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Sobre Kant com Sade I Vou falar em castelhano. Creio haver mais pessoas aqui que entendem ocastelhano e menos que entendem o francés. Falo castelhano h4 pouco tempo, ele ainda é recente para mim. Na semana passada porém, em Buenos Aires, fiz uma conferéncia de seis horas em castelhano. Assim me parece possfvel ser entendido nesse idioma, permitindo-me mais facilidade para me relacionar com os seres humanos, aqueles que querem perder um pouco de tempo a me escutar. Vamos seguir dessa maneira, correto? E, quando houver duvidas, quando as palavras me faltarem (meu vocabuldrio € bastante reduzido), o tradutor dard a tradugdo em portugués. Trata-se de um semindrio em seu sentido proprio, pois para mim ha uma diferenca entre conferéncia ou curso e seminério. O ultimo exige dos ouvintes uma participagao mais ativa. Teremos, como ponto de partida, um texto diffcil de Lacan, um escrito que nio é dos mais utilizados. E, hé um ano, em Paris, comegamos a lé-lo em meu semindrio do Terceiro Ciclo, que se efetua na Universidade, com algumas pessoas que vocés conhecem, como Alain Grosrichard, Colette Soler, Eric Laurent, Michel Silvestre, amigos de grupo um pouco reduzido da Escola de Causa Freudiana, que est4 em torno da Se¢ao Clinica. Por que, este ano eleger tal texto de Lacan? Nao é somente um esnobismo: é um texto um pouco negligenciado e seria conveniente estud4-lo, porque é tema de um curso que se chama: “Do sintoma & fantasia” . Minha tentativa, este ano, foi acentuar a importancia tedrica ¢ pratica no ensino de Lacan, na condugao do tratamento, distinguindo os dois termos — sintoma e fantasia. Através deles, podemos dizer 153 154 Lacan elucidado que o estatuto, a estrutura, a posigdo do analista, diante de cada um, € fundamentalmente diversa. E um ponto essencial na pratica da andlise € que esteve completamente abandonado, por muito anos, apesar de sua importancia na obra de Lacan. Foi o tema de meu curso assim como 0 do seminério. Escolhi este texto por ser ele o paradigma lacaniano a propésito da fantasia, através da qual podemos verificar a esséncia do que estamos tratando. E um exemplo da fantasia, ¢, ao ™esmo tempo, um exemplo do qual se pode desenvolver as articulagées da esséncia da fantasia. Nao é tao evidente num primeiro momento, pois € um texto onde h4 muitas referéncias eruditas. H4 toda uma biblioteca nestas paginas, toda uma biblioteca de literatura e de filo- sofia, que nos impede de aproximarmo-nos da medida clinica da questdo. E interessante também pensarmos o paradigma freudiano da fantasia que est4 no texto: “Bate-se numa crianga”. Hé outros textos de Freud sobre a fantasia; por exemplo, um de 1908 que se chama “As fantasias histéricas da bissexualidade” . Porém, 0 exemplo maior, paradigmatico, € 0 primeiro texto, “Bate-se numa crianga”. H4 lugar para uma comparagdo entre o paradigma da fantasia de Freud e o de Lacan. O texto de Freud refere-se, estritamente a sua pratica, toma somente casos de sua propria pratica (seis casos) em que encontrou a mesma fantasia. O texto de Lacan é exatamente o contr4rio, porque ele nunca toma 0 paradigma fantasistico de sua pratica. Podemos afirmar que ele o toma de Kant e de Sade. Sade é conhecido aqui, pode-se encontré-lo nas livrarias. Por isso, assim deve interessar um pouco menos, j4 que o sucesso, 0 éxito de Sade, sua fundamentagio, foi durante séculos a dificuldade de encon- trarmos seus livros. Posso recordar: acho que até o fim de meus anos de escola secundéria era muito ruim a reputago de Sade em Paris. Era dificil encontra-lo. O editor Jean-Jacques Pauvert, foi suficientemente audaz ao publicar toda a sua obra porque parecia, naquela época, uma idéia completamente louca. Esta foi, eu me recordo, quando cu tinha 17 anos, a sua idéia para conseguir dinheiro € nao estou muito seguro se a venda era permitida aos menores de dezoito anos. Para comprar alguns desses textos havia uma certa ansiedade. Nao era um objeto como Os outros, ndo era um livro como os outros. Houve uma proibigao desta obra até os anos 60, em Paris. Nao est4 tao longe no tempo. E um exemplo de certa recusa social e institucional, que é um bom exemplo, também, da dificuldade de situarmos as fantasias na ordem social, onde os sintomas se situam muito mais facilmente. De certo Sobre Kant com Sade 155 modo podemos dizer, os sintomas constituem a prépria ordem social. Nao h4 nada melhor para a organizag4o social do que os sintomas obsessivos, se se pode colocé-los de uma maneira cémoda na automa- tizag4o de nossas atividades. Estes sintomas podem ser uma ajuda no trabalho. As vezes podem, também, impedi-lo completamente, pois a fantasia € muito mais dificil de se localizar. H4, também, fantasias da prépria ordem social — é uma linha. Fantasias de suas utopias. A fantasia sadeana, porém, teve sua localizagdo na ordem social, preci- samente, na Bastilha onde foi encarcerado, fechado nas paredes mais fortes do mundo. Assim, este era o centro: a Bastilha estava dentro de Paris, como sfmbolo do discurso do mestre. Sfmbolo do mestre que foi tomado e destrufdo. E sabido que ndo sio freqilentes essas destrui- goes de ediffcios. Porém, a idéia da Revolugao Francesa de 1789 foi contra esse ediffcio como simbolo, e destruindo-o nao queria deixar nada! Com 6dio, a intengdo era demonstrar 0 vdo, 0 sem importancia que ali estava. Podemos dizer que foi com certa paixo porque esse edificio tinha uma significagdo essencial para as pessoas. Agora, quando alguém vai a Paris, ndo pode ver mais a Bastilha. Vé-se apenas a Praga da Bastilha, j4 que nada foi reconstrufdo no mesmo lugar, sendo uma coluna. S4o os simbolos que comandam — temos de dizer — os seres humanos, j4 que a eregdo desse edificio ocorreu quatro séculos antes da destruigéo. H4, poucas fungdes, poucas coisas nas quais podemos dizer que h4 uma caracterfstica humana. Porém, construir colunas, coisas indiretas, eis uma caracterfstica humana. Vejamos, por exemplo, somente no campo perto de Guittancourt, onde est4 a casa de campo do dr. Lacan. No fim de “Kant com Sade” estao as letras R.G. Creio que é “R” , de Roma e “G” de Guittancourt. Sao as dltimas palavras, chegamos ao fim do texto. H4, por exemplo, perto de Guit- tancourt (e nao é um edificio), uma pedra pré-histérica que se chama pierre dressé, “ pedra ereta” . E uma pedra muito grande que foi polida ereta pelos homens pré-hist6ricos. Isso é um discurso a propésito da Bastilha... 6 um pouco o estilo de meu semindrio em Paris. E construfdo a partir de cursos j4 realizados, a partir de divagacées. O semindrio é © lugar onde ndo se permite associar livremente, mas, a partir de um ponto, fazer uma picada na selva, andar na selva. E uma expressio bonita no texto K-S: “na selva”. Mais precisamente, “na selva da fantasia”. E uma expressio linda. Lacan toma a questdo da fantasia a partir da “obra literaria” de Sade e nao a partir de sua experiéncia clinica. O interessante vé-se depois. Talvez vocés conhegam o semindrio de Lacan sobre James Joyce, um 156 Lacan elucidado dos tltimos. Neste semindrio, Joyce foi a maior referéncia literdria e, simultaneamente, Lacan fez uma conferéncia sobre “Joyce e 0 sinto- ma” . Podemos dizer que o que ele estuda no texto K-S €, de certo modo, Sade e a fantasia, pois é disso que se trata: toda a literatura de Sade, a partir da reconstrugdo de sua fantasia. Por qué? Como podemos explicar, de inicio, por que Lacan toma as coisas a propésito da fantasia — seu exemplo maior — a partir disso; parece um fato cultural: h4 ou nao oposi¢4o entre cultura e clinica? Esse texto parece dizer que nao € tdo simples assim a relagdo entre a cultura e a clinica. Podemos dizer que hé uma dimensio de acaso em tudo isso. K-S € um texto dos anos 60-62. Nos anos 50, Jean-Jacques Pauvert era um editor muito querido dos intelectuais, elitistas ou nao. Ele publicou a obra de Sade, iniciou-a em 55 e nio era certo que a justica e a policia permitissem essa edigdo na Franga de 56. Bem depois, um outro editor toma © projeto de fazer uma grande edigaéo — a de Pauvert eram pequenos livros azuis, num papel feio, mais ou menos como uma edigao Pirata. O projeto dos anos 60, de um outro editor, era uma grande edi¢gao de volumes negros, em belo papel, apresentada por grandes intelectuais franceses da época. Esse foi o momento de uma mudanga. Lacan pediu para fazer a apresentagdo da obra. O interessante para a histéria das idéias € que o texto de Lacan foi recusado pelo préprio editor. O pedido foi escrever para a edigo de Sade. No entanto, o editor disse que nao conseguia entender nada do texto e, assim, nio poderia public4-lo. Logo, seria a colocagdo de Lacan, ¢ nao somente de Sade, na Bastilha. Onde colocar Lacan? Na Franga a idéia — a conhecemos pela IPA — era colocar Lacan para fora, pois a versao dos fatos pela IPA é diferente, em geral. Isto é, as pessoas na IPA fecham-se a si mesmas na pequena Bastilha, a propria IPA é uma pequena Bastilha. Créem que.. quando péem as pessoas para fora, elas estdo expulsas do mundo... Lacan disse qualquer coisa assim em Scilicet, a propésito da Praga da Concérdia, em Paris. Na Praga da Concérdia h4 também, hoje, um obelisco, porém, ao redor dele, hd uma grade. Quando alguém est4 dentro, fora das relagdes de espaco, do ponto de vista topolégico, pode se converter, 0 dentro em fora. E o mesmo espaco: dentro, 0 pequeno espago ou 0 espago exterior séo exatamente equivalentes, pois nao se trata de quantidade, de metros e de medidas, mas somente de transfor- magées, um espaco que pode se transformar. Se na esfera se faz um pequeno circulo na superficie ou um balio, do ponto de vista topolégico, € permitido atravessar 0 circulo pequeno. Assim, um ponto que esté dentro do circulo, permanece dentro do circulo, porém o circulo pode Sobre Kant com Sade 157 crescer e tomar quase todo o espago da esfera, ou um pequeno cfrculo do outro lado. Sobre essas quest5es do fora e do dentro h4 coisas mais dificeis. Assim, 0 texto de Lacan foi recusado na edi¢ao das obras completas de Sade e depois sua proposta era publicé-lo na Nouvelle Revue Frangaise, a maior revista de literatura na Franca que foi dirigida, nessa época, por Jean Poulanc, menos conhecido, porém uma autori- dade nas letras francesas e um amigo de Lacan. Porém, esta revista também recusou o texto de Lacan. Antes de conhecer Lacan, tinha lido o “KS”, na revista Critique. Creio que foi publicado af porque era uma revista fundada por Georges Bataille e o diretor naquele tempo era Jean Piel, cunhado de Lacan. Creio que, por essas relacGes fami- liares, o texto de Lacan “KS” péde ser publicado naquela época. Logo, toda essa hist6ria est4 presente nesse texto, tem um peso sobre ele. £ divertido, para mim, pensar: “Bem, isso foi escrito em 62, estamos agora, vinte anos depois e esse pequeno texto, recusado de todos os lados, tem interesse, interessa a 40 pessoas no Rio de Janeiro.” Isso demonstra como o significante caminha. Quem lé os textos da Nouvelle Revae Frangaise de 62 hoje? Poderfamos tom4-las — seria uma idéia: tomar os textos publicados em 62 na Nouvelle Revue Frangaise — para vermos se hd um sé texto que conhecemos agora. No ensino de Paris, durante o ano, tratamos de pensar isto, para fazermos um estudo. “Como o significante caminha”, € assim que 0 texto comega: a propésito do que caminha. Esta frase de Lacan sempre me pareceu muito justa, muito exata (podemos dizer, uma certa clinica da cultura, porque h4 uma!): “o que caminha nas profundidades do gosto” . Nao confundir “ profundidades do gosto”, com o gostar, o amar ou nao amar — isto é, quando alguém quer ou nao quer as coisas. O gosto é uma fungdo que foi analisada por Kant. Sua terceira Critica a critica do gosto. Sao trés livros complementares: a Critica da razao pura, a Critica da razdo pratica e a Critica da faculdade de julgar — a terceira € a obra mais misteriosa. HA um professor em Sao Paulo, Gerérd Lebrun, amigo de Alain Grosrichard, cuja tese sobre Kant é excelente. O problema de Kant nesse livro é que nao € o mesmo dizer que alguém gosta de comer pequenas coisas como um quindim que, para mim foi um objeto do mundo que nao conhecia antes, e alguém gostar, por exemplo, da obra de Picasso. Sio gostos de nivel de aprovacio diferentes. Entende-se muito bem que alguém goste de uma comida, mas outro nfo — e se diz isso em francés: “gosto nao se discute” . Sobre Picasso, enquanto alguém pode pensar: “isso ¢ belo”, 158 Lacan elucidado hd pessoas que nao gostam de Picasso, seguramente. Porém, quando alguém diz que uma obra é bela, € diferente de dizer 0 mesmo da comida, porque hd uma pressuposigiio de que esse primeiro juizo é universal, € para toda humanidade. Uma luta é possivel sobre essa apreciagao de Picasso (Picasso nao € o exemplo de Kant, seguramente). Apesar disso, ha uma pressuposigdo da universalidade. A questao filos6fica é: qual € 0 estatuto do juizo do gosto, do jufzo estético, como pode haver universalidade suposta do juizo estético e impossibilidade de demonstrar as outras. Porque podemos demonstrar se alguém diz: “dois e dois sio quatro”, hé uma universalidade dessa formula. Mas, quando alguém diz: “belo”, ha como uma universalidade antecipada, porém ndo podemos demonstrd-la. Isso nds sabemos, porém ser filésofo é, também, levar a sério essas quest6es que podem ser recusadas como nao importantes para a vida de todos os dias. E também uma coisa comum entre os analistas eos fildsofos. Eles também levam a sério erros que alguns poderiam fazer do uso da linguagem. Os lapsos... poder-se-ia decidir que os lapsos s4o tolices, Kant é 0 ponto de partida de cada uma das criticas. Sao, assim, pontos de partida muito especf- ficos. Depois de desenvolvidos, teremos de dizer: “A obra filosdfica de Kant é uma ruptura na histéria da filosofia; era sua idéia fazer uma tuptura, e foi!” Descartes também € uma ruptura, porém, os tempos modernos comegaram com Kant. Ele é o limite de dois mundos. Sao consideragGes gerais sobre a histéria das idéias que nao perten- cem ao campo freudiano. O ponto de vista de Lacan é exatamente 0 contrario: temos de ler, e ler mais, a primeira pagina deste texto e ver, precisamente, que a psicanilise s6 é possivel com Kant, com a ruptura kantiana e com o que se manifesta na obra de Sade. Nao temos de conhecer Sade e Kant necessariamente, porque eles estio presentes na pratica. A tese de Lacan é: temos que estudar as condigdes de possi- bilidade da psicandlise tudo o que se refere a l6gica da psicandlise, a partir da vida de Viena no fim do século Xix. Para estudar as condigdes de possibilidade da psicandlise, todo mundo |é os livros que Freud leu, seus professores de mitologia etc. Lacan leu — antes da moda de retomar a tudo isso. Porém, é uma maneira muito estreita de considerar as condigées de possibilidade da andlise. O prdprio termo “condigdes de possibilidade” é kantiano. Assim, o tema da terceira critica kantiana € sobre as condigées de possibilidades