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REPUBLICA E DEMOCRACIA CICERO ARAUJO Parto da suposig&io de que a cidadania democrdtica encerra trés ideais normativos: (1) Civismo, que vou tomar como um ideal de exceléncia no exer- cficio da cidadania. (2) Plebeismo, um ideal de extensao da cidadania. (3) Pluralismo, que € um ideal de tolerncia para com os dife- rentes estilos de vida c crengas religiosas ¢ filoséficas dos cidadios. Esses ideais so complementares, contudo estio em perma- nente tens%io um com o outro. So complementares no sentido de que a justificagao moral do Estado democratico funda-se na coexisténcia desses trés ideais: a total auséncia de um deles implica solapar as bases normati- vas da democracia. A tensio significa que as cxigéncias implicitas em cada um deles, Jevadas as tiltimas conseqiiéncias, os colocam em irremediavel conflito com os demais. Estados democraticos resultam de determinados arranjos ou composicées entre os principios que os justifi- cam, e uma das causas da variedade histérica das democra provém da maior ou menor énfase de um dos componentes em relag4o aos outros dois: hd democracias que sio mais “civicas” e menos “pluralistas”, outras que sio mais “plebefstas” ¢ menos “cfvicas” e assim por diante. A literatura recente da teoria democritica costuma destacar ¢ analisar os conflitos entre civismo (que aparece associado A tradigdo republicana clissica, antiga e moderna) ¢ pluralismo (que aparece associ * Registro aqui meu agradecimento d Fapesp, pelo apoio & pesquisa mais ampla da qual este artigo ~ que & um trabalho em progresso ~ faz parte 6 LUA NOVA N® St — 2000 do A tradigo fiberal). Muito pouca atengiio se dé a distingaio, que quero realgar aqui, entre civismo e plebeismo e, em conseqiiéncia, a forte tensio que a meu ver est relacionada a essa disting’io, Embora plebefsmo e plu- ralismo sejam dois subprodutos de um mesmo fendmeno normativo, a inclusao, o presente artigo vai deixar de lado a andlise mais detalhada do segundo (que espero poder desenvolver numa outra ocasiiio), para melhor explorar os elementos conceituais relativos ao civismo ¢ ao plebeismo, ¢ explicar porque sua cocxisténcia tende a ser conflituos: Em termos conceituais, 0 ideal de civismo procura responder a0 problema dos tipos de pessoas que estariam aptas a fazer parte da comu- nidade dos cidadios, a “comunidad politica”. Trata-se de um ideal de exceléncia no exercicio da cidadania, Por isso mesmo, reflete uma preocu- pagiio com o “carter” ou “virtude”, isto 6, com as qualidades morais que participante deve possuir para ingressar naquela comunidade. Essa questao, por sua vez, nfio é independente de como se pensa a agéncia coletiva da qual 0 cidadiio faz parte. Afinal, € porque a comunidade politica deve ter tais ¢ tnis caracteristicas que se exige certas qualidades de seus membros. J 0 ideal de plebefsmo tenta responder ao problema do universo de pessoas que deveriam participar da comunidade politica, em vista de as decisdes desta afetarem a todos os que estiio sob sua autoridade. Sua énfase esta colocada no direito de participar e nfo na exceléncia da participagao. Trata-se de um ideal de franquia da cidadania. Seu principio fundador & expresso, com boa aproximagiio, pelo “critério de inelustio” formulado por R. Dahl: a comunidade politica “deve incluir todos 0s adultos sujeitos 2 decisées coletivas obrigatérias da associagio” (Dahl, 1989, p.120). Como veremos, nenhum Estado democratico leva nem o principio estritamente, e nem esse critério, as ditimas consequéncias, mas 0 plebefsmo perenemente pressiona-o a dele se aproximar 0 quanto possfvel. O direito de participar, embora se aplique a individuos, no é um dircito individual. Ele s6 tem sentido porque um grupo de pessoas 0 exercem coletivamente. Essa agéncia coletiva é a comunidade politica. O ideal de exceléncia, como disse, implica essa agéncia, mas também o de extensio da cidadania, Nela estdio modeladas: a) uma nogio de auoridade (ou soberania) sobre as agdes de individuos ou grupos que atuam no ter- rit6rio sobre 0 qual essa autoridade € reivindicada; b) uma nogio de bent REPUBLICA E DEMOCRACIA 7 comum que dé razio a essa autoridade; c) € uma nogdo de igualdade entre os membros da agéncia. Porém, cada uma dessas nogdes sofrem diferentes qualificagdes e moditicagdes, dependendo do ideal a que se referem. Falarcmos um pouco mais sobre isso oportunamente. Importa tixar no momento a distingio implicita nessas nogées, a saber, entre a comunidade . daqueles que esto credenciados a participar da tomada de es ~ os cidadéos —, ¢ a totalidade dos que esto obrigados a observar ¢ priorizar essas decisdes em relagao As de qualquer outra agéncia concor- rente ~ os stiditos. Cidadios, é claro, também sZo stiditos; mas a reefproca no 6 sempre verdadeira Em nenhuma instituigdo politica concreta vamos encontrar os ideais de civismo e de plebefsmo em estado puro. Eles no s6 so ideais, em sentido normativo, mas também so tipos ideais, em sentido metodoldgico. As experiéncias institucionais a que vamos nos referir cristalizam misturas de ambos. Mas a presenga de cada um nas misturas varia historicamente. Pode-se dizer que as experiéncias que a tradigio do pensamento politico classificou como republicanas, na Antiguidade Classica e no periodo moderno nascente, via de regra esto marcadas pela forte presenga do civismo. O plebefsmo nunca deixa de aparecer, em maior ou menor grau, mas o elemento dindmico ¢ o civismo. Ji as expe- riéncias modernas que, a partir de fins do século XVII, a tradiggo cunhou de “democratizantes”, tém como elemento dindmico o plebefsmo, embo- ra civismo continue presente. Na Antiguidade, as tentativas de integrar 0 civismo com um alto grau (para os padrdes do tempo) de plebefsmo foram denominadas “democracias”. Modernamente, as tentativas de integrar o plebeismo com um alto grav (para padrdes modernos) de civismo receberam o nome de “tevolugdes”. Em ambos os casos, a consciéncia do tempo reconheceu-os como perfodos de grande instabilidade politica e espasmo social, mesmo quando receberam divergentes julgamentos de valor, Assim, hé algo de plebefsmo nas reptiblicas antigas e de civismo nas democracias modernas. Encontramos uma variedade de doses de cada uma em que « mistura revela-se razoavelmente estavel, e também doses em que ela se torna explosiva. Mistura, porém, nio 6 identidade. amento