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CADERNOS IGIUNICAMP FE otume 6, Niimero 1, 1996 ’ POR UMA NOVA HISTORIA SOCIAL E CULTURAL DAS CIENCIAS: NOVAS DEEFINICOES, NOVOS OBJETOS, NOVAS ABORDAGENS' Dominique Pestre® placras-chawe:histévia da ciéncia estos socas da citncia ed tecnologia; hisovigrafa da ciéucia eta tecnologia RESUMO Guardadas as devidas proporgées para uma disciplina de menor amplitude, a Histéria das Citncias se encontra atualmente numa situagéo andloga 4 que prevaleceu nos anos 1930 para a Historia em seu conjunto. Esse quadro deriva de Juma profunda renovasio cujas ogens residem nas abordagens contestatorias desenvolvidas, a partie do inicio dos anos 1970, visando redefinir a natureza das priticas cientifias, e levadas a cabo por um grupo de jovens sociélogos, Antroplogos ikisofos ehistoriadores que atuoui de maneira bastante coordenada até a melade dos anos 1980. O primeiro objetivo desse artigo ¢ voltar a tais, roposigoesoferecendo um resuma que incite letura, sem a pretunsio de escrever uma histéria dessa corrente metodoligica. Em segundo lugar apresentar alguns dos cfeitos mais propriamente historiografices que dat decorreram, ber como oferecer algumas idéias sobre os novos objetos, as novas abordagens e as novas questaes, sugeridas por essa historiografia, ABSTRACT ‘TOWARDS A NEW SOCIAL AND CULTURAL HISTORY OF SCIENCES: NEW DEFINITIONS, NEW OBJECTS, NEW APPROACHES. The discipline of History of ‘Sciences is nowadays facing an analogous situation to that History has gone through during the 30's, since one respect the different proportions between these thwo fields of research. This picture derives from a profound renewal movement Uma versio em francts foi publicnda em Annales ESC, vol.50,n.3, maio-junho, 1995. Tradusio para o portugaés de Silvia F. de M. Figueirba 2 Pesquisador do CNRS/Franga, membro do Centre de Récherche en Histoire des Scienees et dela Teenologie/ Musée de La Villette, Paris. Capennos ‘capeanos 46 ‘Volume 6, Nsimero 1, 1996 | TG/UNICAMP: ‘ IGUNICAMP FE Votume 6, Nimero 1, 1996 $3 rooted in contestation approaches, developed especially from 1970 onwards, that ‘aimed to redefine the nature of scientific practices, This movement was conducted by 2 group of young sociologists, anthropologists, philosophers and historians wo acted in a very coordinated way until mid-1980. The first purpose of ths article is to go back to this ensemble of propositions to offer a summary that stimulates its reading: However, by no means do intend to write a history ofthis methodoloal ccurrent, Secondly, this article examines some more strictly historiographhieal effets, as well as offers some ideas about new objects, new approaches and new questions suggested by this historiography. A partir da metade dos anos 1980, a Historia das Ciéncias conheceu uma profunda renovacao. Mais precisamente, conheceu uma inflexdo que encontra suas origens nas abordagens contestat6rias desenvolvidas a partir do inicio dos anos 1970 que visa redefinir a natureza das praticas cientificas. Tais abordagens foram o resultado do trabalho de um grupo que atuou de maneira bastante coordenada até a metade dos anos 1980, grupo esse formado por jovens socidlogos, antropélogos, fildsofos € historiadores, cujo nticleo foi essencialmente britanico. Um notavel contingente americano a ele parcialmente se agregou no iiltimo decénio, e Michel Callon, Bruno Latour, Karin Knorr-Cetina, entre outros, contribuftam para Ihe conferir um sabor continental a partir do fim da década de 70. Durante um periodo, a revista Social Studies of Science constituiu o ponto de unio do grupo, outro veiculo privilegiado dessas reflexdes tendo sido os colquios cujas atas foram regularmente publicadas’. Nos tiltimos anos, a definigio de ciéncia que eles ofereceram ou, mais precisamente, 0 conjunto de proposicdes que eles articularam a respeito do que si0 Uma listagem parcial incluiria: 16-18 de setembro de 1975 - simpésio na Universidade de York "Aspects of the Sociology of Science”, publicado em Social Studies of Science, vol6, n.3e 4, 1976, 1978 - publicagio por D. Mackenzie e B. Norton de uma obra coetiva consagrada a sociologia da Matemitica em Social Studies of Science, vol8,n. 1; 1979 - publicagio por B. Barnes e S. Shapin (Gage Focus Fd.) de uma obra coletiva inttulada "Natural order: historical studies on scientific culture"; 1980 - publicacio por Krohn, Knorr e Whitley, como Yearbook de Reidel, do livro coletivo “The social process of scientific investigation’; 27-29 de margo de 1981 - simpésio na Universidade dde Bath organizado por H. Collins eS. Shapin sobre "Novas perspectivas em Historia e Sociologia do conhecimento cientifico” parcialmente publicado em Social Studies of Science, vol11,.1, 1981, 0b o titulo "Knowledge and controversy: studies of modern natural science”; 1983 - publicagdo por K. Knort-Cetina e M, Mulkay do lvro coletivo "Science Observed” Sage Focus Ed.) Setembro de 1985 simpsio em Bath, cujas atas parciais foram editadas por D. Gooding, T. Pinch eS. Schaffer sob o titulo "The uses of experiment” (Cambridge Univ. Press) as préticas cientificas, constituiu um quadro de referéncia novo para numerosos historiadores.O objeto da investigacdo (a ciéncia) tendo sido radicalmente definido, novas maneiras de abordé-lo surgiram, objetos diferentemente recortados apareceram, novas questées legitimas emergiram, Num certo sentido, guardadas as proporsées devidas para uma disciplina de menor amplitude, a Historia das Ciéncias se encontra hoje numa posicdo homéloga aquela que prevaleceu nos anos 1930 para a Histéria em seu conjunto. Seja porque Mare Bloch, Lucien Fébvre outros redefiniam o que eram os objetos legitimos da disciplina, seja porque propunham submeter a seu dominio uma gama de atividades até entio mantidas fora de sua jurisdicao, sea ainda porque anexavam outras praticas disciplinares, eles abriam um espaco novo a conquistar, ofereciam a sagacidade do historiador a possibilidade de historicizar praticas até entdo nao consideradas por ele. Mais especificamente - e a analogia com o que se passa na Hist6ria das Ciéncias & absolutamente pertinente -, eles tornavam caduca a assimilacfo de uma forma historiografica particular disciplina em seu conjunto, aboliam a supremacia de um sgénero tinico e dominante (0 ‘grande género’, como se diz em pintura), e tornavam legitimas abordagens até enti marginais ou menores! Esse quadro de referéncia, esse novo sistema de apreensio das ciéncias e das, priticas cientificas penetrou amplamente no meio dos historiadores das Ciéncias do Reino Unido e dos Estados Unidos (ainda que as diferencas entre ambos paises me paregam notaveis). Cada um podera julgar percorrendo os tiltimos langamentos de revistas, como Science in Context, assim como as revistas classicas da area como History of Science, Studies in the History & Philosophy of Science ou Isis. No aso britinico, essa redefinigio teve como corolério um encontro (politico) com alguns grandes historiadores como Christopher Hill, Eric Hobsbawn ou E. P. Thompson, € conduziu a aparicao de novos lacos intelectuais ¢ institucionais com 0 meio dos historiadores. Simetricamente - e ser conveniente levar isso em consideracio -, 0 meio francés dos historiadores das ciéncias permaneceu pouco permeével a esse novo referencial de trabalho, eraramente se encontrou com os historiadores "generalistas’, * Sobre o grande genero em Historia, ver Perrot (1992). ‘CADERNOS of Volume 6, Nimero 1, 1996 | IG/UNICAMP muito pouco curiosos, por sta vez, por essas evoluctes. Esse & 0 motivo pels qual © primeiro objetivo desse texto é 0 de voltar a esse conjunto de proposicées, oferecendo um resumo que incite & leitura. Num segundo momento, trata-se de apresentar alguns dos efeitos mais propriamente historiograficos que dat decorreram, oferecer algumas idéias sobre 0s novos objetos, as novas abordagens ¢ as novas questées sugeridas por essa historiografia’ Precisarei ainda dois pontos. De inicio, o objetivo deste trabalho nao é, de modo algum, escrever uma histéria dessa corrente, propor uma andlise histérica, tentar compreender, por exemplo, porque ela apareceu antes no contexto britanico. Faltam-me conhecimentos para realizé-lo ¢ seria necessaria uma enquete mais, aprofundada. O objeto deste trabalho 6, pois, mais modestamente, o de penetrar nos textos, apresentar suas teses intelectuais, mostrar as estratégias utilizadas, a forga renovadora que neles se encontra - e fazé-lo com certa simpatia. Segundo ponto, correlativo ao