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Livro em processo Como pensar o livro de artista pela perspectiva do como pensar 0 livro inserido em uma cadeia prod dustrial e ao mesmo tempo explorar as suas espe sua relacdo com o contetido? Ao longo do meu trabalho como diretora de ar Naify, desenvolvi alguns projetos em que o li tador “neutro” de um contetido, mas um objeto aproximando-se da fronteira do que seria o liv (do que posso dar ao tema aqui proposto_ Dentre as modalidades classicas do. € uma das mais longevas e que ap bilidades. € que o livro é um objeto Sui, para além da bidimensionall Peso, volume e textura. E, sob como um cartaz, jnclui o gesto e, consequentemente, o tempo: sequen cia, narrativa e ritmo. 0 “livro comercial publicado por uma ec ra, normalmente ests inserido numa extensa cadeia produtiva, que comeca no autor do texto eacaba no leitor. Ele é um produto editorial, tem um orcamento restrito que deve culminar em um prego de capa compativel com o mercado e para isso, na maioria das vezes, precisa ser produzido em larga escala, ‘ou seja, em uma grafica. Por fim, ele tem que conquistar um espaco nas livrarias € atrair, em geral, pelo menos 3 mil leitores. Ao se pensar o projeto grafico de um livro, essas condicionantes sao balizas importantes e, muitas vezes, direcionam o processo criativo do designer. Diferentemente do artista, que costuma lidar com seus pré- prios limites subjetivos, o designer em geral encontra apoio nas restri- g6es técnicas, econdmicas e humanas inerentes ao processo. Para e de nada adianta uma ideia genial que nao atenda as demandas especi- ficas daquele projeto € que se mostre inexequivel. Sua obra € 0 produto acabado, resultado de uma ideia que, depois d scer, sobreviveu a todas as etapas do processo. Tanto melhor o projeto quanto mais ele irtuar tiver vencido todas as etapas de interacao ser Os projetos comentados a seguir, exceto Ur desenvolyi- dos nesse contexto e se apoiam sobre um terreno muito concreto, que €o texto. Neles, a legibilidade € por vezes tensionada, mas nunca com- prometida, pois € em didlogo com o contetido verbal que 0 raciodinio Brdfico se da 0 primeiro livro de cardter mais experimental que projetei foi Primeiro amor, uma novela de Samuel Beckett. Como nao havia ne nhum tipo de complexidade funcional envolvida, mas apenas um texto Curto € continuo, me concentrei na traducdo visual da carga poetic do texto e no didlogo com os desenhos feitos por Célia Euvaldo, artista plastica € tradutora do livro. O tipo reto e pesado (Univers) € 2 mancha de texto, que pressiona as margens da pagina, exacerbam a sensagao COU Ser tim Set claustrofébica despertada pela narrativa, além de criar UM espelha mento com os desenhos abstratos. As folhas sao dobradas, e FeSquiciog dos desenhos atravessam de uma pagina a outra transformando 9 livro, em um objeto cohtinuo, 0 que acentua o aspecto compulsive do texto, que parece fluir num Unico jorro. Ja a capa tem intencionalmente, 4 sobriedade de uma ldpide. Bartleby, o escrivao, de Herman Melville, foi o Segundo projeto na trilha ja experimentada em Primeiro amor, agora alg distante do “livro neutro”. A historia trat UNS Passos mais a de um funciondrio em um es- Grit6rio de copistas em Wall Street (ou seja, “Rua da Parede” ), que passa a responder “acho melhor nao” para todos os pedidos de SeU patrao, © narrador. Este vai progressivamente se desesperando, pois Bartleby passa a ficar imovel, na mesa em frente a sua, observando a janela onde se avista a empena cega do prédio vizinho, e repetindo sua clas- Sica resposta para qualquer tipo de pedido. O patrao, tomado por um sentimento ambiguo de raiva e pena, acaba por despedir Bartleby, mas ele simplesmente repete a frase “acho melhor nao”, e continua imével. Com um texto extremamente sugestivo em maos, procurei apro- fundar 0 didlogo entre forma e conteuido, incluindo o suporte como linguagem. 0 livro, portanto, materializa a ne gacao representada pela Personagem: € costurado tanto do lado da lombada quanto do lado posto, obrigando 0 leitor a puxar a linha que mantém a capa vedada 205 Curiosos, para deparar-se, surpreendentemente, com um novo obs taculo: uma parede uniforme repetida em todas as paginas, sem nada Saito. Para acessar o texto € necessario insistir e, como a época de Bartleby, abrir (com o marcador que vern encartado) todas as paginas, fasgando na dobra Foi escolhido 0 tipo Goudy Old Style, de Frederic Goudy, tipégrafo Conterraneo € contemporaneo de Melville, em itdlico, aproximando-se do manuscrito, A capa é de um material (na verdade, um isolante lett 0) que lembra uma pasta de documentos interessou neste projeto foi a Possibilidade de ¢, co, em que a forma Aamplificasse o sentid dg de Primeiro amor, em que hi uma Narrativa em, constituida pelos desenhos, em Bartleby, 9 SCrivao, mi era que todos os elementos emanassem do Proprio texto, ga-lo com novos contetidos. Durante o Processo de plo, cheguei a testar fotos atuais de em no lugar da imagem da parede de concreto — imaginando que fotos poderiam construir uma Narrativa em didlogo com 0 indo-o € atualizando-o. Porém, essa Op¢do acabou sendo