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Tr dpe Introdu¢ao Guerra e revolucao Guerras e revolugées — como se os acontecimentos apenas se apressassem em cumprir a previsao inicial de Lenin — tém de- terminado até hoje a fisionomia do século xx. A diferenga das ideologias oitocentistas — tais como o nacionalismo ¢ o interna- cionalismo, o capitalismo e o imperialismo, o socialismo € 0 co- munismo, que, embora ainda sejam invocados varias vezes como causas justificadoras, perderam contato com as grandes realidades de nosso mundo —, a guerra e a revolucdo ainda constituem as duas questdes centrais do século. Elas sobreviveram a todas as suas justificativas ideolégicas. Numa constelagdo onde a ameaga de aniquilagao total pela guerra se contrapoe a esperanc¢a de emanci- pacdo de toda a humanidade por meio da revolugéo — levando um povo apés 0 outro, em rapida sucessao, “a ocupar entre os poderes da terra o lugar igual e independente a que lhe dao direito as Leis da Natureza e Deus da Natureza” —, nao resta nenhuma outra causa a nao ser a mais antiga de todas, a unica, de fato, que desde o inicio de nossa histéria determinou a propria existéncia da politica: a causa da liberdade em oposigao 4 tirania. 35 Ealgo em si bastante surpreente Som efit, Sob oat, te conjunto das “ciencias” desmistifica a mo lernas, a Psicolges ea sociologia, nada parece estar mais prot ndarmente Pultag, do que 0 conceito de liberdade. Mesmo os Tevolucionstios, au poderfamos supor firmemente, eaté inexoravelmente, ANCoFadog numa tradicéo que seria dificil formular, e ainda mais dific tender, sem a nogao de liberdade, em muito maior medida bref riram rebaixar a liberdade a0 nivel de Preconceito Pequeno-by,. gués a admitir que 0 objetivo da revolucéo era, € sempre foi, liberdade. Mas, se foi espantoso ver Soma, Prépria Palavra “Tiber. dade” pode desaparecer do vocabulario revolucionsrio, talvez nag menos desconcertante foi observar como a ideia de liberdade a introduziu em anos recentes no centro da mais séria discussig entre todos os debates politicos da atualidade: a discussao dq guerra edo uso justificdvel da violéncia. Do ponto de vista histori. co, as guerras estao entre os fenémenos mais antigos do Passado documentado, ao passo que as revolucées propriamente ditas nao existiam antes da era moderna; entre todos os grandes fendmenos politicos, elas sio dos mais recentes. Diferentemente da Tevolucio, sdo raros os casos em que o objetivo da guerra esteve ligado Ano. go de liberdade; e, mesmo sendo verdade que muitas Tevoltas belicistas contra um invasor estrangeiro tenham sido considera- das guerras santas, nunca foram reconhecidas, na teoria ou na len, pratica, como as tinicas guerras justas. As justificativas das guerras, mesmo no plano teérico, sio muito antigas, embora, claro, nao tanto quanto a guerra organiza- da. Entre seus pré-requisitos ébvios est4 a convicgao de que as re- lagSes politicas em seu curso normal nao caem sob o dominio da violencia, e essa convicco encontramos pela primeira vez na An- tiguidade grega, na medida em que a Polis, a cidade-estado greg’, definia-se explicitamente como um modo de vida fundado apens na persuasao, e nao na violéncia. (Nao eram palavras vazias par? 36 ee criar ilusio, o que demonstra, entre outras coisas, o costume ate- niense de “persuadir” os condenados a morte a se suicidar toman- do cicuta, poupando assim ao cidadao ateniense, em todas as cir- cunstancias, a indignidade da violacao fisica.) No entanto, visto que para os gregos a vida politica, por definicao, nao se estendia além dos muros da pélis, o uso da violéncia lhes parecia dispensar a necessidade de justificagao na esfera daquilo que hoje chama- mos de assuntos exteriores ou de relacées internacionais, muito embora seus assuntos exteriores, com a tinica