anterior: essa apresentagao nao subentende que nada existiria nao fosse o que aqui se discute. Excelentes trabalhos vém sendo publicados por historiadores das ciéncias ha decénios, fato que nao se questiona nem se contesta. O que esses estudos permitem fazer, afinal, 6 tomar distancia em relagao a nossas proprias préticas (aquelas dos historiadores da ciéncias), a considerd-las com olhos ‘mais sistematicamente criticos, e a identificar os pressupostos e as atitudes implicitas que governam nossas definicdes e enfoques, que delimitam nossas apostas e guiam rnossas escolhas, particularmente face as grandes posiqGes filos6ficas propostas em relagio as ciéncias. Nesse sentido - e é 0 meu sentimento -, esses trabalhos 56 podem ser uma fonte de enriquecimento intelectual. ® Esse vocabulério - “novos objetos", "novas abordagens”, “novas questdes" - é, evidentemente, tomado de empréstimo de Le Goff e Nora (1974). Vous 6, mero 1, 1996 ‘7 _——— QUAL A NOVA IMAGEM DAS CIENCIAS E DAS PRATICAS CIENTIFICAS? ‘A construgao dessa imagem se fez por etapas e nao desembocou num modelo unificado. Eu me proponho, portanto, para comecar, a relembrar brevemente as principais etapas de sua constituigio. Uma breve cronologia Uma das origens reside nos trabalhos propostos por David Bloor no semindtio de estudos sobre ciéncias de Edimburgo durante a primeira metade dos anos 1970, trabalhos que constituem um quadro de referéncia para o grupo, um signo de identidade metodolégica. Esse referencial programético de trabalho esté articulado em tomo de quatro principios de método (denominados causalidade simetria, imparcialidade e reflexividade), 05 quais tém 0 objetivo declarado de desvencithar a Historia das Ciéncias das leituras construidas de modo retrospectivo que sustentam que nada ha a explicar quando um sébio “descobre" uma verdade de natureza (estamos apenas diante de um "bom" cientista), mas que a explicagio « essencial no caso contririo. Recusando a "histéria julgada' (estilo Bachelard) & « anacronismo que ela implica quanto ao uso trans-historico das caracterizagoes de "verdadeiro” e “falso", David Bloor sugere que 0 historiador seja ‘simétrica’ « ‘imparcial’ no tratamento dos atores, que ele nao se influencie pela seqtiéncia di histéria que ele conta, que ele seja, a0 contrario, o mais contextualista possivel + ofereca explicacdes de mesma natureza tanto para os "vencedores” quanto para 0 fencidos". Em suma, que nao cometa o pecado do anacronismo e nao pense en termos da evidéncia da descoberta, de um lado, do impedimento patol6gic remol6gico) de outro" (ocial, psicoldgico ou ¢ © Bloor (1973), Collins (1982) ‘CADERNOS Be Volume 6, Nuimero 1, 1996 | FG/UNICAMP J Esses principios de método constrangedores, ao mesmo tempo em que ‘opostos ao senso comum, so para Bloor proposicées heuristicas cujo uso simulténeo no é simples. Elas nao serao, inclusive, aceitas sem infinitas nuances nos anos que se seguiram. Sem poder aqui descer ao detalhe, retenhamos que certos principios de Bloor perdem rapidamente seu fascinio. E este notadamente o caso da condigao de causalidade, herdada de Karl Manheim, e que remete a uma concepcao estreita da explicagao hist6rica, Outras sao ignoradas aqui, mas esto colocadas no centro dos programas de pesquisa. E 0 que ocorre com a exigéncia de reflexividade (a saber, que 0s historiadores e sociélogos aplicam a si mesmos as condigdes que eles enunciam para 0 estudo dos cientistas), exigéncia explicitamente abandonada por Collins no inicio dos anos 1980, mas transformada em arma militante por Mulkay, Woolgar ou Ashmore. Na realidade, apenas as condigées de simetria e imparcialidade permanecem unanimemente aceitas, tornando-se assim emblemas do grupo’ © segundo momento se situa na segunda metade dos anos 1970 e est marcado pelos primeiros trabalhos de Barry Barnes, Steven Shapin, Donald Mackenzie, etc. Estimulados pelo "programa forte" de Bloor e pelo que ele veicula de radical quanto ao tratamento hist6rico das ciéncias, esses estudos pendem para uma anilise critica da producao dos saberes cientificos que toma muito de empréstimo aos enfoques estruturais, & Sociologia alema e & Antropologia funcional. Isso significa que as produces cientificas sao tratadas como sistemas de proposigdes € ages, como cosmologias constituidas localmente pelos humanos a fim de dar conta do mundo que é 0 deles. © papel do historiador consiste, entav, em decudificar € descrever essas cosmologias, colocar em evidéncia as condigdes culturais, politicas e sociais que governaram sua constituicao, O cerne da demonstragao é constituido Por uma série de analises encaixadas umas nas outras, que se desdobram do local (tal teoria defendida por tal sabio em tal momento) ao geral (p. ex., aquilo que 6 0 contexto social de tal cidade ou de tal pais em tal época). A explicagio histérica tem como fungao harmonizar o cosmoligico e 0 social, 0 cientifico e o contextual, dar conta do "contetido das ciéncias” pelo seu “continente”, sendo que seu enfoque trata 7 Ashmore (1989), Collins (1981), Mulkay (1985), Woolgar (1988). ‘CADERNOS: JGUNICAME J Volume 6, Niimero 1, 1996 +9 as produgées cientificas igualmente a todas as outras produgdes culturais geradas pelos humanos* Faremos a esse propdsito trés observagies cujo sentido se tornaré mais claro adiante, A saber: que esse tipo de andlise é essencialmente estético, pois que os esquiemas conceittiais e as praticas dos intelectuais so, a cada vez, referidas a um dado contexto ou grupo social dos quais se pensa poder oferecer uma caracterizacao, nao problematica; que 6 a nogdo de interesse (social, econdmico, politico ou de categoria) dos diversos grupos que governa a explicacao; finalmente, que 0 objeto de estudo permanece sendo a Ciéncia enquanto Saber, endo a Ciéncia enquanto um ‘Fazer cujos produtos transformam o mundo. © terceito momento - cronologicamente concomitante aos precedentes - desloca a cena para o sul da Inglaterra e remete aos trabalhos de Harry Collins. Seus enfoques sao mais sociol6gicos que histéricos, suas ferramentas sio as entrevistas a presenca junto aos cientistas, e sio as praticas contemporaneas dos laboratérios que sio analisadas e esmiucadas. Os trabalhos de Collins sao ‘locais’ (ele pratica uma micro-sociologia limitada a alguns individuos e nao coloca em cena cosmologias ou grandes grupos sociais), tem como objeto a maneira como se negociam cotidianamente os “fatos cientificos". Sio os gestos e os atos materiais que interessam a Collins, o saber-fazer e os saberes técitos, a maneira pela qual os cientistas comparam e calibram seus instrumentos, 05 procedimentos de validagao localmente colocados em agio pelos experimentadores. Um de seus objetivos é 0 de mostrar a infinita flexibilidade de interpretagdes que propdem os autores, o fato de que os consensos que emergem encobrem consideracdes multiplas e heterogéneas, que as conclusdes praticas sobre as quais, finalmente, se fazem os acordos sto sempre amplamente contingentes. Na virada do anos 1970-80, Collins toma posic6es mais gerais e propde sua propria versio do programa forte, intitulada Programa Empirico do Relativism. Precisemos que, a fim de oferecer estudos empiricos com grande poder de conviecio, Collins segue duas estratégias paralelas. De uma parte, toma ‘umerosos exemplos dentro do que ¢ tradicionalmente considerado como 0 coragao "Barnes e Shapin (1979), Knorr, Krohn & Whitley (1980), Mackenzie (1981), Shapin (1985), Woolgat (1981), €.08 volumes 6 (m3 e 4), 1976, €8 (n.1), 1978, de Soca! Sts of Sciences. CADERNOS ie Volume 6, Nimero 1,199 | FG/UNICAMP do sistema cientifico -a saber, as ciéncias fisicas. De outra, procura mostrar que os procedimentos reivindicados como legitimos nesse dominio (os métodos) qualitativamente diferentes daqueles que se encontram nas margens do sistema, em. Jo so Parapsicologia, por exemple’. Aquilo a que temos o costume de chamar anélise de controvérsia & 0 resultado dos programas precedentes. Muito em voga na primeira metade dos anos 1980, esse género historiogréfico combina duas coisas. A escolha de um "terreno" circunscrito de inicio, isto é, a escolha de um objeto empirico voluntariamente limitado, documentado dia-a-dia, e cujo coragao é constituido de uma polémica aberta. Desejando focar de perto a pratica cotidiana das comunidades cientificas, esses estudos analisam, de preferéncia, debates técnicos “ordinérios” (a questio das camadas devonianas na Geologia na primeira metade do século XIX, a das “correntes fracas neutras” na Fisica de particulas nos