do jufzo estético. A primeira, a Critica da razdo pura, é sobre as condigdes de possibilidade dos “ juizos sintéticos a priori” , e na Critica da razao pratica 0 que est4 em questo € 0 jufzo moral. Sobre Kant com Sade 159 Outra coisa é estudar essas “condigées de possibilidade” entendidas como as influéncias sustentadas por Freud e enxergar mais longe. A partir daf nota-se, que h4 um estilo de intercambio entre as universa- lidades. Se uma universidade indica o nome de um professor, outro professor do mesmo nivel vai ser indicado por outra. Isto define um certo tipo de intercambio regulado. Nés, analistas temos maneiras diferentes. Como é 0 tipo de agrupamento ao redor dos significantes de Lacan? Na verdade nés somos uma pequena seita, que se multiplica em certos pontos do mundo e, pouco a pouco, hd uma troca muito importante hd cerca de cinco anos. A universidade est4 mais em torno de um significante, c ha pessoas que sdo tocadas, num dado momento, por um trago € nao sao batizados no nosso ambiente. E certo também que temos a propensio de fazermos nossas préprias publicagdes, nao compartilhamos da vida intelectual em geral. Temos de abrir as portas, porém as portas tém, também, uma certa propensdo a fechar-se. Por exemplo, Lacan oferece esse texto extraor- dindrio a revista liter4ria Nouvelle Revue Francaise ¢ ela o recusa. Podemos abrir mais o circulo. Contudo, h4 um circulo, se produz uma certa segregag4o dos analistas. Nao temos de tomar isso com compla- céncia como na IPA, mas é verdade que h4 um movimento de segregacao, de diferenciagao dos analistas por toda parte. Assim, vamos abordar o que “caminha nas profundidades do gosto” , expresso de Lacan na primeira p4gina do texto. Temos mais a ver com as escolas de filosofia grega, nao regidas pelo modelo universitério. A universidade € uma invengao posterior, da Idade Média. Podemos estudar: as universidades correspondem & vontade, num momento, & vontade explicita do poder do mestre: uma vontade de pér a mao sobre a elaboragao do saber. A elaboracgio do saber se inicia fora, sem o controle direto do mestre e a universidade foi a inveng4o extraordinéria para submeter os que elaboram o saber. E, quando se faz isso de uma maneira eficaz, funciona por séculos. A conjung4o das universidades, do discurso universitério como estrutura, permite, certamente, em nosso dias, conduzir as pessoas que elaboram o saber. Permite um controle completo sobre o “tem que lidar”, o “tem que possuir uma hierarquia”, o “tem que dar uma licenga para ensinar”, o “todo mundo nao pode ensinar, somente os licenciados”. E, depois, organizar intercambios mundiais entre os professores, dar créditos de investigag4o ou nao, todo esse pequeno mundo baila 4 mdsica do mestre. Quando se elabora aestrutura de uma maneira coerente, séculos depois ela pode continuar 160 Lacan elucidado funcionando. Esta invencSo, de Carlos Magno, se deu entre o século Xe o século XIL, com as primeiras universidades de Bolonha e Paris. E verdade que o modo analitico de transmitir as coisas é diferente, A classes, cursos... h4 um peso sobre nossa sociedade, sobre o préprio lago social, analftico, sobre o lago universitério. Apenas com isso 0 todo da andlise n3o se pode transmitir. Primeiro, porque o analisante elabora o seu proprio saber na experiéncia. Até mesmo a comunicagio entre os analistas nao pode ser toda nesse nivel de generalizacio. As conferéncias em Buenos Aires foram dadas para 600 pessoas, para serem atendidas por 200. H4 um movimento natural que é falar com um microfone, certamente, desmanchar um pouco as linhas. J4 com a audiéncia menor, mais reduzida como esta, 0 nosso modo de discurso, de controle, de supervisdo, ou o que chamamos assim, é um tipo de comunicagao, de transmissao do saber, que nao é do tipo universitério. Trata-se de um tipo de relagdo que foi abandonado pela universidac a conexao, a vinculagao verdadeiramente individualizada. Na univer- sidade, a ia seria de que cada um vale cada um, acertando os estudantes. Estou na prdtica da psicandlise, mas, a0 mesmo tempo, tenho uma fungdo universitaéria no Departamento de Psicanilise de Paris vill HA uma tensio entre essas duas atividades porque h4 um dever quando um universitario vai fazer uma tese, vai falar de sua tese no nivel de onde se fala das teses, isto é, no nivel de um certo trabalho, mas também, é af onde se esconde um pouco as coisas importantes Para o sujeito. Assim, h4 uma autonomia do discurso universitério, por diversas vezes. Quando o pedido é feito ao analista que ao mesmo tempo é universitério, o que é exatamente esse pedido? Sempre interrogamo-nos sobre o sentido, o futuro desses pedidos: isso € um ponto de vista amplo sobre a histéria, que esse tipo de relagdo foi abandonado por séculos pelo discurso universitério e que se manteria, seguramente, porque, por exemplo o sujeito histérico necessita, para sustentar-se, de um outro tipo de discurso que nao o universit4rio. O modo do discurso analitico éum modo recente, ndo tem ainda um século, nasceu somente no infcio deste século. Entéo para Lacan, temos: 0 Discurso Analitico, 0 do Mestre, o da Universidade e 0 da Histeria. O Discurso do Mestre tem séculos e séculos e foi inventado nos tempos pré-hist6ricos. O da Universidade é um discurso inventado na Idade Média. Em psicanilise, 0 discurso € uma vontade pelo futuro, que Freud destacou, articulou e Lacan explicou, matematizou; um discurso que pode durar séculos, Sobre Kant com Sade 161 com a mesma presenga no mundo que tem agora o Discurso do Mestre ou o da Universidade. Na Revolugao Francesa, houve os “sans culottes” — conhecem os “culotes” , os revoluciondrios que eram téo pobres que nao tinham calgas? A palavra “sem culote” aparece nesse texto porque se trata, No mesmo perfodo da expressao de gfria “sem culote” , que quer dizer “o que est4 sem calcas”, ¢ significa que alguém que diz isso... tem que ter culhao. & por esta raz4o que deve estar coberto com calgas. Para dizermos que h4 um discurso analitico ao mesmo nfvel do discurso do Mestre ou da Universidade, temos de ter culhdo. Nao sao esses os termos que Lacan usou no “KS”, porém hd uma referéncia as escolas gregas na primeira p4gina. A pobre prdtica analftica funciona com um quase nada, num tempo em que, para se ser a menor coisa, tem-se que ter instrumentos, fundos etc. Para praticar a andlise, quanto menos hd, melhor, basta um diva e uma poltrona. E a nossa pratica analitica é confundida com a psicoterapia, pelas melhores razGes do mundo. Estas sao sempre as razGes do bem-estar do paciente. Isso é 0 que se questiona neste texto: a questo de saber se o bem-estar €, em si mesmo, 0 objetivo maior da psicandlise, com tal, e como podemos definir 0 bem-estar. HA esta dimensao € verdade, porém, ela é definida pela sociedade. Bem-estar € poder trabalhar, esta € uma definigao: as pessoas doentes nao podem trabalhar. Isso se vé nesta delicada disciplina que se chama “medicina do trabalho” . Que é isto? Isto pode ser entendido de muitas mManeiras: que o trabalho, em si mesmo, é uma enfermidade (hd esta dimenso) —, porém essa medicina, definida precisamente, percebe as enfermidades como o que, conceitualmente, seriam as enfermidades produzidas pelo trabalho, que o trabalho produz: nas minas, por exemplo, a silicose. Temos que ver como funciona no decorrer dos anos, alguém que é médico do trabalho. Ele diria, por exemplo: “bem, nao é to mal: vocé pode trabalhar” e € assim que os mineiros permanecem em suas ocupacées. O médico do trabalho nao estuda as enfermidades produzidas pelo trabalho, mas aquelas que impedem o trabalho. Quer dizer que esse é um papel reservado ao médico jovem. Na Franga so pessoas muito progressistas que nao aceitam esse papel, porém é muito dificil para eles resistirem a fungao verdadeira da forga do dinheiro. O ponto de partida, “as profundidades do gosto”, com algumas divagac¢ées. Contudo, segui na mesma direg4o. Esta meta, “as profun- didades do gosto”, do que se trata? O ponto de partida para Lacan: nossa pobre pratica: cada dia receber gente, escut4-la, escutar coisas 162 Lacan elucidado mais ou menos significativas. Perde-se tempo. E uma prética como toda profissio. H4, também, nesta profisséo, uma dimensdo de abor- recimento. Para Lacan quando as coisas tornam-se um pouco aborre- cidas, séo sérias; quando hd entusiasmo, est4 bem. Quando um discurso penetra no mundo como profisso hd esse ver as coisas de maneira regular. Esse texto € muito precioso, ilumina um pouco a pobre pratica, posicionando-a na histéria. Podemos ser diferentes do médico do trabalho, ndo sermos apenas escravos das finalidades sociais gerais. Nao estamos na lua, num planeta, como As vezes os analistas pensam, nem estamos na Bastilha, para aceitar tudo da ordem social. O analista deve aceitar a tese de Lacan de que, fundamentalmente, aanflise, a pratica da andlise tem uma finalidade incompativel, distinta das outras prdticas sociais. Este é 0 texto que diz isso. Que nao se trata primeiro de produzir um sujeito suscetivel, ndo se trata simplesmente de curar o paciente, porque o préprio nivel da experiéncia é onde ha uma dimens&o do que nao se cura e isso é proprio da andlise. Freud dd o nome “castragéo”. Na medicina cada vez mais hd algo que nao se cura, o impossivel de curar, uma forma do Real. HA que introduzir nessa discuss4o 0 sintoma e a fantasia, porque se trata de curar 0 sintoma. O sintoma produz a dimensao da terapéutica. Com as fantasias, nao se trata de cur4-las, mas quando tratamos de fantasia estamos, no nivel préprio da andlise. E ao nivel da fantasia e ndo do sintoma que Lacan situa a questao do fim da andlise. Situar a questdo do fim da andlise ao nivel do sintoma era tradicional: os analistas deveriam ser completamente curados para funcionarem como tal. Freud disse, como vocés sabem, no artigo “Andlise termindvel e intermindvel”, que o problema era que os analistas nao sao curados da mesma maneira que esperariam que seus pacientes o fossem. Nao tém o nivel de satide mental que esperam dos seus pacientes. Assim, isso pode ser um chiste, porém deve-se também conhecer os analistas. Por que a hierarquia é tao interessante? Por que, na IPA, os contatos com 0 analista fora das sess6es so considerados como mais ou menos dificeis e proibidos? E dessa forma que o paciente pode ignorar os tragos neuréticos de seu préprio analista. E como se dao entre analistas? Geralmente, nas associagGes é um horror! Nao sei por aqui, a Letra Freudiana é uma associag4o jovem. Geralmente, a vida de associagao entre analistas é um inferno! Nao podemos dizer que esto curados da agressividade ao préximo. Pelo contrdrio, h4 um édio que circula no ambiente analitico e, tive experiéncia disso em torno da dissolugao da Escola Freudiana de Paris por Lacan. Houve um momento agudo de Sobre Kant com Sade 163 dois, trés meses nos quais cem, duzentos membros da Escola Freudiana, entre os seiscentos, assinaram, escreveram cartas de 6dio contra mim! Bom, mas por nao estarmos na Idade Média, nao h4 possibilidade de sermos comidos pelos cies, O tnico fato que me deixou contente nesse perfodo é de jamais ter respondido as cartas. Resolvi estudar um pouco isso tudo e aprender através desses movimentos. Nao sei se os atores dessa época recente tém agora vergonha... pode ser. Depois desse momento de pAnico geral em toro das dificuldades de Lacan, de sua idade e depois de sua morte, é possfvel que agora eles tenham desper- tado um pouco do panico. E possfvel, porém sei também que quando um deles viaja, por exemplo, ao Brasil ou a outros paises, se permitem caliinias que n3o se permitem hoje em Paris. Pensam que estar em Buenos Aires ou no Rio lhes permite dizer tolices. Eu viajo também € posso recolher um pouco as entrevistas deles. Recentemente vi em Buenos Aires uma entrevista da minha amiga Maud Mannoni. Digo amiga, porque h4 dois meses ela me enviou uma carta em Paris: “querido Jacques-Alain” . Porém, na entrada de meu curso em Buenos Aires um pequeno folhetim foi distribufdo, com sua entrevista e uns outros textos. Sua entrevista dizia que eu agora, era da instituigao chamada SERP, Pode ser que essa entrevista tenha sido feita em janeiro de 82 e somente a li agora. O SERP j4 ndo existe mais, hi mais de um ano. Foi por esse inferno natural que houve a dissolugao e a formacao de nove ou dez pequenos grupos. Assim, a querida Maud é extraordi- Tenho certa ternura por ela, mas estd tao agitada e revela a velha idéia sobre les normaliens, os normalistas, estudantes da Escola Normal Superior, que se tormaram lacanianos em torno de 64, perfodo do seminério os Quatro conceitos: Os normaliens nao sao o melhor material humano para a psicandlise. E uma frase curiosa: “material humano” é uma expressao de Stalin. Esta é a “delicadeza” quando ela se fere aos normaliens. Na Escola da Causa Freudiana h4 somente dois: Alain Grosrichard, que nao é analista, e eu. Sim, esse plural me parece muito preciso... Assim, tem o mesmo sentido de nao tomar aexperiéncia analftica através do que se cura, ¢ sim do que nao se cura. E por essa raz4o que Lacan, quando fala do fim da andlise, nio o faz a partir da cura dos sintomas, mas da travessia da fantasia. Atra- vessar (foi um dos meus temas do ano) significa nado curar. Nao sé trata de curar, temos que definir outro movimento a propdsito da fantasia. Nesse texto Lacan nao tem ainda a formula de atravessar a fantasia. E sobre este caminho que se conduz uma definigao verdadei- ramente nova em Lacan. Situdvel através da oposi¢ao — que est4 em 164 Lacan elucidado Lacan, porém nao foi levada diante, entre sintoma e fantasia. As “profundidades do gosto” terminam sobre isso e € apenas 0 comego do texto. Estudamos todo o ano, um pouco nosso estilo de derivagées e, nao estamos no fim do texto em Paris, apés trinta reunides, porém temos que comentar bem o texto. A tese de Lacan sobre “a origem da psicandlise” pode ser distinguida aqui. Podemos fazer uma distin¢ao improvisada, baseada em um ano de trabalho, portanto improvisando com certa seguranga. Nao se tem que tomar tudo o que eu digo aqui como uma simples palavra de vampiro, porque o seminério é um lugar em que se pode dizer as coisas, conservando sua prépria aprovacao ao que se disse. Como entender isso? Para alugar uma casa faz-se neces- s4rio o contrato. Depois de feito temos que assin4-lo para dizer “estou de acordo” . Na andlise no se assina o que se diz porque na associa¢do livre a frase seguinte pode ser: “‘ndo, eu ndo penso assim”. Nao hd obrigagao do analista de dizer: “ah, nao! Na sessdo passada, vocé dizia que estava contente, agora nao: nao se pode entender nada com vocé mudando o tempo todo.” Nao tem de ser muito escravo da assinatura! Tem-se de ser escravo de sua assinatura em todo o social, em todos os compromissos: seguramente! Por exemplo, vir aqui era continuar uma viagem de Buenos Aires a Caracas, na seqiiéncia ficaria dois, trés dias aqui para encontrar os que se interessam por Lacan. Uma hora