excecdo das guerras pérsicas, que viram toda a Hélade unida, praticamente se resumis- sem as relaces entre cidades gregas. Fora dos muros da pilis, isto é, fora da esfera da politica no sentido grego do termo, “os fortes fa- ziam 0 que podiam, e os fracos sofriam o que deviam” (Tucidides). Portanto, é a Antiguidade romana que devemos recuar para encontrar a primeira justificagao da guerra, junto com a primeira nogo de que existem guerras justas e injustas. Todavia, as distin- (Ges e justificagGes romanas nao diziam respeito a liberdade e nao tracavam nenhuma linha divisoria entre guerra agressiva e guerra defensiva. Disse Livio: “E justa a guerra que é necessaria, e sagra- das so as armas quando no ha esperanga senao nelas” (Iustum enim est bellum quibus necessarium, et pia arma ubi nulla nisi in armis spes est). A necessidade, desde a época de Livio e no decorrer dos séculos, tem significado muitas coisas que hoje consideraria- mos plenamente suficientes para qualificar uma guerra nao de justa, e sim de injusta. Conquista, expansao, defesa de interesses, preservacao do poder diante do surgimento de novos poderes ameacadores, manutengao de um dado equilfbrio de poderes — todas essas conhecidas realidades da politica de poder foram nao 6 as causas concretas da eclosio de intimeras guerras na hist6ria como também eram reconhecidas como “necessidades’, isto é, motivos legitimos para invocar uma decisao pelas armas. A nogao de que a agressio é um crime e que as guerras s6 podem ser justi- 37 pelir ou prevenir a agressao veio a adquirir Shin e = ficadas para re ico somente depois que a Pri Mf. 10 e mesmo teorl atic ; ei a Mundial demonstrou 0 potencial Pavorosamente deg, ra trade quer nas condicoes da tecnologia moderna, ™ tivo da “Talver seja por causa dessa perceptivel auséncia doar, dade nas justificagoes tradicionais da guerra Como tify. to da liber da politica internacional que temos essa Sensacig i aes dissontndi sempre que © ouvimos invocado no debay, atual sobre a questo da guerra. Sair-se Com argumentos dg ti de um enfitico “liberdade ou morte diante do potencial inaudity e inconcebivel de destrui¢ao numa guerra nuclear nag ¢ sequer vazio; é francamente ridiculo. Na verdade, Parece tao evidente que h4 uma enorme diferenca entre linia a propria vida pela Vida ¢ liberdade de seu pais e de sua posteridade e arriscar a Propria existéncia da humanidade pelos mesmos fins, que fica dific evie tar a suspeita de mé-fé por parte dos defensores do “antes Marto do que comunista” ou “melhor morrer do que ser escravo".O que, naturalmente, nao significa que o inverso, “antes Comunista do que morto’, tenha algo mais a recomendé-lo; quando uma velha verdade deixa de se aplicar, nao adianta inverté-la. Na Tealidade, na medida em que a discussdo sobre a questao da guerra hoje é conduzida nesses termos, € facil notar uma reserva mental em ambos os lados. Os que dizem “melhor morto do que comunista” na verdade pensam: as perdas talvez nao sejam tao grandes quanto alguns preveem, nossa civilizagdo sobreviverd; enquanto os que dizem “melhor comunista do que morto” na verdade Pensam: a escravidao nao vai ser tao ruim, o homem nao mudaré sua natu- teza, a liberdade nao desaparecera para sempre da Terra, Em outras palavras, a mé-fé dos debatedores consiste no fato de que ambos Se esquivam A alternativa absurda que eles mesmos propuseram; No sao sérios,! E importante lembrar que a ideia de liberdade foi introduzi- Bumen, 38 ‘ eaeeeneeneee aera niente da no debate sobre a questio da guerra depois que ficou evidente que haviamos alcancado um estigio de desenvolvimento técnico em que os meios de destruicao eram tais que exclufam a possibili- dade de um uso racional. Em outras palavras, a liberdade apareceu neste debate como um deus ex machina para justificar 0 