anos 1970) e evitam as “grandes controvérsias”, os debates de forte ressonancia ideol6gica (do tipo “criacionismo ou evolucionismo” ). Esse modo historiogratico implica, por outro lado, um método de tratamento estrito do debate cuja linha mestra é, na mais estrita ortodoxia blooriana, ‘simetrizar’ o que € dito ou imputado aos atores, um método que recusa a hist6ria julgada, Na anélise da polémica, a regra 6 ser agnéstico em relagao aos atores, nao fazer intervir as explicagdes da ciéncia attal (pois elas impedem dos e dos debates do passado), seguir a fabricacdo progressiva, em cada um, das convicg6es, dos enunciados, do saber-fazer. captar as especificidades dos enun Aplicados aos debates que permanentemente atravessam as comunidades de especialistas quanto a0 que sao 0s “fatos cientificos”, os estudos de controvérsia oferecem demonstragses empiricas elogiientes. Valendo-se de um tom muitas vezes iconoclasta, eles dao uma imagem em came e osso do que sao as praticas de campo dos gedlogos, ou o trabalho “de copa e cozinha” dos fisicos e bidlogos. Esses estudos objetivam, de todo 0 modo, sempre uma mesma questio: saber o que faz com que ‘um consenso particular emerja quase sempre, para além da infinita diversidade de proposicies iniciais, para além de sua maleabilidade. As respostas inicialmente ° Collins (1974, 1978, 1981, 1985), Pinch (1980, 1956), CADERNOS istic | Volume 6 Niimero 1, 1996 on trazidas a essa questdo sao extremamente variadas nessa época - eu voltarei a esse ponto®. Acrescentarei um comentario: a saber, que essas andlise de controvérsia nao tém suas raizes numa cultura hist6rica, mas na tradicao do estudo de caso (filos6ico ‘ou sociol6gico) de forte tendéncia demonstrativa. Nese momento, entao, tal exercicio era freqiientemente militante, uma maquina de guerra contra a filosofia analttica e/ou a filosofia popperiana dominante na Gra-Bretanha. Era a afirmacio de um programa, o de voltar- para tomar uma expresso entio muito em voga -, a uma descrigéo da ciéncia “tal como ela se faz”, uma descrigao mais “espessa”, mesmo que ela ndo seja ainda uma antropologia das ciéncias e de suas praticas. Notar-se-d aqui um pequeno paradoxo. O que esses estudos de caso buscam demonstrar quase sempre é que 0s fatos cientificos sao construgdes negociadas e que 36 raramente permitem o desempate entre teorias concorrentes - 0 que, no contexto intelectual britanico, permanece até hoje de extrema importancia. Essas andlises também se apresentam como casos transparentes, exemplos falando por si mesmos, cuja fungio é a de invalidar, a partir da evidéncia factual, as teses classicas” Por simplificacao, até o momento eu apresentei essa renovagao como sendo a realizacio de historiadorese sociélogos que recusavam uma concep¢ao racionalista a de precisar que esses historiadores e socidlogos leram e estudaram a etnometodologia, essa s6cio- ou positivista das ciéncias. A imagem nao ¢ falsa, mas di etnologia minimalista e ascética surgida na California nos anos 1960 e que se caracteriza por uma rejeicdo radical de toda interpretacao (orientada, por exemplo, em termos de grupos ou classes). A imagem precedente esquece também do livro de Bruno Latour e Steve Woolgar de 1978, “Laboratory Life”, um livro que mostra, por Como exemplos de anslises de controvérsis eu destacare Pickering (1984) ¢ Rudwick (1985), assim como as coletineas de artigos traduzicis por Callon e Latour (1982, 1955) ” Mutkay (1979) e Pestre (1990). Uma observacio sobre a minha apresentagao das coisas. Quanto 308 flea Fer Soil 3 mode de Ecimburgo eo eves chamanco dean decontrovn sesuperpiem argent deren, see sempre, apenas de ntersadenaadarent no qe taagr so Teer Ralor veer desanfor enor cortroienn, Notre, de loc moc Gut a anise de cofrovenn al como eu a descrevo aqui conduz a dias coisas. 2 urn SCtarcament progressive das quests macrosoins urn ado, xu reloro das descies Getalnaday dae mrvanalive da pratice materia a8 thick descriptions”, secu Re Volume 6, Niimero 1, 1996 | IG/UNICAMP J contraste, em que os trabalhos anteriores nao sao de natureza antropoldgica, nfo se constituem em uma antropologia do laboratério. A noviciade radical do livro 6, com feito, que ele nao coloca no coragio de seu trabalho nem as cosmologias cientificas, nem a andlise de controvérsias. Situado em outra parte, num mundo sem © livro recusa radicalmente qualquer intencionalidade. Nao propondo nem um relato nem uma “explicaao"social das ciéncias, ele mostra que a etnografia funcionalista nao é a inica vidvel ¢ interessante. Olivto olha os cientistas, de fato, com um othar tao radicalmente estrangeiro A sua (@ nossa) cultura que ele “esquece” de falar da Gnica questio que eles julgam (que ‘Gs julgamos) essencial - aquela dos conhecimentos produzidos, do contetido, do sentido fabricado pelos atores via um debate de idéias. Assim fazendo, ele libera um e5paco novo para o olho, permite um olhar inesperado sobre um mundo que no entanto parecia familiar - permitiré também aos historiadores se renovarem’?. Finalmente, ficarei por aqui para a parte mais grosseiramente cronolégica desta apresentagao, convém mencionar os trabalhos posteriores de Latour e Callon, trabalhos que marcaram profundamente esse grupo ao deslocar seus centros de interesse fora dos meios cientficos. O que caracteriza esse enfoque 6, primeiramente, @ vontade de compreender a eficécia da ciéncia em agio, compreender como as. acontecimento nem diactonia, Praticas dos laboratérios passam a pesar sobre 0 mundo ¢ a transformé-lo. Ele se define também pela recusa em admitir que € possivel limitar-se ao universo de especialistas para compreendler as ciéncias e sua dinamica, contentar-se com micro- anilises de controversias. Nao satisfeto com a pretensio socioldgica de explicar um saber (cientifico) por um contexto (social), Latour “s: compreender como o complexo (técnico-lcientifico e o corpo social se (re)definem e Se (re)consirdem simultaneamente, Nao é mais localmente, apenas no espaco dos ” do laboratério e busca laboratérios, que o segredo dos saberes e de sua validacao é buscado, mas nas retomadas e tradugdes que operam no conjunto do corpo social. Koore-Cetina (1981), Latour fe Woolgar (188), Lynch (1985), Lynch Livingatone&e Garfinkel (1983), ‘Woolgar (1984). Para um estudo “clissico” da antropologia do laboratir, ver o bellesima live de Traweek (1988) e suas respostes aos prececentes em Pickering (1992), CADERNOS JGIUNICAMP. J Volume 6, Niimero 1, 1995 on ‘A questa nao é mais tanto saber como as proposicdes dos cientistas se tomnam epistemologicamente verdadeiras (isso concemne ao programa “cléssico”), em precisar como sua legitimidade é negociada na comunidade especialista (isso Poderia ser uma definicio do programa “controvérsia”), mas descrever como os enunciados, através dos objetos e das priticas, se impdem na competigio pela Sobrevivencia (social e cognitiva). A ciéncia sendo um dispositivo que produz e inventa uma ordem - e ndo um dispositivo que “desvela” a ordem escondida da natureza-€ equivocado “descontextualizat” seus enunciaclos. Sempre ligados.a seus Portadores, nao tém existéncia independente. Apropriados, traduzidos, Permanentemente adaptados e transformados por aqueles que os usam, Permanecem para sempre especificos e nio passiveis de um tribunal universal (0 contexto de justificagao). Frutos de conjunturas com componentes muito diversas, Podem ser vitoriosos aqui, transformados lé -e sempre desctitos como idénticos a eles mesmos. Em cada momento realiza-se um novo arranjo indissociavelmente Social e cognitivo, um arranjo sempre a ponto de ser deslocado. Em suma, Latour rope abandonar os esquemas explicativos clissicos (0 cognitivo se explica pelo Social, por exemplo) e oferece um sistema de referéncia dinamico, sem hierarquia a Priori (0 social se reconstr6i permanentemente). Para fazer aparecer esse movimento de conjunto, Latour segue com freqincia a trajet6ria de atores privilegiados, atores tentando convencer-interessar-constranger 0s outros a aceitarem suas historias, Nesses estudos, a dimensio espacial do envolvimento substitui muitas vezes com vantagem as leituras temporais mais habituais". Algumas Proposicées Resultantes Desses Trabalhos Existe um discurso dominante ocidental dos tltimos séculos a propésito das cigncias. Esse discurso é, primeiramente, obra dos cientistas (em particular dos fisicos que o recitam e repetem ao longo de geracées) mas também de fil6sofos e " Callon (1975, 1981), Latour (1983, 1984, 1989, 1991), Rouse (1987), CADERNOS ue Volume 