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PAUL LAFARGUE O DIREITO A PREGUICA Traducdo de Teixeira Coelho Introdugo de Marilena Chaui SEGUNDA EDIGAO Une UNESP EDITORA HUCITEC Sao Paulo, 2000 INTRODUGAO, Maritena Cuaur A preguiga, todos sabem, é um dos sete pecados capitai: Ao perder 0 Paraiso Terrestre, Eva e Addo ouvem do Senhor as terri- veis palavras que selardo seus destinos. A primeira mulher, Deus disse: “Multiplicarei as dores de tua gravidez, na dor dards a luz filhos. Teu desejo te levard ao homem e ele te dominaré” (Gn, 3:16). Ao primeiro homem, disse Jeova: “Maldito é 0 solo por causa de ti! Com sofrimentos dele te nutriras todos os dias de tua vida [...]. Com o suor de teu rosto comers teu pao, até que retornes ao solo, pois dele foste tirado. Pois tu és p6 e ao pé tornards” (Gn, 3:17-9). Ao écio feliz do Paraiso segue-se o sofrimento do trabalho como pena INTRODUGAO 10 imposta pela justiga divina e por isso os filhos de Adio ¢ Eva, isto é, a humanidade inteira, pecardo novamente se nao se submeterem a obriga- cao de trabalhar. Porque a pena foi imposta diretamente pela vontade de Deus, ndo cumpri-la é crime de lesa-divindade e por essa razdo a preguica é pecado capital, um gozo cujo direito os humanos perderam para sempre. Ollaco que ata preguica e pecado é um né invisivel que prende imagens sociais de escdrnio, condenagio e medo. £ as im que aparecem para os brasileiros brancos as figuras do indio preguigoso e do negro indolente, construidas no final do século XIX, quando o capitalismo exigiu a aboli cao da escravatura e substituiu a m&o-de-obra escrava pela do imigrante europeu, chamado trabalhador livre (curiosa expresso numa sociedade crista que nao desconhece a Biblia nem ignora que o trabalho foi imposto aos humanos como servidao!). £ ainda a mesma imagem que aparece na construgio, feita por Monteiro Lobato no inicio deste século, do Jeca Tatu, o caipira ocioso devorado pelos vermes enquanto a plantagio é devorada pelas sativas. Nesse imaginario, “a preguiga éa mae de todos os vicios” € nele vém inscrever-se, hoje, o nordestino preguigoso, a crianga de rua va~ dia (vadiagem sendo, alias, o termo empregado para referir-se as prostitu- tas), o mendigo - “jovem, forte, saudavel, que devia estar trabalhando em ver de vadiar”. £ ela, enfim, que forca o trabalhador desempregado a sentir-se humilhado, culpado e unfpariasocial. RILENA CHAUI No € curioso, porém, que o desprezo pela preguica e a extrema valo- rizagao do trabalho possam existir numa sociedade que nao desconhece a maldig&o que recai sobre o trabalho, visto que trabalhar é castigo divi- no e nao virtude do livre-arbitrio humano? Alias, a idéia do trabalho como desonra e degradagio nao é exclusiva da tradicao judaico-crista. Essa idéia aparece em quase todos os mitos que narram a origem das sociedades humanas como efeito de um crime cuja punigéo sera a neces: sidade de trabalhar para viver. Ela também aparece nas sociedades es- cravistas antigas, como a grega e a romana, cujos poetas ¢ filésofos nao se cansam de proclamar 0 dcio um valor indispensdvel para a vida livre ¢ feliz, para 0 exercicio da nobre atividade da politica, para o cultivo do espirito (pelas letras, artes e ciéncias)! e para o cuidado com o vigor ea beleza do corpo (pela gindstica, danga e arte militar), vendo o trabalho como pena que cabe aos escravos desonra que cai sobre homens livres pobres. Sao estes tiltimos que, na sociedade romana, eram chamados de humiliores, os humildes ou inferiores, em contraposigo aos honestiores, os homens bons porque livres, senhores da terra, da guerra e da politica. E significativo, por exemplo, que nas linguas dessas duas sociedades nao exista a palavra “trabalho”. Os vocdbulos ergon (em grego) e opus (em Em grego, dcio se diz scholé, de onde vem nossa palavra “escola”. Para os antigos, s6 era possivel dedicar-se atividade do conhecimento se nio se estivesse escravizado pela obriga fo de trabalhar, - INTROBUCAO un latim), referem-se as obras produzidas e nao & atividade de produzi-las. ‘Além disso, as atividades laboriosas, socialmente desprezadas como algo vile mesquinho, sio descritas como rotineiras, repetitivas, obedientes a um conjunto de regras fixas, ¢ a qualidade do que é produzido nao é relacionada a agdo de produzir, mas 3 avaliagio feita pelo usuario do produto. Enfim, néo é demais lembrar que a palavra latina que dé ori- gem ao nosso vocdbulo “trabalho” €tripaliu, instrumento de tortura para empalat escravos rebeldes ¢ derivada de pals, estaca, poste onde se empalam os condenados. E labor (em latim) significa esforgo penoso, dobrar-se sob o peso de uma carga, dor, sofrimento, pena e fadiga. Nao é significativo, als, que muitas linguas modernas derivadas do lati, ou que sofreram sua influéncia, recuperem a maldicao divina larigada con- tra Eva usando a expressio “trabalho de parto”? Donde nossa indagago: como e quando o horror pelo trabalho trans- formou-se no seu contrario? Quando as palavrashonestus e honestiores deixaram de significar os homens livres ¢ passaram a significar 0 nego- ciante que paga suas dividas? Quando e por que se passou ao elogio do trabalho como virtude e se viu no elogio do dcio 0 convite ao vicio, impondo-se negé-lo pelo neg-6cio? Max Weber escreveu um classico da sociologia, A Etica Protestante ¢ 0 Espirito do Capitalisrao, para desvendar a relagao entre 0 capitalismo MARILENA CHAU! ©a pos 10 do trabalho como virtude. Partindo