politico, a o se trata, insisto, ape- Contudo, se observarmos um pouco a histéria do pens contus entre os dois é um tanto freqiiente. E nas de uma confusio terminolégica. Civismo e plebefsmo tendem a ser confundidos nessa histéria porque, pelo menos a partir da Revolugio Francesa, muitos autores ¢ 8 LUA NOVA N° 51 — 2000 oradores, defensores ou criticos da revolugio, comegam a usar as palavras ‘reptiblica” ¢ “democracia” como se elas fossem sindnimas. Tomemos, por exemplo, um trecho do discurso de Robespierre feito 4 Convengio em fevereiro de 1794, um pouco antes de iniciar sua feroz campanha anticor- rupgiio contra o grupo liderado por Danton. Diz ele: Governo democritico ou republicano — esses dois termos so sindn- imos, apesar dos abusos encontrados no palavrério vulgar. um estado onde o povo soberano, guiado por suas préprias leis, faz por mesmo tudo © que pode fazer bem, e por delegados 0 que no pode fazer por i mesmo... Mas qual é 0 prinefpio fundamental do governo democratic ou popular, em outras palavras, o pilar essencial que o mantém © o faz fun- cionar? E a virtude... que nao é outra coisa sendio 0 amor & sua terra natal e as suas leis... este sublime sentimento que supde a preferéncia pelos inter- esses piblicos acima de todos os interesses particulares (Textes choisis 11.113, apud Doyle, p.272, ¢ Rosanvallon, p.146). E curioso que Robespierre possa ter {vito essa identificagio com tanta seguranga, Obviamente, mesmo antes da Revolugio, “demoeracia” podia ser pensada como um caso de “repiblica”, na medida em que opos- ta a “monarquia”, como ocorre na tipologia proposta por Montesquicu (1949, If.2-3), mas jamais como sin6nimo dela ¢ menos ainda como uma forma de reptblica altamente desejavel. De qualquer forma, é certo que até mesmo © mestre inspirador de Robespierre nao teria visto com bons olhos essa operagdo. Pois Jean-Jacques Rousseau nio sé fazia questdio de distinguir “repablica” e “democracia”, na medida em que diferenciava a comunidade politica soberana da forma de governo, como considerava “democracia” — 0 tipo em que todos ou a maioria absoluta dos membros da comunidade politica so também membros do governo — uma forma praticamente inacessfvel aos seres humanos, apropriada apenas a “deuses”. Deixada a mortais seres humanos, precisamente porque nela 0 poder legislativo eo executivo, apesar de significarem fungées distintas, estdio nas mesmas mios, a democracia é um governo que facilmente se corrompe (Rousseau 1978, pp.78-9 ¢ 84-5) Mais importante ainda: como estudiosos de sua filosofia politica yém tornando evidente — embora o assunto continue controverso? -, fazia severas restrig6es ao ingresso de novos cidadiios A sua 2 Reteréncins sobre a controvérsia podem ser eneontradas em Rosenfeld. REPUBLICA E DEMOCRACIA 9 comunidade politica ideal (a “repdblica”). Primeiro, nela ndo poderia haver lugar As mulheres: mas até af a diferenga com Robespierre niio € to significativa, pois nem ele nem qualquer outro revoluciondrio de seu tempo chegou a tais excessos; mas, em segundo lugar, também niio pode- ria haver lugar para sans-culottes, isto 6, homens em condigdes sociais muito desiguais em rela cidadios, ou economicamente dependentes deles. Em principio, a reptiblica nao deixa de ser reptiblica se apenas uma minoria da populagio adulta que vive sob as leis de uma asso- ciagdo soberana for considerada “cidade” (quer dizer, com plenos direitos politicos, especialmente o de fazer leis ¢ eleger os membros do governo). Uma conclusio, alids, perfeitamente condizente com suas freqiientes ma- nifestagdes de aplauso A constituigo de sua cidade natal, Genebra, que exclufa de seu corpo de cidadios tanto as mulheres como a maior parte da populagiio adulta masculina (cf. Rosenfeld, pp.84-5 ¢ 104-5). Se recuarmos 0 contexto dessa discussio do século XVII para a Antiguidade cléssica, especialmente a romana, a néo identiticagio entre “tepiblica” e “demoeracia” fica ainda mais enfiitica. Entre pensadores politicos gregos ¢ romanos, “reptblica” € com freqiincia empregada, como no caso de Rousseau, para designar a comunidade politica ideal, mas “democracia”, 0 governo dos “muitos” ou “da multidaio”, € uma forma de governo real, histérica, cuja principal referéneia é a experiéncia atenien Se a demoeracia ateniense poderia ser aproximada da comunidade politica ideal, isso certamente cra assunto de acesa controversa entre a propria in- telectualidade ateniense. Porém, se Ievarmos em conta os autores da Antiguidade que chegaram até nés, a resposta a essa questiio, com raras excegdes, é que a democracia nao s6 estd longe de ser a comunidade politi- ca ideal, como & um dos maiores desvios ou “perversdes” dela, compari. vel, se niio idéntico, ao desvio da tirania. O autor mais resoluto nessa afirmagio, como se sabe, é Platao. Mas ela também pode ser encontrada, obviamente com argumentos dife- rentes entre si, nos fildsofos c historiadlores que se tornaro fonte de inspi- ragdo para toda a tradigio republicana moderna. Para ficar nos mais co- nhecidos: Polibio, Cicero, Plutarco, Tacito, Saltistio, Tito Livio e, princi- palmente, Aristételes. Gragas 2 influéneia dessa linhagem de autores, aquele que, nos tempos modernos, viré a ser chamado “republicano”, tomard como modelos de boa constituigio as de Esparta ¢ Roma, ¢ sera um ardoroso critico tanto da tirania quanto da democracia, As razées para nao identificar reptiblica c demo apresentadas sob dive racia podem s 0s Angulos, mas creio que em um aspecto pelo 10 LUA NOVA NP Si — 2000 menos os argumentos de republicanos antigos ¢ modernos sio comuns, ¢ sobrevivem aos problemas de transformagiio de contexto e de variagdes no contetido semintico dos termos. O problema essencial resume-se a seguinte questZio: quem est apto a exercer os privilégios ¢ obrigagdes advindos do titulo de cidadio? Se tomarmos como ponto de referéneia a discussdo sobre experiéncia ateniense, vamos constatar que os republi- canos vio julgar que diferengas consideriiveis de riqueza, educagio ¢ ocu- pagao, além da flexibidade com relagio ao problema do niimero de cidadaos, tais como eram admitidas na cidadania ateniense, sempre ameagam a satide moral da comunidade politica, e podem corrompé-la irre- mediavelmente. Na falta de medidas para “moderar” severamente tanto essas diferengas como a presenga de grande niimero de cidadaos, um critico da democracia