que se tornou injustificavel em bases racionais, Seri demasiado enxergar no meio da atual mistura inextricivel de problemas e discussdes um indicio auspicioso de que talvez esteja prestes a ocorrer uma profunda mudanga nas relagdes internacionais, a saber, o desapa- recimento da guerra do cenério politico, mesmo sem uma trans- formagao radical das relacdes internacionais e sem uma mudanga interior dos homens? Seré que nossa atual perplexidade nesse as- sunto nao indica nosso despreparo para o desaparecimento da guerra, nossa incapacidade de pensar a politica externa sem terem_ mente essa “continuagao por outros meios” como tiltimo recurso? Afora a ameaca de aniquilacao total, que presumivelmente poderia ser eliminada por novas descobertas técni bomba “limpa” ou um missil antimissil, poucos sinais apontam nessa direcao. H4, em primeiro lugar, o fato de que os germes da guerra total se desenvolveram ja na Primeira Guerra Mundial, quando a diferenca entre soldados e civis deixou de ser respeitada porque era incompativel com as novas armas usadas na ocasiao. Sem divida, essa prépria distingao jé era um fato relativamente moderno, e sua abolicao pratica significou apenas um retorno da guerra aos tempos em que os romanos varreram Cartago da face do planeta. Nas condicées modernas, porém, esse surgimento ou ressurgimento da guerra total tem uma significacao politica mui- to importante, pois contradiz os pressupostos basicos sobre os quais se funda a relagao entre as Areas civis e as reas militares do governo: a fungao do Exército é proteger e defender a populacio civil. No entanto, a hist6ria bélica em nosso século pode ser narra- da quase como a histéria da incapacidade cada vez maior do is, como uma 39 do basica, até 0 ponto ery a fungiio bisica, que, <ército em desempenhar essa MHDS sformar clare , Exército e1 vec e dissuasio veio @ transformar claramentg 6 je, a estrategi saciid ae mee a que assou de protetor a vingador atrasado ¢ ho papel do militar, fundo inutil. ; Intimamente ligado a essa dis Exército esté, em segundo lugar, ° de que desde o final da Primeira G automaticamente que nenhum 5 sufici overno terd forga 4 forms oF Pode-se rastrear esse desenvolvimento no s¢. culo xix, quando a Guerra nino Saari a mudanga do Segundo Império para a Terceira Reptiblica na Gran eaRe- volucao Russa de 1905; seguindo-se a derrota na Guerra Russo. -Japonesa, certamente foi um sinal pressago do que estava reser. vado aos governos em caso de derrota militar. Seja como for, uma transformacio revoluciondria no governo, realizada pelo Préprio povo como depois da Primeira Guerra Mundial, ou imposta de fora pelas poténcias vitoriosas com a exigéncia de rendigao incon- dicional e a criacao de tribunais de guerra, hoje é uma das conse- quéncias mais seguras da derrota em guerra — tirando, ¢ claro, a aniquilacao total. Em nosso contexto, é secundario se esse estado de coisas se deve a um decisivo enfraquecimento do governo en- quanto tal, a uma perda de autoridade nos pafses em questo, ou se nenhum Estado e nenhum governo, por mais sdlido que sejae Por mais confianca que nele depositem seus cidadaos, é capaz de resistir ao inaudito terror da violéncia desencadeada pela guerra moderna sobre o conjunto da populacao. A verdade é que, mesmo antes do horror da guerra nuclear, as guerras jé tinham se tornado politicamente, embora ainda nao biologicamente, uma questao de vida ou morte. E isso significa que, derna, istorgao na relagio entre Estadg € fato notavel, mas pouco Notada, uerta Mundial supomos quage overno e nenhum Estado oy ientes para sobreviver a uma derrota em guerra. nas condi¢ées da guerra mo- isto €, desde a Primeira Guerra Mundial, todos os governos tém sobrevivido sob risco constante de morte. 