da idéia de que a marca distintiva do Ocidente é uma certa concepgao da razio como capacida- de para oferecer uma explicagio causal (isto é, nao religiosa nem mara- vilhosa) para todos os fenémenos naturais ¢ sociais ¢ da ago racional como relagio proporcional entre meios e fins, Weber considerou que capitalismo e mercadoria existiram em todo tempo e em toda parte (des- de que houvesse produgio de excedente), de sorte que o capitalismo ocidental moderno se distingue dos demais por sua racionalidade especi- fica ¢ pelo vinculo que, por “afinidadg€letiva”, se estabeleceu entre o ascetignio moral protestante calvinista, o puritanismo, e a economia. Muito mais do que no luteranismo, escreve Weber, no calvinismo (par- ticularmente em sua versio inglesa puritana), tornou-se regra moral o dito “maos desocupadas, oficina do diabo”. Nesse aforismo esté sinteti- zada a metamorfose do trabalho num ethos. De castigo divino que fora, tornou-se virtude e chamamento (ou vocagao) divino. E assim que, no Gltimo canto de Paraiso Perdido, do poeta seiscentista inglés John Mil- ton, 0 arcanjo Miguel diz a Ado que se este dedicar-se com coragem e paciéncia, virtude e fé a acumular o conhecimento de fatos, 0 paraiso nao estard perdido, “pois possuiras um paraiso dentro de ti, uma felici- dade muito maior”, e os dois exilados, depois de algumas lagrimas, en- xugam 0 rosto, sabendo que “tinham o mundo todo pela frente, a esco- NTRODUGAO 1B 4 Iha de um lugar para ficar e a Providéncia para os guiar”. A perda do Paraiso converte-se em ganho humano. O puritanismo, escreve Weber, valoriza a vida secular como um dever. Examinando as maximas morais de Benjamim Franklin como exempla- res do novo ethos, Weber salienta que, agora, ser cristao virtuoso é se- guir um conjunto de normas de conduta nas quais o trabalho surge no apenas como obrigagao moral, mas como poderoso racionalizador da atividade econdmica geradora de lucro. Aquele que faz seu trabalho ren- der dinheiro e, em lugar de gasté-lo, 0 investe em mais trabalho para gerar mais dinheiro e mais lucro, vivendo frugalmente e honestamente (isto é, pagando em dia suas dividas para assim obter mais crédito), é um homem virtuoso. Trabalhar é ganhar para poupar e investir para que se possa trabalhar mais e investir mais. “De fato, osummum bonum dessa «ética», a obtengao de mais e mais dinheiro, combinada com o estrito afastamento de todo gozo espontineo da vida, é, acima de tudo, com- pletamente destituida de qualquer caréter eudemonista ou mesmo hedo- nista, pois € pensado téo puramente como uma finalidade em si, que chega a parecer algo de superior a «felicidade» ou a «utilidade» do indi- viduo [...]. © homem é dominado pela produgio de dinheiro, pela aqui- sigio encarada como a finalidade iltima de sua vida”? M. Weber. A étiea protestante eo expirito do capitalism, Sho Paulo: Pioneiea, 1967, p. 33. MARILENA CHAU! Essa mudanca na percepgao do trabalho e no novo lugar que passa a ocupar na sociedade, julga Weber, teria nao sé coincidido com 0 adven- to do capitalismo, mas teria sido decisiva para a construgao da raciona- lidade capitalista ocidental moderna, dando ao écio um aspecto mai terrivel do que tivera até entdo. Disso, a prova é dada pelas intimeras ¢ freqiientes legislacées iniciais do capitalismo que transformaram a men- dicancia ¢ a preguiga em crimes sujeitos a pena de prisio e, em certos casos, de morte. Ora, sabemos que Max Weber escreve contra o marxismo. Ao fazé-lo, recusa-se a admitir que o capitalismo seja um modo de produgao econd- mica historicamente determinado que inclui como uma de suas determi- nagées ideolégicas a Reforma Protestante. Pelo contrario, Weber gene- raliza a idéia de capitalismo ¢ toma a economia capitalista ocidental moderna como um caso particular do fenémeno econdmico geral da produc de excedentes e da troca de mercadorias ou do comércio. Por esse motivo, a relacao entre a ética calvinista do trabalho e o modo de produgio capitalista aparece em seu livro como relagaio de coincidéncia, de afinidade, e de mera contemporaneidade. Em suma, a “ética protes- tante” e 0 “espirito do capitalismo” sao a conjuncao temporal de dois acontecimentos hist6ricos que, em si mesmos, seriam independentes. Além disso, o classico de Weber identifica a ética burguesa do trabalho e a INTRODUGAO 1s 16 figura do trabalhador no capitalismo. Em outras palavras, © homem honesto, que trabalha, poupa ¢ investe, é a auto-imagem do burgués nio a figura dos que trabalham para que o burgués poupe ¢ invista, Assim, a racionalidade capitalista ocidental adota uma ética que ¢ racio~ nal racionalizadora para o capital, porém, como deliberadamente ig- nora a formagao histérica do capitalismo ea luta de classes, Weber nao indaga se ela 6 racional para os produtores de capital, isto € para a classe trabalhadora, nem indaga como a ética burguesa conseguiu tornar-se ética proletaria. E disso justamente que trata O Direito @ Preguica. @ Panfleto revolucionério escrito em 1880, publicado no jornal socialista LE galité, numa série de artigos entre 16 de junho e 4 de agosto do mes- mo ano, editado como brochura em 1881, revisto e reeditado em 1883, voltando a ser impresso em 1898 e em 1900, O Direito a Preguiga teve um sucesso sem precedentes, comparivel apenas a0 do Manifesto Co- munista, tendo sido traduzido para 0 russo antes mesmo deste tlt mo. Possivelmente um dos textos mais lidos na Espanha, antes, durante e depois da guerta