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= a Biblioteca Anarquista PROUDHON textos escolhidos A Propriedade é um Roubo * O Advento da Liberdade © O Sistema de Contradigoes Econémicas * A Revolugao de 1848 © Do Principio de Autoridade * Do Poder Absoluto @ Anarquia * O Governo e 0 Povo * Proudhon e as Candi- daturas Operarias © Contra o ‘‘Comunismo"’. Danie! Guérin Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) Proudhon era filho de camponeses da regio de Franche-Comté. Seu pai era um tanoeito € ptoprietario de uma taberna. Proudhon iniciou a vida como tipégrafo ¢ mais tarde trabalhou como fepresentante de uma firma uansportadora com sede em Lyon. Foi ai que manteve seus primeiros contatos com os socialistas, comecou a desenvolver teorias proprias sobre um sistema sem governo, baseado numa organizagao econdmica cooperati vista € na liberagio do crédito de agiotagemn que 0 controlava. Em 1840 publicou Qu'est-ce-que la bropnété?, onde se declarou pela primeira vez anarquista. © livro foi elogiado por Marx que se transformaria mais tarde no grande critico das idéias de Proudhon. Durante a revolugao de 1848. Proudhon tornou-se deputado independent da Assembléia Nacional ¢ fundou um Banco do Povo para demonstrar na pritica as suas teorias so- bre crédito livre ¢ editou uma série de didrios alta- mente criticos, comegando com Le Representant du Peuple. que the valeu uma longa temporada na prisio sob o reinado de Napoleao IIL. Posterior- mente outto livo, De Ja Justice, levou a que fosse julgado € exilado na Bélgica. De volta a Paris, suas ctiticas corajosas fizeram dele um lider respeitado entre os operdrios, € um grupo de discipulos seus os Mutualistas, teve participacio ativa na criagao da Primeira Internacional Seu livro péstumo, De la Capacité Politique des Classes Ouvniires, fomeceu a base teérica para 0 anarco-sindicalismo. Bakunin chamava-o de ‘'Mestre de todos nés!”” Daniel Guérin PROUDHON Traducdo de Suely Bastos Extraido do original francés Ni Diew ni Maitre (Anthologie de l'anarchisme), de Daniel Guérin. traducdo: Suely Bastos capa: L&PM Editores revisdo: Marcia Camargo © Daniel Guérin, 1980 Todos 0s direitos desta edicdo em lingua portuguesa estdo reservados 4 L&PM Editores Lida. — Av. Nova lorque, 306 90.000 — Porto Alegre Rio Grande do Sul Impresso no Brasil Inverno de 1983 PJ. Proudhon (1809-1865). Proudhon jovem: auto-retrato. . Proudhon tipégrafo Estréias péblicas. A ptopriedade é um roubo Advento da liberdade. . O sistema de contradigdes econdmicas. . Proudhon na Revolugio de 1848. Proudhon se langa ao combate... .. Proudhon eandidato desempossado (abril de 184 Proudhon candidato eleito (4 de junho de 1848) Apés a insurreigao operaria de junho de 1848. Manifesto cleitoral do povo. Do principio de autoridade. O preconceito governamental Do poder absoluto @ anarquia. . Das leis O sistema representative Do sufrigio universal Governo € povo Nada de autoridade Indice 69 Proudhon e as candidaturas operarias (1863-1864). Paris numa tarde de eleigdes (1° de junho de 1863). . Manifesto dos sessenta operirios do Sena (17 de feverciro) de 1864). Nada de candidatos! Carta de Proudhon aos opcrarios Contra 0 “comunismo™ A soberania coletiva.......06 0060 ee © “comunismo’’; um estatismo agravado. Da associago..... 2... A pretensa ditadura das massas Da espontaneidade. . A revolugéo nao é obra de ninguém. oe 85 7 +a ell 11 113, U3 14 HS 116 P-J, Proudhon (1809-1865) A 16 de janeiro de 1865, Pierre-Joseph Proudhon morria em Paris, aos cingiienta e seis anos de idade. prematuramente des- gastado por um intenso labor cerebral. Como evocar em algumas palavras a personalidade deste velho operiro, filbo de campone- ses, filho de suas obras, autodidata? Colocados todos os seus outros méritos @ parte, foi um dos maiores escritores de nossa lingua, ao qual o critico literario Sainte-Beuve consagrou um livro intetro, O génio de Proudbon era multiforme, suas obras completas (as quats se acrescentam os catorze volumes da Correspondéncia, os cinco volumes dos Cadernos, em curso de publicagao, e ma- nuscritos inéditos revelados pela tese de doutorado de Pierre Haubitmann) superabundantes. Foi, ao mesmo tempo, 0 pai do “‘socialismo cientifico’’. da economia politica socialista e da socto- Jogia modema, 0 pai do anarquismo, do mutualismo, do sindica- lismo revolucionario. do federalismo e desta forma particular do coletivismo que hoje a 'autogestio"’ atualiza. Suas consideragoes sobre a Histéria e, notadamente, sobre a Revolugao Francesa, so- bre Napoledo, sto de uma perspicdcia que o aparentam a Miche tet. Enfim e sobretudo, foi o primetro a entrever, e a denunciar brofeticamente, os perigos de um socialismo autoritarto, estatal e dogmiatico A Revolugéo de 1848 lhe forneceu a ocasiao de descer, com conagem, @ arena revoluciondria e, sob 0 segundo Bonaparte, a audacia subversiva de seus escritos lhe valeram perseguicoes, a pri- sao € 0 exilio. Sua distincao de espirito original e paradoxal, exagerada por uma poderosa inspiragao plebéia, levou-o muito freqitentemente 4 deixar fundir em seu cérebro, em ebuligéo, idétas excessivas: so- bre a guerra, sobre o progresso, sobre o feudalismo, sobre o racisc- mo, sobre a arte, sobre a sexualidade, etc. Pregava uma moral fa- naticamente puritana. Nunca se libertou inteiramente da forma- a0 crista de seus primetros anos e, em sua obra mais monumen- tal, um dos requisit6rios mais virulentos e mais esmagadores fa mais pronunciados pelo anticlericalismo, a Justiga aparece no fim das contas como um sinénimo, pouco diferenciado, de Deus’. ele nao conseguiu nunca reseitar o forte cunho idealista que devia a leitura, por pessoas intermediirias, de Hegel, e seu espirito fun- damentalmente juridico permaneceu fechado & concepgao mate- rialista da Hist6ria. Ao mesmo tempo revolucionario e conservador, apaixonado bela kiberdade ¢ pela ordem, Proudbon foi rewvinaicado pelas ideologias as mais opostas. Em vida, ainda que bastante lido e ob- seto de uma publicidade barulhenta, foi singularmente 56. O marxismo, que the deve mutto e que nem sempre o ata- cou de boa-fé, eclipsou-o durante muito tempo. Ainda que divi- adido sobre 0 plano da agao entre o blanquismo, o reformismo parlamentar, 0 anarquismo e o estatismo e, no plano teorico, en- tre a filosofia hegeliana e a economia politica inglesa, ele é, pelo menos aparentemente, mats coerente do que foram as visdes por veres cadticas de Proudhon. O formidavel poder temporal, a di- tadura intelectual exercida hoje sob 0 nome. usurpado, de Marx, De fa Justice dans la Révolution et dans CEglise, 1858 a favor ao mesmo tempo da Revolugao de Outubro e de sua trai- ao pelos epigonos vermelhos, fizeram injustica &@ memoria de Proudhon. Ele foi até ontem quase um desconhecido, caluniado, esquecido, Acreditava-se ter dito tudo ao the jogar 0 epiteto in- sultante de “'‘pequeno-burgués"’. Mas até no campo ‘'marxista’’ comega-se a relé-lo e a injiria a baixar de tom. PROUDHON JOVEM: AUTO-RETRATO* Nao tenho nada a dizer de minha vida privada; ela nao con- cetne aos outfos. Sempre tive pouco gosto pelas autobiografias ¢ nfo me intetesso pelos negécios de quem quer que seja. A pro- pria Hist6ria e o romance s6 me atraem na medida em que ai en- contro, como em nossa imortal Revolucdo, as aventuras da idéia. (...) Nasci em Besancon, em 15 de janeiro de 1809, filho de Claude-Frangois Proudhon, tanoeito, cervejeiro, natural de Chas- nans, perto de Pontalier, Departamento de Doubs; e de Catheri- ne Simonin, de Cordiron, paréquia de Burgille-les-Marnay, mes- mo Departamento. Meus avs por parte de pai e mae foram todos agricultores li- vres, isentos de corvéias e de mios-mortas desde um tempo ime- morial. (...) Até doze anos minha vida, foi quase toda passada nos campos, ocupada ota em pequenos trabalhos rdsticos, ora em pastorear as vacas. Fui vaqueiro durante cinco anos. Nao conheco existéncia ao mesmo tempo mais contemplativa e mais realista, mais oposta a este absurdo espiritualismo que é a base da educa- sao e da vida cristas, do que a do homem do campo. (...) Que prazer antigamente de me rolar nos altos capins, que eu quisera roer como minhas vacas; em corter de pés descal- G0s sobre os caminhos Gmidos ao longo das sebes; mergulhar mi- nhas pernas, (...) plantando as verdes ¢urguias** na terra profun- * Excertos de De la Justice... Il: Lettres 2 l'Académie de Bétangon, 1837; Confes stons d'un Révolutionnatre pour Servir & l'Histoire de la Révolution de Ferner, 1819. Turquia, nome dado pelos camponeses ao milho (confundido com o ttigo dito da Turquia mas de fato originério do Novo Mundo) 9 da e fresca! Mais de uma vez nas quentes manhas de junho aconteceu-me de tirar minhas roupas e tomar banho de orvalho no relvado. (...) Mal entao distinguia o eu do nao-eu. Eu era tudo o que podia tocar com a mio, alcangar com o olhar ¢ que me cra bom