6, Numero 1,1996 | IG/UNICAMP especialistas de ciéncias humanas que buscaram sistematizé-lo. Nesse discurso, se aceitarmos uma grande simplificagdo, as ciéncias sfo, no mais das vezes, apresentadas enquanto sistemas de proposicdes, sistemas de enunciados podendo (ou devendo) ser falsificados por confrontacio com a experiéncia. Muito freqientemente, a dimensao abstrata ¢ super-valorizada. f, com efeito, no campo tedrico que se joga o essencial da ciéncia, € 14 que a imaginacgo inventa o mundo - ‘a experimentacao permanecendo sempre mais trivial, pouco diferente da nogio de teste de desempate entre proposigdes teéricas rivais. Sustenta-se também, com freqiiéncia, que os procedimentos que caracterizam a ciéncia imaculada podem ser explicitados (fala-se entio de método cientfico), sendo um elemento de destaque a reprodutibilidade sempre possivel dos resultados experimentais. A ciéncia é, enfim, 0 Saber por exceléncia, o meio de acesso privilegiado ao conhecimento do mundo. Transcendendo 0 tempo ordinario dos historiadores, a categoria de cifucia &, por fim, pouco problematica e pode ser utilizada sem muito risco através dos tempos" A visao dessa imagem, um certo nimero de contra-proposigoes derivadas dos estudos precedentes pode ser adiantado. Aquelas que aqui formulamos nao tém como fungio dar uma imagem exaustiva e global das posigdes tomadas. Elas tém muito mais uma fungio heuristica, qual seja, a de sublinhar algumas contestacdes fazer aparecer as linhas de forca. Essas concernem tanto as priticas cientificas quanto as maneiras de estudé-las, elas misturam alegremente elementos descritivos © pontos de métodos histéricos. Por fim, o fato de que eu seja primeiro um historiador das ciéncias fisicas contemporaneas nao é inofensivo. Minhas imagens espontaneas, bem como a maioria dos exemplos que utilizo, vm desse dominio - e eu conhego muito mal, por exemple, as ciéncias biomédicas e as especificidades implicadas nas variagdes do ser vivo, a multiplicidade de instituigoes legitimas ou * Ver Hacking (1989) para uma caracterizagéo nao desprovida de humor. Como vigorosamente escreve Loup Verlet, as cigncias tendem a evacuar a propria idéia de sua fundagio. Para os cientistas, esclarece, “a realidade que esles descrevem impe a poucas coisas priximas a escrico que delas se faz e a epistemologia que conforma essa descrigio”. Propsem entio uma historia que, “reinterpretada de maneira a fazer ressaltaraI6gica e a necessidade, vem assim apolar o mito de uma ciéncia totale absolutamente objetiva” (Verlet, 1983, p 28-29) ‘CADERNOS IGRUNICAMP FE Votume 6, Nimero 1, 1996 ’ oencontro do sofrimento. Cada um reteré, portanto, os limites e o cardter parcial e partidario do que se segue. Primeira contra-proposicdo: é preferivel abandonar a categoria “Ciéncia”*, com tudo o que ela veicula de reificagio, ¢ falar preferencialmente de campos disciplinares e de priticas materiais e cognitivas muiltiplas. As diferencas que separam a pratica da Filosofia Natural daquelas da Geologia do inicio do século XIX € da Fisica Nuclear pés-Segunda Guerra mundial sao tais que subsumi-las numa categoria Gnica € um exercicio enganador que conduz a questées de pouca Pertinéncia. O postulado da unidade das ciéncias apoiado numa maneira particular de tratar os problemas (ou seu uso implicito através do emprego do adjetivo “cientifico”) € certamente reivindicado por numerosos cientistas, mas nada obriga a tomé-lo como liqitido e certo. Dito de forma positiva, parece preferivel considerar 08 diversos momentos e espacos como tantos quantos espagos com regras epistemologicas, sociais, materiais e retéricas especificas -cada um deles sendo, além disso, muito mais uma soma de sistemas e representacoes parcialmente articuladas do que um conjunto unificado™. © papel do historiador é, portanto, o de seguir estas transformagSes, construir uma cartografia hist6rica com muitas dimensdes - ¢ 0 de absolutamente nao se inquietar em excesso com 0 “corte epistemoldgico” Historicisar radicalmente a nogio de ciéncia - bem como eserever a histéria da emergéncia retérica dessa nocio - so, pois, pré-requisitos desse programa”. A segunda proposicao se opde a idéia de que a ciéncia seria, antes de tudo, ‘um sistema de enunciados. Se opde a idéia de que seria intrinseco 3 ciéncia sua capacidade de explicitar plenamente esses enunciados e a separi-los do saber-fazer nao formalizavel que especificamente caracteriza outras préticas. Convém, a0 contrério, reconhecer que, tanto para as ciéncias tedricas quanto para as ciéncias "* A Filesofa francesa, me parece, prefere plural (as ciéncias), 0 mundo anglo-saxio.o singular. No «290 francés, o uso do plural nao deve todavia mascarara procura de uma centificidade, ou mesmo dde um discurso normative, "* Os isicos ee materiais nos anos 1930-60, por exemplo, mostram atitudes extremamente varidveis face a Mecinica Quintica, as modelagens de nivel intermedisrio, is ferramentas materiais da diseiplna, assim como ao que constitui a prova. Ver, p. exemplo, Pest (1989) Cunningham (1988). 16s Volume 6, Numero 1, 1996 | SG/UNICAMP. ] praticas ou experimentais, os saberes técitos, o saber-fazer, as maneiras de fazer e de tratar concretamente os problemas vém primeiro, e que éa propria maestria cm lidar com esses saberes “corporais” que caracteriza os grandes cientistas. Aquele que pratica as ciéncias é alguém que adquiriu uma cultura, que foi formado, modelado por um certo meio, que foi fabricado no contato com um grupo e com ele compartilhou as atividades -e ndo uma consciéncia critica operante, um puto sujeito conhecedor. Aculturado num conjunto de priticas, de técnicas, de habilidades manuais, de conhecimentos materiais e sociais, ele é parte intrinseca de uma comunidade, de um grupo, de uma escola, de uma tradigao, de um pais, de uma época. Desde que Polanyi, Kuhn e Collins mostraram que a transmissao dos saberes cientificos nao é excegio e passa menos pelas palavras e mais pelo “fazer com”, os historiadores constataram a generalidade do fato. Ninguém jamais esteve a ponto de construir um ciclotron nos anos 1930, por exemplo, sem uma estadia prolongada ‘em Berkeley - o local da invengao dessas maquinas -, e sem participar de corpo presente da construcéo de um acelerador. Igualmente, 0 aceite de uma interpretagao comum sobre 0 que enunciava a relatividade einsteiniana foi construido progressivamente, em torno de um conjunto de priticas progressivamente homogeneizadas - e a metafora da “difusdo” da teoria da relatividade (concebida como um conjunto conceitual univoco em suas significagdes e transparente para todos os atores) é problemética™. Uma terceira contra-proposicao poderia ser esta: o fato de que os saberes cientificos aparecam como bastante cumulativos (o que embasaria substancialmente 19 € humanidades) ndo resulta ner conjunto de regras logicas (“o método cientifico”) nem de comportamentos éticos ot sociais particulares. A respeito do primeiro ponto, as andlises de controvérsia fizeram esvanecer 0 universalismo do método”. Sobre o segundo, notemos que as do emprego de um a diferenga entre ciénci '® Heilbron de Seidel (1988) sobre Berkeley; Polanyi (1958), Kuhn (1986), sobretudo o posficio de 1969, esobretude Collins (1985) para o saber-fazer €-05 saberestacitos. "© Uma palavra sobre 0 método. retrospectivamente,e se limitamos suficientemente 0 dominio da atividade considerada (por exemplo, 3 Fisica-matematica da segunda metade do século XIN) podemos icentificar regularidades nas maneiras de fazer © qualifci-las de regeas de método. (continua... ‘CADERNOS IGONICAMP Hh Votume 6, Nimero 1.1995 on normas éticas que Merton atribui as comunidades cientificas organizadas (vontade «de partilhar conhecimentos, ceticismo coletivamente organizado, universalismo dos enunciados, desprendimento dos individuos, etc.), normas que regulariam os comportamentos e as ages ¢ estariam, assim, na base da dindmica préfia das ‘igncias, aparecem como infinitamente mais simples para serem conservadas™. As anilises de controvérsia foram aqui de uma real eficécia demonstrativa Sempre articuladas com estudos detalhados, mostraram e demonstraram que os debates concretos que se desenvolvem entre os especialistas sobre a fronteira dos saberes seguem trajetérias miiltiplas, que nfo se resolvem jamais por uma argumentacdo logicamente necesséria e da qual ninguém pode escapar, que o “forum de justificagio” -local abstrato das idéias no qual se desenrolaria o confronto ogico e racional dos argumentos e provas - anilises mostraram, por