civil, foi reeditado pela Resisténcia francesa, em 1944, erecebeu novas edigdes sob 0 patrocinio do Partido Comunista Francés, MARILENA CHAU! nos anos 60 € 70. Em 1968, traduzido para quase todas as linguas, O Direito a Preguiga foi panfletado pelos movimentos esquerdistas de praticamente o mundo inteiro e, desde entao, tem sido constantemente republicado. A trajetéria revolucionaria de Paul Lafargue foi semelhante 4 de mui- tos de seus contemporaneos franceses: comeca prudhoniano, aproxima- se dos anarquistas, conhece 0 marxismo, participa do momento final da Primeira Internacional, intervém como ativista nas lutas do periodo, seja como escritor, seja como organizador de movimentos e fundador de um partido revolucionério, seja como representante eleito para o Parlamen- to, tendo sua vida palmilhada por prisdes, fugas, exilios, rupturas com companheiros e atribulacées incontaveis na existéncia privada. Coeren- tes com as anilises criticas a que dedicaram boa parte de suas vidas —a origem socioeconémica das religides da transcendéncia le Deus e da imortalidade da alma, ¢ das religides que prometem salvagao dos bons e danagio dos maus numa vida futura, negando o direito 8 felicidade na vida presente —, Paul e Laura Lafargue cometeramééutanisia (ou a boa morte) no dia em que aquele completou 70 anos, a 25 de novembro de 1911. Na noite do dia 24 foram a opera e na manha do dia 25 foram encontrados serenamente sentados em sua sala de visitas, mortos com uma dose de veneno injetada nas veias. Sobre a mesa, uma carta explica~ INTRODUGAO qT 18 va que seu gesto era de amor, pois nfo desejaram tornar-se uma carga ¢ um fardo para familia, amigos e companheiros de luta quando a velhice 0s privasse de capacidade intelectual e de vigor corporal para as tarefas revoluciondrias. A prética da eutandsia é elogiada numa nota de O Di- reito a Preguica, onde lemos: “Os indios das tribos belicosas do Brasil matam seus invélidos e seus velhos; demonstram sua amizade pelo atin- gido pondo fim a uma vida que nao se alegra mais com os combates, festas e andangas. Todos 0s povos primitivos deram aos seus estas pro- vas de afeto”. Neto (pelo lado paterno) de uma mulata de Santo Domingo e de uma india Caraiba ¢ um judeu de origem francesa (pelo lado materno), Paul Lafargue nasceu em Santiago de Cuba, em 1842, velo com os pais para Bordéus, em 1851. Terminando os estudos secundérios, inicio 0 curso de medicina em Paris, curso que sé iria terminar alguns anos depois, em Londres, pois tendo, num congresso de estudantes contra o Segundo Império de Lufs Napoledo, proposto a supressio das cores oficiais fran- cesas e sta substitui¢ao por uma bandeira e fitas vermelhas, foi expulso perpetuamente da Universidade de Paris. Franco-magom e prudhonia~ no, ativo colaborador da revista La Rive Gauche, viaja a Londres em 1865, encontrando-se pela primeira vez. com Engels e Marx, com cuja filha, Laura, se casaré, em 1868. MARILENA CHAU Desde 1866, Lafargue participa do Conselho-Geral da Primeira Inter- nacional (dirigido por Marx) e, em 1868, abandona o ramo francés da- quela que iria tornar-se a grande adversdria do Conselho no interior da Internacional, a Associagao Internacional dos Trabalhadores (que viria a ser liderada por Bakunin), 4 qual se filiara anos antes. Durante a Co- muna de Paris, em 1871, Lafargue se muda com a familia para Bordéus (tem dois filhos e um terceiro a caminho; duas das criangas morreram com alguns meses de idade ¢ o filho, Etienne, morreria aos dois anos, vitima de problemas gastrointestinais; essas mortes fizeram Lafargue abandonar para sempre a pratica da medicina).’ Seu nome é indicado para a eleic&o dos representantes municipais da Comuna, mas a derrota do movimento revolucionstio e a violenta repressio que se abate sobre 0s communards e todos ligados a eles, o leva a partir com Laura e Etien- ne para a Espanha, onde permanecera exilado até o Congreso de Haia, de 1872, quando parte para a Holanda e, a seguir, retorna a Londres. Sera por essa época que Marx, preocupado com 0 abatimento moral ea desorganizacio politica que domina o operariado francés, derrotado na Comuna e reprimido pelas forcas republicanas, tentou, sem obter res- Viirias eartas de Laura as irmas Jenny ¢ Eleanor ede Lafargue a Engels ¢ Marx fazema critica da medicina contemporinea, particularmente no tocante as questdes de higiene e pela proi- bigio de usar amas-de-leite (quando as mies nao tinham condiges de amamentar), forgan- do 0 uso do leite de vaca em mamadeira. Lafargue atribui a esses dois fatores — higiene e _mamadeira — a causa das mortes de seus trés filhos e seu desprezo pela medicina. INTRODUGAO 19 posta, convencer Blanqui da necessidade de reorganizar a classe oper- ria. Nessa ocasiio, Marx recebe uma carta de Jules Guesde, communard ediretor do jornal L’Egalité, consultando-o sobre a criagao de um parti- do operario socialista. O contato é feito por Lafargue que, mais tarde, em companhia de Marx e Engels, auxilia na redacao do programa do Partido Operario Francés, proposto por Guesde no “Congresso imor- tal” de outubro de 1872, em Marselha, quando, pela primeira vez, os opetirios franceses chamaram-se a si mesmos de revolucionérios. E nesse periodo que, em 1880, Lafargue publica, na Revue Socialiste, | trechos do Anti-Diibring, de Engels, traduzidos para o francés e organi- zados por ele e Laura com 0 titulo de Socialismo Utépico.z Socialismo 1 Na época, a luta no interior da