como Arisiételes, por exemplo, pensava que homens livres (isto &, nZo-escravos), mas pobres ou dedicados a ocupacdes consideradas pouco dignas ~ o trabalho manual, afazeres estritamente domésticos ¢ até mesmo 0 comércio — nao deveriam participar das decisGes politicas.) A critica dirigia-se precisamente aqueles ~ a saber, os “democratas” — que pensavam que essas diferencas e 0 problema numérico eram compativeis com a igualdade modelada no idea! da comunidade poiftica. A divergéncia entre quem depois vird a ser chamado “republicano” ¢ 0 “democrata”, por- tanto, dizia menos respeito ao problema da participagiio direta do conjunto dos cidadios nos negécios da polis do que ao grau de abertura’ da comu- nidade politica a totalidade dos homens livres. Porque tanto para um como para o outro mais, ¢ no menos, participagdo direta era o que se deveria esperar de um bom cidadio. O que deixava at6nito 0 republicano, ao con- templar a experiéncia ateniense, é que isso fosse praticado em um univer- so de cidadaos cuja extensio ultrapassava de muito o desejavel.+ Nao por acaso, 0 futuro republicano era denominado, na lin- guagom politica grega, “oligarca”, oligarquia e democracia significando, respectivamente, uma comunidade politica de “poucos” ¢ de “muitos” cidadiios. E é em virtude deste contraste especitico que um republicano, se 3 Todo o livro Itt da Politica de Arist6teles, onde ele discute o conceito de cidadania e apre- senta sua tipologia das formas de governo, é relevante para o que estou tratando aqui 4 Nunca é demais lembrar que nem democratas, nem republicans. punham em questi 0 tra batho escravo. A divergéncia dizia respeito apenas amplitude da cidadania entre homens livres, isto &, adultos naio-escravos do sexo maseulino. $6 isso ja impunta uma gigantesca reira ao progresso do plebeismo na Antiguidade chissica REPUBLICA E DEMOCRACIA in tivesse de escolher entre as experiéncias politicas do apogeu da Grécia antiga, tomaria Esparta — ainda que com muitas restrigdes -, € nZio Atenas, como a cidade de sua preferéncia. I A participagiio direta, como mencionei, nao & problema nem para © republicano, nem para o democrata antigos. Contudo, as experiénci democratizantes modernas trazem consigo o problema da representagio, que por sinal é mencionado no discurso de Robespierre citado acima. A representacaio é uma heranga medieval, e porque o republicano moderno se inspira na experiéncia das repiblicas antigas, que desconheciam tal insti- tuigio, seu surgimento parece introduzir um elemento estranho ao ideal civico que o orienta. No Conrrato Social, Rousseau revela aguda percepgao disso. La ele faz a distingao entre comunidade politica e governo, mas registra com toda énfase que o iiltimo nao pode ser confundido com o instituto moder. no da representagiio: “[O governo] no é absolutamente nada senzo uma comissio, uma funcio na qual, [os governantes] como simples fun- ciondrios do soberano, exercem em seu nome o poder que Ihes foi emprestado pelo soberano, ¢ que o soberano pode limitar, modificar ¢ tomar de volta sempre que quiser”. Assim, “os deputados do povo so nem podem ser seus representantes; eles siio meramente seus agentes. Eles ndo podem concluir nada definitivamente. Qualquer lei que 0 povo em pessoa niio ratifica é nula; ndo é lei.” (Rousseau 1978, pp.79 € 102). Razées puramente I6gicas e priticas levam 4 necessidade de se- parar a agéncia de governo da agéncia soberana. Primeiro, a comunidade 86 pode tomar decisdes que expressem a vontade geral, ¢ esta apenas se apresenta na forma de leis gerais ¢ impessoais, enquanto a implementagiio dessas leis tem de ser feita através de decisdes particulares. E quando os proprios membros, ainda que a totalidade deles, tomam decisées partis lares, cles jit no esto mais agindo enquanto comunidade politica, mas enquanto govern. Segundo, € “inimagindvel que o povo permanega cons- tantemente em assembléia” para resolver todos os negécios piblicos indis- tintamente. Para lidar com a populagiio sujeita & sua autoridade (os stidi- tos), ou com entidades externas, 0 povo tem de nomear “comissdes” com- postas de alguns de seus membros. Mas, ao fazer isso, 0 préprio soberano est, na prati ando uma agéncia distinta dele. (pp.78 ¢ 85) 2 LUA NOVA N* 51 — 2000 Como Rousseau, creio que a tradig&o republicana de um modo geral 6 receptiva ao binémio comunidade politica/governo, considerando- 0 mesmo necessirio, Mas uma vez admitido, o grande problema passa a ser © controle de um pela outra: tendo 0 governo alcangado uma existéncia separada, ele adqilire uma tendéncia a usurpar as fungdes essenciais do soberano — no caso de Rousseau, 2 fungio legislativa, E a corrupgiio dos governos comega a ocorrer quando a propria comunidade politica renuncia A capacidade fundamental de exercer esse controle, ao gradualmente deixar escapar para outras mios suas atribuigdes basicas. Quando Rous a instituigdio do “representante”, € na verdade essa remincia que ele esta atacando ¢, sob esse Angulo, pode-se dizer que todo republicano compar- tilha a mesma preocupagdo do filésofo genebrino, ainda que nem todos necessariamente ataquem aquela instituigio. Porém, mesmo quando aceitam a inevitabilidade do representante, isto & mesmo quando dis. pocm-se a fazer certas adaptagdes ao ideal civico, em vista da presenga mais dindmica do plebeismo, sua existéncia sempre os coloca sob grande pressiio ideol6gi rio complemento da comu- nidade politica, a instalagio do representante parece ocorrer ao custo da prépria razao de ser daquels Mas antes de detalhar (nia seg%io 1V) em que termos a represen- tagiio pode se instalar, distintos da instalagio do governo, ¢ como ela pode chocar-se com a existéncia da comunidade politica, ainda tenho de enfrentar melhor certas dificuldades na relago comunidade politica/go- verno dentro da prépria reflexto republicana, o que ajudara a tornar mai claro © outro problema. As dificuldades giram em torno da seguinte questo, Roma é a constituigdo republicana mais discutida ¢ homenageada pela tradigao. Porém, sua histéria € marcada por ondas sucessivas de ampliago de seu corpo de cidados. Como nos lembra Maquiavel, Roma, a0 contririo de Esparta, era uma cidade aberta aos “estrangeiros”. Neste specto, sua amplitude era mesmo bem maior do que a de Atenas, que restringia sua democracia aos atenienses natos ¢ seus descendentes.5 Por que, entio, a