por algum motivo; nao:-— eu era tudo o que podia me fazer mal ou resistir a mim. Todo dia eu me enchia de amoras, de rap6n- cios, de salsifes dos prados, de ervilhas verdes, de graos de papou- las, de espigas de milho assadas, de bagas de todas as espécies, amcixas, lodao, cerejas, rosas silvestres, videiras, frutos selvagens; cu me empanturrava com montes de frutas ¢ legumes crus de fa- zet estourat um pequeno-burgués bem-educado e que nao pro- duziam outro efeito em meu estémago sendo o de me dar a tarde um apetite formidavel. A boa natureza nao faz mal aqueles que lhe pertencem. (...) De quantas chuvas me enxuguei! Quantas vezes, mo- Thado até os ossos, sequei minhas roupas no corpo, a0 vento ou ao sol! Quantos banhos tomados a todo momento, no verao, no tio, no inverno, nas fontes! Trepava nas 4rvores; metia-me nas caver- nas; apanhaya ras na cotrida, caranguejos em suas tocas, artiscando-me a encontrar uma horrivel salamandra; depois, no mesmo lugar, eu assava minha caca. Ha, do homem ao animal, em tudo 0 que existe, simpatias ¢ 6dios secretos de que a civiliza- Gao rouba o sentimento. Eu amava minhas vacas, mas com uma afeigao desigual; tinha preferéncia por uma galinha, por uma 4r- vore, pot um rochedo; Disseram-se que o lagarto € amigo do ho- men € eu 0 acteditava sinceramente. Mas sempre fiz rude guerra as cobras, aos sapos ¢ as lagartas. O que eles me fizeram ? Nenbu- ma ofensa. Nao sei; mas a experiéncia dos homens me fez detesta-los sempre mais. PROUDHON TIPOGRAFO (...) Saido do colégio, a oficina me recebeu. Eu tinha deze- nove anos. Tornado produtor por conta propria e cambista, meu trabalho cotidiano, minha instrucgao adquirida, minha razao mais 10 vigorosa me petmitiam aprofundar bem mais o problema, como nao teria sabido fazer outrora. Esforcos iniiteis: as trevas se aden- savam cada vez mais Mas qué! Dizia-me todos os dias no “‘soltar’’ minhas linhas, se por algum meio os produtores podiam se combinar para ven- der seus produtos € servicos quase a preco de custo e, por conse- guinte, pelo que eles valem, existiriam menos novos-ricos, sem di- vida, mas também existiria muito menos indigéncia. (...) Nenhu- ma experiéncia positiva demonstra que as vontades € os interesses nao possam ser equilibrados de tal modo que a paz, uma paz im- perturbavel, seja fruto disso, e que a riqueza torne-se a condicio geal. (...) Toda a questao é encontrar um principio de harmonia, de ponderagio, de equilibrio. Apés algumas semanas de trabalho em Lyon, depois em Mar- selha, o Jabeur* sempre faltando, dirigi-me a Toulon, onde che- guei com trés francos ¢ 50 centavos, meu dltimo recurso. Eu ja- mais estive mais alegre, mais confiante do que neste momento cti- tico. Ainda no havia aprendido a calcular o dever ¢ o haver de mi- nha vida; eta jovem. Em Toulon, nada de trabalho: chegava muito tarde, eftata o ‘‘fuso"’ por vinte ¢ quatro horas. Veio-me uma idéia, verdadeira inspiracao da época: enquanto em Paris os opera- tlos sem emprego atacavam o governo eu resolvi, de minha parte, dirigir uma intimacSo a autoridade Fui 4 Camara Municipal e pedi para falar com o presidente. Introduzido no gabinete do magistrado estendi-lhe meu passapor- te: — Eis, Senhor, eu lhe disse, um documento que me custou dois francos e que, aps informagées sobre minha pessoa fornecidas pelo comissario de policia de meu bairto, assistido por duas teste- munhas conhecidas, me promete, junto as autoridades civis ¢ mili- tares, dar assisténcia e protecdo em caso de necessidade. Ora, sabei, Senhor Presidente, que sou tipdgrafo ¢ que desde Paris procuro trabalho sem encontrar ¢ que estou no fim das minhas economias O roubo é punido, a mendicancia proibida; a renda nao é para to- Trabalho tipografico de longa duracdo; ainda em nosss dias distinguem-se as tipo Brafias de “grande tirager”” das tipografias ‘de impresa a0 do mundo. Resta o trabalho, cuja garantia me parece completar 0 objetivo de meu passaporte. Em conseqiiéncia, Senhor Presidente, venho colocar-me a vossa disposicao. Eu era da estirpe daqueles que, um pouco mais tarde, toma- ram por divisa: Viver trabalbando ou morrer combatendo! que, em 1848, provocavam trés meses de miséria 4 Republica; que, em junho, escreviam sobre sua bandeira: Pao ou chumbo! Eu ptocedia mal, hoje 0 confesso: que meu exemplo instrua meus semelhantes. Aquele a quem me dirigia era um homem pequeno, rechom- chudo, gorducho, satisfeito, usando dculos com armagao de ouro € que, certamente, ndo estava preparado para esta intimacéo. Eu anotei seu nome, gosto de conhecer aqueles que quero. Era um tal de Senhor Guieu, dito Tripette ou Tripatte, antigo procurador, homem novo, descoberto pela dinastia de Junho e que, embora ri- co, ndo recusava uma bolsa de estudos para seus filhos. Ele deve ter me tomado por um fugitivo da insurreigio que acabava de agitar Paris no enterro do general! * — Senhor, disse-me dando pulinhos em sua poltrona, vossa teivindicacdo € ins6lita e vés interpretais mal vosso passaporte. Quer dizer que, se vos agtidem, se vos roubam, a autoridade vos defendera: eis tudo. — Perdiio, Senhor Presidente, a lei, na Franca, protege todo o mundo, mesmo os culpados que ela reprime. A policia nao tem 0 direito de ferir 0 assassino que ela prende, exceto no caso de legi- tima defesa. Se um homem é aprisionado, o diretor nao pode se apropriar de seus bens, O passaporte, assim como a carteira de tra- balho, porque estou munido de um ¢ de outro, implica para 0 operario algo mais ou nao significa nada. — Senhor, vou vos fazer entregar 15 centavos por légua para retornar para sua regio. E tudo o que vos posso fazer. Minhas atri- buigdes nao vao mais longe — Senhor Presidente, isto é esmola € no quero. Depois, quando estiver em minha terra, onde acabo de saber que nao ha o que fazer, irei procurar o presidente da Camara como hoje acabo As exéquias do general Maximilien Lamarque (1770-1832) ocorreram na ocasiio de uma grandiosa manifestacdo popular que degenerou em tumulto 12 de procura-lo; de sorte que minha volta tera custado 18 francos ao Estado, sem utilidade para ninguém: — Senhor, isto nao esta em minhas atribuigoes... Ele nao saia disso. Repelido com insucesso no terreno da lega- lidade, eu quis tentar por outros meios. Talvez, disse-me, 0 ho- mem valha mais que o funciondrio: ar placido, figura crista, menos a mortificagao; mas os mais bem-alimentados so ainda os melhores: — Senhor, retomei, visto que vossas atribuigdes nao vos per- mitem cuidar de minha petigao, dai-me um conselho. Posso, em caso de necessidade, tornar-me til fora de uma tipografia e nada me repugna. Vos conheceis 0 local: que ha para fazer? Que vés me aconselhais? — Senhor, retire-se. Eu o media dos pés a cabeca. (...) — Pois bem, Senhor Presidente, disse-lhe eu entredentes: prometo-lhe nao me esquecer desta audiéncia. E ao deixar a Camara Municipal, sai de Toulon para a Itdlia. (...) Ha dois anos corro o mundo, estudando, interrogando o povi- nho de que me encontro mais proximo por minha condicao social; nao tendo tempo de ler e menos ainda de escrever! (...) Tal foi até este dia, tal € ainda minha vida: habitando as oficinas, testemunha dos vicios ¢ das virtudes populares, comendo meu pio ganho a cada dia com o suor de meu tosto, obrigado, com meus médicos ordenados, a ajudar minha familia e a contribuir na educagio de meus irmaos; no meio de tudo isto, meditando, filo- sofando, reunindo as menores coisas de observacdes imprevistas. Fatigado pela condicao precdria e miseravel de operario, quis fi- nalmente tentar, conjuntamente com um de meus colegas, organi- zar um pequeno estabelecimento de tipografia. As escasssas econo- mias dos dois amigos foram postas em comum e todos os recursos de suas familias lancadas nesta loteria. O pérfido jogo dos negécios atraicoou nossa esperanga: ordem, trabalho, economia, nada ser- viu; dos dois sécios, um foi para o lado de uma mata morter de prostracao ¢ de desespero, 0 outro s6 tem que se arrepender de ter asto o ultimo pedago de pao de seu pai 13 ESTREIAS PUBLICAS (...) Minha vida paiblica comega, em 1837, em plena corrup- Gao filipista*. A academia de Besancon devia conceder a pensio trienal, legada pelo Senhor Suard, secretario da Academia francesa, aos jovens sem fortuna do Franco-Condado que se destinam & cat- reira das letras ou das ciéncias. Entrei na concorténcia. No relat6rio que dirigi 4 Academia e que existe em seus arquivos, eu lhes digo: “Nascido e criado no seio da classe operaria, pertencendo-lhe ainda pelo coracao e pelas afeicdes, sobretudo pela comunidade de sofrimentos e de desejos minha maior alegria, se eu obtiver os su- fragios da Academia, seria trabalhar sem descanso, pela filosifia e pela ciéncia, com toda a energia de minha vontade ¢ todos os po- deres de meu espirito para a melhoria fisica, moral e intelectual da- queles que cu me aprazo em nomear meus irmaos ¢ meus compa- nheiros; de poder espalhar entre eles os germes de uma doutrina que eu vejo como a lei do mundo moral, e, contando com 0 suces- so de meus esforcos, de me encontrar j4, senhores, como seu repre- sentante frente a vos." Minha revolta, como se vé, data de longe. Era ainda jovem € pleno de fé quando pronunciei meus votos. Meus concidadaos di- rao se hes fui fiel. Meu socialismo recebeu o batismo de uma sabia companhia; tive por madrinha uma academia; e se minha vocacao, ha muito tempo decidida, pudesse se enfraquecer, 0 encorajamen- to que recebi entdo de meus honoraveis compatriotas o teria confir- mado de forma irreversivel. Logo pus-me a obra. Nao fui de modo algum buscar a luz nas escolas socialistas que subsistiam nesta €poca e que j4 comegavam a passar de moda. Deixei igualmente os homens de partido ¢ 0 jor- nalismo, muito ocupados com suas lutas cotidianas para imaginar as conseqiiéncias de suas préprias idéias. Nao conheci nem procurei as sociedades sectetas; todo este mundo me parecia se distanciar tanto do objetivo que eu perseguia quanto os ecléticos € os jesuitas. Eu comecei meu trabalho de conspiracao solitaria pelo estudo das antiguidades socialistas, necessario, a meu ver, pata determinar Isto €. sob o reinado do tei Luis Felipe (1830-1848). 