Internacional esté agucada e surge a expressio “marsista” para referirse as posigdes politicas de Marx em antagonismo com as dos prudhonianos feanceses, os adeptositalianos de Mazzini, os adeptos espanhéis de Mesa, ¢ 08 anarquistas de Bakunin, Lendo acréscimos que Guesde fizera a0 texto do programa do Partido Operério Feaneés, Marx escreveu uma carta em que apareceu a famosa frase: “se € assim [isto€, se €isso aque Guesde julga sera politica marxista], entio nao sou maraista”. Sobre a Primeira Interna onal, veja-se E. Dolléans. Histoire dir mouvement ower. Paris: Armand Colin, 1947-48; G. D. Cole, Socialist Thought: Marxism and Anarchism, 1850-1890. Nova York: St. Martins Press, 1967, P. Thomas. Karl Marx and the Anarchists. Londres: Routledge & Kegan Paul, 1980; E. Hlobsbawm (org). Histdria do marxismo. Vol.1— O mearxismio no tempo de Marx Rio de Janeico: Paz ¢ Terra, 1983. Para os documentos dos congressos,veja-se J. Freymont {org,). La Premiére Internationale: recueil de documents, Genebra: Droz, 1962-1971 (4 vol.) Pata ahist6ria do Partido Opersrio Francés, veja-se C. Willade. Les guesdites. Paris: Editions Sociales, 1965; J. Guesde. Textes choisis, 1867-1882. Paris: Editions Sociales, 19703 B. H. Moss. The Origins of the French Labor Movement. 1830-1914. Berkeley: University of California Press, 1976; J. Julliard, Autonome ouvriére. Etudes sur le syndicalisme d'action directo. Paris: Gallimard-Le Seu, 1988; K. H. Tucker Jt. French Revolutionary Syndicalisrs ‘and the Public Sphere. Cambridge: Cambridge University Press, 1996, 20 MARILENA CHAUE Cientifico. E nesse mesmo ano de 1880, entre 14 de junho e 4 de agosto, que publica na revista guesdista L’Fgalitéa série de artigos que formam O Direito a Preguica. Com essas duas publicagées, o marxismo (ou mais exatamente, para usarmos a terminologia de Lafargue e de sua época, 0 “determinismo econémico”),! gragas 4 descoberta da luta de classes como motor da histéria, se apresenta como via na qual se forma a consciéncia de classe operaria e sua compreensiio da necessidade histérica da agao revoluciondria. Esses dois escritos reorientam a revista L’Egalité e funda- mentam o programa do Partido Operario Francés. Ea partir dessa época que Lafargue comegaré a redacao de varias brochuras resumindo as idéias de Marx para divulga-las entre os operarios revolucionatios franceses.® +0 determinismo econdmico € um novo utensil, posto por Marx 8 disposiglo dos socia- listas para estabelecer um pouco de ordem na desordem dos fatos histbricos que historiado- tes ¢ fil6sofos foram incapazes de explicate classifica. [..J- Marx, fato pouco notado, no apresentou seu mérodo de interpretagao historica num corpo de doutcina com axiomas, tcoremas, corolitios ¢ lemas. Para ele, ela € apenas um instrumento de pesquisas. Nao se pode, portanto, crticé-la senao contestando os resultados que oferece em suas mos, sendo refutando, por exemplo, sua teoria da lura de classes. Evita-se fazé-lo. Os historiadores e filésofos a tomam por obra impura do deménio, precisamente porqut ela conduziu Marx a descoberta desse poderoso motor da hist6ria.” P. Lafargue. Le déterminisme économique de Karl Marx. Recherches sur Vorigine et 'évolution des idées de justice, du bien, de V'ime et de dieu, Paris: Marcel Giard, 1928, p. 3 ¢ 5. Para a biografia de Lafargu, incluindo © momento posterior ao periodo que aqui nos conceme, veja-se L. Derfler, Pauel Lafargue and the Founding of French Marxism, 1842- 1882. Cambridge: Harvard University Press, 1991 ¢ L.. Derfler. Paul Lafargue and the Flourishing of French Socialism. Cambridge: Harvard University Press, 1998, Ha também ‘uma biografia resumida em J. Maitron (org.). Dictionnaire biographique die mouvement oworier francais. Paris: Editions Ouvrires, T. XM, p. 167-170. INTRODUGAO. 2 Com justiga, Lafargue é considerado o principal responsavel pelo sur- gimento do marxismo francés do final do século XIX e inicio do século XX,7e, para muitos, seus textos de critica literaria (com analises das obras de Chateaubriand, Hugo, Flaubert, Zola ¢ Balzac) do inicio & chamada vestética marxista”, que terd em Lukées seu maior expoente. Mm Quatro datas so marcos hist6ricos que referenciam @ matéria anali- sada por © Direito a Preguica: 1848, 1871, 1872, 1879. Ou seja: 0 movimento insurzecional popular de 48, cuja derrota desemboca na res: tauragio da monarquia eno Segundo Império de Lufs Napoledos a Co- muna de Paris, de 71, cuja vit6ria inicial destroi o Segundo Império e + Potobsbawm. “A cultra européia €0 marxismo entre ose. XIX ©0566 XX" fin Historia sr yanesigmo, op cit), observa que “A tradigio radical jacobina permane amplamente sropermedvel 3 penetragio do marxismo, mesmo que (¢tlves exauneTe ‘causa disso} impr poentes mais revoucionérios parcessem sempre demasiio PRPCIT™ homena fear um grande revolucionério ease idenificarem com as cave ligadas a tal nome. Dessa Sruagio singular deriva o fendmeno singular do eseasso desenvolvimento que o marxismo tave na Franga”, p- 82. Essa observacdo é muito interessante porque nos ajuda a entender & tere ta coma, exerevendo sobre Lalargue, J. M. Brohm procara garni Gi Marx seja 0 aaa ral direto do Partido Comunista Francés através de Lafarzy ¢ Guesde e do Partido, Operivio Francts, que teria sido o primeiro momento do PCF Cf. J.M. Brohm, “Préface” a Le droit i la paresse. Paris: Maspéro, 1965: a er ica ieratia de Lafargue, vias J Fréville, Paul Lafarge Critiques lteéraires. Paris: Editions Sociales, 1936; C. Willard, “Paul Lafargue, critique littéraire”, in Le mouve- ‘ment social, 58:102-10, jan.