antes de deixar Paris para Buenos Aires recebo um telefonema de Caracas, de nosso amigo do Ateneo, desmarcando por causa de um mal-enten- dido entre meus amigos do Ateneo de Caracas e o Congresso de Légica para o qual também estava convidado. Uma hora antes! Assim, tudo se assinou com 0 compromisso de eu vir aqui. Estou aqui, nao vindo de Caracas, mas de Buenos Aires, e se isso fosse a primeira idéia, nao seria exatamente o melhor momento porque vocés poderiam estudar uma semana mais, com minha amiga Colette. Mas, ao mesmo tempo, pode ser o melhor. Lacan diz uma frase essencial no “KS”: “na ética da psicandlise, nao se deve ceder de seu desejo”. Euma frase-chave, que foi geralmente entendida como permitindo fazer o que se quer, a qualquer momento, que é como obedecer a lei de suas elucubragées, obedecer ao gosto do momento. Nao se trata disso o “nao ceder de seu desejo”. Durante 0 meu curso eu disse que a melhor maneira de entendé-lo é entender que “no ceder de seu desejo” tem uma relagdo muito estreita com fazer seu dever. No fim do curso trabalhamos essa equacdo ou quase-equagao, entre “nao ceder de seu desejo” ¢ “fazer seu dever” ¢ as possibilidades Sobre Kant com Sade 165 de mudar para: nao ceder de seu dever, fazer seu desejo... Os movi- mentos sao assim, principalmente os movimentos femininos. Parecem ser uma equagao. As mulheres parecem uma equacio discutfvel. Daf a questo de Freud: ele nao sabia ao certo se as mulheres tinham supereu. Pode ser que quando se usa a palavra dever, ela j esteja af como uma diligéncia de seu dever. Temos que entender esse dever! Vamos ver isto também no “KS”, porém minha idéia é que essa quase-equacio se refere muito mais a dizer: nado hd mais seres de dever do que as mulheres. O que ilustra muito bem isto é 0 teatro grego, em Antfgona, exemplo hegeliano-lacaniano. A suposi¢éo do século XVIII € que o homem sé pode ter um bem-estar, um estado melhor, quando ele é bom. O que interessa a Freud nao é 0 bem-estar, é o mal-estar na civilizag4o, que nao permite o sonho de uma harmonia pastoral. Porém, hd uma limitagdo para nés em tudo isso. Até aqui, isso foi apenas uma introdugao mesclada deste texto, pois o que Lacan trata, em “KS”, como todos sabem, tem uma vinculagao estreita com a fungao da fantasia no cerne da literatura, mas, também, na experiéncia analftica. Nao sei se vocés j4 leram o texto de Lacan? Podemos, agora, interromper esta exposi¢ao e retom4-la com perguntas. DEBATE P: Fale mais sobre “ceder de seu desejo” ? J.-A.M.: O desejo nio produz uma anarquia do desejo e todos esses textos, com sua referéncia em Kant, também nao. Esta pode ser, ainda, uma dimensio ética, completamente distinta do que vocé gosta e do que vocé no gosta. Esta é a busca da ética. A busca da ética é a pergunta kantiana no comego da Critica da razdo prdtica, que é a referéncia de Lacan neste texto. A questdo é se existe uma regra de agdes no mundo, uma regra universal do que se deve fazer. Se existe uma regra que me permite saber o que alguém deve fazer na vida: esse € 0 ponto de partida. A questdo da primeira Critica nao € uma questdo. E uma pergunta sobre o conhecimento como tal, sobre as condigdes de possibilidade do conhecimento. A terceira € sobre as condigdes de possibilidade dos jutzos estéticos. A segunda é a propésito da moralidade da ag4o, do 166 Lacan elucidado que alguém deve fazer ¢ se existe uma regra universal dessa agao. Por exemplo, nio se trata do desejo, mas de termos de consideré-lo como uma regra de agao. Teremos que ver de que descjo se trata. Incon- testavelmente, h4 pacientes nos quais também o sofrimento é nao conhecer seu desejo. O ego, em psicandlise, é precisamente onde o problema do desejo é nulificado. Um paciente dizia: “Eu nao conheco meu desejo, onde esté o meu desejo? Meu desejo foi sempre nulificado pelo meu pai.” E sua maneira de expressar, e a questo é a de exprimir esse desejo. Nao parece mal colocada a palavra desejo nesse sentido de uma vinculagao totalmente estreita com os ideais do pai, que era um homem que parecia religioso. Talvez de uma religido nao moderada, mas aguda, o protestantismo que permite aos sujeitos uma vinculagao pessoal com as seitas. A diferenga da Igreja catélica c das seitas diversas do protestantismo é muito interessante no campo do discurso. Lacan dizia que h4 uma sé. jo, a catélica, o que permite que ela nao seja somente texto da Bfblia, o que seria muito pouco. O essencial é a tradigao, as interpretacgées nascidas durante a hist6ria. Em cada época h4 os interpretadores autorizados, como o interpretador m4ximo, 0 papa, que tem uma infalibilidade de fungao. Esse ponto de légica nao é apenas se deparar com que h4 uma pessoa sacerdotal que encama o outro nao-barrado, 0 ponto absoluto da realidade no qual se faz ciente quando se pode mudar um pouco a situagdo. O lacanismo est4 mais préximo desse modelo, mais perto do protestantismo porque pode funcionar — nao é uma recomendagio, nao é um conselho —, como uma Biblia requer. E importante perce- bermos como evoluem para chegar ao Novo Testamento... E verdade que cada um que é tocado pela paixao de Lacan na autenticidade de investigag4o que é completamente distinta dos outros que repetem mais ou menos bem Freud, se referem a isso e consideram que cada um € igual a cada um. E verdade, que hé esse corpo oficial dos interpretadores autorizados, a hierarquia eclesidstica. Hé4 uma tendéncia sectaria no lacanismo que se vé em Buenos Aires, porexemplo. Cada um quando pode, depois de umacerta aprendizagem, se diz: “Por que nao eu? Por que nao tornar-me também interpretador de Lacan por minha prépria conta e ter minha prépria associagao?” Cada vez que eu retorno a Buenos Aires crio 14 duas ou trés novas associagées, isso vai seguir por muito tempo, porque créem ser um testemunho de vitalidade. Eu considero diferente: a insuficiente vita- lidade de instituigdes, de diferengas pessoais etc.O desempenho é mais facil no exterior, pressionar um pouco de maneira que as diferentes Sobre Kant com Sade 167 correntes possam estabelecer — seria mais correto dizer os diferentes feudos, como se diz em Buenos Aires — 0 intercambidvel entre cles. No odiar uns aos outros demasiadamente é mais facil para a vida exterior, na América Latina, do que em Paris onde, seguramente, hd pessoas que eu nunca mais poderei ver depois da dissolugao. Bem, como esse texto podemos dizer que h4 uma propensao & dispersio da diferenga nos lacanianos, por tomarem isso como uma Biblia, sem interpretadores autorizados. Podem perguntar de que modo sou 0 interpretador autorizado. Cada vez mais devo distinguir-me desse lugar de onde eu sou chamado, o de interpretador autorizado que — por mais razdes existentes — nao pode rechagar toda essa situacao e, tem de se isolar um pouco disso. Mas nio se trata dos semindrios publicados: cada frase, eu a escrevi. Cada frase publicada nos semindrios, em livros, foi a partir da esteno- grafia da minha escritura. Meu ponto de vista nao é necessariamente © Gnico, porém meu sentimento tem certo peso. Esse livro se encontra assim, pelo pedido do dr. Lacan, na publicagao conhecida. Naquela €poca nao se lia Lacan. Em 66, os préprios discfpulos nao conheciam os textos de Lacan. Ele era um homem exigente, porém antes de mais nada um mestre. Foram os normaliens que — a querida Maud os odeia tanto — perceberam na obra de Lacan um ensinamento. Lacan redige também um seminério por causa desses normaliens que davam conta de que se tratava de um ensinamento. Porque para nés, o tinico ambiente nesta €poca era o da Escola Normal... Escola de nivel superior. Quando Lacan fundou a Escola Freudiana de Paris, para nds o significante Escola foi tomado da Escola Normal Superior. Na época, Lacan fundou sua Escola e 0 significante Escola é derivado da Escola Normal Superior. A posigao do meu papel nisso é que nao é tao facil porque hd um preenchimento pela interpretagao de Lacan. H4 necessidade verdadeira — de uma orientagdo dessa abertura, senao pode-se fazer uma leitura como a da Escola Freudiana, por exemplo, deter-se sobre uma certa frase de Lacan, repeti-la de um modo ou de outro e, depois segui-la, sem jamais rever as referéncias de tudo isso. Assim, é necessdrio — porém de outro modo — esse lugar vazio: o lugar de uma interpretagao autorizada é também um lugar vazio! Vazio para o lacanismo! Lacan nao pretendia ocupar esse lugar de interpretador autorizado de sua propria obra. Era claro, quando havia um problema nos semindrios de Lacan — uma estenografia pouco clara — ele muitas vezes nao sabia mais exatamente o que dissera, 25 anos antes. Ele afirmou uma vez: “vocé sabe muito mais do que eu do que se trata 168 Lacan elucidado nesse texto”. Esta é uma maneira de deixar vazio o lugar onde o significante seria completo. Nao creio que todas as interpretagdes sejam iguais. H4 uma luta de interpretagdes de Lacan porque ele foi também um homem, escritor, de muitas facetas. A propésito desse fenémeno carioca: Magno. Eu o conheci em Paris. Ele foi, creio, um més e meio ver Lacan, nao mais, ¢ depois voltou ao Rio. Pelo que eu pude escut4-lo em Paris foi uma cat4strofe de opacidade, sem sentido... Aqui, seu papel me parece comprometedor para Lacan. Esse cara foi ver Lacan umas vinte vezes, nao mais. Foi, certamente, tocado por um elemento que também existia em Lacan: um traco espetacular. Em Lacan h4 um acento de um trabalho contfnuo e auténtico sobre as ciéncias, um trabalho de todos os dias, uma responsabilidade frente aos pacientes que ndo tém nada a ver com as préticas de Magno... Ao mesmo tempo, h4 uma outra faceta de Lacan, que é a espetacular. Ele nao teria a necessidade de vestir-se da mesma maneira todo o tempo e de poder atender na obscuridade ou com um facho de luz no momento em que estava na tribuna. Nunca! Somente com sua palavra, era como se para a audiéncia surgisse um facho de luz quando ele aparecia. Nio é o mesmo produzir esse efeito com as palavras e produzir esse efeito como um show-business. Porém, podem ser as multiplas facetas de Lacan também. Creio que h4 uma férmula que encontramos em Animal Farm, de George Orwell. Todas as interpretagdes sao iguais, porém ha interpre- tages mais iguais que outras. E, bem, de certo modo, creio que minha interpretagéo de Lacan — minhas, porque sdo diversas, e as vezes mutantes —, s4o mais iguais, estéo dentro das mais iguais. Numa frase de Lacan, se diz que com Kant e Sade, entre os dois, entre a publicagao da Critica da razdo prdtica, de Kant, ¢ a Filosofia na alcova transcorreu um tempo. Eu fui ver essa palavra no dicion4rio para preparar € ver como se traduz boudoir: encontrei alcova. Mas de onde vem alcova? Em francés, boudoir vem do verbo bouder que significa que alguém esta descontente, que pode chorar. A palavra em francés significa 0 quanto e onde a mulher tem seu canto préprio, seu quarto para se preparar, para alinhar-se na alcova. Porém, a palavra tem uma fungdo essencial. Isso se vé no casamento: o elemento essencial de um casamento é também uma encarnacdo do supereu para os homens. A encarnagdo do supereu para os homens é a mulher com quem sdo casados. Dai, 0 porqué da minha proposta sobre o problema teérico Sobre Kant com Sade 169 famoso em Freud, o supereu feminino, porque a idéia dele é que, talvez, nio exista supereu feminino. A minha resposta a famosa pergunta tedrica de Freud sobre a existéncia ou nado do supereu feminino é: o supereu feminino, a melhor encarnagao do supereu para os homens, é, precisamente, uma mulher € 0 boudoir € um quarto que denuncia essa fung4o. Em todos os sentidos supereu nao € a proibicao. Temos de ver que isso foi desenvolvido, por exemplo, na América Latina, nas conferéncias que dei em Buenos Aires em 81. Porque a palavra fundamental do supereu, como Lacan entende é: “goza!". Nao é uma interdiggo. O supereu organiza os sintomas, o que é uma tese cldssica porque no sintoma também h4 um g0zo que é a razdo de nossa fascinagao por ele ou de nossa vinculacdo com ele. Isso foi um pouco sobre a palavra alcova e boudoir. Durante nosso curso, retornaremos a isso depois que recolocarmos essa questio do supereu, porque este € também um texto de Lacan sobre o supereu. O termo aparece somente uma vez neste texto, quando se trata de uma ordem do supereu, nog4o j4 descoberta por Freud. H4 um pequeno texto dele sobre o humor onde ele especifica que alguém pode pensar-se como pequeno ¢ os outros também. Os motivos de risos diante de um certo desabamento dos seres humanos, precisam ser pensados a partir do supereu. Nao pensamos o supereu apenas como um mestre feio e sério que diz “tem que trabalhar!”. O supereu é um ser amavel... 0 supereu é uma alcova. O supereu nao somente tem fungdo punitiva, como também fungao de dogura, nao é apenas a figura obscena e feroz, da qual Lacan fala também. E curioso em francés ser boudoir e em castelhano toucador... Poder-se-ia situar o papel da mulher de outra maneira. Seria preciso desviar 0 semindrio, porém nao desviemo-lo aqui. Assim € que — insiste Lacan — existem oito anos entre a primeira publicagdo da Critica da razdo prdtica e Sade, e que h4 um conjunto entre esses dois elementos que constitui uma ruptura subterranea, mas ruptura “de gosto”, que caminha, e a psicandlise € como uma conseqiléncia desta. Nao hé limite para o conhecimento na psicandlise. Lacan necessitou de Freud e isso desenvolve muitas outras conseqiiéncias. E necessitar- se-4 de Lacan para ver Freud retroativamente. Porém, naquele momen- to, o fim do século xvI1I— tudo isso se produzia em torno da Revolugao Francesa — se produz uma ruptura que caminha nas profundidades até 0 fim do século xX. E uma tese da vinculagao da psicandlise na histéria do século xIx. E, lhes disse de alguma maneira, j4 na primeira parte, ao dar um pequeno resumo disso, de dois séculos de literatura e de 170 Lacan’ elucidado gosto. O século xville o século XIX sao diferentes por isso. A tese que caminhou durante o século XVIII, antes de Kant e Sade, foi a tese da filosofia das Luzes: Aufkldrung. Uma convicgao profunda na.bondade natural do homem. Foi a tese que produziu também a Revolugio Francesa. Se os homens sao bons naturalmente, ndo necessitam de um govemo forte para ser o mestre de todos. No século XVil, o dificil € achar na histéria da cultura a tendéncia a seguir... Vocés devem conhecer Hobbes, o filésofo inglés do século XVII, cuja tese “‘o homem € 0 lobo do homem” constitui a famosa frase, o fundamento da sua filosofia politica. Se o homem é o lobo do homem, necessitamos de um governo forte para permitir uma convivéncia, um viver junto. Necessitamos da lei. Seu axioma de base era: a ruindade ¢ a agressi- vidade fundamental do homem em rela¢do ao outro. Pode-se fundar nisso a necessidade da lei, um ponto exterior que permita controlar a agressividade. Ao contrério, durante o século XVIII, a tese progressista foi encarnada por Jean-Jacques Rousseau. A bondade natural introduz um novo tipo de filosofia politica. De uma