14 a lei te6rica e pratica do movimento. Estas antiguidades, eu as en- conti primeiro na Biblia. Falando aos cristos, a Biblia devia ser para mim a primeira das autoridades. Um relat6rio sobre a institui- cao sabitica, considerada do ponto de vista da moral, da higiene, das relagdes de familia e da cidade, me valeu uma medalha de bronze de minha academia. Da fé em que havia sido ctiado precipitei-me entao, cabeca baixa, na razdo pura e logo, coisa sin- gular ¢ para mim de bom augtirio, por ter feito Moisés fildsofo € socialista, recebi aplausos. Se agora estou errado, a falta nao € so- mente minha: houve alguma vez seducdo semelhante? Mas eu estudava sobretudo para realizar. Preocupavam-me pouco as palmas académicas; nao tinha tempo para tornaf-me cientista, ainda menos literato ou arquedlogo. Aproximei-se ime- diatamente de economia politica. Havia tomado por regra de meus julgamentos que todo prin- cipio que, levado a suas tiltimas conseqtiéncias, desembocasse nu- ma conttadigao, devia ser tido por falso ¢ negado; € que, se este principio tivesse dado lugar a uma instituicéo, a propria instituigao devia set considerada como artificial, como uma utopia. Munido deste critério, eu escolhi para objeto de experiéncia 0 que encontrata na sociedade de mais antigo, de mais respeitavel. de mais universal, de menos controverso, a propriedade. Sabe-se 0 que me aconteceu. Apés uma longa, minuciosa ¢ sobretudo im- parcial andlise, cheguei, como um algebrista conduzido por suas equac6es, a esta concluso surpreendente: a propriedade, de qual- quer angulo que se a considere, a qualquer principio que se a tela- cione, € uma idéia contraditéria. E como a negacao da propriedade levava 4 negacdo da autoridade, eu deduzia imediatamente de mi- nha definicao este corolario nao menos paradoxal: a verdadeira for- ma de governo € a anarquia. (...) Considerei meu trabalho bastante inquietante por si mesmo para merecer a aten¢ao do pablico € para despertar a soli- citude dos sabios. Dirigi meu relatério 4 Academia das Ciéncias Morais ¢ Politicas: a acolhida favoravel que ele recebeu, os elogios que o relator, Senhor Blanqui*, considerou dever fazer ao escti- * Adolphe Blanqui (1798-1854). economista burgués, irmao do grande revoluciona- tio Auguste Blangui 15 tor, me motivaram a pensar que a Academia, sem assumit a res- ponsabilidade de minha teoria, estava satisfeita com meu traba- lho € cu continuei minhas pesquisas A dialética me embriagava: um evidente fanatismo, patticu- lar aos légicos, me exaltara e fizera de meu relatério um panfleto. O Ministério Pablico de Bésangon, considerando dever set seveto contra esta brochura, faz-me comparecer diante do tribunal cri- minal do Departamento de Doubs, sob a quadrupla acusagdo de ataque 4 propriedade, de incitamento contra 0 governo, de ultra- je a religido e aos costumes. Fiz 0 que pude para explicar ao jari como, no estado atual da citculacdo mercantil, o valor-de-uso € 0 valor-de-troca sendo duas quantidades incomensuraveis ¢ em pet- pétua oposi¢ao, a propriedade é completamente ilégica e instavel, € que tal € a razao pela qual os trabalhadores so cada vez mais pobres ¢ os proprictarios cada vez menos ricos. O juiri pareceu nao compreender grande coisa de minha demonstracao: disse que isto fa matéria cientifica e, por conseguinte, fora de suas competén- cia, € proferiu um veredito de absolvicao em meu favor. 16 A Propriedade E um Roubo* Se eu tivesse de responder a seguinte questao: 0 que € a escravidao?, € a respondesse numa tinica palavra: € um assassinato, meu pensamento seria logo compreendido. Eu nao. teria necessidade de um longo discurso para mostrar que o poder de tirar ao homem o pensamento, a vontade, a personalidade, é um poder de vida e de morte, e que fazer um homem escravo € assassina-lo. Por que entio a esta outra pergunta: o que € a propriedade?, nao posso eu responder da mesma maneira: € um roubo, sem ter a certeza de nao ser entendido, embora esta segunda proposi¢ao nao seja senao a primeira transformada? Eu tento discutir a propria origem de nosso governo e de nossas instituigSes, a propriedade; estou no meu direito: posso me enganar na conclusdo que resultara de minhas pesquisas; agrada-me colocar 0 dltimo pensamento de meu livto no inicio; estou sempre no meu direito. Tal autor explica que a propriedade € um direito civil, nascido Extraido de Qu'ert-ce que la Propriété?, 1810. da ocupacao ¢ sancionado pela lei; tal outro sustenta que ela é um direito natural, tendo sua fonte no trabalho: ¢ estas doutrinas, por mais opostas que elas parecam, sao estimuladas, aplaudidas. Eu afirmo que nem o trabalho, nem a ocupacio, nem a lei podem criar a propriedade; que ela € um efeito sem causa: sou fepreensivel? Quantas queixas se levantam! — A propriedade é um roubo! Eis o rebate de 93! Eis a desordem das revolucées! — Leitor, uanquilizai-vos: nao sou de modo algum um agente de discérdia, um bota-fogo de sedi¢ao. Antecipo-me alguns dias na Hist6ria; exponho uma verdade que nés tentamos em vao barrar a passagem; escrevo o preambulo de nossa futura constituigao. Esta defini¢go que vos parece blasfematéria, a proptiedade € um roubo, seria o punhal exorcizador do édio se Nossas preocupagdes nos permitissem entendé-la; mas quantos unteresses, quantos preconceitos se lhe opdem! A filosofia nao mudara de maneira alguma, bé/as!; 0 curso dos acontecimentos: os destinos se efetuarao independentemente da profecia; alias, nao é necessatio que a justiga se faca € que nossa educacao se complete? — A propriedade € um roubo! Que inversio das idéias, humanas! Proprietario ¢ ladrao foram em todos os tempos express6es contraditérias tanto como os seres que elas designam sio antipaticos; todas as linguas consagraram esta antilogia. Sobre que autoridade poderias entéo atacar o consenso universal e dar o desmentido ao género humano? Quem és para negar a razo dos povos e dos tempos? — Que vos importa, leitor, minha mediocre individualidade? Eu sou, como vis, de um século em que a raz%o 86 se submete a0 fato € a prova; minha reputacio, assim como a vossa, € de investiga- dor da _verdade* ; minha missio esta escrita nestas palavras da lei: Fale sem dio € sem medo; diga 0 que tu sabes. A obra de nossa es- pécie € construir o templo da ciéncia e esta ciéncia abrange o homem Em grego skepticos, indagador, filésofo que faz profissao de procurar 0 verdadeito (nota de Proudhon). 