homenagem aos romanos ¢ a rejeigtio aos atenienses? Como ja mencionei, a resposta republicana que a constituigdo ateniense nao providencia nenhuma medida severa para contrabalangar a eau ataca . Se o governo é um neces 5 E isso que faz Montesquicu, em centas pussagens do Espirito das Leis, sugerie que a repibli- fa romana era una “democracia". Mas quando ele leva em conta outros aspectos da constitu Totnana, entre os quai seu carter miso, Roma ¢ vista como un repcblien “nelinada stocracia". CI. Montesquicu, vol. p.9-13 « 50. REPUBLICA E DEMOCRACIA Bb extensiio de sua cidadania, Crucialmente preocupado com a tendéncia d “corrupgiio” dos governos, o republicano pensa que a ampliagao pode con- duzir a esse resultado, na medida em que ela ameaga a homogeneidade da comunidade politica, expressa tanto na nogio de igualdade entre os mem- bros quanto na nogiio de bem comum, que sio os sustenticulos do mais ele- mentar consenso daquela comunidade. Aadmissio de pessoas pobres ou “de origem obscura”, por exem- plo, leva ao desenvolvimento, no interior do corpo dos cidadzos, de interesses os interesses dos pobres contra os interesses dos ricos, ou os da irpe”, os patricios, contra os da gente “comum”, os plebeus. J isso induz 0 cidaddo a apegar-se mais a esses interesses “parciais” do que ao interesse piblico (o bem comum), ¢ portanto a colocar os primeiros acima do segundo, Contudo, a “virtude” do cidadao consiste no comporta- mento exatamente oposto. Cidadios sem virtude e comunidade politica corrompida implicam-se mutuamente. Mas Roma incorporou grandes contingentes de novos cidadios sua comunidade ¢ sobreviveu, pelo menos por um bom tempo, 2 corrupgiio. Como? Os admiradores © estudiosos da histéria da reptiblica sempre lidaram com dificuldade com essa questo ¢ em geral sito levados a admi- tir que sua gldria foi aleangada apesar dos violentos distirbios internos advindos da cisio entre patricios ¢ plebeus. Segundo tal v sivel gracas a uma combinagio de inventividade instituci teridade dos individuos ¢ dos grupos em luta. Entre os produtos da inventividade institutional, © mais destacado € 0 famosa nogdo de “constituigio ou governo misto”, Polfbio, um dos autores fundamentais da linha de raciocfnio a que estou me rel cua Histérias de Roma foram escritas justamente para explicar a grandeza a que chegou a reptiblica apds a vit6ria sobre Cartago, dedica um pedago da obra para explicar seu funcionamento.® Inspirado em Aristoteles, cle diré que 0 fato de as instituigdes politicas romanas terem amalgamado as trés formas “puras” de constituigéio — a monarquia, a aristocracia e a democra- ia — teria causado um espetacular retardamento do inevitivel ciclo de censiio, apogeu e decadéncia a que essas constituigées estzio submetidas. Roma evitou, desse modo, as perversdes dessas formas puras, ou seja, 0 dominio absoluto de um s6 (a tirania), 0 dominio absoluto dos ricos (a oli- garquia) ¢ © dominio absoluto da multidao (a oclocracia) stio, isso foi pos- indo, © A discussao sobre a constituigdo romana aparece no Livro VI das Histérias 4 LUA NOVA N° St — 2000 Uma das grandes perversdes da constituigdo ateniense, pensava Polibio, restava na inexisténcia dos contrapesos monirquico ¢ aris- tocratico A assembléia popular —a instituictio democratica por exceléncia, onde 0 voto de cada cidadao, pobre ou rico, nobre ou piebeu, recebia 0 mesmo peso, em beneficio, portanto, das classes mais numerosas. Roma, o, tinha o Senado (uma instituigao aristocratica) ¢ 0 consulado (componente monirquico) para conter a assembléia popular, ¢, recipro- camente, os dois iiltimos para conter 0 Senado. O préprio fato de os dois c6nsules poderem vetar mutuamente suas agées limitiva os poderes de chefia militar que possufam. Enquanto as instituigdes romanas con- seguissem preservar esse equilibrio, previa o historiador grego (que escreveu na segunda metade do século dois antes de Cristo), a repdblica sobreviveria 4 decadéncia Mas a preservagiio do equilibrio nao dependia apenas de uma dis- tribuigio automdtica, mecfnica, de pesos e contrapesos. Polibio faz questo de salientar os costumes profundamente austeros de todos os cidadaos romanos, especialmente a simplicidade dos préprios patricios — sua permanente autovigilancia contra a penetragiio dos “vicios orientais” (o luxo ¢ 0 refinamento) ~ e a grande preocupaciio de exaltar, nas diversas ce- riménias religiosas, 0 espitito de dedidagao piiblica de seus antepassados, apontado como o mais glorioso caminho para alcangar a felicidade pessoal Esses eram os grandes combustfveis da maquinaria institucional. Se tiver- mos em mente 0 que diz Aristétcles sobre as constituigées democi Atenas sendo, claro, 0 grande exemplo — 0 contraste mais uma vez é inequivoco: a democracia niio s6 € 0 governo em que cada cidadao tem o mesmo peso nas decisdes, independente de seus “méritos”, mas & também onde cada um “vive como quer”?, sem nenhuma vigiléncia especial contra a lassidao dos costumes € sem fortes incentivos para impedir que a grande diversidade de interesses particulares da multiddo prevalega sobre o inte- resse piiblico. A falta de espirito piiblico, por sua vez, conduz A perda de um consenso bisico a respeito do destino comum da polis, o resultado sendo 0 caprichoso predominio do maior nimero na assembléia popular. Estudioso das instituigdes romanas, Maquiavel, talvez como ne- nhum outro autor antes dele, tinha aguda consciéncia da tensio entre a con- tinua ampliago da cidadania e a satide cfvica da comunidade, B a auda- icas — 7 Ver Politica, livro VI, cap.2. REPUBLICA E DEMOCRACIA 15 ciosa andlise que ele nos oferece sé faz. realgar 0 virtual paradoxo que este classico problema do pensamento republican nos aprisiona. Vou resgaté- Ja aqui porque penso que ela revela uma das aporias cruciais do ideal cfvico.8 Como Polibio, Maquiavel clogia a constituigio mista de Roma Mas 20 contrario do historiador grego, ele pensa que esse arranjo, ao invés de reconciliar os conflitos entre patricios ¢ plebeus, s6 fez agudizd-los ainda mais. A “insoléncia e rebeldia” dos plebeus contra os patric podia crescer com a concessio de direitos politicos: seus insultos ¢ ressen- timentos reciprocos seriam transportados para o coragao das instituiges politicas. E certo que essas mesmas instituigdes poderiam providenci: mecanismos de moderagio desses conflitos. Os romanos, por exemplo, podiam