguana (“De difficulté d'etre Coco”, C ntimero 91). Exemplos: Animal/animal Hd um momento grandioso quando, apés ter se aproximado das baleias e ter procurado tao cruelmente o contato que iria provocar dois acident sno grupo, sente-se aos poucos que os homens estio tornando-se solidarios com o solti mento dos mamiferos feridos, contra o tubarao que é, apesar de tudo, apenas um peixe” (p. 64). Admiremos esse “apesar de tudo”, Ele nos diz que entre dois animais em luta, um necessariamente é mais proximo de nés, e que um co- nhecimento abstrato ~ as baleias (cetceos) s40 mamiferos, como os homens torna-se um substitutivo onde a evidéncia sensivel niio esta presente. Os ho- mens, destinatarios do espeticulo dessa luta, s6 se interessam se nela estio ados: entre dois owiras, & preciso ainda escolher

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