18 © a natureza. Ora, a verdade se revela a todos, hoje a Newton € a Pascal, amanha ao pastor no vale, ao operatio na oficina, Cada um coloca sua pedra no edificio e, sua tarefa feita, desaparece. A erernidade nos precede, a eternidade nos segue: entre dois infinitos, que é 0 lugar de um mortal para que 0 século nele se informe? ; Deixai, portanto, leitor, meu valor ¢ meu cardter, ¢ ocupal- vos s6 com minhas razdes. E conforme o consenso universal que cu pretendo corrigir 0 erro universal; € a fé do género humano que chamo de opiniao do géneto humano. Tende a coragem de me seguir ¢€, se vossa vontade € sincera, s¢ vossa consciéncia € livre, se yosso espirito sabe unir duas proposigées para dai extrair uma ter- ceira, minhas idéias tornar-se-4o infalivelmente as vossas. Come- cando por vos lancar minha Gltima palavra quis eu vos prevenir ¢ nao vos desafiar: porque, tenho certeza, se me leres, cu forcarei vossa concordancia. As coisas de que tenho a vos falar so tao sim- ples, ta0 palpaveis, que vos espantaras de nao as ter percebido, e vos vos direis: ‘Eu nao tinha refletido nada disso'’. Outros vos ofereceréo 0 espetéculo do génio violentando os segredos da natu- teza ¢ divulgando oraculos sublimes; vés nao encontrareis aqui se- nao uma série de experiéncias sobre o justo ¢ sobre o dircito, uma espécie de verificagéo de pesos ¢ medidas de vossa consciéncia. As operacées se farao sob vossos olhos; € vs mesmos apreciareis 0 Te- sultado. ‘Além disso, nao disponho de sistema: eu desejo o fim do privilégio, a aboligao da escravatura, a igualdade de direitos, o reino da lei. Justia, nada senao Justica; tal € 0 resumo de meu discurso; deixo a outros o encargo de disciplinar o mundo. ‘ Eu me disse um dia: por que, na sociedade, ha tanta dor ¢ mi- sétia? O homem deve ser eternamente infeliz? E, sem me limitar as explicagdes gerais dos empreendedores de reformas ao denun- ciar a miséria geral. estes a covardia ¢ a impericia do poder, aque- les os conspiradores € os motins, outros a ignorancia € a corrupca0 geral: fatigado com os intermindveis combates da tribuna e da imprensa, quis eu proprio aprofundar a coisa. Consultei os mes- 19 ues da ciéncia, li centenas de volumes de filosofia, de direito, de economia politica ¢ de historia: ¢ queira Deus que eu tivesse vivi- do num século em que tanta leitura me fosse intitil! Fiz todos os esforcos para obter informagées exatas, comparando as doutrinas, opondo as objecées as respostas, fazendo sem cessar equagGes € re- duc6es de argumentos, pesando os milhares de silogismos a luz da légica mais escrupulosa. Neste penoso caminho, reuni varios fatos intetessantes, de que darei conhecimento a meus amigos ¢ ao piiblico assim que tiver tempo. Mas, é preciso que eu o diga, primeiramente julguei reconhecer que n6s jamais compreende- mos 0 sentido destas palavras tao vulgares e tao sagradas: justica, igualdade, liberdade; que sobre cada uma destas coisas nossas idéias eram profundamente obscuras; ¢ que enfim esta ignorancia era a tinica causa do pauperismo que nos devora e de todas as ca- lamidades que afligiram a espécie humana. : Meu espirito se assombtou com este estranho resultado: eu duvidava de minha razio. Como! dizia eu, isto que o olho nunca viu, nem a orelha ouviu, nem a inteligéncia penetrou, tu a desco- briririas! Tenha medo, infeliz, de tomar as visdes de teu cérebro doente por conhecimento da ciéncia! (...) Resolvi entao fazer uma contraprova de meus julgamentos € eis quais foram as condigdes que me impus a mim mesmo neste novo trabalho: é possivel que na aplicacao de principios da mora: a humanidade esteja tanto tempo e tao universalmente engana- da? Como e por que ela estaria enganada? Como seu erro, sendo universal, nao seria invencivel? Estas questées, de cuja solucao eu fazia depender a certeze de minhas observacdes, nao resistiram muito tempo 4 anilise (...) Sim, todos os homens acreditam ¢ tepetem que a igu dade de condigées € idéntica a igualdade de direitos: que propric- dade € roubo sao termos sinénimos; que toda pfeeminéncia so- cial, concedida ou, para melhor dizer, usurpada sob pretexto de superioridade de talento ¢ de servigo, € inigiiidade ¢ pilhagem todos os homens, ev digo, atestam estas verda trata-se s6 de fazé-ios descobrir em sua alma: 20 ADVENTO DA LIBERDADE* A comunidade** € opressio ¢ servidio. O homem quer na yerdade se submeter & lei do dever, servir sua patria, obsequiar seus amigos, mas ele quer trabalhar naquilo que lhe agrada, quando lhe agrada, tanto quanto lhe agrade; ele quer dispor de suas horas, obedecer somente necessidade, escolher seus ami- gos, suas divers6es, sua disciplina; prestar servigo por satisfacao, nao por ordem; sactificar-se por egoismo € ndo por uma obrigacio servil. A comunidade € essencialmente contrarsa a0 livre exercicio de nossas faculdades, a nossos pendores mais nobres, a ossos sentimentos mais intimos; tudo 0 que se imaginar para coneilia-la com as exigéncias da razao individual e da vontade nao levara se- nao a mudar a coisa conservando o nome; ofa, se nds procuramds averdade de boa fé, devemos evitar as disputas de palavra. Assim, a comunidade viola a autonomia da consciéncia ca igualdade; a primeira, comprimindo a espontaneidade do espiri- to e do coragao, 0 livre arbitrio na acéo € no pensamento; a segun- da, recompensando com uma igualdade de bem-estar 0 trabalho © a preguica, 0 talento ¢ a asneira, 0 proprio vicio ¢ a virtude. (...) Que forma de governo iremos preferir? — Em! vos podereis pergunta-lo; e sem davida qualquer um de meus mais jovens leitores responde, vés sois republicano. — Republicano, sim; mas esta palavra nao especifica nada. Res publica € a coisa piblica. Ora, quem quer que queira a coisa ptiblica, sob qualquer forma de governo que seja, pode se dizer re- publicano, Os reis também sao republicanos. — Entio vos sois democrata? — Nao. — Como! Sereis monarquista? — Nao. — Constitucional? O titulo € ne cee ** Por “'comunidade”’ Proudhon entende. como alias ele mesmo 0 diz. 0 ''siste=2 “a pessoa humana cestituiea de suas wnisa" uma “sirania mistica ¢ anénima" promperivas”” 21 — Deus me livre. — Entio vés sois aristocrata? — De modo nenhum. — Vos quereis um governo misto? — Menos ainda. — O que sois entao? — Eu sou anarquista. — Eu o entendo! vos fazeis satira; isto esta dirigido ao gover- no. ~— De maneira alguma: vés acabais de ouvir minha profissao de fé, sétia ¢ maduramente refletida; ainda que muito amigo da or- dem, eu sou, com toda a fora do termo, anarquista. Escutai-me. O homem, para chegar 4 mais rapida e 4 mais perfeita satisfa- cao de suas necessidades, busca a regra: no comego, esta regra € viva para ele, visivel ¢ tangivel; € seu pai, seu senhor, seu rei. Mais o ho- mem € ignorante, mais sua obediéncia, mais sua confianca em seu guia é absoluta. Mas o homem, cuja lei é conformar-se a regra, isto €, descobri-la pela reflexao ¢ pela argumentacio, 0 homem pensa sobre as ordens de seus chefes: ora, semelhante reflexio € um pro- testo contra a autoridade, um inicio de desobediéncia. Desde o momento que 0 homem procura os motivos da vontade soberana, desde este momento o homem se revoltou. Se ele nao obedece mais porque rei comanda mas porque o fei prova, pode-se afir- mar que de agora em diante ele nao reconhece mais nenhuma au- toridade ¢ que ele se fez a si mesmo seu proprio rei. Infeliz de quem ousara conduzi-lo ¢ nao lhe oferecer, por sancao de suas leis, senao 0 respeito de uma maioria: porque, cedo ou tarde, a minoria fara maioria, € este déspota imprudente ser derrubado ¢ todas as suas leis destruidas. A medida que a sociedade se fica mais esclarecida a autorida- de real diminui: este € um fato de que toda a historia dé testemu- nho. No nascimento das nacdes, é vao aos homens refletir ¢ racioci- nar: sem métodos, sem principios, nao sabendo nem mesmo fazer uso de sua razo, ndo sabem se veém justo ou se enganam; entao a autoridade dos reis é imensa, nenhum conhecimento adquirido chega a contradizé-la. Mas pouco a pouco a experiéncia cria habitos 22 ¢ estes, costumes; depois os costumes formulam-se em méaximas, aftanjam-se em principios, numa palavra, traduzem-se em leis, as quais 0 rei, a lei viva, é forcado a respeitar. Ver um tempo em que gs costumes € as leis sio tao multiplicados que a vontade do princi- pio € por assim dizer englobada pela vontade geral; quem tomar a coroa é obrigado a jurar que governar4 conforme 08 costumes € 0s usos, € que ele nao é ele mesmo, mas 0 poder executivo de uma so- ciedade cujas leis se fizeram sem ele. d Boe i Até ld, tudo se passa de uma maneira instintiva e, por assim dizer, com 0 desconhecimento das partes: mas vejamos o termo fa- tal deste desenvolvimento. A forca de se instruir e de adquirir idéias, ° homem acabou por adquirir a idéia de ciéncia, quer dizer, a idéia de um sistema de conhecimento conforme a tealidade das coisas € deduzido da ob- servacao. Ele procura ento ou a ciéncia ou um sistema de corpos brutos, um sistema de corpos organizados, um sistema do espirito humano, um sistema do mundo: como nao procuraria também 0 sistema da sociedade? Mas, tendo chegado a este ponto, ele com- pteende que a verdade ou a ciéncia politica € coisa completamente independente da vontade soberana, da opiniao das maiorias e das crengas populares, que reis, ministros, magistrados ¢ povos, enquan- to vontades, nao so nada para a ciéncia € no merecem consideracao alguma. Ele compreende de repente que, se 0 homem nasceu so- ciavel, a autoridade de seu pai sobre ele cessa no dia em que, sua razio estando formada e sua educac4o completa, ele se torna 0 as- sociado de seu pai; que seu verdadeiro chefe e seu rei € a verdade demonstrada; que a politica € uma ciéncia, ndo uma astiicia; ¢ que a funcdo do legislador se limita, em tltima andlise, 8 busca metédi- ca da verdade. Assim, numa sociedade dada, a autoridade do homem sobre o homem esta em azo inversa ao desenvolvimento intelectual ao qual esta sociedade chegou ¢ a duracao provavel desta autoridade pode ser calculada sobre o desejo mais