40 none O terceiro fato parece indicar uma mudanga radical na pro- pria natureza da guerra, com a introdugao da dissuasio como 0 principio condutor da corrida armamentista. Pois realmente é verdade que a estratégia de dissuasio “visa mais a evitar do quea vencer a guerra que supostamente esta preparando. Ela tende a alcangar seu objetivo mais por uma ameaga que nunca é posta em pnitica do que pelo ato em si”? Sem dtivida, a percep¢io de que a paz & 0 fim da guerra e que, portanto, uma guerra é a preparagio paraa paz, € tao velha pelo menos quanto Aristételes, e a alegacao de que o objetivo de uma corrida armamentista é salvaguardar a paz é ainda mais velha, a saber, tio velha quanto a descoberta das mentiras de propaganda. Mas 0 ponto central da questo é que, hoje, evitar a guerra é nao s6 0 objetivo pretenso ou verdadeiro de uma politica geral, mas tornou-se o prinefpio condutor dos pré- prios preparativos militares. Em outras palavras, os militares ndo estdo mais se preparando para uma guerra que os estadistas espe- ram que nunca se deflagre; 0 objetivo deles passou a ser 0 desen- volvimento de armas que impossibilitem a guerra. Além disso, é plenamente compativel com esses esforsos, di- gamos, paradoxais que se aponte claramente no horizonte da po- litica internacional a possibilidade de uma séria substituigao das guerras “frias” por guerras “quentes”. Nao pretendo negar que a atual retomada — esperemos que tempordria — dos testes nu- cleares pelas grandes poténcias tem como objetivo primario novas descobertas e desenvolvimentos técnicos; mas parece-me inegavel que esses testes, ao contrario dos precedentes, também sao instru- mentos politicos e, como tais, sinistramente aparentam ser um novo tipo de manobra em tempo de paz, envolvendo em seu trei- namento nao o par ficticio de inimigos que se usa nas manobras comuns das tropas, mas o par formado, pelo menos potencial- mente, pelos inimigos reais. E como se a corrida armamentista nuclear tivesse se convertido numa espécie de ensaio de guerra, 41 amente a destrutividag jos exibem mutuamMer ade dag ¢ os adversirios exibem " os da anne s embora seja sempre possivel que esse jogo 6 le se torne a coisa Teal, nag armas que possuem >a ode repent ero de “ses” e “quandos’ tag mortifero de"ses" eq el que um dia a vitéria ea derrota solutamente inconcebive : ; debe pedisla nunca eclodiu na realidade, a guerra que possam por fim a uma gu 5 : nr s . fantasia? Penso que nao, Potencialmente, Pelo me. Sera pura fantas nos, ficamos diante desse tipo de guerra hipotética NO exato mo. on fj bomba atomica fez sua primeira aparigao, Muitos nis a, eainda continuam a pensar, que teria sido ps eee fazer uma demonstragado da nova arma a ed onado de cientistas japoneses para obrigar g g0- incoridicionsl; pois tal demonstracio a conhece. um grupo sele verno a rendi¢: . sons dores constituiria prova cabal de uma superioridade absoluta que nenhuma mudanga na sorte ou qualquer outta: fator seria capaz, de alterar. Dezessete anos depois de Hiroshima, nosso dominio técnico dos meios de destruigéo se aproxima rapidamente do ponto em que todos os fatores no técnicos numa guerra, como 0 Animo dos soldados, a estratégia, a competéncia dos Benerais ¢ mesmo 0 simples acaso, sao completamente eliminados, e 0S re- sultados podem ser calculados antecipadamente com absoluta preciso. Uma vez atingido esse ponto, os resultados de meros testes e demonstrages poderiam ser, para os especialistas, provas da vit6ria ou da derrota tao conclusivas quanto 0 campo de bata- lha, a conquista de territério, a destruicao dos meios de comuni- cacdo etc. tinham sido anteriormente para Os especialistas milita- tes de ambos os lados. Hi 0 fato final, e em nosso contexto o mais importante, de que a relacao entre guerra e revolugio, a reciprocidade e a mutua dependéncia entre elas, tem aumentado de