maneira ou de outra, permite também lutar contra o poder politico do seu tempo. Lutar foi uma tese revolu- cionéria. Por exemplo, h4 o personagem de uma pega de teatro de Diderot, cujo titulo interroga ser ele bom ou mau: “C'est tu bon ou c'est tu méchant?” (“Es bom ou és mau?”). De certo modo, na filosofia do século XVIII, sempre a resposta foi: é bom (“il est bon"). E uma literatura onde hé dificuldades cm se buscar o nome mau, uma literatura sobretudo angelical. Na novela de Jean-Jacques Rousseau, La nouvelle Heloise, todo mundo é bom. Julie, seu marido e 0 jovem, cujo personagem encarna o préprio Jean-Jacques Rousseau: Devienne que ama Julie. Nao € a férmula de uma dramatizagio terrivel que se produz. Ao contrério, tudo est4 bem e vao viver os trés juntos — ndo exatamente num “ménage 4 trois” , nio exatamente num casamento a trés. Nao € demais dizermos que Julie é muito terna com o personagem que encarna Jear-Jacques e 0 marido sabe disso e, quanto a ele, considerando os ideais elevados dos dois, nao os molestava de nenhuma maneira. Julie € um modelo de virtude e nao de... puta. Ha uma certa idealizagao fantasistica. Esse é apenas um exemplo; iremos tomé4-loe desenvolvé-lo mais. Depois do perfodo da Revolugdo desenvolvi este tema um pouco no meu semindrio, a abordagem da literatura muda. Do Romantismo até Baudelaire nao se trata mais de “é bom”, trata-se das Flores do mal, Sobre Kant com Sade Ww no meio do século XIX, entre Jean-Jacques Rousseau e Baudelaire nao estéo mais as flores do bem, est4o as Flores do mal. Os personagens so angustiados, maus, representantes do diabo: Mefistéfeles e Fausto de Goethe sio dessa vertente. O diabo é um personagem, h4 como uma diabolizagdo da literatura. H4 uma enorme tese, publicada nos anos 50, nao muito conhecida, chamada “O diabo na literatura francesa” ; € no século XIX com o tema do diabo e do mal, o mal! que existe na humanidade, sem harmonia possfvel. E uma tese “de gosto” na litera- tura. Para Platao nada € mau espontaneamente. Nao ha substancia do mau, hd apenas pessoas que se acham melhores porque n3o sabem, porém se 0 soubessem seriam boas. O mau prevalece sobre o bom. Esta € a tese de todos os progressistas. HA um escritor muito importante — nio sei se Lacan se referia a isso —, Kant 0 conhecia pois foi por isso que Kant se referia a religiio nos limites da raz4o. Estudou isso como um esc4ndalo, porém também tratando de dar a isso o estatuto do mal absoluto. A questao é se pode existir uma substancia do mal considerando, por cxemplo, a divindade. Vocés sabem da tese de Leibniz: tudo o que aparece de ma! no mundo permite um outro bem que n3o conhecemos. O mal € apenas uma aparéncia para nds. Na realidade, é um meio de um bem melhor ¢ uma maneira de pensar a vinculagao da divindade com o mundo. Nao se pode dizer “Deus €é bom”. Aj, o estatuto do mal é sempre um estatuto derivado, um estatuto de aparéncia. E € por essa mesma razdo que, quando se pensa a substancialidade do bem, do mal, o personagem do diabo ganha existéncia auténoma frente ao bem. Em psicandlise, Lacan nos dé um resumo dizendo que hd, durante todo esse século XIX, como um crescimento do tema da “ felicidade do mal” . Quer dizer que o mal tem uma substancia ¢ que hd uma felicidade prépria — nao uma contradigao — no mal. E muito préximo de um titulo de um pequeno relato de uma escritora francesa do século XIX, que seria Madame Reviquy: O livro constitufdo de seis relatos de mulheres, “As diabélicas”, sao seis relatos diabélicos ¢ um deles se chama “A felicidade no crime”. Quando Lacan pée entre aspas, na primeira pagina, o tema da felicidade no mal, é um eco 0 titulo de Madame Reviquy. Proponho, em meu seminario, retomar esse texto. Posso recomegar a leitura deste pequeno relato de Barrais porque é uma excelente literatura ¢ hd muito para dizer sobre esse tipo de escrita. Em psicanilise supGe-se a aceitago da ndo-harmonia da personalidade humana. Nao 172 Lacan elucidado hd nenhum Papai Noel fundamental da humanidade, as coisas nio caem bem, nao h4 nenhum sinal de harmoniza¢ao no ser humano. Supde-se que a filosofia da bondade natural do homem seja um otimismo. Como também o € a concepgao de que tudo pode curar-se. E bem verdade que toda essa fantasmagoria se estende ao redor de Freud, no comego do século XX, colocando-o como um personagem da literatura do século XIX, um personagem diabdlico, dividido, escondido no seu consultério em Viena, com todos os mistérios que envolvem a alma humana. Quer dizer que, de certo modo, Freud é, também, um personagem desse século. E € desta extremidade Ultima que podemos ver, nos escritos morais da época, nos escritos erdticos, a descrigao de um paraiso do gozo. O século XVIII, na nova literatura, com as pequenas novelas eréticas que sao também o contrério de uma novela santa. A novela moral € 0 mesmo que uma santa, € sempre a promessa da vida, da felicidade que ser4 a felicidade aos olhos de Deus ou que ser4 a felicidade com seu pequeno mestre, seu noivo, sua noiva, que sio propostos. Isto é, 0 que nés podemos ouvir na 6pera quando as vozes respondem uma de cada vez c depois em conjunto. Isso é verdadeira- mente encantador: quando uma é produzida aqui, a outra responde ¢ as vozes se mesclam. Freud, e a psican4lise, t¢m uma dimensdo oposta a pastoral. II J.-A.M.: Ha perguntas sobre qualquer ponto do texto de Lacan? P: No texto, na tradu¢ao espanhola de “KS”, na pagina 340, no inicio do segundo par4grafo, Lacan diz: “Convenhamos que ao longo da Critica esse objeto se furta...” Ele se refere & Critica da razdo pratica. “*,.. Porém se o advinha pelo rastro, que deixa a implac4vel continuagio que leva Kant a demonstrar seu furto ¢ cuja obra retira esse erotismo, sem duvida inocente, porém percebivel, cujo caréter bem fundado vamos demonstrar pela natureza do tal objeto.” Gostaria de entender mais a questao do objeto escondido. J.-A.M.: E uma frase muito importante deste texto e est4 perfeita- mente no ponto. Quer dizer que no podemos esquecé-la ao lermos o texto de Lacan ¢ entender sua intengao. A vinculag’o de Kant com Sade tem por finalidade permitir que 0 objeto escondido na Critica da razdo pratica — escondido, vamos saber por que — possa aparecer através de Sade. A tese de Lacan é fundada no préprio texto de Kant, Sobre Kant com Sade 173 em sua Erica. A caracterfstica da Etica kantiana é que nao hd objeto. © que quer Kant, porque quando se trata de objeto nfio se pode dar uma regra universal 4 a¢3o humana. Daf a tentativa dele de riscar 0 objeto de sua ética. E Lacan diz: “Bem, na realidade se trata de um certo objeto nessa Critica. E se pode ver qual através da fantasia sadeana” . £ um parégrafo-chave porque contesta o cume da moralidade no sentido habitual e o cume da imoralidade. Vincular os dois e dizer que Sade pode manifestar a verdade que h4 em Kant foi um escandalo filos6fico. De um lado, o cume da moralidade filoséfica, do outro lado esse perverso e imundo Sade dizendo a verdade. O cume da moralidade € a perversio sadeana. Isso é um efeito de humor que nao pode desaparecer. ... £ muito dificil ver qual objeto Lacan descobre nesse texto. E dificil, porém, ndo devemos nos esquecer da promessa de Lacan de revelar o objeto escondido na Etica. E uma frase Gnica, uma das frases-chave deste texto. H4 outras perguntas? P: E quanto a rotagdo que Lacan realiza do primeiro esquema para 0 segundo? Por que o realismo tem a ver com a causa? Parece-me que essa colocagdo tem a ver com a primazia que Lacan concede ao objeto Pequeno a no gozo. Neste texto Lacan define 0 gozo, la jouissance, como um direito... J.-A.M.: E como um direito de gozo. Na vida, vocé tem o direito de gozar do corpo de outra pessoa somente com sua permiss4o. Ha varios problemas sociais, se vocé usa o direito de gozar, sem permissao, do corpo do outro, assim como vocé tem direito de gozar do seu préprio corpo. A possibilidade de gozar do seu préprio corpo tem um lugar importante na clinica analitica. Assim, existe uma problematica do direito de gozar... l¢ na pratica comum! O acento especial, o acento sadeano sobre esse direito de gozar é que dé 0 sentido de direito a isso. E por isso que, na Filosofia da alcova, Sade expée a idéia de que cada um tem direito de gozar do corpo do outro sem sua permissao. H4 implicagdes multiplas, porém, € verdadeiramente a problematica sa- deana. A problematica do direito de gozar é também kantiana, tais paradoxos aparecem através da reformulagdo lacaniana na formula do chamado “imperativo sadeano” , em oposi¢do ao “imperativo kantia- no”. Lacan formula o “imperativo sadeano” que é “direito de cada um gozar do corpo de outro sem sua permissdo e até o limite que quiser”. Vocés podem ler na Filosofia da alcova a demonstragao por Sade de que se pode imaginar uma sociedade onde cada um vai fazer as coisas assim, com 0 direito. Como ha o direito a liberdade, hd o 174 Lacan elucidado direito ao gozo. O outro pode dizer 0 mesmo a mim! Corretamente, é um déspota que diz: “eu tenho o direito de gozar do corpo de cada um dos meus stditos”? Nao! Na filosofia sadiana é, precisamente, que cada um tem esse , sem excegdo. De tal modo que a férmula ita por Lacan desse “imperativo sadeano” nao se diz: “eu tenho o direito de gozar”, pois isso pode implicar que o outro nao tenha o mesmo direito, se a frase se diz com o “eu”, como sujeito. Assim, Lacan prefere formular o “imperativo sadeano” de um outro modo que é: “Eu tenho o direito de gozar do corpo de qualquer um”, mas conforme 0 texto cada um pode dizer a mim: “eu tenho o direito de gozar do teu corpo” . E isso mostra a formulagao mesma de uma palavra A qual eu mesmo sou submetido. Entenderam isso? Cada um pode dizer a mim, nés juntos: “eu tenho o direito”, porque nessa formulacao se vé que o enunciador que diz ser “eu” € 0 outro e, dessa maneira eu sou 0 outro desse outro. Assim, é 0 que vamos ver se desenvolver nesse pardgrafo, um paradoxo: Enunciemos a m4xima: “Tenho o dircito de gozar do teu corpo, pode me dizer quem queira...” (p4gina 340). E muito importante esse “pode me dizer quem queira”, porque realiza a manifestagao que essa palavra tem para cada um, via o Outro. Introduz essa dimens4o que, deste jeito, eu sou também o outro dessa maxima. E Lacan: “... e esse direito, eu o exercerei, sem que nenhum limite me retenha no capricho das exagées das quais eu tenho o gosto de saciar”. E, Lacan chama isso (pagina 342, no 3° pardgrafo) de “‘o paradoxo sadeano” porque, o limite do seu capricho no uso do corpo do outro &é morrer. E dificil pensar uma sociedade com essa lei. Parece que sc cada um tem esse direito, é dificil permitir uma continuagao das coisas sociais e de uma sociedade inteira! Por essa razdo, Lacan fala de “paradoxo sadeano”. “Esses dois imperativos (...) nos séo impostos no paradoxo sadeano como ao Outro, ¢ nao como a nés mesmos”. Temos af uma direg4o do paradoxo quando formulado: a voz vem do exterior para cada um. Cada um que quiser pode dizé-la. Assim ele é formulado, nao se encontra no texto de Sade: € uma construgdo lacaniana. O “imperativo sadeano” € para ser colocado em contraste com o “imperativo kantiano”. Este dltimo é moral e se encontra na Critica da razdo pratica, na qual h4 uma frase-chave de Kant que faz com que ele aparega como o principio maior da moralidade. Vamos saber qual, e vamos saber, por que nao h4 objeto nessa Etica. A fantasia que interessa a Lacan neste texto, é a fantasia perversa. Temos que dizer mais: é a fantasia na perversio. E mais, porque as fantasias, isso é um fato clfnico, as fantasias dos neuréticos sao fantasias Sobre Kant com Sade 175 perversas, séo também fantasias em rela¢ao com o gozo. Um exemplo: Uma paciente cuja fantasia é ser espancada por v4rios homens que, depois, contra a vontade dela, gozam de seu corpo. Essa fantasia nado faz dela uma masoquista. Nao é uma masoquista. E muito raro, nas mulheres, a perversao. A perversdo é um trago masculino, uma acen- tuacdo do desejo masculino, porque a constituigao mesma do desejo estd do lado masculino. A estrutura mesma desse desejo j4 contém a estrutura perversa no homem. Hd homens nos quais isso pode se dar de uma outra maneira. H4 uma certa eleigdo nos homens e nas mulheres: eleger a forma masculina ou a forma feminina da sexualidade. Nao se trata de homossexuais. & um fato clinico: a auséncia, em geral, da perversdo, no sentido clfnico, nas mulheres. Assim, essa fantasia nao conduz estas mulheres ao masoquismo. A vida delas néo tem nada a ver com a estrutura perversa. Nao é suficiente querer chorar para ser masoquista. Temos que diferenciar completamente o uso comum da linguagem e o uso técnico-clfnico das palavras. Essa mulher é na vida uma feminista! Pode ser também uma causa dos sofrimentos a oposiga0 entre esses ideais que cla pretende construir na vida e essa fantasia. Ela nao se coloca para ela, pois nisto consiste a dificuldade da fantasia. Isso foi, para mim, um dos pontos de partida, de reflexdo desse ano: segundo Freud, a fantasia é o mais escondido dos tesouros, muito diferente dos sintomas. O sujeito fala de seus sintomas com muita facilidade primeiramente. A trama da experiéncia analftica consiste numa lamenta¢o sobre o sintoma. Quando alguém se aproxima do ponto limite onde a fantasia se vincula ao gozo, ha uma reticéncia muito grande do sujeito, que pode ser muito negligenciada pelo analista. As fantasias neuréticas sdo fantasias perversas, porém sao muito distintas da fantasia de um perverso. Primeiro porque um perverso est4 mais préximo de realizar sua fantasia que um neurético. A fantasia do neurético é uma espécie de espetéculo privado dele. Conserva uma distancia respeitével da fantasia como lugar de elaboragdo, como meio de gozar. O perverso demonstra de uma maneira aberta a sua fantasia. Vemos isso em Copacabana, por exemplo. Vermos tipos extraordindrios que parecem mulheres, que sao mais femininos, os atributos femininos so mais destacados, h4 todo um certo ritmo de caminhar etc. Tudo isso € uma demonstragao do que é uma fantasia quando se realiza, que € nao pensar nisso, mas fazé-lo. t Nao 6 freqiiente ver, creio, essas pessoas em andlise. Nao sei se se trata aqui de direito de gozar do que Lacan chama de vontade de gozo, uma vontade decidida de gozar, realizando sua fantasia. 