ou menos geral de um go- verno verdadeiro, quer dizer, de um governo segundo a ciéncia. E assim como 0 direito da forca ¢ 0 direito da asticia se restringem diante da determinag3o cada vez mais ampla da justiga ¢ devem 23 acabar por se apagar na igualdade; assim também a soberania da vontade cede diante da soberania da azo € acabar por se destruir num soctalismo cientifico. A propriedade ¢ a realeza estéo em de- molicao desde o inicio do mundo; como o homem procura a justiga na igualdade, a sociedade procura a ordem na anarquia. Anarquia, auséncia de senhor. de soberano’, tal é a forma de governo de que nos aproximamos todos os dias ¢ que o habito in- veterado de tomar 0 homem por regra € sua vontade por lei nos faz olhar como o ctimulo da desordem e a expresso do caos. Conta-se que um bugués de Paris do século XVIII, tendo ouvido dizer que em Veneza nao havia nenhum tei, que este bom homem nio po- dia se restabelecer de seu espanto € pensou morrer de rir 4 primeira noticia de uma coisa tao ridicula. Tal € 0 nosso preconceito: todos quantos somos, nds queremos um chefe ou chefes; e examino neste momento uma brochura cujo autor, zeloso comunista, sonha, co- mo um outro Marat, com a ditadura. (...) Esta sintese da comunidade ¢ da propriedade nés a cha- maremos liberdade. Para determinar a liberdade, portanto, nao reuniremos sem discernimento a comunidade e a propriedade, o que seria um ecle- tismo absurdo. Procuramos por um método analitico 0 que cada uma delas contém de verdadeiro, de conforme ao voto da natureza ¢ as leis da sociabilidade, eliminamos 0 que elas contém de cle- mentos estranhos; ¢ 0 resultado da uma expressdo adequada 4 for- ma natural da sociedade humana, em uma palavra, a liberdade. A libetdade é igualdade, porque a liberdade nao existe senao no estado social e fora da igualdade nao ha sociedade A sociedade € anarquia, porque ela nado admite o governo da vontade, mas somente a autoridade da lei, isto é, da necessidade. A liberdade é variedade infinita, porque ela respeita todas as vontades, nos limites da lei. A liberdade € proporcionalidade, porque ela deixa‘toda am- plitude & ambigao do mérito e a emulagao da gloria. sentido ordinariamente atribuido a palavra anarquia € auséncia do principio, au- séncia de regra; de onde vem o que a fez sindnimo de desordem (nota de Prou- chon) 24 A liberdade € essencialmente organizadora: pata assegurar a igualdade entre os homens, 0 equilibrio entre as nacdes, é Preciso que a agricultura € a indGstria, os centros de instrugio de comércio e de armazenamento sejam distribuidos segundo as condigdes geo- grdficas climaticas de cada pais, a espécie de produtos, o carater ¢ os talentos naturais dos habitantes, etc., em proporgdes to justas, tao sibias, tao bem combinadas, que lugar algum apresente nem excesso nem auséncia da populacdo, de consumo e de produto. Ai comeca a ciéncia do direito pablico e do direito privado, a verda- deura economia politica. (...) A politica € a ciéncia de liberdade: 0 governo do homem pelo homem, sob qualquer nome que se disfarce, € opressao; a mais alta perfeicio da sociedade se encontra na unido da ordem e da anarquia. O fim da antiga civilizacio chegou; sob um novo sol, a face da terra vai se tranasformar. Deixemos uma geracao se acabar, deixe- mos morrer no deserto os velhos prevaricadores: a terra santa nao mais cobrira scus ossos. Jovem, que a corrupcao do século indigna € que o zelo da justica devora, se a patria vos € querida, ¢ se 0 inte- resse da humanidade vos toca, ousai abracar a causa da liberdade. Renunciai a vosso velho egoismo, mergulhai na onda popular da igualdade nascente; 14, vossa alma revigorada retirara uma seiva € um vigor desconhecidos: vosso espirito debilitado reencontrara uma indomivel energia; vosso coragao, talvez ja enfraquecido, re- juvenescert. Tudo mudara de aspecto a vossos olhos putificados, novos sentimentos vos fat%o nascer novas idéias; rcligiao, moral, poesia, arte, linguagem, vos aparecerao sob uma forma maior € mais bela: ¢, de hoje em diante certos de vossa f€, entusiastas com conviccao, vos saudareis a aurora da regeneragao universal. 25 O Sistema de Contradicées Econémicas* (...) Compreendi que, para adquirir o entendimento das re- voluc6es sociais, a primeira coisa a fazer era construir a série intei- ta de suas antinomias, o sistema de suas contradicées. Seria dificil dar aqueles que nao a leram uma idéia desta obra**, No entanto eu o tentarei, servindo-me da linguagem dos guarda-livros, hoje compreendida por toda gente; porque se €u conseguia, em algumas linhas, dar uma idéia clara do que con- sidero como o verdadeito método econdmico, é dificil que ela nao tenha imediatamente contrariado todas as conviccdes. Em meus primeiros relatorios, atacando de frente a ordem estabelecida, eu dizia, por exemplo: a propriedade € um roubo! Tratava-se de protestar, de, por assim dizer, colocar em televo a fragilidade de nossas instituigdes. Eu no tinha entGo outra coisa a ee ELLE Eee dU CeCeeeeoEnCeCCeCEPEEIER CeCe Eee Extraido de Confessions d'un Révolutionnaire ... op. ett * Trata-se do livto Systeme des Contradic ons Economiques ou Phdosuphie de ba Mt sére. dois volumes. 1846, a0 qual Marx responder no ano seguinte com "Yrvéria a Filosofia 27 me ocupar. Também, no relatério em que eu demonstrava, por a + b, esta surpreendente proposicao, tive o cuidado de protestar contra qualquer conclusdo comunista. No Sistema de Contradicoes Econémicas, apos ter restabele- cido e confirmado minha primeira definicéo, acrescento a ela ou- tra ordem, que nao podiam nem destruir a primeira argumenta- do nem ser destruida por ela: a prosperidade € uma liberdade. A propriedade é um roubo; a propriedade é uma liberdade: estas duas proposigSes so igualmente demonstradas € subsistem uma ao lado da outra no Sistema de Contradigoes: Fago a mesma operacdo sobre cada uma das categorias eco- némicas, a divisdéo do trabalho, a concorténcia, o Estado, o crédi- to, a comunidade, etc.; mostrando alternativamente como cada uma destas idéias ¢, por conseguinte, como as instituigdes que elas engendram tém um lado positive ¢ um lado negativo; como elas dao lugar a uma dupla série de resultados diametralmente opostos: e sempre concluo pela necessidade de um acordo, conci- liacao ou sintese. A propriedade aparecia entao af, com as outras categorias econémicas, com sua razao de ser ¢ sua razdo de nao- ser, isto €, como elemento de duas faces do sistema econémico e social. Assim exposto, aquilo pareceu sofistico, contraditério, acu- sado de equivoco ¢ de ma-fé. Vou esforcar-me por torna-la mais inteligivel, retomando por exemplo a propriedade A propriedade, considerada no conjunto das instituigdes so- ciais, tem por assim dizer duas contas abertas: uma € a dos bens que cla obtém, ¢ que decorrem ditetamente de sua esséncia; a outta é a dos inconvenientes que ela produz, dos gastos que ela ocasiona € que se seguem, como os bens, também diretamente de sua natureza. O mesmo acontece com a concorréncia, 0 monopé- lio, o Estado, etc. Na propriedade, como em todos os elementos econdmicos, o mal ou 0 abuso € inseparavel do bem, exatamente como na contab:- lidade por partidas dobradas o dever é inseparavel do haves. U endra necessariamente o outro, Querer suprimir 9 2buso da pro- : festrufela, da .nes..14 istaneiia que supsimis win artigo 28 do débito de uma conta é destrui-lo no crédito. Tudo o que é possivel fazer contra os abusos ou inconvenientes da propriedade é fundi-la, sintetizar, organizar ou equilibrar com um elemento contrario que seja frente a ela o que o credor é frente ao devedor, o acionista frente ao comanditado, etc. (tal sera, por exemplo, a comunidade); de tal sorte que, sem que os dois principios se alte- rem ou se destruam mutuamente, o bem de um cubra o mal do outro, como num balanco, as partes, apés estarem reciprocamente liquidadas, conduzem a um resultado final, que € ou perda total ou beneficio total. A solugao do problema da miséria consiste entao em ele- var 2 uma expressdo mais alta a ciéncia do contavel, em prepa- rar as escrituras da sociedade, em estabelecer 0 ativo € 0 passivo de cada instituigéo, tomando por contas gerais ou divisdes do grande livro social nao mais os termos da contabilidade ordina- tia, capital, caixa, mercadorias gerais, extratos e remessas, etc. ; mas os da filosofia da legislagdo e da politica: concorréncia e monoplio, propriedade e comunidade, cidadao ¢ Estado, ho- mem ¢ Deus, etc. Enfim, e para completar minha comparacao, € preciso manter as escrituras em dia, isto é, determinar com exatiddo os direitos e os deveres, de maneira a poder, em cada momento, constatat a ordem ou a desordem e apresentar 0 ba- lanco, Dediquei-me em dois volumes a explicar os principios desta contabilidade que chamarei, se se deseja, transcendente; voltei cem vezes, desde Fevereito*, a estas idéias elementares, comuns 4 escrituracg4o comercial ¢ 4 metafisica. Os economistas fotinciros riram-me na cara; os idedlogos politicos convidaram- me polidamente a escrever pata o povo. Quanto aqueles de que tomei tao a sério os interesses, tratatam-me ainda pior. Os comunistas nado me perdoam por ter feito a critica da comunidade, como se uma nagao fosse um grande polipeiro ¢ come se ao lado do direito social nao houvesse o direito indivi- Cuai ase de Fevereizo de 1848. 