exemplo, que 0 estabelecimento do fato experimental (“eu ‘descobri’ tal propriedade de tal particula”) e a interpretagao do resultado (“estas Propriedades so aquelas enunciadas por tal modelo”) nao sao jamais separdveis: fem todos os casos, fatos, provas e normas da prova sio definidos no mesmo movimento. De fato, o debate sobre o resultado da experiéncia (ou seja, sobre 0 “fato”) e aquele sobre o que é uma experiéncia corretamente conduzida (¢ que implica o experimentador e sua instrumentago) s4o um tinico e mesmo debate”. Formulando de outro modo, pode-se dizer que toda atividade cientifica é uma atividade pratica de interpretacao e de invencio implicando saberes e saber- fazer, certezas formalizadas e conviccio intima, e que consiste em trazer julgamentos sempre contextualmente situados. Entre os atores cientificos, os modios e critérios de é uma racionalizagio a posteriori. Essas (..continuagio) Descritivamente 0 exercicioé passivel de ser imaginado. Convém, entretanto, notar que que isso ‘io possivel senio pela inducio a partir de pratias efetivas- , portanlo, «posterior -, e que nao €0 conhecimento das regras (de método ou de comportamento) que guia os atores. A analogia, clissica, com o manejo da lingua em relagio a0 da gramatica ¢ aqui adequada, ® Merton (1973) A questio das normas de sua eficicia nas priticascotidianas e na socilizagio merece estudo, obviamenie. Minha eta ineide aqui sobre a achistoricidade das cotegoras ‘mertonianas ea dimensio muitas vezes edificante de seu emprego. * Colin (1985), capitulo 4, bem como o debate recente vivoa propésito desta teses entre Franklin «Collins em Studies in the History and Philosophy of Science (Franklin (1954) e Collins (1994), CADERNOS 186 Volume 6, Nimero 1,199 | IG/UNICAMP julgamento nao so nem dados, nem sempre explicitados. Ao contrario, a definicao do que se faz prova e do que é aceitavel & precisamente a esséncia do debate. Poder- se-ia aqui retomar Martin Rudwick e dizer que as proposicdes dos cientistas (para nio falar dos objetos e dos instrumentos) sao construgoes e atos de representagdes que sao inteiramente humanos, que so 100% facanhas de homens. Certamente se pode argilir que o que se diz nao é sem relagio com o que se descreve, que os enunciados e objetos produzidos pelos homens de ciéncia o sao a partir de praticas de interagdo com o real, que as realizagdes cientificas permitem, por exemplo, um dominio sobre o mundo - Rudwick emprega a metéfora da carta que permite as pessoas convenientemente socializadas se deslocarem em ambientes desconhecidos para elas -, mas a Natureza, sejamos claros, nao fala jamais. S40 sempre os homens que falam em seu nome, tudo o que eles propdem sdo suas construgdes, que por sua vvez.sdo inseparéveis de culturas mais vastas- ¢ nenhum método existe que colocaria 0 cientistas & parte do comum dos mortais e os liberaria do fardo e dos constrangimentos, sociais, da representacdo e da interpretacao. As implicacdes para o historiador so que ele deve notar as convengoes e os procedimentos praticos que regulam a elaboracio e a avaliacio dos conhecimentos de cada espaco-as nodes de objetividade ou de exatitude sendo categorias préprias dos atores, das produgdes histéricas das quais convém, precisamente, dar conta”. Introduzirei minha quarta contra-proposi¢ao por uma questao. Se as andlises de controvérsia mostraram a flexibilidade quase infinita de recursos de que dispdem os humanos para construirem os fatos e lhes atribuir um sentido, como dar conta do fechamento das controvérsias, como explicar que os consensos emerjam to regularmente entre especialistas das ciéncias “duras” ? Se desejarmos responder plenamente a questo, é necessrio, de inicio, retomar essa nogdo, talvez. muito evidente, de consenso que se imporia necessariamente. Farei a esse respeito trés observacies. % Collins (1985) ¢ Rudwick (1985). Sobre a historicisagio da categoria de objetividade ver, dentre ‘outros, Daston (1991, 1992) “ADERNOS IGIUNICAMP FE Volume 6, Némero 1, 1996 De inicio, os consensos concernem raramente ao conjunto de especialistas que estiveram implicados num dado debate”. £ uma leitura retrospectiva e desrespeitosa dos acontecimentos que permite acreditar nisso, uma simplificagio devida a uma visio distante. Os fendmenos generacionais, mesmo que ndo sejam os linicos, so importantes, por exemplo, Parafraseando Max Planck ao comentar 0 debate quantico, poder-se-ia dizer que um novo sistema (teGrico na ocorréncia, mas ‘que poderia ser material) ndo convence nunca por ele mesmo, mas que uma geracio ‘more e uma outra a substitui, para quem as novas regras sio familiares (é exatamente 0 que dé a impressao de que o consenso se espalha como uma nuvem, de poeira)*. Minha segunda observacéo consistiria em dizer que 0 consenso freqiientemente no concerne sendo a grupos de atores cuidadosamente delimitados, a superficies de saberes finitas ¢ situadas em contextos de utilizagio precisos. Evidentemente, os atores sempre colocam suas proposicOes como universais, mas las sao formuladas para resolver questdes especificas. Teotias e priticas sio aceitas como titeis para tratar de certas questdes, mas so julgadas pelos mesmos homens como inadequadas (ou falsas) para abordar outras. Uma solucio pode nao ser adotada por um grupo e, no entanto, ser largamente utilizada por um outro que tem a peticia requerida para fazé-la frutificar. Finalmente, a dinamica das ciéncias no se reduz a uma dialética controvésias-consensos, mas se apéia sobretudo na circulagio de objetos e de saber-fazer. £, portanto, fato usual a existéncia de uma técnica que, por se espalhar e tomnar-se comum, permite a homogeneizacao de uma comunidade. E assim, por unificar as praticas de um grupo, por permitir a cada um reproduzir um mesmo fendmeno e sua formalizacdo, faz.com que a controvérsia, que implicava inicialmente ferramentas diferentes que conduziam a resultados nfo reprodutfveis, se encerre por si mesma” ® ‘sso finamente analisado no livre de Rudwick (op. cit), * Planck (1960) Precisamente, Max Planck escreveu em sua autobiografiacientifica: “uma verdade ‘nova em citneia rio chega jamais atriunfar convencendo os adversirios elevando-os a vera luz, ‘mas sobretudo porque, finalmente, os adversirios motrem e uma nova geragao eresceu”, A respeito da bomba de ar vec Shapin & Schaffer (1993); do prisma de Newton, Schaffer (1989). Ver também Sibum (no prelo)e Peste (1998), CADERNOS ne Volume 6, Nimero1,1996 | TG/UNICAMP | eaperNos IGIUNICAMP Volume 6, Niimero 1, 1996 Convém, pois, tormar a sério 0 fato de que uma solugao nao é jamais logicamente necesséria e determinante, que ela nao se impée jamais no sentido absoluto do termo - que todo fechamento de um debate ou todo consenso é local por natureza e pode apenas ser compreendido no contexto preciso de sua elaboracao. Por essa razdo, a aparente universalidade dos enunciados cientificos, o fato de que eles sejam descritos como “verdadeiros em qualquer parte” e compreendidos “nos mesmos termos' por todos ndo pode constituir um bom ponto de partida para uma ‘éncias, Se os saberes cientificos (da mesma forma que outras formas de saberes) circulam, nao é porque sejam universais. E porque eles circulam - andlise hist6rica das {sto é, porque sio (re)utilizacios em outros contextos ¢ um sentido Ihes é atribufdo por outros -, que eles sao descritos como universais. Por tras dessa proposicéo se encontra a idéia jé evocada que somente Deus poderd dizer 0 que é 0 mesmo, ele apenas poder dizer se um saber é concebido, interpretado, vivido de maneira perfeitamente equivalente por todos, se 0 invariante existe numa comunicaco. Para dizer a verdade, parece mais plausfvel supdr 0 contrario. E talvez acrescentar uma coisa: que cada personalidade é muiiltipla (seja ela do teérico mais eminente), que habitamos, todos, diferentes universos de uma s6 vez, que compartilhamos temas de praticas numerosos, € que, no momento da aco, no momento do fazer, nés nos valemos de recursos de todos esses mundos tentando ao comunidades e s ‘mesmo tempo manter uma identidade™ Uma quinta proposicdo, que eu jd evoquei, consistiria em dizer que a pratica das ciéncias nao é, talvez antes de tudo, uma atividade cognitiva que buscaria resolver enigmas, uma atividade que, bastante auténoma em relagao a outras praticas sociais, progrediria pela resolucio sucessiva de questdes intelectuais. Claro, a controvérsia em torno de algum problema est4 eminentemente presente nas ciéncias, mas a dindmica, a l6gica de desenvolvimento dos dominios cientificos