-mat. 1967, 22 MARILENA CHAUE cuja derrota final da(ensejo a0 nascimento da Terceira Repiiblica france- sa; 0 Congresso de Haia, de 72, no qual o refluxo da Comuna e as lutas entre Marx e Bakunin levam a morte da Primeira Internacional; ¢ 0 “Con- gresso imortal” de Marselha, em 79, quando é proposta a criagio de um partido socialista revolucionario da classe operaria. Ao escrever O Di- reito a Preguica, Lafargue tem presente nao sé essa hist6ria politica, mas sobretudo aquilo que a determina, a economia capitalista, em geral, eo capitalismo francés, em particular. Tem presente especialmente a longa crise econdmica francesa dos anos 70-80, quando a burguesia explora ferozmente o proletariado. A baixa dos salétios, o aumento do custo de vida, a jornada de doze horas, a dispensa de grandes contingentes de trabalhadores, o deslocamento ou fechamento de fabricas, as greves lo- cais e parciais reprimidas pelas forcas da ordem com derramamento de sangue, ¢ as guerras coloniais para conquista de novos mercados, evi- denciavam que era a hora a vez de a classe operdria agir revolucionaria- mente. Se Socialismo Ut6pico e Socialismo Cientifico oferece aos operé- rios a compreensio da necessidade histérica do socialismo, O Direito Preguiga é um painel da sociedade burguesa, visando alcangar o proleta- tiado no nivel da consciéncia de classe e por isso € a critica da ideologia do trabalho, isto é, a exposigao das causas e da forma do trabalho na economia capitalista, ou o trabalho assalariado. IvTRODUCAO 23 24 Sabe-se, hoje, que Lafargue pensara, inicialmente, em intitular seu panfleto como direito ao lazer e, depois, como direito a0 dcio. A esco- Iha da preguiga nao foi casual. O titulo original do panfleto foi: O Di- reito d Preguica. Refutagao da Religido de 1848. Ao escolher e propor como um direito um pecado capital, 0 autor visa diretamente ao que denomina “religido do trabalho”, o credo da burguesia (nao sé france- sa) para dominar as maos, os coragGes ¢ as mentes do proletariado; em nome da nova figura assumida por Deus, 0 Progresso. Essa escolha duplamente consistente. Em primeiro lugar, é consistente com as obras de Lafargue nesse periodo, quando se ocupa com a origem das reli- gides, da crenca num deus pessoal transcendente, na alma e sua imorta- Jidade, na vida futura de salvagao ou danagao. Por que a burguesia cré em Deus ¢ na imortalidade da alma?, indaga ele em varios escritos. Por que dessa crenca ela chega as idéias de justica, caridade e bem? Porque, responde ele, a burguesia tolerou e patrocinou o desenvolvimento das ciéncias da natureza (pois isso era necessario para 0 capital), mas nio tolera e sim reprime toda tentativa de conhecimento cientifico da reali- dade social (pois sabe que tal conhecimento a desmascara e enfraque- ce). A religiao é o instrumento eficaz de dominagao de classe porque + SPor que os livre-pensadores fazem o processo do cristianismo ¢ acredita em Deus, base fundamental das religides, seja qual for seu nome? Supdem que a b classe a que pertencem, pode prescindie do cristianismo, do qual é uma manifestagio eviden- parece oferecer uma explicagio satisfatéria sobre a sociedade e garan- te, pela ago do clero e dos intelectuais pequeno-burgueses, que o pro- letariado, espontaneamente incréue ateu, seja rendido por essas idéias € ctengas. Em 1849, lembra Lafargue, Thiers declarou no conselho da Instrucio Primaria: “Quero fazer com que a influéncia do clero seja todo-poderosa, pois conto com ele para propagar essa boa filosofia que ensina ao homem que ele est aqui para sofrer, e nao essa outra e!”, filosofia que, pelo contrario, diz a esse mesmo homem: Divirta-s Nao por acaso, Lafargue fara constante referéncia a “religiio de J6”, imposta pela burguesia, pois é no Livro de J6 que lemos: “Nao estd 0 homem condenado a trabalhos forcados aqui na terra? Nao sio seus dias os de um mercendrio? Como 0 escravo suspira pela sombra, como te? Embora tenha podido adaptar-se a outras formas sociais, o cristianismo é, por excelén- cia, a religido das sociedades que se fundam sobre as bases da propriedade individual e da exploragio do trabalho assalariado, Por isso foi, € sera, diga-se o que se disser, a religiio da burguesia. |... © mundo econdmico proporciona ao burgués insondéveis mistérios que 0s economistas se resignam a nao aprofundar. O capitalista, que gragas aos sibios, conse: guiu dominar as forgas naturais, fica pasmado ante o efeito incompreensivel das forcas econdmicas ¢ as considera invenciveis, como o é Deus, e deduz que o mais prudente é suportar com resignacdo as desgragas que produzem e aceitar as vantagens que ocasionam. Como disse J6: «0 Eterno me deu, 0 Eterno me tiou, bendito seja o nome do Eternom. As forgas econdmicas Ihe parecem fantasticas, como seres benéficos ¢ maléficos.(..]. Os antro- pologos atribuem a bruxaria, a crenga na alma, nos espiritos e em Deus, do homem primi- tivo, a0 seu desconhecimento do mundo natural. A mesma explicagio é aplicavel ao home civilizado: suas idéias espiritualistas e sua crenga em Deus devem ser atribuidas & sua igno- incia do mundo social. [..]. Os incompreensiveis einsoliveis problemas sociais fazem Deus tio necessirio, que o teriam inventado se nao houvesse existido.” P. Lafargue. Por que cree en Dios la burguesia?. Madi: Ediciones Jicar, 1979, p. 7-8, 23-4. O texto francés original se intitula La religion du capitalisme, e foi escrito em 1887. INTRODUGAO. 