29 Os proprietarios me desejam mal de morte por haver dito que a propriedade, sozinha € por si mesma, € um roubo; como s¢ a propriedade nao tirasse todo seu valor (sua renda) da circu- lacdo dos produtos e. por conseguinte, nao revelasse de um fa- to superior a ela, a forca coletiva, a solidariedade do trabalho Os politicos, finalmente, qualquer que seja sua bandeira, opdem-se invencivelmente 4 anarquia, que eles tomam pela desordem; como se a democracia pudesse se realizar de outro modo que nao pela distribuicgdo da autoridade, ¢ que o verda- deiro sentido da palavra democracia nao fosse destituicao do governo, (...) Na sociedade, a teoria das antinomias € ao mesmo tempo a fepresentagdo € a base de todo movimento. Os costu- mes € as instituigGes podem variar de povo para povo, como o oficio ¢ as mecanicas variam de século para século, de cidade para cidade: as leis que regem suas evolugées sao inflexiveis co- mo a algebra. Por toda a parte onde existem homens agrupa- dos pelo trabalho: por toda a parte onde a idéia de valor mer- cantil criou raiz, onde pela separacao das indiistrias fez-se uma circulagao de valores ¢ de produtos: ai, sob pena de perturba- cao, de déficit, de bancarrota da sociedade para com ela mes- ma, sob pena de miséria ¢ de proletarizacgao. as forcas antind- micas da sociedade. inerentes a todo desenvolvimento da ativi- dade coletiva como em toda razao individual, devem ser man- tidas num equilibrio constante; e 0 antagonismo, perpetua- mente reproduzido pela oposicao fundamental da sociedade ¢ da individualidade, deve ser perpetuamente reconduzido a sintese 30 Proudhon na Revolugio de 1848 A Revolugao de 1848 foi uma revolugao politica, de con- tettdo social ainda hesitante e confuso. Proudhon nela se viu dilacerado. Anarquista, apolitico, corria nela o risco de ser co- mo um corpo estranho. Mas a forca das coisas fex dele um jor- nalista duplicado de um parlamentar: por bem ou por mal teve de se inserir nela, Antes da explosio popular de Fevereiro ele foi nada me- nos que reticente. Pressentia que a monarquia estava prestes a acabar, mas nao impelia de modo algum esta queda. Para os adversarios de Luis Felipe, para os ‘'pobres democratas"’, nao tinha senao sarcasmos: ‘A mator felicidade que poderia acon- fecer ao povo francés seria que cem deputados da Oposi¢ao fos- sem jogados ao Sena com uma pedra no pescogo. Eles valem cem vezes menos que os conservadores porque tém mais hipo- crsia do que estes’. Ele chegou até achar natural que o gover- no de Guizot proibisse as reunioes piblicas. Como o confessara mais tarde, a aproximacao da Republica o aterrorizava. 31 Sua chegada, antes de tudo, 0 ‘'atordoava’' e de antemao ele suporta ‘'o luto da Repiblica e o fardo das calémias que triam atingir o socialismo"'. No entanto, rapidamente ele se conteve, acetta a Revolugdo. E nota, em seus Cadernos: “'A vi- toria de hoje € a vitéria da Anarquia contra a Autoridade”’. pa- ra logo, alias, deixar reaparecer sua inquietacado: "’... ou bem é uma mistificagao''. “‘O fato acabado é de agora em diante irre- vogavel, & besteira olhar para tris. Eu nao teria feito a Revolu- ao de 24 de feveretro; 0 instinto popular decidiu de outro mo- do (...) Estou com todo mundo."’ ‘‘Aconte¢a 0 que acontecer 0 povo sera justificado por mim."' ‘'V6s quisestes a revolugao, 2065 tereis a revolugdo."" A inqutetacgao de Proudhon, que o desenrolar dos aconte- cimentos devia justificar plenamente, provinha de sua concep ao libertaria da revolugao social. ‘'A revolu¢do social esta se- riamente comprometida se ela chega pela revolugao politica’, notava ele desde 1845. E, mats tarde: ‘‘O poder nas maos do proletariado (...) isto sera um embarago durante tanto tempo que a revolugao social nao sera feita’’. Retrospectivamente, ele confessaré. ‘'Sou o timico revolucionario que nao participou do ataque repentino de Fevereiro porque eu queria uma revolucdo social’’. Entre os democratas e ele o desacordo era total. Eles eram antes de tudo homens politicos, Pretendiam continuar a tradigao da Revolugao de 1793, ‘‘fundar o verdadero socialis- mo pela iniciativa do governo"’. Proclamavam ‘‘a necessidade de impor pelo alto a Revolucdo, em lugar de a propor de baixo"’ como 0 queria Proudhbon. E 0 fundador do anarquismo se manifesta com veeméncia: ''O socialismo, pelo fato mesmo de que é um protesto contra 0 capital. é um protesto contra o poder. Ora. a Montanha’ entendia realizar o socialismo pelo poder e, 0 que é pior, servir-se do soctalismo para chegar ao po- der’. A revolugéo politica tria, inevitavelmente, sob a presséo operaria, colocar a questao social, que os democratas nao esta- vam nada preparados para enfrentar. ‘'A revolugao social sur- Montagne, » lado esquetdo da Convencdo Francesa 32 giria sem que ninguém, nem em cima nem em baixo, dela ti- pesse compreensao (...) A revolugao, a Repiiblica, 0 socialismo, apotados um sobre 0 outro, chegariam a grandes passos (...) Esta revolugdo, que iia explodir na ordem politica era 0 pon- to de partida de uma revolucao social de que ninguém conhe- cia o segredo.”" Ninguém, exceto Proudhon. Desde 1846 ele tem uma idéia bem elaborada. E a ele que cabe lamar uma ‘‘revolugao decisiva’', uma "'revolugao econ6mica’’. Ele tem sua “‘solugao do problema social"’. E a associagao miitua, 0 que hoje se cha- ma de autogestao. ‘‘A Revolugao sou eu"', nota ele orgulhosa- mente em seus Cadetnos. A panacéia que ele propoe é uma mistura singular de realismo e de utopia. Realismo, quando enaltece a multiplicagao das associag6es operarias de producao, unico meio de afastar, ao mesmo tempo, 0 capitalismo privado ea nacionalizagao estatal, Utopia, quando ele se persuade de que seu sistema aumentara insensivel e progressivamente, que ele acabara por absorver de modo paulatino, sem expropriacao violenta, toda a indistria, gracas a um crédito gratuito que se- ria concedido as associagées operarias por um ‘‘Banco do Povo"’, espécie de caixa mittua funcionando fora de qualquer controle do Estado. Mas a politica arranca Proudbon de suas panacéias. Pri- meiramente derrotado nas eleigoes de abril, é eleito deputado nas eleigoes complementares de 4-5 de junho de 1848, por 77 mil votos. Algumas semanas antes ele havia bradado: ''O su- fragio universal é a contra-revolugao"'. Ver-se-@ mais adiante que ele confessara: ‘'Quando penso em tudo o que escrevi, tu- do o que publiquei durante dex anos sobre o papel do Estado na soctedade, sobre a subordinacao do poder a incapacidade revoluciondria de governo, sou levado a crer que minha elei- ¢40, em junbo de 1848, foi efeito de um equivoco por parte do povo’’ Quinze dias mais tarde, os operirios dos subtirbtos se suble- vam para protestar contra a dissolugao das “‘oftcinas nactonats"’, es- pécie de centro de trabalho que havia sido improvisado com a fina- 33 hidade de assimilar 0 desemprego. Mas Proudbon tomou seu papel de parlamentar muito a sério: ‘Para mim, a lembranca das jorna- das de Junho pesard eternamente como um remorso em meu cora: ¢ao... Eu faltes, por estupidez parlamentar, 2 meu dever de repre- sentante. Eu estava la para ver e nao vi; para dar o alarme, e nio gritei!"" Mas quando a sublevacao do subttrbio Saint-Antoine é selva- gemente reprimida pelas forgas do general Cavaignac*, Proudbon desce & rua. Segue para a praca da Bastilba. A qualquer um que o interroga ele responde: “'Escuto 0 sublime horror da canhonada"’. Enquanto uma burguesia amedrontada solta gritos histéricos, ele exige que nao se difame os insurretos, Exalta a generosidade, a alta moraidade das classes trabalbadoras: ‘‘Combatentes de Junho (...), aqueles lé vos enganaram porque vos Jixeram, em nome do poder, uma promessa que 0 poder era incapaz de manter"’. Ap6s as fornadas de Junho, Proudhon nio & mais absoluta- mente o mesmo homem. Fala um linguagem de classe. Proclama agressivamente seu soctatismo. Desde a metade de jutho ele entra no combate. Apodera-se da trbuna parlamentar para dela fazer um instrumento de luta social. ‘'Orgulbo ou vertigem, escrevera ele, acreditei que minha vex havia chegado. Cabe a mim, eu me dizia, langar-me no turbilhao. De meu banco de espectador eu me Precipitei, novo ator, sobre o teatro". Apresenta um projeto de ler que, ao mesmo tempo, tende a atingir os ricos e a exonerar os po- bres: imposto de um tergo sobre toda renda, moratoria de um ergo bara todo aluguel ou arrendamento. Esta