176 Lacan elucidado Quando Lacan diz: “aqui se pode falar de desejo come vontade de goz0” — é uma forma possivel do desejo perverso. O desejo neurético est4 longe da vontade de gozo. Porém, quando um homem pode andar em Copacabana vestido de mulher, acentuando todos os tragos da feminilidade e, ao mesmo tempo, conservando o essencial de seus atributos masculinos, andar como um outro completo que tem os tracos essenciais do outro sexo, essas pessoas sio deuses. O exemplo famoso em Jean Genet chama-se Divina. Nada a ver com o diva. E interessante tratar da fantasia a partir da perversio porque as préprias fantasias neurdticas sao fantasias perversas e, em segundo lugar, porque na perversao sao mais abertas. Em terceiro lugar, tomar um caminho através da literatura porque essas pessoas nunca vém a anélise. E fundamental para entender porque, nesse texto, a entrada na clinica € uma entrada cultural ou literdria. E verdade que Freud toma casos de sua experiéncia, porém nao s30 casos de perversos. Em “Bate-se numa crianga”, ha seis casos, e nao s&o casos de perversos: so casos de neurdéticos com a mesma fantasia perversa, a mesma fantasia sado-masoquista. Porém, os casos de Freud Nao sao sddicos, nao sio masoquistas: sio neurdticos. E verdade que ha perversos que podem vir ao consultério, mas n3o esses. Isso pode ser a prova. E uma vantagem minha poder perguntar isso aos analistas que trabalham no Rio, porque € um testemunho que aqui nenhum tem uma pessoa assim em andlise, um testemunho que eu vou comunicé-lo em Paris. Est4 confirmado que no Rio nado se analisam os travestis brasileiros, que sao muitos também em Paris (hd uma grande importa¢io). E verdade que o perverso pode entrar em andlise, mas, nestes casos hé tragos neurdticos. E quando a relagao deles com o gozar é, as vezes, perturbada sobrevém sintomas para eles. Um resultado de andlise pode ser permitir-lhes regular os problemas que tém com 0 gozo perverso, nao se trata de trocar 0 modo de gozar. O que permite a andlise da obra de Sade é articular a fantasia na perversio de uma maneira mais completa. Porém, é 0 caso de um homem que nio pode vir a andlise, por razdo de estrutura. Essa é a demonstracdo de Lacan: por que um perverso nao pode vir a andlise. Falaremos um pouco desse objeto escondido na Critica da razdo pratica. E 0 plano de entrada. O que hé neste texto? Hé uma introdugdo geral, onde toda essa hist6ria de idéias prepara a andlise. Lacan diz, na primeira p4gina, de uma maneira muito perspicaz a propdsito da formulag4o de Freud em seu “Princfpio do prazer” , que € um principio Sobre Kant com Sade 177 vinculado a repetig4o, 0 “mais além”, que confém “um mais além”. Isto é, também, uma desarmonia fundamental, em oposi¢ao a tudo que € exposto na histéria da filosofia e, para dizé-lo nos termos de Lacan na primeira pAgina do texto, no terceiro par4grafo, no qual se trata do .. preconceito incontrovertido de dois milénios, para recordar a atragéo que pré-ordena a criatura para seu bem...”. O que significa isso, “‘o que pré-ordena a criatura para seu préprio bem”? Hauma pré-ordem entre a criatura e seu bem. A tese anterior, anterior a Freud, é que cada um quer seu bem. Haveria uma positividade na vida, pela qual ninguém é mau voluntariamente. Muito embora s6 se faga coisas contra o préprio bem, por exemplo, beber muito, de uma maneira contrdria a sua satide. Daf fazer coisas contra 0 proprio bem de criatura é um erro, € um fato acidental, e deve se poder arrumar. Quer dizer que, nenhuma perversdo tem uma positividade ¢ todo seu problema é como alguém pode querer alguma coisa a mais que seu bem-estar. A perversdo é uma demonstragao — é a nobreza dela — de que hé coisas que alguém pode querer mais do que bem-estar, que o bem-estar nao é o valor supremo. E também através de meu pequeno comentério que vocés talvez possam j4 entender a vincula¢do que hd entre o cume da moralidade e a perversao. E uma caracterfstica comum nas duas — perversio e moralidade — haver algo mais do que bem-estar. A moralidade implica por exemplo, o sacrificio: quando alguém se sacrifica por um valor, € um testemunho moral que hé4 na vida humana, mas que continua a viver, que se pode aceitar morrer por uma causa. Uma causa vemos, também, na perversdo. Nesta, h4 uma causa — a causa do desejo — que, precisamente, pode permitir abrir uma dimen- sdo mais além do bem-estar. Assim, vemos nos préprios exemplos de Kant transformados por Lacan que Sade est4 mais além da moralidade, mais além que o préprio Kant. Vamos retomar isso mais adiante. Para abordar o objeto escondido na Critica da razdo pratica, seria preciso retomar a Critica da razdo pura, para lhes dar uma certa idéia, para investigac4o disso. Tenho umas referéncias aqui de Kant e de como desenvolvé-las. A investigagdo kantiana tem como referéncia a investigagio fundada sobre os fatos do discurso: E possfvel uma formulago como “dois e dois sio quatro”? Como esta formulacao pode ter uma aprovagao universal? O “dois e dois s4o quatro” nado depende do momento da histéria, ndo depende do lugar. “Dois e dois sfo quatro” & verdade aqui como do outro lado do Atlantico. E verdade 178 Lacan elucidado que h4 um esforgo, as vezes, para se mudar isso. E também um exemplo de George Orwell, do qual falei esta manh4, que podemos ver em /984. No final — quando hé 0 pobre vencido pela ordem totalitaria — para mostrar quem foi vencido, no plano burocratico, este pobre vem e diz a BigBrothe: é “cinco”. Este € um trecho cinco” — diz “cinco” e vé que me encanta no livro. Trata-se de poder dominar o mais seguro do discurso, dominar o significante. O discurso totalitério dominando o mais seguro de discurso — 0 matemitico no discurso — impondo a lei do mestre sobre a matemética. O exemplo de Orwell é importante: 0 esforgo desse homem moderno em dominar a lingua, a memériae a matematica € uma condigéo de percep¢do, porém é como se nio houvesse mais “dois e dois so quatro” . A pergunta kantiana primeira: como hd um tipo de conhecimento que nao depende da experiéncia? que nado depende de nenhum expe- riéncia de cada um. Pode ser da ordem do gosto ou no gosta disto? HA sempre verdades que sao menores. Uma pessoa que desembarca na Franga — é um exemplo inglés — vé uma mulher loura e diz: “ Voltarei a Inglaterra para dizer que todas as mulheres na Franga so louras.” Isso € uma verdade, porém, depende da experiéncia, e de uma expe- riéncia um pouco limitada no caso. Essa pessoa cré que a mulher existe, vé uma e pensa que estd ai, que assim é a mulher na Franga. Porém, essa é uma verdade da experiéncia, devemos dizer. e todas as verdades da experiéncia dependem de cada um. Nao é 0 mc..ino, com a verdade “todo corpo tem um peso”. Isso é verdade, na fisica, em geral, e nio importa a existéncia. A fumaga também tem um peso, do ponto de vista fisico, E um erro da ffsica aristotélica pensar que hd dois tipos de corpos: os que caem € os que sobem. E uma fisica fundada sobre fenémenos. Na fisica cientifica, matematica, todos os corpos caem. Estamos todos, certamente, caminhando no sentido da fisica matemé- tica, A pergunta kantiana: como sao possiveis os tipos de conhecimento a priori? Isto é, sem referéncia a uma experiéncia, ou seja, que tém uma vinculagdo independente da experiéncia. E a pergunta da sua primeira Critica era a propésito da existéncia: como pode existir uma matematica e uma fisica matemdtica? A questao aberta por essa problemftica, no vou desenvolvé-la, se podemos pensar mais além dos limites da experiéncia. A matemdatica ¢ a fisica, de certo modo, dao uma idéia do que é pensar mais além dos limites de uma experiéncia. E nessa dimensao, que colocamos a dignidade pela qual nao teremos — se nado somos misticos ou entusiastas — uma experiéncia direta da Sobre Kant com Sade 179 divindade. Se a divindade vem falar diretamente em seus problemas, h4 uma possibilidade de ser profeta. Porém, € mais dificil agora do que antes. H4 uma possibilidade de ser profeta, uma santa como Joana d’Arc. Ha também, agora, mais uma possibilidade disso: 0 hospicio psiquidtrico. Geralmente nao temos uma experiéncia da divindade e a questdo de Kant é que nao podemos pensar além dos limites de uma experiéncia possivel. Ha limites e a ciéncia est4 confinada a um certo campo ¢ que nao se pode conhecer, diretamente a estrutura da alma, a finalidade do mundo etc. Isso nado podemos ver, nao esté fundado verdadeiramente. O metafisico é um engano, uma ilusio que nos faz penetrar no pensamento divino, como Leibniz. E uma elucubragio, pois no po- demos pensar mais uma lei assim. Seria uma reflexdo sobre a estrutura mesma da experiéncia. Hé toda uma dimensdo onde nao podemos situarmo-nos de uma maneira cientifica. E muito elementar, € um fesumo, porém, se alguns tratam de penetrar na Critica da razdo pura verao um pouco da maneira de pensar de Kant que est4 expressa na hist6ria do pensamento. Critica da razao prdtica, segundo livro de Kant, isto é, quando come¢a as Criticas, porque antes j4 tinha toda uma obra. A segunda € um livro muito menor. A partir da Critica da razdo prdtica Lacan introduz a questao da perversio. E um pequeno livro, nao com tantas idéias ¢ estas se repetem um pouco, do que trata? E uma tentativa de definir, para ver se h& principios a priori do conhecimento — principios a priori inde- pendentes da experiéncia. E uma tentativa de um sistema de moralidade pura, ser referéncia a experiéncia. Sua tentativa é uma ética mais além da experiéncia. Pode-se tomar como principio da moralidade, por exemplo, o princfpio egofsta, isto é, princfpio de que cada um deve obter seu prazer. Temos de ver se este é, para a humanidade em geral, um principio a priori. Kant diz que nao é, porque o prazer de cada um € diferente. Assim, h4 uma diversidade de prazer ou, 0 que di no mesmo: o que produz prazer uma vez nao produz o prazer uma segunda vez, um exemplo: comer um pouco excessivamente, depois nao h4 prazer, mas sim desprazer. Houve tentativas de fundar moralidades sobre 0 prazer. H4 em Kant, um estudo de purismo ou de historicismo etc. demonstrando que cada um no tem universalidade. Eu nao posso retomar aqui cada critica feita a essas moralidades, porém, de uma maneira geral, como os objetos da experiéncia mudam, sdo diversos, uma moralidade, isto é, uma regra de aco fundada sobre uma relagao 180 Lacan elucidado do sujeito com os objetos do mundo, uma moralidade assim, nao tem universalidade e ndo tem necessidade porque na prépria experiéncia as coisas mudam, nao h4 um principio a priori e universal. Podem entender um pouco isto? E por essa razo que, de um certo modo, para formular uma ética a priori, que tenha um valor para toda humanidade, temos que abandonar as relagdes com os objetos. Nao podemos for- mular a regra universal da aco, a partir dos objetos, podemos fazé-la sem objetos, somente sem objetos, isto é, sem referéncia aos bens e a0 prazer. O maravilhoso nas primeiras pd4ginas da Critica da razao prdtica: tudo desaparece, estamos num lugar onde nao podemos apoiar- mo-nos sobre qualquer coisa do mundo para obter uma regra da agdo. Nesse momento, no desaparecimento, na anulagdo de tudo, surge a formulacao do imperativo kantiano, na qual nao se trata dos objetos e que tem sua posi¢do “uma verdadeira universalidade”. Devemos so- mente — diz Kant — escutar a voz da consciéncia: temos somente de escutd-la e ir adiante: temos de atuar de tal maneira que a regra de sua agdo pode ser tomada como maxima de cada um. Sobre esse movimento de pensamento, Lacan, na pagina 339 da edig&o em castelhano, diz que (no segundo pardgrafo) “retenhamos no paradoxo do que seja, no momento em que esse sujeito j4 nio tem frente a ele nenhum objeto quando encontra uma lei, a qual nado tem outro fenémeno sendo algo jé significante e que se obtém de uma voz da consciéncia” etc... Esse movimento é 0 que estou a desenvolver, quando todos os objetos da experiéncia desaparecem porque nao podem dar uma lei universal A ago: daf, surge a m4xima, uma frase, uma articulagao de significantes, que vem de uma lei na consciéncia. Ha como uma antinomia: quando a dimensdo da experiéncia desaparece, surge a vez na consciéncia com sua frase. Temos que ver como cada palavra em Lacan foi pensada e isso é, precisamente, uma descri¢do. E por essa razdo que se trata de ética sem objeto. A tese de Lacan é que através da fantasia sadeana, podemos saber que hé também um objeto na ética kantiana, porém, um objeto que nao € o da experiéncia. Ea partir desse objeto escondido que podemos conseguir o desapare- cimento da experiéncia. Que h4 um objeto, € o objeto pequeno a. Ele far4 aparecer a contradigao com todos os objetos da experiéncia. Eo que se d4 também na experiéncia da perversio. Isso ¢, precisamente, 0 que disse Kant de que nao h4 um objeto absoluto. Os objetos sio modificéveis, diversos etc. Na perversdo temos a idéia de um objeto absoluto para um sujeito. Um sujeito que nao pode desejar sem sapatos, sem a presenga de uns dois ou trés sapatos. O fetichismo é a demons- Sobre Kant com Sade 181 tragdo disso. Assim, esse é apenas um ponto de vista de um pouco conhecido pelo qual podemos introduzir, podemos vincular essa mo- ralidade na perversdo. As primeiras pdginas do texto de Lacan sao a propésito da estrutura de significantes da férmula kantiana, uma andlise da férmula, H4 uma introdugao geral, depois a andlise da férmula kantiana do ponto de vista do significante e, depois, comeca uma andlise da fantasia sadeana, concluida pela apresenta¢ao do primeiro esquema. O primeiro esquema do texto é o matema da fantasia sadeana e depois hé o segundo esquema que veremos 0 que ele significa. H4 toda uma andlise ampla a propésito da psicandlise, da histéria etc... porém, 0 movimento é: andlise da f6rmula kantiana, introdugdo ao paralelo do imperativo sadeano, andlise da fantasia sadeana e esquema dessa fantasia sadeana. A andlise da férmula da enunciagao e do enunciado é construida do ponto de vista do significante. E somente através da fantasia sadeana que se introduz a questo de objeto: sfo como as duas partes da articulagdo. Isso esté nas pdginas 338 até a metade da pagina. Na pagina 340, h4 a formulagao da m4xima sadeana com seu interlocutor e enunciado diferentes. Lacan quer dizer af que todas as moralidades antes de Kant eram fundamen- tadas sobre a idéia do mestre, da pré-ordem do homem e do bem e da harmonia entre o bem moral e o bem-estar; se alguém segue a regra de seu bem, teria o bem-estar. Tem-se de conhecer seu bem e fazé-lo. Em Freud, ao contrério, h4 um pensamento de um mais além do principio do prazer, isto é, um mais além dessa ordem do homem e do seu bem. Isso faz também uma diferenga entre a psicandlise e outros tipos de terapia, fundadas na pré-ordem do homem e do seu bem. Assim, se h4 um desvio da relacao do homem com seu bem, pode-se corrigir essa vinculagdo e obter um bem-estar. E, se nao é fundamental no campo freudiano que nao haja essa vinculacdo das coisas com 0 Bem? Em Kant, precisamente, a operacdo € escrever 0 Bem assim: 6. O B & um simbolo para o Bem e a operacdo kantiana é barrar esse B maitisculo. Nao é o A barrado, é 0 B barrado. O Bem € 0 barrado como fundamento da moralidade e h4, precisamente, essa diferenga também na lingua alema. A diferenca entre wohl, que € 0 bem no sentido de bem-estar e gute, que € o Bem no sentido moral. Seguir o Bem como valor moral ndo d4 nenhuma seguranga que vamos estar bem. Assim, num certo sentido, h4 um mais além no proprio Kant. E o mais além do bem-estar. O bem-estar nao é uma nogio moral; depende somente dos que se encontram na experiéncia. Hé uma contingéncia do bem- 182 Lacan elucidado estar. Dependo do que alguém come, do que alguém encontra, depende de muitos fatores que nao tém nenhuma universalidade e necessidade. A busca da moralidade em si mesma, obedecer o princfpio de atuar como se o principio de sua agdo pudesse ser essa maxima etc., essa maxima nao permite saber nada sobre os efeitos efetivos no bem-estar que pode produzir. E somente dizer, atuar como se tua a¢ao fosse programada por todos os seres humanos. Podemos dizer mais também, porque, seguramente, quando alguém decide seguir essa regra, pode somente produzir efeitos de mal-estar em sua vida. De um certo modo, éuma regra bastante limitada que nao produz felicidade, e a felicidade nao parece um valor moral para Kant. A felicidade foi um valor essencial para os antigos. Porém é um valor, segundo Kant, que nao tem necessidade, universalidade: para cada um depende de muitos fatores. Assim, em Lacan, podemos encontrar: “nao ceder de seu desejo é uma seguranga para a infelicidade, de certo modo”. E, quando ele diz que esse é 0 princfpio essencial da ética analftica, é também dizer que a felicidade nao € uma promessa analitica. E uma promessa, por exemplo, de nossos amigos chamados ortodoxos, de Nova York, que dio a promessa da felicidade conjugal, da felicidade, do éxito na luta pela vida, do desenvolvimento da personalidade e todas essas coisas maravilhosas que podem ser vendidas 4 humanidade. Essas coisas sao vendidas 4 humanidade desde a Antigiiidade. O interessante é que os analistas podem vender outra coisa. Vender, como disse Lacan, a destituigao subjetiva, nado o desenvolvimento da personalidade. O interessante € que a destituigao subjetiva pode interessar a muitas pessoas: é uma seguranga também porque dé na vida, uma certa posi¢ao absoluta. Bem, podemos discutir um pouco. Fagam perguntas, consideragGes, seria Util a mim saber 0 que lhes interessou. Nao é facil, para um pri- meiro seminério, tomar este texto entre cultura ¢ clinica: é um esforgo. DEBATE P: Queria perguntar o seguinte: 0 texto chama-se “Kant com Sade”, por que “com”? Nao é uma analogia. Ao ir desenvolvendo 0 texto, € pelo que vocé vai falando, nao vejo uma analogia entre Kant e Sade. H4 uma outra relagao ai, distinta, entre as duas produgses, nao? Sobre Kant com Sade 183 J.