25 26 co mercendrio espera o salatio, assim tive por heranga meses de decep- -3). ¢40, couberam-me noites de pesar” (J6, 7: Em segundo lugar, a escolha da preguica é consistente na conjun- tura historica, em decorréncia do uso da religido, feito pela burguesia francesa no dia seguinte & grande derrota operdria de 1871. Em 1872, © primeiro ministro MacMahon propés a “ordem moral”: 0 novo governo republicano, além das leis de censura da imprensa socialista, de repressio aos communards e de proibicao das atividades politicas operdrias, comemorou 0 martirio dos primeiros cristaos, na colina de Montmartre, declarou santo seu solo e sob a responsabilidade da Repiiblica a construgao, nessa colina, da basilica do Sacre-Cocur, pondo a Franca sob a protegio do Sagrado Coragao de Jesus para purificar a patria da gangrena socialista atéia e restaurar a unidade nacional. Todavia, se para fins provocativos e de propaganda revolucionaria, a escolha recaiu sobre a preguica, algo mais profundo se anuncia nessa decisio. Lafargue, num momento de grande dramaticidade do texto, propoe aos leitores um enigma. Tendo se referido a “estranha loucura” que se apossou da classe operaria francesa, isto é, 8 sandice que é a paixdo pelo trabalho assalariado, escreve: Magitena cHaur “E dizer que os filhos dos heréis do Terror se deixaram degradar pela religiao do trabalho a ponto de aceitar, ap6s 1848, como uma con- quista revolucionaria, a lei que limitava a doze horas 0 trabalho nas f4- bricas; eles proclamavam, como sendo um principio revoluciondrio, o direito ao trabalho. Envergonhe-se proletariado francés! Somente es cravos seriam capazes de tamanha baixeza! [...]. Ese as dores do traba- Iho forgado, se as torturas da fome se abateram sobre o proletariado em ntimero maior que os gafanhotos da Biblia, foi ele que as invocou. O trabalho que, em junho de 1848, os operdrios exigiam, armas nas mos, foi por eles imposto a suas familias; entregaram, aos barées da indiistria, suas mulheres e seus filhos. Com suas préprias maos, demoliram seus lares; com suas préprias aos, secaram o leite de suas mulheres; as infe- lizes, gravidas que amamentavam seus filhos, tiveram de ir para as minas € manufaturas curvar a espinha e esgotar os nervos; com suas proprias mios, estragaram a vida e o vigor de seus filhos. Envergonhem-se os proletarios!” £ impossivel, aqui, ndo lembrarmos de um outro texto, escrito tam- bém depois de uma derrota popular, a revolte des gabelles, na Franca do "© Isto, do perfodo jacobino da Revolugao Francesa, a partir de 1793, considerado 0 periodo propriamente popular radical da Revolugio. Se nos lembrarmos da observacio de E. Hobs- bawm (ef, acima Nota n.° 7) sobre 0 presenga marcante da tradigio jacobina nos meios ‘operirios ranceses, compreende-se que Lafargue se refiraa ela a0 erguer-se contra a pass vidade do proletariado francés. , INTRODUCKO 7 es século XVI: 0 Discurso da Servidao Voluntdria, de La Boérie, que ram- bém fala em loucura, ou em “povos insensatos” ¢ propde 208 leitores um enigma: «pobre gente e miseravel, povos insensatos, nagdes obstinadas em vosso mal e cegas ao vosso bem, deixais roubar, sob vossos proprios olhos, 0 mais belo ¢ 0 mais claro de vossa renda, pilhar vossos campos, devastar vossas casas. Viveis de tal modo que nada mais € vosso [.-}E todo essé estrago, esse infortinio, essa ruina enfim, vos advém nao dos inimigos, amas sim, por certo, do inimigo, daquele mesmo que fizestes ser como ele 6, por quem ides tio corajosamente a guerra ¢ para 8 vaidade de quem vossas pessoas nela enfrentam a morte a todo instante, Esse senhor, po- sém, s6 tem dois olhos, das maos, um corpo ¢ nada além do que temo Jltimo habitante do niimero infinito de nossas cidades. O que ele tema mais do que v6s sos os meios que Ihe forneceis dai para vos destruir. De onde tiea os inumeraveis olhos com que vos espiona, senso de vossas fileiras? Como tem tantas maos para golpear, se ndo as toma emprestado de vos? Os pés com que espezinha vossas cidades ndo sao os vossos? Como ousaria atacar-vos se nao estivesse conivente convosco? ‘Tem ele algum poder sendo por vos mesmos?”"" TEje La Bowie, Discurso da servidio voluntria, Sio Paulo: Brasiiense, 1982s. 789 theadugioligeitamente modficada por Marilena Chat MARILENA CHAUL O paralelo entre La Boétie e Lafargue transparece na construgo de seus respectivos panfletos. Assim, La Boétie compara e contrapde os animais selvagens e os domésticos, enfatizando que um animal sé é do- mesticado pela violéncia; essa comparagio seré retomada nos mesmos termos por Lafargue. No Discurso da Servidao Voluntéria, La Boétie compara e contrapée o francés servil e tiranizado aos indigenas do Novo Mundo, livres, fortes, saudaveis e felizes que, se tivessem de escolher en- tre liberdade e servidao, nao hesitariam em escolher a primeira e somen- te pela violéncia seriam rendidos & segunda; essa mesma comparagao é feita por O Direito a Preguica. Que significam essas semelhancas textuais? Nos dois casos, 0 contraponto entre o livre eo servil, ou entre os que esto acostumados a liberdade e os que cederam A servidio, € a ocasiao para que os dois autores proponham a mesma interrogagio. La Boétie indaga como os homens, nascidos livres, podem viver em servidio como se esta Ihes fosse natural. Lafargue pergunta como o proletariado, a tini- ca classe que possui