maneira constante,ea énfase na relacao tem se transferido cada vez mais da guerra para a Tevolucdo. Sem duvida, essa relagdo entre guerras ¢ revolugdes Nao 6, »€m si, um fendmeno novo; € tao antigo quanto as préprias 42 een revolugbes, que ou foram precedidas e acompanhadas por uma guerra de libertacao, como a Revolugéo Ame! na, ou levarama guerras defensivas e agressivas, como a Revolugao Francesa. Mas, além dessa modalidades, em nosso século surgiu um tipo de acontecimento completamente diferente, em que mesmo a furia da guerra era cont que apenas um preltidio, uma fase preparaté- ria da violéncia desencadeada pela revolugao (tal foi, sem duivida, © entendimento de Pasternak sobre a guerra e a revolucdo na Russia, em Doutor Jivago), em que, ao contrario, uma guerra mundial aparece como consequéncia da revolucdo, uma espécie de guerra civil se alastrando por todo o mundo, tal como a propria Segunda Guerra Mundial foi vista por uma parcela consideravel da opiniao publica, e de maneira bastante justificdvel. Vinte anos mais tarde, tornou-se quase evidente que o fim da guerra éa revo- lugao, e que a nica causa que seria capaz de justificd-la é a causa revolucionaria da liberdade. Assim, qualquer que seja o desfecho de nossos problemas atuais, se nao perecermos todos, parece mais do que provavel que a revolugao, a diferenca da guerra, continuaré conosco até onde podemos enxergar o futuro. Mesmo que conse- guissemos mudar a fisionomia deste século a ponto de deixar de ser um século de guerras, com toda certeza continuard como um século de revolugGes. Na disputa que atualmente divide o mundo, na qual hé tanta coisa em jogo, provavelmente vencerdo os que entendem a revolucdo, ao passo que os que ainda depoem fé na politica de poder no sentido tradicional do termo e, portanto, na guerra como o ultimo recurso de toda politica externa poderao descobrir num futuro nao muito remoto que se tornaram mestres num oficio um tanto inutil e obsoleto. E esse entendimento da revolu¢do nao pode ser contrariado nem substituido por uma ex- periéncia especializada em contrarrevolugées; pois a contrarrevo- lugdo — termo que foi cunhado por Condorcet durante a Revolu- a0 Francesa — sempre se manteve ligada a revolugao, tal como a 4B racao de De Maistre — ution contraire, mais le Jugao nao sera uma re. ugao”] — continua a reacao est ligada & acdo. A famosa declat “La contrerévolution ne sera point sne revo! . oe ee vol contraire de la révolution” [“A contrarre da revo la em 1796: uma mera frase de volucao contrdria, mas o contrar! ser 0 que era quando foi proferid: efeito? «ai ‘i efeito. que seja distinguir na teoriaena Porém, por mais necessario da intima relagdo entre pritica entre guerra e revolugao, apesat elas, no podemos deixar de notar que 0 a maiedatin concebivel qualquer guerra ou revolugao fo nas léncia é suficiente para distingui-las de todos o: s me- -a dificil negar que uma das razbes pelas quais as facilmente em revoluc6es € as revolu- déncia de desencadear guerras écie de denominador comum nos politicos. Seri guerras se convertem tao : es tem mostrado essa sinistra tent é que a violéncia constitui uma esp edenom a ambas, Na verdade, a magnitude da violéncia liberada na Pri- meira Guerra Mundial provavelmente teria sido suficiente para desencadear revolugdes em sua esteira, mesmo sem nenhuma tradicdo revoluciondria e mesmo que antes jamais tivesse ocorri- do qualquer revolucao. Sem diivida, nem mesmo as guerras, e menos ainda as revo- lugées, sao sempre totalmente determinadas pela violéncia. Onde a violéncia impera absoluta, como por exemplo nos campos de concentracao dos regimes totalitarios, nao s6 as leis — les lois se taisent [as leis se calam], como colocou a Revoluc&o Francesa —, mas tudo e todos devem quedar em siléncio. E por causa desse si- léncio