Propostgao suscita uma indignacao geral, Na comissto de Finangas, ‘‘Monsieur’? Thiers, borta-voz da burguesia, insulta Proudhon. Em 31 de pulbo este iil- timo se explica diante da assembléta em um grande discurso, Fxas- perado pelas interrupeies e injtirtas, ele se faz provocador. ‘Intima 4 propnedade por levar @ liquidagao social"’, para acrescentar: Em caso de recusa, procederemos nos mesmos, sem vos, & hiquidagéo”’. (Violentos Murmiirios.) E continua, replicando aos que 0 interrom- © General Louis-Fugene Cavaignac (1802-1957), cattasco da Algéria conquistada, ¢ depois do proletariade parisiense em junho de 1848 34 peram: “Quando digo nds, eu me identifico ao proletariado e quando digo v05, eu vos identifico com a las se burguesa. Um deputado — ‘Ea guerra social! ; oe O discurso termina com estas palavras fulgadas incendhirias: “O capital nao reaparecera, a sociedade tem seus olhos sobre ele". Proudhon comentara: “Eu queria dizer: a questo soctal esta posta e vos a resolvereis ou nao acabareis com ela”. nee era mais eu que falava na tribuna, eram todos os trabalhadores. f O escindalo provocado por esta investida parlamentar for grande, 0 projeto de Proudbon rejeitado quase por nani: 691 votos contra 2, 0 seue ode um certo Greppo. Proudhon ain : comentaré com inspiragao: ‘A partir de 31 de julho eu me tomei, se gundo a expressho de um jornalista, 0 homem-terror (...) Fut re. preendido, ridicularizado, satirizado, difamado, biografado, cari- caturado, censurado, ultrajado, maldito (...) Os devotos me amea- garam, através de cartas anénimas, com a c6lera de Deus; as mu- Jheres beatas me enviaram medathas bentas (...) Petigoes chegaram @ Assembléia Nacional pedindo minha expulsdo como indigno”’. As eleigbes parciais de 17 de setembro de 1848 forneceram a Proudhon uma nova ocasiao de tomar uma nitida posigao revolu- ciondria. Superando, uma vex mais, seu horror ao sufrégio univer- sal, ele defendeu com seu jornal a candidatura de senate Raspail. Cientista reconhecido por seus trabalhos de botiinica, le quimica organica, espectalizada em medicagao pela canfora Ras- pail (1794-1878) tornara-se 0 ‘‘médico dos pobres e havia ta berseguido, em 1846, por exercicio ilegal da medicina. Em 24 le fevereiro de 1848 havia sido um dos primeiros a marchar em dire- ¢ao a Assembléia e a at proclamar a Repiblica. Em seguida, recu- sou qualquer funcao piiblica para fundar um jornal em que critica- va asperadamente o governo provisbrio. Ao lado de Augusto Blan- qui, fot um dos organizadores da poderosa manifestagao dos clubes populares que, em 15 de maio, invadiu o Palicio Bourbon, decla- rou a Assembléia dissolvida e constituiu, em seu prédio, um efé- mero governo insurrecional. Na mesma tarde, com Barbés e alguns outros. Raspail foi detido e apnisionado no Forte de Vincennes Era portanto um prisionetro que, por ocasiao das eleioes par- 35 ciais, era apresentado ao sufragio dos eleitores do Sena. Raspail foi eleito triunfalmente. “'O socialismo, narraré Proudhon, fer as eleigoes de 17 de setembro. Quando todos se reuniam para esmaga-lo, 70 mil homens respondiam a seu apelo para protestar contra a vit6ria de Junho e nomeavam Raspail seu representante. E nas mesas do Peuple que o comité eleitoral democratico tomou as- sento. Contra uma reagao imoderada, a democracia tomava por bandeira seu Orgdo mats enérgico.(...) A questio nao estava mats entre a monarquia e a democracia, mas sim entre o trabalho e 0 ca- pital.”” Algumas semanas mats tarde, no decorrer de um banquete, Proudhon fez um retumbante ‘‘brinde & Revolugao"’. Acrescenta- va a ela resolutamente a qualificagao de ‘‘socialista’' @ de ‘‘demo- crata’’, afirmando que de agora em diante era impossivel ‘‘separar @ Repitblica do socialismo'’. ‘Somente o povo, realizando sobre ele mesmo, sem intermediarios, pode alcancar a revolugao econo- mica fundada em Fevereiro." Mas a insurreigao de Junho e sua terrivel repressdo nao radica- lizaram somente a vanguarda, elas haviam também, e muito mats, esttmulado a contra-revolugao. Exceto no Sena, as eleigoes parciais Soram favoriveis aos conservadores e um recém-chegado, 0 princi- be Luis Bonaparte, sobrinho de Napoledo, conseguiu eleger-se com 300 mil votos em cinco Departamentos. Desde entao se en- contrava posta sua candidatura & eleigao presidencial de 10 de de- zembro. Para esta eleigao, Proudhon — ainda uma vex — langa a can- didatura de Raspail*. Seu jornal primeiramente recomendara a abstencao, depots 0 voto em branco de protesto. Ja eram candida- tos Luis Bonaparte, o general Cavaignac, carrasco de Junho, o democrata-burgués Ledru-Rollin. A democracia "‘pronunciava-se pela teora governamental, nio era mais soctalista. (...) Era necessé- rio, pela honra de sua oposigao futura, que um protesto surgisse de seu interior’. Na vaga de reagdo que varria a provincia francesa, principal- * Sobre a candidatura de Raspail ver mais adiante, pp. 75-84 36 mente nos campos, a candidatura de Ledru-Rollin nao tinha chan- ce alguma. Mas, explica Proudhon, mesmo que ela ivesse a mi mima chance de sucesso e tivesse dependido de nos fazé-la abortar, teriamos feito isso’. A candidatura de Raspail era uma manifesta ¢ao de desconfianga em relagdo aos democratas burgueses que falt ram durante seu exercicio do poder desde a revolugao de Feveretro. Finalmente foi o principe quem ganhou a eleigao, por enor- me matoria. Proudhon comentaré nestes termos o constrangedor resultado: ‘ Franca nomeou Luis Bonaparte presidente da Repi- blica porque estd cansada dos partidos, porque todos os partidos es- tao mortos"’. E exphicaré que o horror legitimo que inspirava o ge- neral Cavaignac tinha, além disso, “‘precipttado para Napoledo a maior parte dos democratas"'. A Revolugdo havia dado o ttimo Spiro. co O novo regime se apressa em aprisionar Proudhon. Teve todo otempo, asin, para tirar mais profundamente uma ligao de der. rota revolucionéna. Em 1848 era o caso de ir sendo até a anarquta, “que, como todo principio, indica mats um ideal do que uma rea- lidade"’, mas, ao menos, de se atacar a centralizagao estatal. Os ci- dadaos deviam ser ‘‘senhores de si mesmos’’. Devia-se restituir “aos Departamentos e as comunas a gestiao de seus negocios, opo- der de sua policia, a disposigao de seus fundos e de suas tropas"’. Se nao se realizasse este minimo, ‘era uma hiprocrisia falar-se em revolugéo"’. Mas os homens de 1848 '‘néo ousaram, presos que estavam pelo preconceito geral e por este medo do desconhecido que perturba os maiores espiritos”’. "A questo politica foi devol- vida (...) & Assembléia Nacional: pode-se prever desde entao que ai seria enterrada. La, ficou subentendido que 0 povo, estando em minoria, nao podia ser abandonado a seus proprios designios; 0 governamentalismo foi mantido com um acréscimo de energta."’ ““O erro, 0 maior erro do governo (...) € nao ter sabido destrutr. Era preciso desarmar o poder", “‘arrancar-the as unhas e os dentes”, “icenciar metade do exército, afastar as tropas da capttal’’. Em vex disso 0 governo recrutou vinte e quatro batalhoes da guarda nacio- nal movel. formados de voluntarios. ‘‘Que se queria entao fazer com todos estes soldados? Junho nos ensinaria."* 37 Proudhon deduzira, do precedente de 1793, conclusoes Ik. bertirias: “Era preciso organizar os clubes. A organizagao das socie- dades populares era o pivd da democracia, a pedra angular da or- dem republicana”’. “Se havia uma instituyao que um poder de- mocritico devia respeitar, e nao somente respettar mas desenvolver, organizar, eram os lubes." “Tudo foi levado ao contranio apos Fe- veretro. (...) Em lugar de entregar ao povo sua fecundidade de ini- ciativa pela subordinagao do poder as suas vontades, procurava-se resolver, pelo poder, problemas sobre os quais o tempo (anda) nao tinha esclarecido as massas."' "O governo provisorio, desprovido do espinito das revolugoes (...), perdia dias e semanas em hesitagoes es- téreis, agttagoes e circulares."’ ‘'O sopro da opiniio empurrando-o, esforgava-se por escolher uma iniciatna qualquer. Triste iniciatival”’ A parte algumas raras medidas posttivas, ‘‘todo o resto nao fot senio farsa, exibigao, contra-senso e contra o bom senso. Dir-se-ta que 0 poder torna estiipidas as pessoas de espintto”’. E Proudhon administra uma “‘surra’’ a estes homens que, tal como os do governo da Frente Popular de 1936, nao tinham sendo um pensamento: permanecer na legalidade. ‘Toda sua ambicao (...) fot de entregar, empregados fiéts, contas justas. Perseguidos belas lembrancas de 1793, (...) nao querendo nem passar por de- molidores, nem usurpar a soberania nacional, eles se limitaram a manter a ordem. (...) Acreditavam faltar ao dever de seu mandato caso saissem dos meios legats e langassem |...) 