recorrer a tribunais e exigir medidas contra insultos.? No fim das contas, porém, tais mecanismos traziam pouco alivio. Como os desejos dos homens siio sempre maiores do que sua capacidade de satisfazé-los, 0 resultado é a permanente insatisfagao com o que possuem: uma vez obtida a primeira conquista, os plebeus passariam, como passaram, a querer sem- pre mais. Conclusio: o ingresso dos plebeus na comunidade dos cidadios, a passagem de uma comunidade de ottimati para uma comunidade do popolo, leva a conflitos crescentes no seu interior, & perda de seu sentido comum e conseqiientemente a instabilidade politica, refletida na volatili- dade de suas leis. E a instabilidade é indesejével A pergunta que permanece: se este resultado é indesejével, ¢ ela é causada pela incluso, poderiam os romanos té-la evitado? A resposta de Maquiavel € que os romanos nao poderiam ter evitado a extensio da cidadania. Desde o comego, Roma esteve cercada de vizinhos agressivos ¢ guerreiros. Para defender a cidade ¢ garantir sua propria existéncia enquan- to entidade politica independente, os “pais fundadores”, os patricios, tive- ram que recorrer ao auxilio de seus habitantes mais humildes. Ainda na infancia da repdblica, portanto, os nobres tarmente depen- icaram mil dentes da plebe, ¢ isto determinou a dindimica politica posterior da cidade. Pois a participagdo nas armas sultou na demanda pela participagao na vit6ria, o que significava participar das instincias de decisio da repiiblica Mas se o fundamento da cidadania romana € 0 militante, 0 cidadao arma- 8 A exposigio abaixo & bascada no livro I. ge Tito Livi ? Wid. 37-8. 1982-6. dos Discursos sobre a Primeira Década 16 LUA NOVAN® 51 do, © conflito interno que resulta de sua incluso s6 pode encontrar uma valvula de escape na guerra contra o inimigo externo. Incorporagio de novos cidadios, instabilidade politica interna ¢ expansio territorial pelas armas passam entdo a estimular-se reciprocamente, a retroalimentar-se, de tal forma que a segunda, em prinefpio indesejavel, torna-se para Maquiavel uma das causas da virtt romana ¢, logo, de sua grandeza e gléria, Se fOssemos considerar a constituigéio romana apenas pelos seus aspectos internos, terfamos que concluir que as constituigdes de Esparta (0 caso antigo pingado por Maquiavel) e de Veneza (0 caso moderno) eram muito superiores. Ao limitar com rigor a amplitude de sua cidadania, essas cidades desfrutaram de grande paz interna c estabilidade politica, refletidas na longa durabilidade de suas leis fundameniais, os quais sao valores muito desejaveis. Mas € preciso considerar as virtudes da constituigaio em todos 05 seus aspectos, internos e externos, E sem a garantia de sua independén- cia externa, a liberdade da reptiblica nfo passa de uma quimera, Sua me- Ihor garantia, porém, ¢ a constante disposigao para lutar, ¢ nZio hd melhor estimulo para isso do que a expanstio territorial. Portanto, raramente € pos- sivel obter esses dois bens ao mesmo tempo: a independéncia ¢ a estabili- dade interna. O desfrute do primeiro significa abrir mo do segundo. Se pudessem optar, os romanos provavelmente escolheriam a paz © a concérdia interna. Vale dizer, a rigorosa limitagio de sua cidadania aos préprios patricios, junto com mecanismos de controle de seus lideres ¢ de atenuagiio das facgdes internas, como a elcigio ¢ a rotagio dos postos de governo. Mas esta nfo era uma escolha que os romanos poderiam fazer 20 seu bel-prazer. Pois a fortuna fora muito benevolente com espartanos ¢ venezianos, as circunstincias que levaram A sua serenissima existéncia devendo-se a acidentes de hist6ria € geogratia que raramente esto A dis- posigo das reptiblicas, Assim, os que no querem ficar 4 meré da fortina acabam escolhendo o menor mal, que é viver sob 0 vuledio da constituigio mista ¢ a inquictude da conquista. Como se vé, a andlise do pensador Florentino nos oferece um pre- cioso Angulo para entender por que a extenstio da cidadania nao & deseja- vel como um principio norteador do ideal cfvico, mas a0 mesmo tempo por que um objetivo que dificilmente pode ser evitado. A vantagem das repiblicas sobre as monarquias reside na diversidade de sus cidadios, que € maior quanto mais extensa é sua comunidade politica (Maquiavel, HII.9). Porém, a heterogencidade do corpo de cidackios corrompe o espirito puibli- co, 0 sentido de destino e lealdade comuns, ¢ 0 senso de igualdade que sus- tenta a prépria nogio de comunidade: agora, interesses contrarios sc mul- REPUBLICA F: DEMOCRACIA 7 tiplicam, calcados numa visivel desigualdade de status social, riqueza, edu- cagiio etc, entre os membros, gerando conflitos que frequentemente colo- cam facgdes rivais A beira da guerra civil. Para Maquiavel, a tnica safda para restabelecer aquelas vigas- mestras da comunidade cidada é através do senso de que essa entidade est mergulhada num ambiente mais amplo que € hostil, repleto de outras comunidades politicas cujos destinos sio contriries entre si. Em outras palavras: 0 senso de que, em comparagio a esse contraste entre o interior ¢ © exterior, o qual poe em questo a prdpria existéncia delas, a heterogenci- dade do popolo torna-se praticamente desprezivel. Se, portanto, sua homo- gencidade no pode ser restabelecida pela simples postulaciio da “atragiio nvdtua” natural entre os membros, 0 jeito é extorqui-la do inimigo da pitria. It Apesar de Rousseau considerar a repablica romana o “modelo dos povos livres™!9, é dificil acomodar a deserigiio de Maquiavel exposta acima com sua concepgiio da reptiblica ideal, livre de facgdes ¢ solidamente unida pela transparéncia do bem comum. Como ele mesmo adverte, “quando 0 lago social comega a afrouxar...; quando interesses privados comegam a se fazer sentir e pequenas sociedades a influenciar a maior, o interesse comum altera-se ¢ encontra oponentes; a unanimidade nao mais prevalece nos votos; a vontade geral niio é mais a vontade de todos; contradigées ¢ debates surgem ¢ o melhor conselho nao é accito sem disputas” (Rousseau 1978, p.108). Mas uma dose periédica, &s vez iga, de novos plebeus na comunidade, como ocorria em Roma, provoca exatamente isso. Tio diffeil quanto esse problema € apontar concretamente qual instincia, numa constituigio mista, sedia a comunidad politica como um todo — 0 “povo” -, aspecto crucial da teoria rousseauniana da soberania. Mais uma vez. cle reconhece, ao analisar