a chave para a liberar a humanidade, pode deixar-se dominar pelo dogma do trabalho. A resposta é a mesma: “sois v6s que dais ao tirano os meios para vos tiranizar”, escreve La Boétie; “todas as misérias individuais e sociais dos operdrios foi o que fizeram por merecer com sua paixdo pelo trabalho”, diz Lafargue. Sea “servidao voluntaria” é um enigma é porque servidao.e vontade INTRODUGAO 29 rt 30 jamais poderiam estar juntas, toda servidio s6 podendo ser indesejada, imposta contra a natureza e a vontade de alguém ou de um povo. Como, entio, explicar o desejo de servir?, indagara La Boétie. Como explicar que 0s tiranizados vejam como sew bem a espoliagio a que servem ea servidao em que vivem? Como explicar a insensatez dos que se obstinam em seu proprio mal? Nao menos enigmatico é 0 desejo de trabalhar. Como explicar que ds proletérios reivindiquem o trabalho como um direito?, indaga Lafargue. Como explicar que aquilo mesmo que os destréi Ihes apareca como con- quista revoluciondria de um bem? £ na resposta a essa interrogacao que captamos o sentido profundo da escolha da preguica: essa escolha nao é uma irreveréncia “materialista” de um ateu empedemidoc sim a critica materialista do trabalho assalaria~ do ou do trabalho alienado, pois é este 0 objeto de O Direito a Preguiga. Iv Preocupados (com razao, alias) com a mensagem politica, os comen- tadores sempre deixaram de lado (ou nao levaram em consideracao) que aconstrugio literaria de O Direito 4 Preguica revela um escritor eximio, que domina com requinte os instrumentos da ret6rica e é capaz de segui- la com sofisticagao. MARILENA CHAUL De fato, a retérica classica estabelece um conjunto de regras para a composi¢ao de um texto perfeito, que deve ser falado ¢ ouvido, mais do gue tomado como um escrito a ser lido.!? Essas regras, que visam & emo- gio do ouvinte ed sua persuasio pela forga das imagens escolhidas pelo orador, sustentam, por exemplo, os grandes discursos de Cicero e foram apropriadas pela Igreja para a construcio dos sermées. Como procede Lafargue? Ele ndo apenas sabe que a oralidade é essencial num panfleto revolucionério, mas sabe também que poder obter um efeito de grande proporcées se construi Jo de maneira ret6rica, operando em seu campo com muitas gamas e tonalidades de emogGes, a fim de comover e persua- dir. Por .o, com mestria, Lafargue emprega imagens fortes, dramaticas (como a descri¢o da miséria dos operdrios da Alsdcia, ou as guerras coloniais para conquista de novos mercados), parad: xais (como Cristo pregando a preguiga ao mostrar a beleza dos lirios do campo que “nio (Os grandes retoricos latinos, particularmente Cicero e Quintiliano, estabelecem que um discurso deve ser construido tendo cinco partes: exdrdio, invencio, exposicio, amplificagio teperoracio. No exérdio, o orador deve apresentar seu tema de mancira que provoque uma reagio emotiva no ouvinte (espanto, medo, c6lera, admiracio, indignagio, etc.);na inven- ‘Glo, oorador deve apresentar os fatos que serio examinados por cle, devendo despertar no Suvinte a atengao; na narragao ou exposigio, o orador deve contar aos ouvintes 0 sucedido ¢ apresentar a defesa ou 0 atague dos envolvidos no que esta sendo narrado; na amplifca (G40, 0 orador deve encontrar varios exemplos, tirados de outros fatos ¢ de outros aconte Cimentos diversos daquele que esti sendo narrado e que confirmem, positiva ou negativa- ‘mente, o que foi exposto; na peroracio, o orador convida os ouvintes a partilhar com cle as opinides ea posigio a respeito do que foi exposto. Lafargue segue essas regras na composi ‘gio de seu discurso. Na lingua portuguesa, o exemplo classico do uso perfeito da ret6rica encontra-se nos Sermoes, do Padre Vieira. INTRODUGKO 31 32 trabalham nem tecem”,"? ou Jeova dando o exemplo da preguica, a0 descansar eternamente apés os seis dias da criacio), aberrantes (como o cortejo de servidores intiteis inventados pela burguesia para chegar a consumir 0 excesso da produgao, ou 0 efeito destrutivo para o proleta~ riado da crenca no novo deus, o Progresso), e emprega imagens cOmicas e Grotescag) na parte final do panfleto (quando propde a encenagao de uma pega teatral desmoralizadora dos burgueses e de seuslacaios). Mas a finura literdria de Lafargue vai ainda mais longe. Com astiicia, escolhe como tatica uma estrutura discursiva tal que seu texto surge como violenta parédia dos sermées religiosos, seguindo as mesmas regras ret6- ricas que estes tltimos seguem. Eis por que O Direito a Preguiga comega com um prefacio off ex6rdio sobre a religido do trabalho (com o qual substitui a leitura do evangelho, que precede o sermao eclesidstico) e termina com uma oracao (substituindo o orenmus, com que termina 0 sermao esclesidstico, por uma invocaco a deusa Preguiga), intercalando entre o inicio ¢ o fim uma exposigéo e uma amplificagdo que trazem um {Na pregagio aos discipulos, Jesus thes disse: “Por isso vos digo: Nao vos preacupeis com a wide, quanto ao que haveis de comer, nem com 0 corpo, quanto a0 que haveis de vestt ois a vida é mais do que o alimento € o corpo mais do que a roupa. Olhai os corvos; eles ndo Semeiam nem colhem, nao tém celeiro nem depésito; mas Deus os alimenta [..]