-A.M.: Paralelo é formulagdo que permite ver as diferengas pela formula do imperativo. Nao, nao se trata disso. Trata-se do ponto destacado nesse par4grafo assinalado no comego. Se temos como ponto de partida o texto de Kant, nossa tese é que nessa ética sem objeto, h4 um objeto escondido. Para vé-lo, para descobri-lo, é necess4rio agregar a Kant, Sade. Nao se pode vé-lo quando se lé 0 texto de Kant, porém se alguém toma essa trilha de Sade, pode-se ver o objeto escondido em Kant. O objeto se vé com a ajuda de Sade, e Kant com Sade significa isso: Sade & 0 instrumento que permite ver o escondido em Kant. E Lacan o diz de maneira muito precisa no seu texto: por nds Sade é utilizado como instrumento em referéncia a Kant. Ele diz que o estatuto de instrumento convém muito bem a Sade porque em sua propria fantasia Sade nada mais é do que um instrumento. Com Sade tem um sentido muito preciso, que é a fungo de instrumento de Sade, para ver o escondido em Kant. Sade nos da a verdade do discurso de Kant. Isso € 0 que Lacan diz no fim da p4gina 337, a primeira pagina do texto: “A filosofia do elevador vem oito anos depois da Critica da razao Pratica. Se depois de termos visto que concorda com ela, demonstramos que a completa, diremos que dé a verdade da Critica.” A f6rmula de “Kant com Sade”: primeiro h4 um certo acordo entre os dois e, num segundo momento, Sade completa a Critica da razGo prdtica porque nos d4 o objeto escondido ¢, assim, a verdade, o verdadeiro sentido da Critica da razao pratica. P: Nesse enunciado de Lacan, 4 moda de Kant, “‘o direito de gozar 0 corpo do outro, exercé-lo-ei sem nenhum limite em meus caprichos” ; nao existe uma outra férmula, ndo sei se no Semindrio, no qual é bastante preciso, afirma que se referiria a uma parte do corpo do outro € nao & totalidade. O direito, do tirano, de Sade, figura em alguns de seus livros, 0 direito de matar o outro, de sumir com ele... J.-A.M.: E verdade. Em Sade hé a idéia de que nao podemos pretender gozar do corpo completo, mas devemos reparti-lo. Daf suas vitimas — pobres vitimas das novelas de Sade! — quando saem de suas mos, geralmente, nio tém mais muita coisa, pelo menos, jé nao tém um corpo intciro. A parte surge com isso. H4 outra pergunta de Lacan: Como gozar do corpo do outro? Tocé-lo, penetré-lo € uma atividade de apreensao. O limite é destruf-lo. H4 algo impens4vel em gozar do corpo do outro. Goza-se somente dentro de seu préprio corpo de maneira fisica, ninguém goza dentro do corpo do outro. HA uma 184 Lacan elucidado distin¢ao em psicandlise: gozar de seu préprio corpo e gozar do corpo do Outro. Nao é o mesmo gozo, a diferenga nao é fisica, é material. Porém, € perfeitamente bem constituida; é certo que o gozar do corpo do Outro, contém um elemento do fazer parte desse corpo. Na poesia Les brasons d’amour (“Os brasées do amor”) os poemas ver- sam sobre as partes do corpo feminino, um sobre a boca, um sobre os olhos, outro sobre os rodillas (joelhos), as partes do corpo humano me agradam em castelhano, mas as palavras referentes a clas, em caste- Ihano, séo muito feias. A propria poesia erética faz a separagio das partes do corpo e a perversdo do desejo masculino, ¢ a caracteristica desse tipo de partigao, causa do desejo masculino. Quanto ao desejo, hi vinculo com certas caracteristicas, como podemos ver em Sade, o desejo comegando desde uma parte, a desagregac4o do corpo do outro. Contudo, é um principio geral. E nisso que a perversdo é tao humana como a psicose, pois as caracteristicas ndo sio de desumanidade, ao contrério, a loucura, como a perversdo, s4o as duas, possibilidades humanas. Lacan diz, no semin4rio sobre a angiistia, que nao é o sofrimento do outro (la soufrance de l'autre) que Sade busca, mas sua angistia. Como fica essa relagdo, se o corpo est4 todo cortado, pois a fantasia sadeana deve fragmentar 0 corpo todo. E o que se busca é a angistia, quando Lacan articula a relagdo de Sade com o outro. Vamos ver o que significa a busca da angistia do outro. Quando se trata da fragmentagao de corpo do outro, néo podemos dizer que ele busca isso, porém, quando alguém toma o brago e depois os olhos, é uma fragmentago o resultado. Nao podemos dizer que seja esta a busca de Sade, mas sim a busca da angiistia do outro. Para obté-la, ha certas coisas que sao feitas ¢, em Sade, a angiistia se faz através das ameacas. E muito importante para os verdugos, em Sade, dizer antes a vitima o que vai passar, Ihes interessa muito demonstrar A vitima que fazem o mesmo com outra vitima, ¢ isso produz angustia. Porém, quando é arrancado um brago, a angustia para o outro brago é mais forte. Nao h4 contradigdo entre essa fragmentacio e a busca da angéstia, a producdo da angtistia. E, bem, era uma resposta para a pergunta sobre a relagdo entre gozar do corpo ou de uma parte dele. No fetichismo, é verdade, h4 somente uma parte, que nio pode deixar de ser destacada de um todo: é uma parte, como diz Lacan em um texto, que joga 0 jogo por si mesma. A parte no fetichismo € uma parte apenas, porém tem funcionamento préprio. Essa é a posicio correta da parte que é 0 objeto pequeno a, que é, em si mesma, uma Sobre Kant com Sade 185 parte, mas uma parte de qué? E melhor dizendo, a parte é uma parte, porém a parte. Esta é a posi¢ao correta. Mas devemos observar, nas novelas de Sade, tudo termina em fragmentagdo. Lacan sublinha que as vitimas tem uma resisténcia extraordindria, 0 que é necess4rio em sua fantasia, para o crescimento da angastia. Na histéria de Juliette h4 loucuras horriveis. Por trinta dias ela sofre e, no final, pobre, cega, com fome, anda sobre o gelo e cai, machucando os dois bragos, e, embora viva, jaz. Vemos na fragmentacdo haver muita resisténcia, desse jeito puro, destacando, Passo a passo, todas as partes de corpo, como se ele quisesse obter, 0 Ponto puro do sujeito, o sujeito de pura anguistia. Vemos mais adiante, isso tudo em ameagas. Antes de fazer alguma coisa, comunicd-la ao sujeito. Essa é a prépria operagdo da fantasia sadeana: obter que sua angustia caia em todo o corpo. Na histéria da pobre Justine ao final da novela mais ampla que seria a histéria de Julliette, ela é a vitima por exceléncia. Justine é a santa vitima, sempre vitima, a virtude infortunada — o subtftulo é “Os infortdnios da Virtude” . Essa novela € uma tese kantiana. Em Kant também, se alguém se d4 a regra moral, encontrard seu bem-estar, necessariamente. Quer dizer que, em Kant, h4 um inforténio necessdrio da virtude moral. Nisso Sade acerta. A pobre Justine é a vitima por exceléncia, enquanto procura, pedindo ajuda, o cura diz “sim, pobrezinha”, e € um cura s4dico, com seus colegas, curas também sddicos e bem... ela escapa e encontra um cavalheiro gentil e obsessivo: depois, € um outro sddico... Essa é a hist6ria de Justine que nao sei como, atravessa tudo isso e segue na vida. E, ao final, para extinguir essa forga de viver extraordindria, essa vitalidade extraordindria de Justine, que cada vez est4 mais bela, no final — para acabar verdadeiramente com ela, temos que ir a histéria de Juliette. H4 uma tormenta extraordindria e € 0 fogo do céu que vai tocar Justine para que seu corpo seja separado em dois pelo raio. Dizer que nao tem seu lugar no mundo e terminar como? Como sujeito barrado. P.: A partir de certo tempo de leitura, cada um vai se tornando uma espécie de pequeno interpretador do texto. Eu tinha pensado que essa formulag4o que o Lacan faz coloca uma questdo da seguinte natureza: que a dor é um elemento buscado pelo préprio sujeito, dentro de uma formulagao narcfsica, auto-erética prépria de dor. A tendéncia sddica é buscar a angustia do outro, porque a dor é algo que o préprio sujeito busca como uma referéncia auto-erética. Porque, 186 Lacan elucidado quando ele formula a idéia do Encore, de que 0 gozo € sempre gozar 0 corpo do Outro, eu acho que a dor nao tem uma possibilidade de entrar nessa formulagao que Lacan faz. J.-A.M.: Podemos falar um pouco sobre o auto-erotismo. Temos de ver se é tao auto, porque é sempre fundado sobre partes destacadas do corpo. No centro do erotismo, ha como uma separagao do préprio corpo. E a partir da dimensao do gozo, que podemos dizer: nos homens € nas mulheres, o gozo falico é a parte comum aos dois sexos. Nao é um tema to amplo como os sintomas, por exemplo. H4 uma certa discrigao sobre isso na andlise. Podemos dizer que esse gozo nao pode se obter sendo o préprio corpo alterizando, tomando como que uma distancia desse corpo. Gozar do préprio corpo considera um outro corpo, mesmo que este nao esteja fisicamente presente. O sujeito tem outros meios de subjetivar 0 gozo. Nao gosto muito de dar exemplo sobre minha pratica, mas h4 uma paciente cuja fantasia comporta isso: que ela nao pode gozar do homem senao por uma manobra especial de sua fantasia, que nao é uma manobra comum de pensar na trepada. Sua fantasia nado é comum, como ser comida por um homem fantasis- tico, ao mesmo tempo em que é comida por seu marido, seu noivo etc. A manobra de sua fantasia, a subjetivagdo de seu gozo, é mais complexa porque, para gozar com um homem, cla deve pensar que é outra mulher que trepa com ele. Ausentar-se do gozo para que 0 gozo seja efetivo: esse 6 um exemplo Para mostrar os refinamentos da subjetivagdo do gozo. E, no auto-ero- tismo, para Freud, realmente nao é tao auto porque sé no fato de gozar a propésito da fantasia j4 introduz 0 outro. Nao € 0 gozo puro do corpo mesmo senao uma derivagao através da fantasia, j4 0 outro nao €é o nosso corpo fisicamente, mas o outro ja esté presente nesse gozo mesmo. Se devemos situar uma diferenga, podemos colocar isso na tubrica do gozo falico. O gozo falico € precisamente, o gozo “do corpo mesmo”, € o vemos também nas mulheres. Os gozos das mulheres sao testemunhos discretos ou confusos. Lacan nos diz que temos que entender o que uma mulher diz exatamente sobre sua maneira de gozar ou nao: h4 um gozo, porém onde ele se situa? Em psicanilise, as psicanalistas dio uma certa orientagao a essa diferenga entre 0 gozo vaginal e 0 gozo clitoriano, porém, trata-se da diferenga entre 0 gozo falico nas mulheres e 0 gozo do Outro. Vocés sabem, Lacan tratou de dar f6rmulas aos dois gozos. Encontrei, recen- temente, uma paciente que goza somente em sonhos e nunca com um homem, mas que quer muito fazer amor. Que podemos fazer com essa Sobre Kant com Sade 187 declaragao? E verdadeiramente para cla, uma mancira de expressar essa impossibilidade de situar 0 gozo do Outro. E um gozo que nao pode subjetivar com o outro goz0. Muito mais diffcil de dizer 0 gozo meu; é um gozo que se produz, porém hé uma modalizagio dessa experiéncia do gozo que é muito mais complexa nas mulheres do que nos homens. Tenho que dizer que os homens, geralmente, sabem onde gozar e as mulheres também sabem onde os homens gozam. Porém, nem os homens, nem as mulheres, sabem onde as mulheres gozam. Isso, creio, nao sdo generalidades vazias. So coisas da mais cotidiana pratica. Tl No 4pice desse escrito, o “centro”— se podemos definir um — é a estrutura da fantasia sadeana. O paradigma lacaniano da fantasia é uma fantasia néo descoberta na experiéncia analftica mas através da lite- ratura. Por razdes clinicas escothidas por cle é uma fantasia na per- versao. Assim, esse “centro” do texto é o primeiro esquema proposto por Lacan: Vv s S - sujeito bruto do prazer. = sujeito do inconsciente -véu dey AP $ d —a - categoria da causalidade. As maximas, isto é, duas regras da agdo, duas mdximas éticas que tém muito em comum. No sentido de Lacan, a maxima sadeana permite descobrir coisas escondidas na maxima de Kant, no ponto mesmo da enunciacao. H4, primeiro, a andlise da m4xima de Kant e em segundo a da m4xima sadeana e, em terceiro ponto, a introdugao da fantasia sadeana. Assim € composta a entrada nesse texto. Depois vamos analisar 0 segundo esquema e logo apés vem o fim do texto, que é um texto mais amplo. 