que a violéncia é um fendmeno marginal na esfera politica; Pois o homem, como ser politico, é dotado do poder de fala. As duas famosas definigdes de homem dadas por Aristételes — 0 homem como ser Politico e ser do tado de linguagem — se com- plementam mutuamente e ambas ma Temetem & mesma experiéncia na Oli vida da pélis grega. O ponto aquié que a violéncia em si € inca- 44 paz de fala, endo apenas quea fala éimpotente diante da violdncia, Devido a essa auséneia de fala, a teoria Politica tem pouco a dizer sobre o fendmeno da violencia ¢ deve deixar técnicos. Como o pensamento politico sd pode acompanhar as expressdes verbais dos proprios fendmenos politicos, ele fica res- trito ao que aparece no dominio dos que possam se manifestar, esses fendmenos,d diferenga das ques- toes fisicas, requerem fala ¢ expresso verbal, isto & algo que transcende a mera visibilidade fisica ¢ a simple: i’ dliscussio aos assuntos humanos; e, para 's audibilidade, Uma teoria da guerra ou uma teoria da revolugio, portanta, sé pode tra da justiticagdo da violencia porque essa justificagio constitui seu limite politico; se, em vez diss cla chega a uma glo- rificagao ou a uma justificagio da violencia enquanto tal, ja nao é politica, ¢ sim antipolitica Na medida em que a violencia desempenha um papel predo- minante nas guerras ¢ revolugdes, ambas se dito fora da esfera po- Iitica em termos estritos, a despeito de seu imenso papel na histé- ria documentada. Esse fato levou o século xvii, que teve seu proprio quinhao de guerras ¢ revolugdes, A hipétese de um estado pré-politico, chamado “estado de natureza’, que, evidentemente, nunca teve a pretensio de remeter a um fato histérico. Se ainda hoje essa é uma hipotese pertinente, é porque ela reconhece que uma esfera politica nao surge automaticamente em qualquer lugar onde convivam seres humanos, e que existem acontecimentos que, embora possam ocorrer num contexto estritamente histéri- co, nao sao realmente politicos e talvez nem sequer ligados a pol{- tica. A nogao de um estado de natureza se refere quando menos a uma realidade que nao é abrangida pela ideia oitocentista de de- senvolvimento, como quer que a formulemos — seja como causa ¢ efeito, ou potencialidade e atualidade, ou um movimento dialé- tico, ou mesmo como um simples encadeamento de fatos, Pois a hipétese de um estado de natureza supde a existéncia de um inicio 45 inti que est4 separado como que por um fosso intransponfye} de ty, ak © que se segue a ele. snicioseo fendaa nfc en A relacao entre o problema dos ii © da rey, lugito é evidente. A intima ligacdo entre o roe de i Pate. ce encontrar comprova¢ao nos inicio: saillade'y a ist tais como sio registrados tanto pela ae ‘ Rene quanto pela Antiguidade classica: Caim matou Abel, milo Matoy Remo; a violéncia foi 0 inicio & a0 mesmo tempo, 780 Poderia haver nenhum inicio sem se usar violencia, sem violentar, Og pri. meiros atos registrados em nossa tradi¢ao biblica © secular, quer sejam reconhecidamente lendarios ou considerados como fat histérico, percorreram os séculos com a fora que ° Pensamentg alcanga nos raros casos em que crla metéforas Itresistiveis ou nar. rativas universalmente aplicdveis. A narrativa foi clara: qualquer fraternidade de que sejam capazes os seres humanos nascey do fratricidio, qualquer organizacao politica a que tenham chegado os homens teve origem no crime. A conviccao de que no inicio esteve um crime — 0 que encontra na expresso “estado de natu- reza” apenas sua paréfrase depurada teoricamente — trouxe ao longo dos séculos uma plausibilidade tao autoevidente Para oes- tado dos assuntos humanos quanto a plausibilidade que a primei- ra frase de so Joao — “No principio era o Verbo” — teve para os assuntos da salvacao. trig,

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