des- la, uma vez que desviava 0 foco. Com a solugdo que Fesultou na 0 final, apresentando sempre uma mesma imagem neutra, a tex. de concreto, o leitor nao se desvia em interpretacdes imagéticas, livro nao poderia simplesmente ser composto em texto corrido nha um desafio funcional: dar uma forma visual coerente a sin- da narrativa. Ou seja, o texto precisava se metamorfosear a profusao de vozes Captadas pela autora ) material escolhido para o volume foi um papel amarelo, de baixa lura, fazendo referencia aos tiquetes de viagem e aos folhetos ba- cor do papel acabou dando nome ao livro). Esse papel é muito ©; Por isso, as linhas de texto foram compostas com um duplo, de modo que as linhas da frente nao coincid Penas cegas de Sam com as linhas do verso. Dessa_ mesmo tempo, o fantasma da link sensacao de ir e vir: as linhas da | as linhas do verso, intercaladas, vis direcdo oposta. Para reforcar a algumas partes do texto foram i mancha de texto. Ja na divisdo geral dos capitulos i A sujeira e ao acaso do xerox e da tt elementos pesados, geométricos, coisas resultou num contraste parecido 0 cos da movimentagdo das pessoas 0 muito claro e funcional, préprio da rodovidria. Essas caracteristicas dialogam | livro: a diversidade de vozes narrativas perspectivas. £ No centro da edicao hd trés capitule tora compila uma série de documentos q polémico e conturbado da construgéo da impressa em papel autocopiativo, normal ais. Esse papel tem carbono embutid impressdo, vai ficando sujo e manchado, mentos copiados. Além disso, esse papel. essa parte do livro destacada do res aberto i Assim, 0 livro tornou-se um Para 0 texto. As referéncias 4 rod © 0 boro amarets do terminal de Vanesa Barbara Projeto com Maria Carolin Sampig. 2008, 46 cm = 25 an, 256 op Produc gritica: Leticia Mendes: Impreslo em effet 3° Vea Gecgritica Papet Copel amartio « Extra capy Titagern nici} ent exernptares 102 Zazie no metré € um romance de Raymond Queneau que narra as andancas da desbocada Zazie por Paris nos anos 1950. Vinda do interior Para passar uma temporada com seu tio, ela tem o sonho de andar de metr6, mas uma greve dos transportes coletivos impede a menina de fazer seu passeio subterraneo. Este livro se notabilizou por suas re- riagoes linguisticas que combinam, com humor muito préprio, uma WPapel Op opaque 37 g/m’ —_—refinada erudicao e a linguagem popular das ruas. __Tiragem inicial: 10 mil ‘esemplares Bi mil com 0 cendno urbano, cadtico e polifénico, é estruturante da narrati- Ya, assim como do projeto grafico. 0 livro é inteiramente impresso em papel-biblia, um papel de gramatura muito baixa e, portanto, bastante transparente. Mas nesse caso a transparéncia foi bem-vinda: as paginas do livro s4o dobradas e, na face interna, foram impressos fragmentos de Gartazes franceses da época. Os cartazes, nunca vistos completamente, aludem a Paris dos anos 1950, repleta de informag6es graficas, como Louis Malle explora na adaptacao para o cinema deste romance. 0 ru- Mor urbano se insinua por tras do texto, visivel através da transparéncia do papel, formando um pano de fundo para a narrativa A apa € a recriacdo de um cartaz de Robert Massin, importante Gesigner frances do perfodo, e os punhos indicando diversas direcbes fazem uma referencia ao zanzar de Zazie. Uma sobrecapa, também em Espero que 0 meu Editor ndo me exponha a0 ridiculo inserindo [no livro] folhas em branca [..] Se ha Critica para o escrit brancas que se publiquem aqui c 0, faco a do em branco [...]. Repudio como falsas todas as paginas ‘omo originais de minha assinatura | (0 papel ristico da capa foi selecionado por ser vulnerdvel a ago do tempo. Assim, ao desbotar-se, 0 romance logo apresentard um aspecto condizente com 0 contedido do livro, que €, a0 mesmo um tempo, um esboco € um classico. Olivreto Urgente pertence a um universo bem diferente dos anterio. fes, 0 Universo artesanal da baixa tiragem mais tradicionalmente reco- nhecido como o dos livros de artista. Além disso, ele nao possui texto, € um comentario visual sobre a obsolescéncia no universo grafico dos, esse livro partiu Na contra mao dos outros projetos coment. do material, o papel fotossensivel usado para provas heliogrdficas, eda possibilidade de fazer um livro que se modificasse na presenca do leitor, materializando a passagem do tempo. © processo de producao foi complexo: sobre folhas de papel he- liografico foram posicionados, em um local protegido da luz, objetos de desenho em desuso, como curvas francesas, reguas de composicaa, fetraset, etc. Em seguida, essas folhas foram rapidamente expostas a luz, depois dobradas, refiladas e guardadas em um ¢ jado, que Posteriormente foi costurado na lombada Ao pegar 0 envelope, o leitor destaca as extremidades e se depara Com um livreto que pode ser folheado. O papel fotossensivel vai se re elope ve velando em contato com 0 ar e as silhuetas dos objetos escurecem pro- Bressivamente, Objetos colocados sobre o livro também deixam marcas, até que esse processo vai se estabilizando e as partes que foram prote- Sidas da luz ficam violeta e o restante quase branco. 108

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