a excede amplamente. Os programas que visam estabilizar e dominar materialmente 0s fenémenos, aqueles que buscam, de inicio, produzir objetos ou instrumentos tém logicas préprias que so, ao menos, igualmente decisivas. Uma abordagem instrumental - por exemplo, conceber dispositivos geradores de ondas cada vez mais % Rouse (1987), Veyne (1989), Star (1991). curtas-, tem uma logica que pode impulsionar todo um campo de pesquisa e induz: reorganizagées intelectuais to répidas quanto inesperadas”. "A ciéncia” é enta considerada como organicamente incluida nos sistemas amplos (tecnol6gicos © produtivos) e ¢ validada em nome de critérios diferentes segundo os locais (segund critérios de eficdcia no combate para os militares, por exemplo). Contrariamente aparéncia, essa situagdo nao tem nada de excepcional, ela nao se restringe &s pratica da Fisica do século XX ou as da Biotecnologia. Nés a encontramos também n coracdo da Filosofia Natural dos séculos XVII e XVII ‘Uma expressio que eu empresto de Kohler pode permitir evocar um outr aspecto dessa proposic ele a respeito dos bidlogos do século XX, “nao séo com os problemas mas sim cor 6s sistemas experimentais”. Com essa frase ele indica que as praticas experimentai e instrumentais que ele considera ndo se definem de inicio em relacao as grande questoes tebricas e as alternativas que estas colocam em evidéncia, mas que cad grupo, cada escola, cada laboratério tem, antes de tudo, uma dinamica ligada sistemas preferen conceituais ou, como aqui, a sistemas bioldgicos (a droséfila, p. ex.). Os atos d >. “Os fortes compromissos dos experimentalistas”, escrev de investigacio - sejam esses aparelhagens, sistemz experimentagéo, nos diz Kohler, seguem o mais das vezes programas d investigacio modelados em seu arcabougo pelo saber-fazer e pelos dispositive disponiveis, saber-fazer e dispositivos que delimitam o horizonte das possibilidade a curto e médio prazos. Nao portanto, o sistema de valores que definiria hierarquia das questées a resolver (das mais importantes &s mais secunditias), mz as l6gicas de validagio @e de crenca que so multiformes e diferenciadas, qu evoluem em todas as diregées - e que se impdem localmente, em fungao de critérie heterogéneos (valorizagio social, retomada num meio tecnoldgico, etc.). Ma fragmentados do que se diz, a pratica e o desenvolvimento das ciéncias s6 poder ser estudados sem se separar jamais 0 conceitual, o material ou o instrumental d ® sobre a importincia decisiva da dinimica instrumental nas cinciasfisias apes 1945, ver Pest (RHMC, 1992) CADERNOS ne Volume 6, Namero 1,1996 | TG/UNICAMP técnico ou do politico. Sempre misturadas, a légica de uns redefine permanentemente a dindmica dos outros", Uma ultima palavra para encerrar esta sega. Evidentemente, as proposigdes relatadas aqui muito sucintamente envolvem questoes filosGficas e epistemol6gicas muito vastas que dizem respeito tanto a natureza do “saber cientifico” quanto 8s abordagens ¢ pressupostos que devem ser aqueles do analista-historiador (é claro, para mim, que essas duas questdes ndo podem ser separadas; sem as ferramentas de sua agai pratica, qualquer proposicdo tedrica é va). Mesmo que nao frontalmente, essas proposicdes tocam, por exemplo, nos seguintes pontos: como pensar a relacdo do especialista com 0 “real” ? Esse “real” deve ser levado em conta na anélise histérica? Se sim, através de qual meio prético e/ou literério - posto que o historiador ndo tem, em geral, acesso ao “real”, a menos que reproduza as ‘experiéncias por si mesmo, o que levanta outros problemas?” Se nao, é conveniente adotar uma postura metodologicamente “relativista” (seguindo exclusivamente os enunciados e as priticas dos préprios atotes) e, por exemplo, ontologicamente agnéstica? Tais debates sio apaixonantes, ndo triviais, balizaram os encontros mencionados no presente artigo, ¢ estiveram sempre presentes, indubitavelmente, no seio da tradigao filoséfica. Este artigo nao tem, de modo nenhum, o objetivo primeiro de responder a essas quest0es, nem tampouco o de propér um sistema fechado. Talvez fosse conveniente fazé-lo, mas isso no almejamos. O propésito é, efetivamente, o de identificar novos enfoques em Histéria, e meu sentimento é 0 de que o historiador pode trabalhar de forma excelente colocando entre parénteses, Provisoriamente, as respostas a algumas das questdes precedentes. Deve apenas estar consciente das simplificagées (muito prejudiciais a um trabalho histérico digno desse nome) induzidas pela visio classica das ciéncias, evitando metodologicamente © anacronismo sistemético que ela costumeiramente implica”. * Kohler (1991, 1994) ® Pestre (1994), % A titulo de contribuisdes ao debate de fundo, ver Collins (1981, 1983) e os diversos artigos em (continua... CADERNOS IGRUNICAMP HE Volume 6, Nimero1, 1996 +2 QUAIS OS NOVOS OBJETOS E QUAIS AS NOVAS ABORDAGENS PARA A HISTORIA DAS CIENCIAS? © que me proponho a fazer agoraé colocar em evidéncia, com o auxilio de exemplos, algumas das novas maneiras de fazer, alguns dos novos objetos historicos surgidos nos tltimos anos. Nao h4, uma vez mais, preocupacio com o esgotamento do assunto, nem na leitura do que foi publicado (a interferéncia produzida por ser historiador da Fisica, fato jé mencionado, é aqui mais importante que nunca), nem 1a catalogaco das novas formas que é proposta. Trata-se de um inventario parcial (nenhum foi tentado até o momento, ao que eu tenha conhecimento)” cuja fungio € tanto atrair a atencao dos historiadores quanto suscitar ampliacées, precisées, contestagdes. Um de meus objetivos é salientar que muitos desses novos objetos no foram considerados até o momento, seja porque eram “invisiveis” para uma Historia que permanecia sobretudo uma Histéria das idéias (6 o caso para aquela que tratou com destaque da questao das provas, por exemplo), seja porque eram percebidos como banais e pouco nobres (a Historia “epistemologisante” muitas vezes criou tais situagGes). Meu desejo ¢ o de fazer aparecer, por detrés da aparéncia de trivialidade ‘ou de ndo pertinéncia, aqueles objetos escondidos que, no entanto, sio essenciais para uma boa compreenséo das praticas cientificas, objetos dotados de uma historicidade que permite fortemente & disciplina nao ficar fechada em si mesma e se ligar A Histéria cultural, 4 Histéria industrial ou A dos instrumentos- em suma, objetos que permitem a Hist6ria das cigncias reintegrar o conjunto dos questionamentos histricos, sem nenhuma excecao. Acrescentemos, a fim de evitar as ambigiiidades, que os socal studies of science ‘no so as tinicas fontes da historiografia que passaremos a descrever. Fendmenos de osmose e de transferéncias ocorreram com os meios dos historiadores Propriamente ditos (incluidos, evidentemente, 0s historiadores das ciéncias), bem continuagio) Pickering (1992) % Shapin (1985) 6 também um artigo de sintese. ‘CADERNOS: me Volume 6, Niimero 1,1996 | FG/UNICAMP como com 0 conjunto do meio intelectual intemacional dos tiltimos quinze anos (0 leitor perceberé facilmente tais fertilizagdes cruzadas). Nao resta mais do que uma configuracio especifica, talvez identificdvel por suas instancias proprias, suas manias e seus tiques, e que as filiagGes permanecem estreitas com o que foi descrito nas paginas precedentes. Hist6ria Das Ciéncias e Histéria Dos Instrumentos Se a Historia das ciéncias ndo é, a prinepio, a Hist6ria dos métodos e das, teorias, se ele ndo envolve apenas a Hist6ria das idéias e dos conceitos, mas supde que as ciéncias sejam sistemas de préticas que visam a determinag3o do que, na experiéncia, deve ser tomado como real, a Historia da instrumentacao e das logicas instrumentais deve fornecer pistas de pesquisa novas e interessantes. Se se admite que a prética da Filosofia Natural e das ciéncias a partir do século XVIL tem consistido largamente em intervir no mundo € em transformar observacdes ¢ experiéncias locais em aparelhos e instrumentos capazes de circular fora de seu local original de fabricagdo, se se admite que essa dimensio é inerente aos projetos das academias e sociedades de especialistas tanto quanto aos particulares e aos Estados ‘que as sustentam na época moderna, se se admite, ainda, que 0s fatos cientificos nao circulam senao com o saber-fazer que permite operacionaliz4-los e que, no dominio experimental, as mAquinas so os meios privilegiados dessa aculturacdo, 0 estudo das redes de circulagdo e de validacao dessas aparelhagens aparece como central” Limitar-me-ei aqui a evocar apenas um aspecto dessa historia contextualizada