a constituigio romana, que no hi nenhuma instincia que satisfaga inteiramente essa cxigéncia, nem mesmo as assembléias populares. Em Roma, além da existéncia de dois tipos prin- cipais de assembléias — o que significa uma divisio do soberano -, certas funcdes executivas ¢ legislativas cram misturadas em ambas. Uma delas, chamada comitia centuriata, apesar de reunir todos os cidadios, tinha ma aun 10 Ver o “Preliicio-Dedicatiria” do Segoe Discurso. Rousseau (1992), p.118, 18 LUA NOVA N* 51 — 2000 como principal fungao eleger os cargos mais importantes (cnsules, pre- tores, censores), nela os votos de patricios ¢ plebeus tinham pesos dife- rentes, a favor dos primeiros. A outra, comitia tributa, reunia-se para san- cionar as principais leis, mas nela a participagaio dos nobres niio era per- mitida, Nas palavras de Rousseau: As comitia por tribos eram realmente 0 conselho do povo romano... [Contudo} nao apenas o senado nao fazia parte delas, mas ndio tinha sequer o dircito de assistir a clas; e desde que os senadores eram forgados a obedecer Ieis nas quais eles niio poderiam votar, eles eram menos livres neste aspecto que os tiltimos cidadaos. Essa injustiga era um erro completo, ¢ sozinha era suficiente para invalidar os decretos do corpo para 0 qual nem todos os membros eram admitidos. (1978, p.118)!! Se, para a tradigHo republicana, a constituigdo mista 6 uma respos- ta necessiria & expansiio do corpo de cidadios, € certo também que sua invengao e desenvolvimento colocam crescentes dificuldades para fazer do binémio comunidade politica/governo o operador basico para descrever a repiiblica. Nao s6 a maquinaria do governo torna-se cada vez mais com- plexa ¢ expansiva, mas também a propria identificagio do locus da comu- nidade politica torna-se mais ¢ mais obscura. Para conirarrestar essas tendéncias, as repiblicas antigas dependi- am essencialmente de dois recursos ideolégicos.'? Primeiro, manter con- stante, ¢ a todo vapor, as energias civicas de seus cidadzios, especialmente de seus lideres, desencorajando qualquer inovagaio que desviasse suas atengGes para outros objetos. Como bem percebeu Maquiavel, manter esse espirito em alta temperatura € quase impossfvel sem um sentido de unidade forjado em conflitos de todo tipo: a unidade dos cidadaos-soldados para enfrentar 0 inimigo externo, a prépria unidade dos plebeus para enfrentar 08 patricios ¢ assim por diante. Toda essa movimentagiio incessante cm torno de matérias politicas sugeriria, entdo, a existéncia de um “povo” 'Y Rousseau fala ainda de outro tipo de assembieia, comitia curiata, a mais antiga, mas que foi perdendo importancia durante a repifblica. Mas ele deixa de registrar que havia, de fato, duas espécies de comiia tribute: uma, talvez a mais importante, gragas & forga do tribunato, que exclufa os patricios (0 concilinm plebis) ~ & desta que: ele esta falando aqui ~ e a outra que 9g inelufa. Ver Wood, pp.26-7. 12 As paginas que seguem beneliciam-se de uma coletfines de estudos sobre a civilizagiio romana (editada por Balsdon) € outra sobre as republicas da Antiguidade ckissica e da Ikilia Medicval (editada por Motho, Raaflaub e Emilen), além do estudo de Weber sobre as cidades: estado e suas notas sobre “comunidade politica” em Economia e Sociedade. REPOBLICA E DEMOCRACIA 19 cujos membros estariam sempre presentes uns para os outros, mesmo bri- gando. Quanto mais os cidadiios se movimentassem em torno da politica, mais plausfvel a suposigo de que a comunidade politica cra real ¢ presente para si mesma, e, portanto, maiores as chances de manter sua entidade complementar, 0 governo, sob conirole. Segundo, desencorajando que as obrigagdes mais graves que o jackio tivesse de cumprir fossem feitas por outrem ¢ com recursos de ou- trem, Em outras palavras, estimulando que as priticas de cidadania con- sideradas cruciais — votar as leis nas assembliéias, ocupar postos de gover- no , especialmente, defender a patria — fossem teitas sem intermedidrios e com recursos do prdprio cidaddo. As qualidades do cidadao eram mais apreciadas, ¢ conseqiientemente maiores os seus méritos, quanto maior sua independéncia em relaciio a outros, © que evidentemente era proporcial & sua capacidade de manter-se auto-suficiente do ponto de vista material. E ulo-suficiéneia era indieada tanto pela propriedade da terra quanto pela capacidade de defender-se a si mesmo pelas armas.!3 A énfasc, nao em qualquer propriedade, mas na propriedade da terra era, da parte dos nobres, © correlado do desprezo pelos negécios, pelo mundo do comércio e do di- nheiro, e a disposiciio belicista 0 correlato, da parte dos plebeus, do despre- 20 pelo trabalho € pelos cuidados domésticos, préprios de escravos e mu- Iheres. Ambas permitiam evitar, criando uma espécie de cinturio protetor, que os assuntos préprios da oikas ingressassem na esfera da polis. Era exclusivamente como sujeito privado, € néio como homem piiblico, que o cidadao deveria tratar desses assuntos. Em vista da distingiio de status, nfio € 8 toa que, embora enquanto grupos distintos, patricios e plebeus eram vistos em equilibrio ou em igual- dade na constituigiio mista, individualmente ao patricio era atribuido maior mérito pela suposigiio de sta maior auto-suficiéncia na propriedade da terra ena qualidade das armas. Apesar da admissiio da plebe no corpo de cidadtios, a manutengao da precedéncia de status no interior da comunidade politica era um aspecto fundamental do ideal republicano de constituigdo mista. Tratar “desiguais em mérito” como “iguais” cra préprio das democracias, lembra Atisi6teles (Politica, 111.10), mas nao da auténtica repiiblics, A conseqiiéncia dessa nogao € que os possiveis custos envolvidos no desempenho das fungdes a ele designadas ~ 0 tempo despendido nas a '3 Para uma exaustiva investigagao de como esses dois temas foram eapturades pelo pensa- mento republicano inglés, ver Pocock 1975, esp. cap.X1. ¢ 1985, 20 LUA NOVA N® 51 — 2000 assembléias, as despesas relacionadas ao exereicio de cargos governamen- tais e a mobilizagio ¢ as armas para enfrentar o inimigo nas batalhas ~ de- veriam ser bancadas pelo proprio cidadzo, Quem se revelasse incapaz de desempenhar alguma dessas lunges por conta prépria no deveria ser um cidadio. Outra vez: tal exigéncia sugeria a idéia de uma maquinaria go- vernamental que, apesar de complexa, ndio se autonomizava dos cidadios, porque