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Viagem no tempo

20/11/2005

Autor: MARCELO GLEISER


Origem do texto: COLUNISTA DA FOLHA
Editoria: MAIS! Página: 9
Edição: São Paulo Nov 20, 2005
Seção: + CIÊNCIA; MICRO/MACRO
Observações: PÉ BIOGRÁFICO

Viagem no tempo
Para que 2100 não seja um pesadelo, outra revoluçã o é necessár ia, além da
tecnológica: moral, e não material
MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA
Outro dia, durante uma entrevista, fizeram-me a seguinte pergunta: " Marcelo , se
você pudesse fazer uma viagem no tempo, para quando escolheria ir?". Imagino que
todo mundo já tenha se feito essa pergunta. Afinal, viajar no tempo significa ter poder
sobre nosso destino, talvez poder compreender nosso passado, visitar pessoas queridas
que já se foram, fazer as perguntas que ficaram por fazer. Eu costumava pensar que, se
pudesse viajar no tempo, gostaria de voltar ao passado, conhecer as origens da minha
família na Ucrânia, conversar com minha mãe, que morreu quando eu tinha seis anos.
Dessa vez, porém, minha resposta foi diferente. Se pudesse viajar no tempo, gostaria de
ir para o futuro. Mais precisamente, cem anos no futuro, em torno de 2100, quando já
estarei morto por algumas décadas. (A menos, claro, que nos próximos 50 anos meus
colegas médicos desenvolvam curas e métodos que nos permitam chegar aos 150 anos
com lucidez e dignidade.) Por algum motivo, talvez porque tenha de certa forma
resolvido alguns de meus problemas com o passado, senti que seria mais relevante ir
para a frente, que o passado, bem ou mal, conhecemos um pouco, mas o futuro
permanece uma incógnita completa.
Certamente, parte de minha resposta é pessoal; hoje, preocupo-me mais com meus
filhos e seu futuro do que com o meu passado. Quero conhecer meus bisnetos, ver que
pessoas virão a ser. Contudo, não foi em meus filhos ou bisnetos que pensei quando
contemplei minha resposta: foi no nosso destino coletivo, o futuro da humanidade.
Vejo a corrida nuclear se estendendo a nações pobres, controladas por líderes radicais,
motivados por preconceitos religiosos, cegos às diferenças de fé, imunes ao conceito de
liberdade de escolha. Vejo as nações mais ricas explorando a mão-de-obra barata das
nações mais pobres, de modo a manter a qualidade de vida de seus cidadãos sem
qualquer preocupação com a dignidade daqueles que exploram. Vejo a escassez dos
combustíveis fósseis crescer, os preços aumentarem, exacerbando as desigualdades
sociais que hoje dividem o mundo. Vejo o crescimento acelerado das tecnologias
criando uma subclasse social, aqueles que não têm acesso aos computadores de ponta,
aos produtos que disseminam informação e, conseqüentemente, poder. Vejo a fome
aumentando, a poluição causando os desequilíbrios climáticos previstos por modelos de
aquecimento global que hoje são desprezados pelos políticos de países como os EUA.
Vejo a hipocrisia da liderança política corroendo a confiança da população. Vejo que,
moralmente, o homem é um animal primitivo.
Tudo isso vejo agora, com os olhos de quem vive em 2005. Por isso gostaria de viajar
até 2100, para que possa me surpreender com a inventividade das pessoas, para provar
que essa minha negatividade toda é produto do nosso momento atual, que vai dar tudo
certo, que vamos conseguir sobreviver a nós mesmos. Se soubesse disso ficaria em paz,
acreditaria que o homem, finalmente, começou a evoluir moralmente. Depositamos
esperança demais nas tecnologias, achamos que seremos capazes de resolver todos os
problemas através de soluções técnicas. Como cientista, é claro que apoio esse esforço.
É graças aos grandes avanços tecnológicos que temos luz elétrica, telefones,
antibióticos, vacinas, carros e aviões. Mas para que 2100 não seja o pesadelo que
descrevi, outra revolução é necessária, moral, e não material. Acredito que seja possível,
mesmo se acusado de ingenuidade. A alternativa é inaceitável.

Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover


(EUA), e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu"

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