e social da interface entre ciéncia, instrumentacio e experimentacdo, um aspecto que ilustra a autonomia das logicas instrumentais ¢ a variedade de projetos dos fildsofos naturais e dos fisicos contemporaneo. Mais precisamente, desejo mostrar que o programa reducionista - que postula que a ciéncia (a Fisica?) no encontra salvacao sendo no estabelecimento de leis cada vez mais elementares, © ‘Schaffer (Invisible connexions, 1992) AMP ] Volume 6, Nimero 1, 1996 425 na descrigéo de fendmenos em termos de seus componentes “fundamentais” - no €o tinico que tem o direito de ser citado. Artigos de Galison e Assmus, Hackman, Lindq importdncia da tradigao mimética da pesquisa, uma tradigéo que busca imitar a e Schaffer permitem ilustrar esse ponto. © que eles fazem reviver é a Natureza, uma tradicéo que visa reproduzir em laborat6rio os fendmenos naturais, Dentre os exemplos dessa ciéncia mimética, lembremos da recriacio, pelo homem, dos terremotos, do movimento das geleiras, das auroras boreais, das nuvens, dos vendavais, das tempestades e do comportamento do raio, ¢ toda essa re-fabricagio humana assentando-se num argumento de analogia segundo 0 qual os efeitos similares, sejam eles produzidos em laboratGrios ow na natureza, so devidos, certamente, a causas idénticas™. O objetivo porém nao é, por exemplo, recontar a dinémica de um ciclone pela aplicagao das leis do movimento as particulas fundamentais que o compoem, mas 0 de fazé-lo existir no seio do laboratério, recompor e exibir um “auténtico ciclone”. COnipresente no século XVIII, essa maneira de praticar a ciéncia foi revivificada pela tradicio humboldtiana, ocupou um amplo espago na Inglaterra vitoriana e persiste no século XX, ainda que ocultada, no discurso sobre o que é a pratica legitima da ciéncia pela nova Microfisica. Em alguns momentos, ambas tradigSes podem se reencontrar e viver em harmonia. £ o caso, por exemplo, da camara de bruma de C. T.R. Wilson: nos anos 1895-1911 esse dispositivo termodinamico funcionou como ‘um meio de investigagdo utilizado pelos fisicos que se ocupavam de radioatividade no laboratorio Cavendish - fisicos esse que buscavam, na tradigio reducionista, identificar a natureza microscépica da matéria - e como um instrumento de exploragao da constituigioe da morfologia das nuvens pelo proprio Wilson, na mais pura tradicao analégica™. Fazer reviver essa tradigéo é essencial por mais de um motivo. Primeiramente, porque ela permite lutar contra a imagem simplificadora que ® ‘Schaffer, idem ibidem. A respeito de CT. R. Wikon, ver Galison fe Assmus (1989). 264 Volume 6, Nimero 1, 1996 MP votumes, Neimero 1,1996 27 sustenta o programa reducionista como emblematico de toda a ciéncia™. Quando ‘olhamos para esses trabalhos verios que, com efeito, nfo séo obra de marginais, que essas investigacdes se inscrevem em tradiges que vém de longo tempo, que sao essenciais para certos meios sociais ou para certos campos (a dinamica dos fluidos ou diversas praticas de engenheiros). Acrescentaria que, com freqiiéncia, s4o leituras retrospectivas e profundamente anacronicas que fazem com que essa tradi¢ao seja ignorada ou mal lida. Um exemplo simples seria 0 aparelho de Von Guericke desenvolvido nos anos 1660 e que muitas vezes é descrito como um prototipo de méquina eletrostatica, quando na verdade era uma aparelhagem que deveria provar que a gravitacdo era de natureza elétrica (e nao magnética, como sugerido por Gilbert), causada pela fricgdo do ar sobre a Terra em movimento. Fazer reviver essa tradicdo (mas ela nio é a tinica que mereceria um tal tratamento) permite, enfim, estabelecer pontes entre os historiadores das ciéncias e os historiadores dos instrumentos, permite revivificar, pelo enriquecimento mtituo, duas comunidades -vivendo a parte pela indiferanga de uma pela outra quando nada hé que autorize essa atitude. ‘Um outro elemento digno de nota, mesmo que eu nao o desenvolva aqui, é que 0s instrumentos s30 apenas objetos concebidos ¢ validados pelos filésofos naturais ou pelos cientistas, e seu status varia conforme os contextos em que So colocados para operar. Sao freqiientemente objetos que preenchem fung6es técnicas ou de producao (e que sdo assim também construidos e avaliados em funcdo de critérios proprios pelas comunidades de artestos, empresérios ou de engenheiros); so dispositivos dotados de simbélicas variadas e que tém fungdes retéricas e politicas (tal telesc6pio ou tal instrumento matematico especificamente concebido para um principe no contexto da Corte); sfo objetos que podem ser concebidos para colegdes (e que respondem entao a novos critérios, estéticos ou sociais); podem, % Acrescentarcia aqui duas coisas essenciais, Ermprimeiro lugar, esse ideal reducionista erigido por hnecessidade foi sobretuclo o feito dos fsicns. Em segundo lugar, sua evidéncia ¢ diretamente ‘questionada ha 15 anos pelos proprios fisicos! Com os fractas, as teorias do ca0s e certos usos do Gomputador, a metafisica da Fisica esté em vias de sofrer uma profunds mutacso: a nocio de fundamentalidade muda totalmente, por exemplo, assim como ade temporalidade (as les da Fisica jfosio talvez imutdveis). Sam Schweber e Tian U Ca0, em Harvard, sio aqueles que trabalham de ‘maneira mais continua e consequiente sobre essas questoes. enfim, ser instrumentos pedagégicos cujo objetivo & o de permitit uma reproducéo fécil e no controvertida de fendmenos precisos. Como bem foi mostrado pelo programa de replicagdo de experiéncias histéricas empreendido em Oldenburg e Cambridge, um abismo existe entre os materiais utilizados na fronteira da pesquisa ‘eaqueles que, normalizados e padronizados, servem em seguida is manipulagdes demonstrativas. Otimizados para produzir e exemplificar o resultado atualmente considerado justo, esses uiltimos no podem permitir dar conta dos problemas ‘encontrados na fase de pesquisa”. Na origem, efetivamente, a natureza do fato experimental é o desconhecido, la € precisamente o que esté em jogo, o que convém definir. Na medida em que a existéncia de dispositivos diferentes conduz. freqientemente especialistas a descreverem fendmenos diversos, a polémica se desenrola, de inicio, em torno da confiabilidade das aparelhagens e da qualidade dos experimentadores. No auge da pesquisa, a realidade do fendmeno nao pode ser invocada para discriminar as diversas proposigdes, posto que isso é precisamente o que se busca estabelecer. ‘Simetricamente, uma vez. adquirido 0 consenso - isto é, uma vez que a verdade da natureza esteja admitida por uma maioria de especialistas -, um critério simples permite diferenciar os bons dispositivos - e os bons manipuladores -, dos maus. A funcéo demonstrativa pode entio desenrolar-se plenamente: a obtengio do bom resultado pelo aprendiz de sdbio (obtido gracas a um dispositivo tinico concebido para esse efeito e aceito como a norma) é garantia da aprendizagem, a garantia de ‘uma socializagao bem sucedida”. * Para um notivel estuda de replicaglo contemporinea, ver os artigos de Otto Sibum. Para uma reflexto sobre essas priticas e0 que elas podem aportar ao historiador, Gaucillre (Aster 1994) € Pestre (1994), A referincia fundamental para essa questo permanece Collins (1985) © sua nogio de “experimenters regress”. ase CADERNOS Volume 6, Numero 1, 1996 | 1G/UNICAMP- Historia Das Ciéncias e Andlises Das Praticas Em perfeita consonancia com a Histéria cultural atual que analisa préticas ¢ toma como objeto operacées através das quais 0 sentido ¢ localmente produzido, numerosos trabalhos de Histéria das ciéncias recusam atualmente as noses passivas de difusdo e recepgio para reter aquelas, mais ativas, de representacdes e de apropriacdes historicamente situadas. Ilustrarei esse aspecto a partir de dois artigos de Andy Warwick, 0 primeiro propondo-se a reler a hist6ria dos primordios da Teoria da Relatividade a partir dessas nogoes, e 0 segundo interessando-se pelas, téenicas de célculo numérico da época vitoriana. O interesse em escolher aqui anélises versando sobre trabalhos te6ricos é porque pode parecer menos evidente utilizar a nogo de pratica nesse contexto™. © ponto de partida de Warwick em seu primeiro artigo é uma adverténcia, ‘a saber, que a teoria proposta em 1905 por Einstein nao é 0 objeto auto-evidente e altamente significativo que a historiografia apresenta tradicionalmente. Ele lembra que a significagio correntemente atribufda hoje aos trabathos de Einstein resulta da maneira pela qual eles foram reinterpretados pelos fisicos, que ela decorre de um trabalho retrospectivo de atribuigao de sentido tendo inicialmente implicado outras interpretacdes. Sendo 0s cientistas os primeiros a dar sentido a seus gestos, Warwick insiste na necessidade de desconfiar da histéria que eles mesmos contam (que é uma historia de “vencedores”); insiste em que os objetos do estudo histérico sejam, a principio, os diferentes usos que os cientistas fizeram dos textos de Einstein, depois, aquilo que esses usos revelam das praticas tesricas dos diversos grupos, ¢ enfim os modos pelos quais um consenso interpretativo emergiu via urna homogeneizagio das maneiras de trabalhar™. 