seus postos, além de diretamente operados pelos cidadios, eram exercidas de maneira tal que o sujeito jamais dependeria matrialmente deles. enquanto a exercicio dos mesmos dependeria de sua disponibilidade de tempo e material. Daf a precedéneia tacitamente atribuida ae patricio no preenchi- mento dos postos mais altos ¢ de novo o contraste com a demoeracia ate- niense, onde as fungGes governamentais cram pagas. Peculiaridade, alias, que € uma inevitivel decorréneia da nao transteréneia, para as relagdes politicas, da precedéneia de status nas relagées sociais.'4 Mas daf, também, a enorme importincia dada d participagio de todos, patricios ¢ plebeus, sem intermedisrios, na defes rada as qualidades da coragem e da prudéneia na condugio da guerra, fun- dada numa suposta heranga dos pais fundadores, de todo plebeu-cidadto esperava-se principalmente a qualidade da coragem, fundada simplesmente na “escola do per ndo a comunidade politica vista como uma associagio cuja condigio de ingresso era dispor-se a fazer 0 “supremo crifieio” em sua defesa, era natural que © espitito bélico da cidadania tivesse a maior relevaincia. E por conta da centralidade desses recursos que as andlises da histéria da repdblica romana centradas no ideal cfvico vo, geralmente, identificar na corrupgzio moral dos patricios ¢ na perda do espirito bélico dos plebeus as maiores de seu deelinio ¢ final extingaio. Porque sem aprimeira perdia-se a autoridade moral da precedéncia de status, tida como decisiva para conter a forga plebgia “dos ndmeros”, ¢ sem a segunda per dia-se © instrumento bisico dos plebeus para conter “a gandncia © ambigiio” dos patricios. a da patria, Se dos lideres patricios era espe- A1USAS iC Mais uma carneteristica das democracias que nao vs “apa a Arist6teles: ef, Politica, VL ‘Quem empunba armas reconhece apenas 9s capazes de empunhar armas como iguais, politicos, Todas os outros, os nao treinadlos en armas © os incapazes dle empunar armas, so tidos como mulheres, ¢ sto explicitamente designados como tais em muitas Linguas primiti- vas” (Weber, 199, p.906) REPUBLICA E DEMOCRACIA ai Estes dois recursos, enfim, expressam as razées mais substantivas para a rejeigo do instituto da representacio tal como colocada anterior- mente neste texto. E explicam, também, porque o republicano moderno se vé sob forte tensiio ideolégica ao lidar com esse instituto num contexto novo de ampliagio da cidadania, identificdvel apenas em germe nas democracias antigas. Assim, a0 mesmo tempo que essa nova ampliagiio 6 geralmente bem vinda, cle tem um forte pressentimento de que certos pro- blemas provenientes dela jé niio podem ser mais contornados por aqueles dois recursos, por conta de seu crescente descrédito Tao logo o servigo puiblico deixa de ser o principal assunto dos cidadaos, ¢ eles preferem servir com seus bolsos e nao com su: pessoas, 0 Estado jd estd préximo de sua ruina. E necessiirio marehar para @ batalha? Eles pagam tropas © permanecem em casa. E necessirio apresentar-se 2 assembléia? Eles nomeiam deputados © permanecem em casa. Por forga da preguiga ¢ do dinheiro, eles finalmente tm soldados para eseravizar 0 pais representantes para vendé-lo. (Rousseau 1978, pp.101-2) Que contexto novo de ampliagio € este? Estou me referindo d reviravolta da percepgao politica moderna, ocorrida marcadamente a partir das Revolugdes Americana ¢ Francesa, e que trard o ideal do plebefsmo & sua plena maturidade. E esta reviravolta que fara atores politicos ¢ intelec- tuais retirar cada vez mais, no decorrer do século XIX, 0 termo “demoera- cia” de seu esquecimento, ¢ associa-lo 20 que Tocqueville vai chamar de “igualdade de condigées”, sugerindo pela primeira vez a idéia de tratar democracia, no como um regime politico, mas como uma “forma de sociedade”: “A alteraciio semintica [na Franca] {oi estabelecida no comego dos anos 1830... Naturalmente, foi Tocqueville que expressou a situa com o maior talento c éclar... Ao fazer a igualdade de condigées o grande motor da revolugio na sociedade moderma, cle estabeleceu (com o primero volume de Democracia na América) a definigo sociolégica de democra- ” (Rosanvallon, p.150) Apesar de ser crescentemente tratada como uma forma de sociedade, é revelador que, neste perfodo, a demoeracia acabe encontran- do expresstio na exigéncia do sufiigio universal, masculino e depois fem- inino, Isso guarda intima relagio com o fato de a igualdade de condigées referir-sc privilegiadamente, como queria Tocqueville, ao declinio da pre- ia de status. Com esse declinio, rompe-se a barreira que justificava tratar pessoas de diferentes estratos de forma politicamente desigual: agora © nobre deveria ser tratado como o plebeu, dado que as supostas qualidades cedéni 2 LUA NOVA N® 51 — 2000 morais superiores dos primeiros passam a ser vistas como meros disfarces para resguardar privilégios materiais. O resultado € aquele principio que o republicano antigo freqiientemente denunciava na democracia ateniense — “cada cabega um voto” — ¢ que sera consagrado num bombistico panfleto do abade Sieyds durante a reunigio dos Estados-Gerais em 1789. Mas a propriedade da terra nao sendo mais entendida como uma caugiio moral da cidadania dos estratos sociais superiores, ¢ 0 empunhar das armas uma caugio da cidadania dos estratos inferiores, dois atores sociais véio ganhar pleno reconhecimento de sua condigiio plebéia: 0 destituido de terra, mas atarefado com o comércio e a aquisigao de dinheiro, e o destitu- do de armas, mas atarefado com o trabalho manual ~ o burgués e 0 proletirio. Poder-se-ia pensar que reconhecer ao proletirio o direito de ingressar na comunidade politica seria 0 equivalente modern de reco- nhecer, se isso tivesse sido possfvel, ao escravo antigo tal direito. Porém, 0 escravo pertencia 2 oikos e nao ao mercado. Se o proletirio € totalmente destituido de propriedade, pelo menos é um homem livre, o que facilita 0 reconhecimento da cidadania. Os dltimos prisioneiros modernos da oikos, portanto, eram a mulher ¢ os filhos. Os filhos sempre o foram apenas pro- visoriamente, Mas para que a onda de plebeizagio atingisse a mulher, seria necessirio que os portées da oikos fossem arrebentados, empreitada provavelmente impossfvel se a iiltima nao tivesse se transformado na familia burguesa, emancipando 0 sexo feminino, E da mulher emaneipada para a mulher cidada, num contexto de