188 Lacan elucidado O importante é recordarmos a articula¢do das duas m4ximas, o que surge da diferenga de enunciagdo. Na m4xima kantiana, Kant apresenta asi mesmo como a m4xima enunciada pela voz da consciéncia, e essa apresenta¢do permite esquecer que se trata de uma enunciagao; € como metdfora a voz da consciéncia, para dizer que se impde ao sujeito. E uma necessidade Idgica, aos olhos de Kant, quando alguém busca universalidade ¢ necessidade na moralidade, h4 uma necessidade légica que conduz a essa férmula de onde se formula a agdo sem referéncia anenhum objeto. Isso porque, diz Lacan de uma maneira muito exata, a enunciagdo da mdxima é somente sua substancia, trata-se somente de atuar de maneira tal que qualquer homem deve e poderia fazer 0 mesmo. Nao se trata de uma maxima que tem um conselho ou obrigagao. N§o se trata de nao roubar, nao € uma moralidade como sdo os Dez Mandamentos. Nao é uma moralidade especifica assim, que diz 0 que alguém deve fazer frente a objetos que nao sio quaisquer. Sabemos que nos Dez Mandamentos trata-se da mie, do préximo ¢ Lacan tem uma férmula para os Dez Mandamentos: diz que sdo as leis da palavra. Para desenvolvermos este ponto teremos, nesta reuniao, de circunscre- ver um pouco as coisas, fechar um pouco sobre o aporte clinico de Lacan. Assim, a m4xima kantiana nado concerne a nenhum objeto preciso, mas a uma lei que carece de reciprocidade ¢ a uma lei fora da dimensdo infinito. Parece que essa maxima que af se impGe est4 verdadeiramente longe desta dimensio, parece que est4 dita de nenhum lugar. Isso é 0 que parece quando h4 uma demonstrag4o matematica, uma razao légica: como se estes ditos l6gicos se dissessem de nenhum lugar, como se dissessem em si mesmos. Ora, Lacan, precisamente, consagra a terceira parte a Sade mostrando que se trata de enunciag3o que se esconde, por exemplo, nessa voz da consciéncia: somente uma met4fora, portanto. Ha uma passagem no préprio texto de Lacan para dizer que nés conhecemos tais gozos, que so os tais gozos na psicose, por exemplo. Na psicose, esses gozos que tomam suas independéncias: isso d4 como uma realizacdo clinica dessa enunciagdo externa. No texto hé uma incidéncia que, para um analista entender a voz da consciéncia podemos sublinhar e indicar que se trata de um certo modo de enunciagao. Precisamente, a m4xima sadeana formulada por Lacan faz surgir esse problema da enunciacdo porque diz: “eu tenho direito, pode dizer-me quem quer que seja”. Assim, como diz Lacan, a maxima sadeana é Sobre Kant com Sade 189 mais honesta que a mdxima kantiana porque faz surgir o enunciador que jaz escondido na m4xima kantiana. E que, na maxima sadeana, o outro € encamado, nao é a voz de algum lugar. E a voz dessa fungio chamada “quem quer que seja”. E, desse modo, justificam-se as palavras ‘de Lacan, pagina 343 da edic3o em castelhano, segundo parégrafo: “E, pois, sem duvida o Outro enquanto liberdade (0 discurso sadeano, € 0 discurso ‘eu tenho o direito de gozar do seu corpo...'), € a liberdade do Outro que o discurso do direito ao gozo pde como sujeito de sua enunciag4o.” Quer dizer que a mAxima sadeana ndo diz “eu tenho direito de gozar do seu corpo”, mas “eu tenho direito — pode dizer-me quem quer que seja — de gozar de seu corpo”. Daf, advém que a m4xima é uma m4xima que se impée a qualquer sujeito a partir do Outro, que nao é a voz de nenhum lugar, mas a voz do Outro presentificada, manifestada. E, bem, isso é também essencial — no que manifesta a experiéncia analftica — essa enunciagao dividida nao se refere, aqui, a um sujeito unitdrio, mas se trata, de uma enunciagdo dividida que se manifesta na complexidade de “eu tenho direito — pode me dizer quem quer que seja”, que faz com que esse mundo da enunciagdo se manifeste. Essa é a diferenga na primeira comparacio e € desse modo que — do ponto de vista da enunciagao, — a m4xima sadeana é mais honesta do que a m4xima kantiana. E 0 que Lacan nos diz. A méxima kantiana visa ser uma lei da compatibilidade entre os homens. Sim, é precisamente nao atuar sendo em referéncia a possibi- lidade do outro fazer o mesmo. Assim é, por exceléncia, uma lei da compatibilidade humana, ao contr4rio da m4xima sadeana “eu tenho direito — pode dizer-me quem quer que seja — de gozar de seu corpo, sem limite ao meu capricho”, mas esta se apresenta, de certo modo, da mesma maneira, isto é, como uma lei universal. Porém, de que maneira poderia se fazer desta iltima maxima a lei de uma sociedade? Sade descreve que sim: seria perfeitamente compativel com a sociedade atuar assim. Devemos dizer que isso é um paradoxo. Lacan utiliza, também, o paradoxo sadeano. Nao podemos dizer, por outro lado, que a méxima kantiana é um paradoxo. Assim, essa é uma diferenga entre as duas. O terceiro nivel de comparacio entre as duas m4ximas. O terceiro nivel é, o que € o mesmo nas duas: em Kant, h4 uma recusa — para fundar a ética — de toda evidéncia que Kant chama de patoldgica. Patolégica nao significa, aqui, a enfermidade; patolégico é tudo o que pertence a dimensio da afetividade, da sensibilidade, do prazer ou do 190 Lacan elucidado desprazer. O fundamental da ética kantiana é dizer que nenhum ele- mento — tomado da dimensfo da sensibilidade ou da afetividade — pode dar na ética como tal; que somente, por exemplo, dirigir-se na vida pelo princfpio do prazer, fazer o que dA prazer nao pode dar numa regra geral, universal, constante 4 conduta humana. Quer dizer que, ao contrério das moralidades antigas, o principio do prazer nao pode funcionar como um principio moral, um princfpio da conduta, Podemos dizer que a ética kantiana é fundada sobre uma recusa do patolégico no homem, no sentido de que pathos, em grego, é todo sentimento, afetividade, diferente de logos, da mesma maneira, podemos fazer uma oposigdo entre o patema e o matema. O matema, na articulagao significante pura e o patema, ao contrério, s&o os elementos ascéticos, imagindrios etc. Bom, a moralidade, a ética kantiana, é estudada sob a recusa do patolégico ou por que nao aceilar amAaxima sadeana se a dimensdo pura da ética nao compreende nenhum elemento do patolégico? Quer dizer que a maxima sadeana é fundada sobre a recusa do nivel puro de sua formulagao, sobre a recusa do patol6gico. Podemos entender essa similaridade entre as duas m4ximas. Isso € 0 que Lacan diz também... ha varias passagens sobre isso: por exemplo, hd duas, pagina 338, segundo pardgrafo, a partir do fim, na ultima frase: Assim, seu peso (0 peso da maxima kantiana) nao aparece sendo para excluir, pulsdo ou sentimento, tudo aquilo que pode padecer 0 sujeito em seu interesse por um objeto, o que Kant designa por patolégico.” Essa é uma frase também muito clara agora, esclare- cida para vocés. Também, p4gina 342, segundo pardgrafo a partir do fim: “seu dnico andncio (da férmula kantiana; seu dnico antncio quer dizer seu kerigma, palavra grega utilizada pela anuncia¢ao do Evan- gelho etc.) tem a virtude de instaurar, ao mesmo tempo, tanto essa recusa radical do patolégico (isto € fundamental), de todo olhar mani- festado a um Bem (este € um Bem barrado) a uma paixdo, inclusive uma compaixdo (porque nao se trata de uma simpatia, de uma religiao etc. na mAxima: trata-se somente de uma coisa muito abstrata: atuar de uma maneira tal etc), ou seja, a recusa pelo que Kant libera 0 campo da lei moral, como a forma dessa lei, que é também sua Unica substancia.” Isso — introduzido no meu préprio comentério — parece claro porque nao hd um objeto assim: é um puro matema, de certo modo, é uma pura formulagao légica. Vamos ver o que podemos dizer da m4xima sadeana, nossas objegdes. a maxima sadeana sdo tomadas de qué? Nossas objecées sao objegdes patolégicas porque nao seria humano tratar os seres humanos assim. Sobre Kant com Sade 191 Porém, de certo modo, se estamos no campo da lei moral, no temos nenhum fundamento para objetar do ponto de vista patolégico. Isso Lacan nos diz, também, no fim da pagina 341, antes da passagem vista: “Todo juizo sobre a ordem infame que (sao as duas tltimas frases) entronizaria nessa m4xima: (a maxima sadeana, isto é, todas as objecdes sobre a infamia da m4xima sadeana) é, pois, indiferente na matéria, que é reconhecer-Ihe ou negar-lhe o cardter de uma regra aceitavel como universal na moral, a moral reconhecida desde Kant como uma pratica incondicional da razdo” ¢ depois diz — no pardgrafo lido antes — que, desse modo, h4 uma similitude entre essas mdximas. A similitude é a recusa radical do patolégico e formalidade da lei sem nenhuma referéncia a qualquer objeto peculiar. Assim, com esses trés pontos destacados, vocés tém as referéncias essenciais para localizar essa parte do texto. Vamos ver de que modo falaremos do supereu nesse texto, porque se trata disso. De que modo se localiza o raciocinio dessa instancia externa que formulam essas mdximas: a instancia que formula a Ici moral chama-se supereu no classico da psicanilise. Geralmente os analistas depois de Freud tém a idéia que o supereu é uma censura confundindo isso com a lei social. Porém, o supereu freudiano é uma instancia de humor que complica a vida humana, é que nao est4 no nivel da harmonia do ser humano, concebivel depois como a instaéncia que permite regularizar o isso. Na verdade, ao contrario, no obsessivo por exemplo, é a matriz de seu comportamento precisamente a-social, dificil de reduzir 4 ordem social. O supereu nao €0 mestre da escola, nao € a polfcia. O supereu — através dessa andlise em “Kant com Sade” — aparece, exatamente, como contrario. Efeti- vamente, como um ponto exterior, um ponto que manifesta a divisdo do sujeito, que impée uma lei — devemos dizer — um lei absurda, uma lei que abarca a alma e 0 corpo humano. Temos que ver isso em Freud ¢ nao na elaboragdo delirante dos chamados ortodoxos que apresentam um supereu socializando os seres humanos. Nao se trata disso na experiéncia analitica. Trata-se dos deveres absurdos que se impéem aos seres humanos, em sintomas ¢ em suas fantasias. E, assim, buscar a moralidade kantiana também que, sob este ponto de vista, nao é uma moralidade do sentido comum. A ética kantiana nao tem nada que ver, nesse sentido, com uma moralidade comum de mais ou menos. Nao se trata, nesse campo da lei, de mais ou menos: trata-se de um absoluto. Essa parte do texto vamos Ié-lo passo a passo, ndo todo 0 texto, mas certas paginas. Lemo-lo passo a passo em Paris com pessoas quase 192 Lacan elucidado todas de Ifngua francesa.e com pessoas que tém conhecimento preciso de psicandlise, de ortodoxia, da obra de Lacan, de Freud etc.: Alain Grosrichard, Colette Soler, Serge Cottet, Eric Laurent etc., trabalhamos as paginas e depois os parégrafos, com dificuldades sobre as marcagées do texto, com partes de algumas frases que parecem dificeis de entender € esse texto parecia, para nés, como um problema para no entender. Eu digo isso para que fique entendido que nao se pode esclarecer em todo momento todos os problemas do texto. Vocés dizem aqui agora (creio) certas referéncias que s4o o resultado de um trabalho agudo sobre esse texto, 0 que permite uma adi¢o do que se trata. Agora, depois desse trabalho, podemos dizer que Lacan estudou do ponto de vista do significante, do ponto de vista de articulagao das férmulas quase formalizadas de Kant ¢ de Sade. Quase formalizadas porque suas formas sao as Gnicas substancias das quais se trata. Vamos come¢ar como uma certa ruptura, a parte a propésito da fantasia, porém isso é a pré-condigao para vermos o texto. Trata-se disso nas paginas 344 da edi¢io em castelhano e 773 da edigéo em francés: abaixo de: “mas pfuitt! schwdrmereien, negros enxames, nés vos afastamos para retornar a fungao da presenga na fantasia sadeana”. Essa € uma frase muito importante no texto. Na pagina 343, Lacan diz “suspehdamos o dizer sua mola para recordar que a dor, que projeta aqui sua promessa de ignominia” etc. E com este pfuitt que comega a constituigdo do esquema da fantasia sadeana, mas que este — duas paginas antes — se move da parte propriamente do significante a parte que vai para o fundamento do objeto. Essa parte é uma andlise da relagio do significante das duas m4ximas, mas 0 que se trata aqui é, mais essencialmente, do objeto e das relagdes entre 0 objeto € 0 sujeito. HA um deslocamento no texto. Godino: Eu tenho uma pergunta. Pelo que diz o texto, existem duas frases no pardgrafo que comega na edi¢ao francesa: A pagina 771 diz: “imaginemos uma continuagio. vés, a cortaste” diz designando sua perna. Rebaixar 0 gozo a miséria de tal efeito no qual tropega sua busca nao é converté-lo em asco? A frase problema é a seguinte: “no qual se mostra que o gozo é aquilo com que se modifica a experiéncia sadeana”. Como funciona esse gozo, como causa da modificagao da experiéncia sadeana? F J.-A.M.: Bom, af est, verdadeiramente, a transigdo entre essas duas partes do texto que se torna mais definida com a parte “... pfuitt! schwar- mereien...” . Lacan inicia com a pergunta sobre 0 gozo, porque este é um elemento que nao aparece na m4xima kantiana. O gozo aparece somente Sobre Kant com Sade 193 na maxima sadeana. Entdo, esse trata de uma maneira muito tipica, se trata de gozar do direito de gozar — direito sadeano — e se trata dos meios de obter o gozo, um valor fundamental da experiéncia sadeana. Obter o gozo, nao se trata de obter a simpatia dos outros seres humanos, ou de assegurar 0 progresso da humanidade, obter a progressio da humanidade até um futuro de felicidade, de igualdade ou de liberdade, ou de riqueza... Bem, todos as fantasias que conhecemos sao, geralmente, representadas nas nossas sociedades — essas fantasias so pelos partidos politicos ou, as vezes, pelas Forgas Armadas: sao algumas fantasias. Certamente, h4 fantasias mais simpdticas do que outras, porém temos que ver também o que hd em cada uma. A fantasia sadeana ndo permite construir um partido polftico ao seu redor. E verdade que pode ser a fantasia escondida em algumas outras fantasias que se apresentam com um outro aspecto. A fantasia sadeana, desse ponto de vista, é mais honesta. Da mesma maneira que Lacan diz que a m4xima sadeana é mais honesta do que a kantiana, a fantasia sadeana também pode ser vista como mais honesta. Por que se trata do gozo. Nio se trata tanto do desejo. De que modo parece ser obtido esse gozo por Sade em sua fantasia é que é o paradigma da fantasia fa perversdo. Estudamos essa fantasia — supercu — em sua forma kantiana ou sadeana para entrar na estrutura da fantasia. De que forma é obtido 0 gozo que é figurado, apresentado no obra mesmo do Sade, quando seus personagens dizem: “estou gozando” e €, verdadeiramente, uma tempestade 0 momento do gozo nos persona- gens de Sade. E um momento, o cume do gozo que produz — as vezes — a morte do parceiro, tao forte que ele é. Assim, como esses personagens que representam Sade em suas novelas obtém esse gozo, pode-se obter o gozo através da produgio da dor em outras pessoas, isso é conhecido na clfnica antes de Freud. E também a imagem popular de s4dico, o que provoca dor, o que faz sofrer 0 outro com meio para seu proprio gozo. Temos de ver que essa dor é, também, um momento do gozar do corpo do outro. Assim, podemos entender que essa dor tem valor na experiéncia sadeana: trata-se sempre de obter a dor do outro. Agora, se dizemos 0 outro, vamos saber o que € 0 outro. O valor mesmo da dor na fantasia sadeana, Lacan compara-a com o estoicismo, uma das grandes escolas morais frente ao epicurismo: “imagine se a vitima — a vitima dos seviciadores sadeanos — fosse um estéico”. 