9 Warwick (1992-83, no prelo).Para reflexGes mais amplas sobre a nogdo de priticas, vero vol2, m1, 1988 de Science in Context ea obra coletiva editada por Pickering (1992). » 4 linearidade eas falsas continuidades criadas pela histéria espontinea dos especialisas se deve 20 fato de que, desde que uma pritica se torna hegemdnia (e que as ontologias associadas no si mais controvertidas), a tendéncia a de reler os textos antigos (pelo prazer ou pela curiosidade) ¢ a perceber (de forma anacrénica) as ferramentas ¢ 0s objetos semelhantes a0s seus, af descobrir (continua...) on | | capernos IGIUNICAMP Volume 6, Neimero 1, 1996 | Pelo emprego da expressio “prética tedrica” Warwick deseja que reconhecamos a dimensdo de saber-fazer inerente ao trabalho matematico-tedrico, © fato de que esse repousa sobre um conjunto de procedimentos empregados de forma “automatica” ou privilegiada, que ele é sempre material e culturalmente situado (a epigrafe de seu trabalho ¢, alids, uma citacdo de Wittgenstein que diz “to give a new concept can only mean to introduce a new employment of a concept, a new | practice”), As “tecnologias teéricas” que entram em operacio séo constituidas de | maneiras de fazer préprias a cada grupo (os fisicos matematicos de Cambridge no | inicio do século, assim como os tedricos do grupo de Broglie trés decénios mais, | tarde, tém seus modos préprios de abordar e tratar os problemas) e essas | “tecnologias” sio adquiridas através de processos de aculturagéo cléssicos - aprendizagens escolares, contatos individuais, participago em trabalhos de uma escola, etc. Uma certa incomensurabilidade pode, portanto, existir entre as diversas tecnologias empregadas numa dada época - 0 que nao impede a discusso comum, de certos problemas pois estas teorias pressupéem referéncia @ uma realidade fisica tinica”. Sem entrar aqui num detalhe que se tornaria esotérico, 0 que mostra | Warwick & que os trabalhos dos fisicos e matematicos de Cambridge nao tinha senao muito pouco a ver, entre 1905 e 1911, com os trabalhos desenvolvidos na mesma | época na Alemanha, trabalhos esses que fixaram 0 que nés entendemos hoje como | “teoria da relatividade restrita”. Se bem que o matematico Cunningham seja, por exemplo, freqiientemente tomado por um dos introdutores da relatividade na Inglaterra, Warwick mostra que ele trabalha no contexto bem particular do programa de Larmor (o programa britanico da teoria eletromagnética da matéria) @ nao adota o que esté no fundamento das tecnologias da nova eletrodinamica ™(continuagio) precursores af enxergar um campo de recursos formais que so lidos (heuristicamente_a partir do onto de chegada. Assim se cra uma historia que permite se situar, um relato que permite dar sentido a0 que acaba de ser conseguido. & claro, essa operagio no ¢ absolutamente restrita aos ‘entstasela se encontra em todo trabalho intelectual, e portanto em nés mesmo ° Sobre o caréter decsivo da aculturagio, ver Kuhn (1983). Sobre o grupo de Louis de Broglie no periodo entre-Guerras, Pestre (1984). 304 Volume 6, Neimero 1, 1996 ‘Volume 6, Nsimero 1, 1996 #31 relativista alema (notadamente a questo central da sincronizagio dos relégios, ou © emprego, em sua generalidade, da equagdo E = mc’). Cunningham considerava que Einstein nada fez além de chamar a atengao sobre fato de que, tomadas em seu conjunto, a estrutura eletrénica da matéria e o formalismo matemiitico das transformagSes de Lorentz implicavam revisar a concepsdo entio dominante do éter. Tomando “naturalmente” o trabalho de Einstein como um complemento aos trabalhos fundadores de Lorentz e Larmor, ele nao imagina que, antes de 1909, pudessem existir interpretagoes fisicas diferentes do principio da relatividade. Uma demonstragao paralela & conduzida por Warwick a propésito de Campbell, um fisico britanico contemporaneo de Cunningham. Em seu artigo sobre a pratica do célculo numérico na Inglaterra vitoriana (isto &, sobre as técnicas e 0s meios materiais € humanos postos em pritica para obter, a partir de formulas algébricas, valores numéricos), Warwick combate a idéia de que nada haveria de interessante a ser estudado pois nao se iria além da “aplicacao de formulas”, do “simples” trabalho “téenico” de dedugio - um trabalho a um s6 tempo trivial e sem historicidade prépria A questao precisa que ele se coloca é a de saber como séries de ntimeros, como tabelas (de logaritmos, p. ex.), ou maquinas, sao concretamente produzidas, saber onde, como, por quem e porque elas so imaginadas e fabricadas. A identificagao das préticas concretas do célculo numérico evidencia atores, objetivos, imaginérios, regras de aproximagao - e regras sociais -, miltiplos e contradit6rios. ‘A nogo de produgio de nimeros é aqui, particularmente, bem adaptada, Inicialmente, porque a realizacio de célculos numéricos nao é gratuita, j6 que custa tempo e trabalho, além de ser materializada em organizacées sociais especificamente concebidas para essa tarefa. Em segundo lugar porque, como esses nimeros ou tabelas séo produtos (oferecidos, por exemplo, num mercado) respondendo a demandas, eles nao podem ser elaborados sem que seja conhecido 0 uso para o qual ‘so destinados. E assim porque a preciso que ¢ solicitada (quantos algarismos significativos sdo requeridos), bem como a natureza exata das séries, sdo fungao das necessidades dos futuros utilizadores. Com efeito, sfo 0 uso pretendido e 0 custo de execugio que ditam o nivel de precisdo do que se oferece. O estudo de Andy Warwick conduz, assim, a0 que significa “ser preciso” para os diversos segmentos da sociedade vitoriana, conduz a uma historia da maneira pela qual a nogéo de preciso & concebida e construfda pelos diversos atores. Os grupos sociais interessados na fabricagéo ou utilizagao de séries numéricas sé numerosos desde o final do século XVIII. Mencionemos as companhias de seguros, os banqueiros, as companhias de navegaclo, as marinhas nacionais, os astrénomos, os fisicos e os engenheitos, as artlheiros e aqueles que, no aparelho de Estado, mediam e controlavam as populagées. Cada grupo tem seus programas, seus meios financeiros, até mesmo seuss proprios sistemas de producio. Em fungao dos contextos, os niimeros que fabricam podem ser tornados piiblicos, vendidos, guardados em segredo ou falsificados (podem ter um valor estratégico). A produgéo de dados numéricos implica uma divis4o precisa do trabalho entre mateméticos enrugados concebendo os métodos, matematicos mais jovens reduzindo esses métodos a etapas mais simples, e executores encarregados dos cAleulos elementares. Implica uma organizag’o do espaco, dos sistemas de codificagao e de apresentacao dos resultados, a mecanizacao de certas operagées, além de debates intensos sobre a confiabilidade e a possibilidade de utilizagio de ferramentas mecénicas. Quanto 4 domesticagéo dos homens pelas restricSes ‘materiais e comportamentais estritas, ela &justificada pela necessidade de ganhar em produtividade e de erradicar os erros (de célculo, de c6pia, etc.) que maculam as tabelas, tornando-as duvidosas e colocando assim em perigo o proprio sistema. Em suma, Warwick mostra que 0 estabelecimento de centros de célculo numérico 6 uma operagio excessivamente complexa, que implica numerosas escolhas técnicas € sociais, e que ndo se trata, em absoluto, de simplesmente “calcular” ou “aplicar férmulas”*, © estudo das praticas tendo sido um tema maior desta historiografia, as andlises de Warwick representam apenas casos muito particulares. Mais freqiientemente, é a produgfo de “fatos” experimentais que foi tratada. Para dar uma idéia desses trabalhos, evocarei aqueles consagrados aos procedimentos de calibragio dos experimentadores colocados em prética a fim de garantir a “ Warwick nota também que uma verdadeira indsistia, uma verdadeira cultura do cileulo emergiu ‘no século XIX, uma culture da qual nada mais temos do que uma fraca ida,

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