igualdade de condig6es, nao seria necessiirio mais que um passo O burgués, o proletdrio e a mulher sto as figuras politicamente mais execradas pela tradigiio republicana, porque so a prépria encarnagdo do afrouxamento das exigéncias de exceléncia no exercicio das obrigagdes da cidadania. Mas sio justamente elas as principais contempladas pelo plebefsmo. Iv No comego deste artigo havia mencionado que o plebeismo é um principio de franquia da cidadania, Havia dito também que 0 “critério de inclustio” de Dah! era uma boa aproximagiio deste principio: a comunidade politica “deve incluir todos os adultos sujeitos is decisdes colctivas obri. gatérias da associagio” (meu grifo). Digo “aproximagdo" porque, primeiro, aparentemente cla é uma aproximagaio para menos, no que diz respeito ao estrito sentido do principio, J4 que, como o proprio Dahl (1989, pp.127-8) reconhece, em nenhuma REPUBLICA E DEMOCRACIA 23 democracia moderna as criangas e os jovens até uma certa idade — isto &, os no-adultos =, sio reconhecidos como portadores de direitos politicos plenos, ¢ no entanto sio obrigados a obedecer suas leis. E, segundo, é uma aproximagio para mais, porque mesmo entre adultos, hd pelo menos um seg- mento que € obrigado a obedecer as leis mas nao possuii direitos politicos 05 estrangeiros. A exclusio dos estrangeiros ¢, principalmente, a exclu dos niio-adultos parecem ébvias, mas hii de se reconhecer que cabem muito desconfortavelmente na nogio, tdo cara ao plebefsmo, de que todos os que esto sob a autoridade das decisées coletivas tem o direito de participar delas, independente do problema da qualidade da participacdio. Suspeito, porém, que tais exclusées so ainda o sinal da presenga do ideal civico entre nés, ainda que de forma bastante esmaecida, ¢ que, neste aspecto, ele opera com- piementando o plebefsmo, tornando-o minimamente operacional.' Aparte esse problema, contudo, quero aqui deixar mais claro dois aspectos do critério de incluso que, embora nao explicitados na sua for- mulagio, esto plenamente incorporados na discussiio que Dahl faz dele Esses aspectos sio 1) a idéia de que a virtual universalidade da cidadania implica a admisstio de uma profunda heterogeneidade da comunidade politi- ca; e 2) apesar dessa heterogeneidade, seus membros devem ter igual dire- ito de influenciar suas decisGes. Como vimos na scgao II, 0 primeiro aspec- to ja havia sido agudamente apreendido por Maquiavel. Mas agora temos de, ao mesmo tempo, insistir na igualdade politica c introduzir_niveis adi- cionais de heterogencidade, cm doses sequer imaginadas pelo florentino. O piebefsmo moderno tem de incorporar A comunidade politica nao sé cidadios desiguais econdmica e socialmente, com interesses opostos — desnecessirio provar que a igualdade de condigées identificada por Tocqueville néio é incompativel com tais desigualdades — mas cidadaos cujas atengdes esto voltadas para objetos de interesse muito distintos uns dos outros. Assim, parece-me evidente que se o problema da democra moderna fosse simplesmente estender a cidadania a um némero muito grande de pessoas, mas aproximadamente iguais em termos de renda, pro- priedade, educagiio etc, e com suas atengées voltadas para idénticos obje- 16 isso 6 ainda mais patente quando se trata de justificar a regra da maioria que, para se tornar wmbém minimamente operacional, precisa do suporte, derivado do ideal efvico, de unx ‘ogo minima de consenso, para além das divergéncias que levam & cont a respeito, as observagdes de Dal! (1957), cap.2, 24 LUA NOVA N® Si — 2000 tos de interesse, enfim, se a questiio numérica niio levasse a essa diferencia Gio, é certo que no haveria um contlito dos ideais normativos aqui expos tos. Neste caso, acrescento, sequer 0 ideal do plebefsmo entraria em pauta: ele s6 tem raziio de ser porque a extenstio ¢ a heterogeneidade siio histori- camente concomitantes; e ele pretende providenciar fora normativa para a nogiio de que pessoas obrigadas a obedecer As leis estabelecidas por uma agéncia coletiva devem ter igual direito de fazer parte daquela agéncia, a despeito das diferengas que howver entre elas, sejam de status, classe social, etnia, religiio e assim por diante. Colocar a igualdade poittica acima de toda e qualquer causa de he- terogeneidade & o que poe o plebefsmo ¢ 0 civismo em tensiio um com o outro. Aqui vale a pena refinar o contraste entre a igualdade politica modelada no ideal civico ea modelada no plebefsmo. No primeiro caso, a igualdade supde lagos profundos entre os cidadios, atados por alguma nogio de destino comum entre eles. Nao por acaso, seus membros sio comumente vistos como ‘“jrmaos”, “companheiros”, “camaradas” que, ainda que tenham de se ocupar com suas vidas privadas (como chefes de familia, por exemplo), ¢ mesmo quando aparecem questées que os colocam em conflito entre si, comparti- Iham o mesmo objeto de interesse ¢ mutuamente reconhecem uns aos outros como igualmente eapazes de exercer, empregando o melhor de suas quali- dades morais ~ prudéncia e coragem, para citar duas mencionadas anterior- mente -, as obrigagées inerentes a participagio. A comunidade politica é uma espécie de “iraternidade”, e é isso que confere igualdade aos membros. No segundo caso, como vimos, a igualdade provém diretamente do reconhecimento de um direito, qual seja, de que ao siidito, pelo puro e siniples fato de estar sob a obrigagio de observar regras compulsérias, deve-se garantir igual participagiio — nas formas, para citar as classicas, de igual oportunidade de expressar opinides, de associar-se para defendé-las ¢ de votar~ na agéncia coletiva que autoriza ta A igualdade do ple- beismo, portanto, no se bascia no imperativo de que os membros da comunidade politica devem possuir certos vinculos especiais entre si, c as qualidades morais necessérias para preservar esses vinculos. Como o tipo de igualdade que modela a comunidade politica afeta sua configuragio como um todo, no fundo estamos falando de dois arran- jos institucionais ideais, que podem ser colocados nos extremos de uma scala, Chamemos uma das pontas da escala de repiiblica, ¢ a outra ponta de democracia. Num extremo, @ expansio da cidadania ria problemas para as exigéncias de fraternidade e de virtude cos membros; no outro, 20 contrério, 6 a sua restrigdo, quantitativa (na forma de barreiras para o

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