0 est6ico recusa a subjetivacdo da dor, sua posi¢ao ética é de retirar-se do que se passa em frente do préprio corpo, um ponto de vista do 194, Lacan elucidado espectador frente ao préprio corpo. Isso é também a demonstrac¢do da independéncia do sujeito com respeito ao préprio corpo. No estoicismo pode-se isolar isso e, assim, a dor cai como uma coisa sem nenhuma subjetivagdo do sujeito isolado. O exemplo € este: Epiteto, com a perma cortada pelo sadeano, por Sade, di veja, cortou-a”, isto é, “é assim que eu sou”. E somente uma ficgdo, uma histéria, creio, préxima de ficar famosa. Sempre € assim, portanto. Se as vitimas sao estéicas e dizer Bem, de fato est4 queimando”, ndo se produz o gozo sadeano. O gozo sadeano é dependente da subjetivagao que se produz do outro lado, do lado da vitima. A experiéncia, a modalidade prépria da experiéncia sadeana, da experiéncia perversa, clinicamente, depende dessa relag4o. Se temos como referéncia a forma lacaniana da fantasia, © sujeito barrado em relagdo com 0 objeto chamado objeto pequeno a: $ © a. Na fantasia isso pode ser o centro da problemitica. Na fantasia sadeana, onde esta 0 sujeito? Ou melhor: na fantasia sadeana, quem € sujeito? Onde se produz a divisio do sujeito? a subjetivagado? a experiéncia da falta? Devemos dizer que 0 sujeito na fantasia é a vitima, no é 0 verdugo. O paradoxo da fantasia na perversio em Sade, com o paradigma de Lacan, é que sujeito nao é aquele que tem a fantasia. A manobra prépria dessas fantasias é construir as coisas de maneira tal que quando é sujeito, é sujeito como barrado — que seja 0 parceiro, e isso é, precisamente, o supereu. Produzir a angustia no parceiro, é produzir nele a manifestagdo de sua falta da barra, é a vacilagdo completa que se mantém no maior tempo possivel. Esse é um ponto essencial da manobra perversa e tem a mesma estrutura que “tenho o direito de gozar do seu corpo, pode dizer-me quem quer que seja”. Quer dizer que é produzir do exterior uma divisao do sujeito ou aemergéncia do sujeito no parceiro, a emergéncia da fungao do sujeito como fungdo barrada. Ao contrario, do lado dos verdugos, nao h4 nada disso: nao hé nada de angustia, nado h4 nada de vacilagado. Os verdugos sido inalterados, sempre perseguindo o gozo de uma maneira certa, dura, como uma encamacao de forga e de vontade frente As vitimas. Os verdugos, na fantasia sadeana, nao sao sujeitos, nao tém esse essencial, nao tém a falta. Quer dizer também — sabemos isso dos perversos — recusar a castragdo porém, temos que ver isso encarnado na fantasia: estamos muito perto da clinica, Nao é somente recusar a castragao: essa férmula quer dizer que a subjetivagdo, o funcionamento da subjetividade, est4 do lado do parceiro e que, o verdugo — como representa¢io de Sade, Sobre Kant com Sade 195 como encarna¢4o do perverso — nao tem nada que ver com a castragdo, com 0 sujeito, com a barra etc. Na férmula da fantasia o peculiar é que o perverso tem o lugar do objeto e nao o lugar do sujeito. Esta é uma extraordindria andlise de Lacan, porque nao é a mais comum sobre a perversdo. Podemos tomar como exemplo, uma anilise interessante e diferente desta, feita, porém, no exatamente por um clfnico: a andlise de Jean-Paul Sartre em O ser e o nada; suas famosas pAginas sobre 0 sadismo € 0 masoquismo. H4 uma intuigéo muito comum de que o s4dico trata 0 outro como um objeto. A demonstragdo lacaniana é exatamente ao contr4rio, se damos as palavras um sentido clinicamente exato: que em Sade, trata-se, na sua fantasia, do parceiro como um . O ponto do sujeito como tal representa como um Real no sentido lacaniano, como um pedago, uma ponta de real. Isto é: inalte- r4vel na lei, nas regras que impée ao sujeito e obtém que, precisamente © sujeito, surja, manifeste-se mais além de todo o patolégico. Fazer dor ao sujeito é a sua maneira de obter o ponto puro do sujeito, mais além de todo o patolégico. Persegue essa apari¢ao pura do sujeito através da dor, destacando 0 sujeito de todo o patolégico como para manter, obter essa aparigéo pura de sua vacilagdo. Assim, este é verdadeiramente o essencial da andlise de Lacan, o ponto determinante. Reconstrufmos assim toda a gravita¢4o do texto, sendo todo o resto preparagées ou conseqiléncias disso. Verdugo a® V_ Vontade do gozo a S resto O campo da fantasia sadeana € 0 objeto como encarnagao do verdadeiro e aqui o personagem da vitima. Os outros termos nio esto modificados. Como se manifesta a vontade do verdugo em Sade? Manifesta-se de uma maneira privilegiada como vontade de gozo. Assim que se manifesta esse objeto: vontade de gozo, apesar de todos os inconvenientes que isso pode significar para ele, para a sociedade, para a vitima. A desforra é 0 resultado da operagdo sadeana, isto é, se h4 um resultado porque, as vezes, quando as vitimas sdo obrigadas a 196 Lacan elucidado saltar no Vestvio, nao hd ali nada mais. Assim, aqui 0 verdugo, como pequeno a, na posi¢do de objeto, manifesta-se como vontade de gozo €, assim, surge © ponto puro do sujeito barrado em sua diferenga com © resultado que € 0 sujeito patolégico. Creio que cada um de vocés tem, agora, a idéia da estrutura dessa fantasia que, para Lacan, é verdadeiramente a estrutura da fantasia perversa. Nao hd diferenca entre 0 sddico e o masoquista. No masoquismo, também, nao h4 uma condigao entre os dois: o masoquista ndo é uma vitima fantasistica do sadismo, nao hé uma reversdo no mecanismo masoquista. Isso é muito mais preciso em Lacan do que em Freud: o masoquista também recusa acastragao, e € ele que tem todos os fios da situagdo. Isso vemos muito bem numa obra que temos que ler, sobre as memérias da senhora Sacher-Masoch, Wanda Sacher-Masoch. O nome “sadismo” € tomado do Marqués de Sade. O nome “ma- soquismo” é tomado de um homem do século XIX, do comego do século, que se chamava Sacher-Masoch. E interessante que, na clinica, precisamente, essa fungdo do indivi- duo se chama sadismo devido a Sade, masoquismo também € assim chamado devido a um escritor. Quer dizer que, na clinica da perversdo, h4 uma evidéncia, h4 o direito dos indivfduos dizerem porque aparecem como paradigmaticos, como exemplos de tal exceléncia que, com isso, podemos ordenar 0 campo clfnico. Sacher-Masoch é um escritor de livros nos quais descreve que, para ele gozar deve-se colocar como escravo de uma mulher que deve ter uma posi¢ao de autoridade frente aele: h4 um livro famoso que se chama La Vennus de la Pielle. Parece que é completamente inverso a posi¢fio sédica, porém isso nao é exato. Na realidade, o verdadeiro mestre é ele. Quer dizer que est4 numa cena fantasistica que ele produz para ser tomado também como objeto. Na meméria da senhora Sacher-Masoch, vemos que ela nao tinha nenhum gosto em vestir-se de peles e bater em seu marido. Nao tinha nenhum gosto por isso, mas foram as demandas insistentes do seu marido e as provas de seu amor de esposa que a fizeram tomar essa posigdo, mas € também uma posi¢do muito angustiante para cla. Na fantasia masoquista, ele aparece como uma vitima e a mulher como o verdugo. Porém, a substancia da relag4o é o contrério, ele se faz mestre do outro, ao se manifestar como um objeto de rejei¢ao, como um objeto experimental, como um objeto de pouco valor. Com outras significa- Ges, outras figuragdes imagindrias, h4 variedades desse esquema. Esse matema vale também para o masoquismo. Estamos j4 do outro lado — nao é a metade de p4ginas, mas é a metade dos conceitos. Agora, Sobre Kant com Sade 197 gostaria de ter um pouco a voz, nao de suas consciéncias, mas de suas questées. P: Eu tenho uma pergunta. Quando Lacan fala das formulas de sexuagao, ele coloca a mulher préxima a estrutura psicética, dizendo-a nao-toda. Com a relag&éo que vocé tem feito sobre o problema da Perversao com 0 objeto, minha questo é a respeito da relagao da mulher com a perversdo, porque ela se coloca na condi¢do de ser objeto de um desejo do Outro: ou melhor, no momento em que o homem ou a mulher assumem a posi¢do feminina, se hd essa relagdo da mulher com a perversdo, porque Freud falava de um masoquismo feminino também. J.-A.M.: Sim, porém Freud falava em seu texto sobre o problema econémico do masoquismo. O problema econémico nao tem nada que ver com a crise econémica, nem com a dificuldade de pagar os parceiros... A questdo de bater, isso é sempre um problema masoquista — tenho que dizer — entre pagar e bater. Nao se trata desse problema de pegar e pagar com o problema econémico do masoquismo, a nao ser do ponto de vista econdémico na andlise. Porém, a formula que Freud chama de masoquismo moral nao é a férmula da estrutura clfnica da perversdo masoquista. O que Freud chama de masoquismo moral é uma maneira de falar do gosto pelo sofrer, do sentimento de culpa, porém é diferente da perverséo masoquista. O masoquista moral, podemos encontrar, reencontrar, precisamente, nas neuroses etc. E muito diferente — isso é importante — da perversdo sadeana ou da perversio masoquista. Quando fala do masoquismo feminino... bem, isso é suposto, é uma suposta facilidade, propensdo das mulheres de se colocarem em situa- gGes nas quais devem sofrer. Essa é a idéia de Freud: que hd uma propensdo nas mulheres para essa posi¢ao. Isso nao parece verdadeiro para Lacan. Ele fala mais do suposto masoquismo feminino, do cha- mado masoquismo feminino. De toda maneira, nao se trata de uma categoria, de uma estrutura clfnica. Temos que diferenciar tudo isso do que se trata aqui, isto ¢, da perversio s4dica, da perversdo maso- quista, que é uma estrutura clinica completamente diferente da estrutura neurédtica, fundada sobre uma recusa da castragdo que se manifesta na fantasia sadeana ou nas fantasias masoquistas. HA ou nao masoquismo feminino? O pensamento de Lacan dird que nao, que é uma ilusdo masculina; a propensio das mulheres quando aceitam o papel proposto na fantasia masculina nado é masoquismo, porque h4 uma certa relagdo entre a perversdo ¢ a estrutura do desejo 198 Lacan elucidado masculino. O suposto masoquismo feminino é mais a aceitagao (even- tual) da docilidade, (eventual) da mulher de aceitar 0 papel preparado por ela na fantasia do homem. Porém, nao é porque uma mulher chora, nao é por essa razio que é uma masoquista; isto pode ser um meio de mandar. Para Lacan, o sexo débil é desejo masculino. Assim, ha uma cena feminina, uma figuragdo feminina, porém nao creio que devemos crer demais nisso, nao muito! O dificil para vocés, deve ser o mesmo na Argentina, na América Latina — as vezes, para entender Lacan é que, hd, as vezes, uma falta de clfnica, uma falta das discussdes de registro de estrutura clinico. Porque na Franga foi um lugar de um desenvolvimento muito importante da clinica psiquidtrica. Ha dois paises no mundo que estavam na frente da elaboragao propriamente clinica, no século X1x: Franga e Alemanha, com seus estilos préprios. Mais conceituais na Alemanha e mais descritivos na Franga. H4 também a Escola Italiana, porém menos importante. E 0 discurso de Lacan, como 0 texto de Freud, foi na mesma época da sistematiza¢o clinica de Kraepelin. Lacan estd ao redor dessa tradi¢ao clinica francesa. Como disse, seu Gnico mestre em psiquiatria foi Clérambault, grande psiquia- tra francés e a tese de Lacan sobre a psicose parandica foi um dos ltimos grandes trabalhos da clinica psiquidtrica francesa, porque depois da Segunda Grande Guerra, em todos os paises, ha uma queda completa dos trabalhos clinicos. A clinica psiquidtrica terminou, ¢ um fato que os psiquiatras nao sabem mais clinica; sabem, agora, os efeitos das medicagées e temos agora apenas uma clinica dos medicamentos. Uma clinica muito limi- tada que s6 tem um raciocinio: “quais so os medicamentos a dar?”. Nao hd mais a clinica refinada dos sintomas que tinhamos antes, porque para a eticidade clinica, isso nado importa mais. Agora, os psiquiatras sao, se podemos dizer, dos laboratérios. Falamos disso ha dois dias. Sobre a dificuldade de termos os Encontros Internacionais porque pagamos tudo. Sao os analistas, os ouvintes que pagam tudo nesses encontros, muito diferente dos Encon- tros de Psiquiatria, onde tudo é pago pelos laboratérios. Nao sei, poderiamos pedir ajuda aos fabricantes de diva. Nao é justo! Depois de nossa discuss4o, comprei a selegdo semanal internacional “Le Monde”. Havia um pequeno artigo que era a confirmagao de nossa discussio aqui. E muito interessante, sobre um Congresso Internacional de Psiquiatria, em Viena; recente: fins de julho. Essa parte se chama “O papel da inddstria farmacolégica” : “O Congresso de Viena, por seus gastos € sua organizagdo, nao poderia ter lugar sem 0 poderoso Sobre Kant com Sade 199 concurso da inddstria farmacéutica, organizadora durante a reuniao de numerosos simpésios e principal financiadora dos gastos considerdveis provocados por uma manifesta¢ao dessa dimensao” etc... “a inddstria farmacéutica est4 muito interessada nas conseqiiéncias industriais da psicofarmacologia”. Algumas cifras: venda de tranqililizantes, um bilhdo e meio de délares; seiscentos bilhGes com antidepressivos; 500 bilhdes de neurolépticos; 250 de psicoestimulantes” etc. Isso também € um fato fundamental para nés. Nesse Congresso de Viena, a tese que foi proposta por um psiquiatra foi que o papel histérico da psicandlise j4 estava terminando. Em Viena! Foi especialmente a Viena para dizer isso! Agora, os psiquiatras nao sao mais do que os distribuidores de medicamentos e vemos a queda da clinica psiquiatrica. Essa discussao foi a respeito da dificuldade de fazermos Encontros Internacionais, porque hd muitos gastos com tradu¢ao, com 0 local etc. ¢ nao ha outro meio de pagé-los senio com a contribuigao da audiéncia. E completa- mente diferente quando h4 uma subvengdo de um poder, poder do Estado ou industrial. Sem qualquer ajuda econémica, nao se pode fazer isso. Assim, na questdo clinica, h4 uma dificuldade. Para Lacan, para nés na Franga, hd estruturas clinicas muito diferenciadas ¢ muito distintas. A psicose é uma estrutura, a neurose é uma outra € a perversdo é uma outra estrutura. Categorias transclinicas, podemos dizer, como 0 masoquismo moral € outros ctc., que para nés estéo entre aspas. H4 um problema de formagao bdsica, creio na América Latina porque nao hA essa base que h4, por exemplo, na Alemanha e na Franga. E necessério estudar a tradigdo clinica cl4ssica, conhecer os elementos de Kraepelin, os mais dificeis de encontrar sio os de Clérambault, porque seus livros na Franca esto esgotados e ¢ muito dificil um projeto de publicar as obras de Clérambault: hé dificuldades de direito, tem-se que buscar a familia etc. Porém, publicamos regularmente em Paris, na revista Analytica, os grandes textos cléssicos. Em So Paulo, tenho que falar sobre a psicose e, eventualmente, vou falar um pouco sobre a evidéncia entre parandia ¢ esquizofrenia no campo analitico. Porém, todas essas ques- tdes, no campo clinico, para uma Seco Clinica, sdo materiais essenciais para fazermos as coisas. Vemos, com a questdo da perversao, que nao devemos confundir perversdo como estrutura destacada com as fanta- sias perversas ou com uma posi¢do de aceitar ou buscar o sofrimento para o mundo, por exemplo, psiquico.

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