. Othai os Iitios do campo, como nao fiam e nao tecer. Contudo, eu vos asseguro que nem Salomao, com todo seu esplendos, se vest como tm deles” (Lucas, 12:22-7). Na verdade, a pregacio de Jesus visa convencer os discipulos a se entregar & Providéncia divina, mas Lafargue emprega o texto evangélico para obter uma imagem contra a religiiocristd do trabalho, MARILENA CHAU? ensinamento novo, uma outra “boa nova”, que permitiré encerrar 0 texto contrapondo 0 calvario do proletariado a felicidade que este er- guer4 com suas préprias forcas. Qual o tema de O Direito a Preguiga? Na verdade, embora o tema seja 0 elogio da preguica, como condigao para o desenvolvimento fisico, psiquico e politico do proletariado, Lafargue tem como pressuposto prin- cipal o significado do trabalho no modo de producao capitalista, isto é, a divisio social do trabalho ea luta de classes. Sua fonte de inspiragio é dupla: de um lado, as idéias do jovem Marx, nos Manuscritos Econdmicos de 1844, sobre o trabalho alienado;" e, de outro, a andlise do trabalho assalariado, no primeiro volume de © Capital. O que € 0 trabalho alienado?' Para entendé-lo, é preciso, primeiro, Iembrar que, para Marx e Lafargue, 0 trabalho, em si mesmo, é uma das dimensdes da vida humana que revela nossa humanidade, pois é por ele _Embora essa obra de Marx s6 tivesse sido publicada no século XX, ¢ perfeitamente possivel supor que, em conversas com 0 sogro, Lafargue conhecesse suas primeiras idéias sobre a alienagio do trabalho. As palavras “alienagio” ¢ “alienado” sio derivadas de um pronome da lingua latina, aliens, aliena, alienum, que significa “outro, outea” no sentido de “alheio, alheia”. Quan- do se diz que um doente mental & um alienado, o que se quer dizer €: 1) ou que ele se tornow ‘um outro para si mesmo, tornou-se alheio a si mesmo, nio se reconhece tal como é, mas se imagina como um outro (por exemplo, aquele que imagina que é Cristo, Napoleio, Hitler, et); 2) ou que ele imagina a existéncia de um outro superpoderoso ou uma existéncia alheia 4 sua que pode domina-lo,forgé-lo a fazer o que nao quer, mati-lo, etc. A parandia é um dos casos clinicos da primeira forma da alienagio, ea esquizofrenia é um dos casos elinicos da segunda, Nao sera por acaso que Lafargue se refira& “paixio pelo trabalho” como um caso de loucura. O trabalho de que ele fala éo trabalho alienado. INTRODUGAO 33 34 que dominamos as forcas da natureza e é por ele que satisfazemos nos- sas necessidades vitais basicas e é nele que exteriorizamos nossa capaci- dade inventiva e criadora—o trabalho exterioriza numa obra a interiori- dade do criador. Ou, numa linguagem vinda da filosofia de Hegel, 0 trabalho objetiva 0 subjetivo, o sujeito se reconhece como produtor do objeto. Para que o trabalho se torne alienado, isto é, para que oculte, em vez de revelar, a esséncia dos seres humanos ¢ para que 0 trabalhador nao se reconhega como produtor das obras, é preciso que a divisio so- cial do trabalho, imposta historicamente pelo capitalismo, desconsidere as aptidées e capacidades dos individuos, suas necessidades fundamentais ¢ suas aspiracées criadoras e os force a trabalhar para outros como se estivessem trabalhando para a sociedade e para si mesmos. Em outras palavras, sob os efeitos da divisio social do trabalho ¢ da luta de clas- ses,'6 0 trabalhador individual pertence a uma classe social — a classe dos trabalhadores —, que, para sobreviver, se vé obrigada a trabalhar para uma outra classe social —a burguesia —, vendendo sua forga de “© Por “luta de classes” nao devemos entendes, como quer a classe dominante, a “luta da classe”, isto é, as agbes do proletariado contra a burguesia. O plural “classes” € essencial: a lta se realiza com as agdes cotidianas da burguesia para conservar a exploragao ¢ a domi- nacio do proletariado, bem como nas ages cotidianas do proletariado accitando ou recu- sando a ago burguesa. A luta de classes €a forma da relagao social numa sociedade dividida tem classes e por isso se realiza tanto na calma rotineica do cotidiano, nas legislagbes traba- Ihistas, nas eleigdes, assim como nas agdes espetaculares das greves, revoltas ¢ revolugdes € nas medidas repressivas (policiais e militares) da burguesia. MARILENA CHAU! trabalho no mercado. Ao fazé-lo, o trabalhador aliena para um outro (0 burgués) sua forca de trabalho que, ao ser vendida e comprada, se torna uma mercadoria destinada a produzir mercadorias. Reduzido & condi¢io de mercadoria que produz mercadorias, 0 trabalho nao realiza nenhuma capacidade humana do préprio trabalhador, mas cumpre as exigéncias impostas pelo mercado capitalista. Por esse motivo, cada trabalhador individual e a classe trabalhadora como um todo nao podem reconhecer-se nos produtos que produzem, pois esses produtos nao exprimem as necessidades e capacidades de seus produtores. Produzidos por ordem de outros, os produtos sao enviados a0 mercado de consumo e cada trabalhador, ignorando o trabalho de todos os que produziram as mercadorias, vé os produtos do trabalho como coisas prontas que parecem existir por si mesmas. Em suma, nao as percebe como objetivacao de sua subjetividade humana, mas como algo que parece nao depender de trabalho algum para existir — 0 pro- duto aparece como “outro” que o produtor. Além disso, as condicdes impostas pelo mercado de trabalho sao tais que os trabalhadores ven- dem sua forca de trabalho por um preco muito inferior ao trabalho que realizam e por isso se empobrecem A medida que vao produzindo rique- za. Isso significa que os produtos do trabalho também nao esto ao al- cance do trabalhador, que os vé no mercado, mas nao tem como adqui- mvTRODUCAO. 35

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