0 povo na Revolu- gao. Respondia-se que a Revolugao iria desorganizar o Estado, que @ democracia era a anarquia (...) Antes que recorrer a meios suméa- ros, extralegais, contra os ricos, (...) eles colocaram a honestidade no lugar da politica. (...). Foram plenos de honta e de escripulo, (...) escravos da legahidade, guardizes incorruptivets do pudor de- mocritico.'' Quiseram, como Colette Audry escreveu a propésito de Léon Blum, ser ‘justos’"*. Fles levaram a “‘delicadeza até a mi- niicia, 0 respeito as pessoas, as opinibes e aos interesses até 0 sacrifi- cio" deles mesmos. Entre os bancarrotetros de 1848, 0 que Proudhon mais atacava era Louts Blanc. A seus olhos, ele era 0 mais responsavel de todos * Colette Audry. Léon Blum ow la Politique Juste. 1955. 38 porque se considerava capaz de “socialismno! '. Em 17 de marco de 1348, Louis Blanc foi um dos organizadores de uma Pa Lia de manifestagdo popular que reuntu mais de cem mil homens. Mas ele a impedin de tornar-se uma intimagao lancada ao Paani para obrigd-lo a se mostrar mats enérgico contra os sabotadores epi- blica. Proudhon nao podia perdoar a Louts Blanc esta defeccao: “Mas como! Eis um homem convencido de que os homens do, po- der, seus colegas, sao hostis ao progresso: que a Revolugao esta em perigo se nado se comsegue substitutlos; ele sabe que 4 ocastao & ra- Ta, que uma vez escapada nao volta a que um unico instante Ihe é dado para desencadear um golpe decistvo; ¢ quando chega es- te momento, aproveita-o exatamente para reprimir aqueles que lhe trazem seus sacrificios e seus bragos!"’ E, para concluir sua amarga evocagao, 0 pristonetro detxa escapar esta frase desgostosa: ‘A revo- Jugao se evaporou como um alcool despejado eu Mas da Revolugao de 1848 Proudhbon nao tirou somente esta severa critica de seus néufragos: ela devia inspiré-lo, como se vera ‘mats adiante, a uma vigorosa e original condenagao do Estado e do poder em geral. PROUDHON SE LANCA AO COMBATE* Estourou a Revolugio de Fevereiro. Eu estava muito longe, imagine-se o resto, de me langar nesta confusio Politico-socialista de que De Lamartine** traduzia em prosa poética os lugares- comuns da diplomacia; em que se falava de colocar em associagoes € em administragdes sucessivamente todo 0 comércio, toda a indtis- tria ¢ logo toda a agricultura; de resgatar todas as propriedades e explora-las administrativamente; de centralizar capitais capacida- des nas mos do Estado; posteriormente, de levar aos povos da Europa, frente de nossos triunfantes exércitos, este regime gover- namental, Acreditei mais Gtil prosseguir no isolamento meus labo- Confessions dun Révolutionnaire.... op. 6b Alphonse de Lamartine (1790-1869), mais conhecido com» poeta mas antigo lepiti mista que se tornou republicans moderade: desempenhou um importante papel politico no governo provisérie da Revolucau de Fevereito de lis 39. tiosos estudos, convencido de que era 0 nico meio que tinha de servir 4 Revolucao e, evidentemente, de que nem 0 governo provi- s6rio nem os neojacobinos me precederiam. (...) Ao passo que, Gnico de minha escola, eu aprofundava o fosso no verniz da velha economia politica; enquanto P. Leroux, Villegardelle, Vidal* ¢ alguns outros seguiam, em diregdes pouco diferentes, esta sabia marcha de demolicao, que faziam os orgaos da democracia? O que eles faziam? Hélas! Que eles me permitam recotdar-lhes, a fim de que os socialistas nao levem sozinhos a res- ponsabilidade das desgracas da Replica: eles se consagravam a suas preocupacdes parlamentares; afastando com obstinagZo, com medo de assustar seus eleitores, as questées sociais, eles preparavam @ mistificagdo de Fevereiro; organizavam por esta negligéncia vo- luntaria as oficinas nacionais; determinavam os decretos do gover- no provisério, e langavam, sem o saber, os fundamentos da tepa- blica honesta ¢ moderada. Le National, j4 no 0 ataco mais, cri cando 0 socialismo, constribuia para votar as fortificagdes de Paris; La Réforme, certo de suas boas intengdes,.agatrava-se ao suftigio universal e a0 governamentalismo de Louis Blanc. Deixava-se cres- cera utopia quando era preciso arrancd-la ainda verde. (...) Foi preciso nada menos que a experiéncia de Feverei- To para convencer nossos homens de Estado de que uma revo- lugao nao se para nem se improvisa. (...) Assim a democracia consumia-se nela mesma, na per- seguicao deste poder que seu objetivo € precisamente aniquilar ao distribui-lo. Todas as fragdes do partido cairam, uma apés a outra: a Comissao executiva destituida, estavamos 4 disposigao dos republicanos do futuro, chegavamos perto dos doutrina- s. Se nao se chegassse a conjurar este retrocesso, ou pelo me- nos a cerca-lo dentro do circulo constitucional, a Rep&blica es- tava em perigo: mas para isso era preciso mudar de tatica. Era Pierre Leroux (1797-1871), socialista de formacio saint-simoniana, imprimido de re- ligiosidade; Francois Villegardelle (1810-1856), primeiramente foutierista, ap6s co: munista: Francois Vidal (1814-1872), proximo 20 mesmo tempo dos saint-simonia~ ‘nos ¢ dos fourieristas. desempenhou importante papel na Comissio de Luxembur. po durante a Revolucao de 1848. 40 preciso se estabelecer na oposicao, langar o poder na defensiva, ampliar 0 campo de batalha, simplificar, generalizando-a, a questao social; assustar 0 inimigo pela audacia das proposigées, agit de hoje em diante sobre o povo mais que sobre seus repre- sentantes, por sem reserva as paixdes cegas da reacao a idéia republicana € revolucionaria de Fevereiro. : Nenhum partido se prestou realmente a esta tatica; ela exigia uma individualidade resoluta, excéntrica mesmo, uma alma retemperada pela revolta e pela negacao. Orgulho ou ver- tigem, acreditei que minha hora chegara. Cabe a mim, eu me dizia, langar-me no turbilhao. Os democratas, seduzidos pelas lembrangas de nossa gloriosa revolucaéo, quiseram recomecar em 1848 o drama de 1789: enquanto eles representam a comé- dia, esforcemo-nos por fazer a hist6ria. A Repdblica s6 funcio- na sob a guarda de Deus. Enquanto que uma forca cega arrasta o poder em um sentido, nés nao saberiamos fazer a sociedade avancar num outro? Mudando a direcao dos espiritos resultaria que o governo, continuando a fazer reacdo, faria entéo, sem davida, a revolucio. E, de meu banco de espectador, eu me precipitava, novo ator, sobre o teatro. HA dezoito meses meu nome fez bastante barulho para que se me perdoe encaminhar algumas explicagées, algumas exclusas 4 minha triste celebridade. Boa ou mA, tive minha parte de influéncia sobre os destinos de meu pais: quem sabe 0 que esta influéncia, mais poderosa hoje pela propria repressio, pode ainda produzir? Importa entao que meus contempora- neos saibam o que eu quis, o que eu fiz, o que eu fui. Nao me vanglorio de modo algum: eu me lisonjearia somente se meus leitotes ficassem convencidos, apés a leitura, de que em meu feito nao ha nem loucura nem édio. A Gnica vaidade que algu- ma vez tive no corac4o foi acreditat que algum homem nao agira em toda sua vida com mais premeditacao, mais reflexao, mais discernimento do que eu 0 fiz. Mas aprendi as minhas custas que nos préprios momentos €m que eu me acreditava mais livre, nao era entao, na torrente de paixdes politicas 4 qual eu pretendia dar uma direcdo, senéo 4l um instrumento desta imoral providéncia que nego. que recu- 50. Talvez a historia de minhas meditacdes. inseparivel da de meus atos, nao sera sem proveito para aqueles que, quaisquer que sejam suas opinides, amam procurar na experiéncia a justi ficagao de suas idéias (...) A revolucio do desprezo derrubou 0 governo que esta- belecera o principio materialista de interesses. Esta revolucao, que condena o capital, por isso mesmo inaugura e leva ao go- verno o trabalho. Ora, segundo o preconceito universalmente difundido, o trabalho, tornado governo, deve proceder pelas vias governamentais; em outros termos, cabe ao governo fazer de hoje em diante o que era feito sem ele € contra ele, tomar a iniciativa de desenvolver a revolucdo. Porque, diz o preconcei- to, a revolucdo deve vir pelo alto, pois é no alto que se encon- tram a inteligéncia € a forca. Mas a experiéncia atesta, ¢ a filosofia demonstra, contra- riamente ao preconceito, que toda revolugao, para ser eficaz, deve ser espontanea, sair, nao de cabeca do poder, mas das en- tranhas do povo; que 0 governo é mais reacionario do que pro- Bressista; que ele nao saberia ter a inteligéncia das revolug6es, ja que a sociedade, nica a quem pertence este segredo, nao se revela de modo algum por decretos de legislatura, mas pela es- pontaneidade de suas manifestagdes; que, enfim, a Gnica rela- G40 que existe entre o governo e€ o trabalho é que o trabalho, ao se ofganizar, tem por missao abolir o governo. (...) No que me diz respeito, nao me escondo isso, dirigi to- das as minhas forcas para a desorganizagao politica, nao por impa- ciéncia revolucionatia, n3o por amor de uma va celebridade, nao por ambic4o, inveja ou édio, mas pela previdéncia de uma reacdo inevitavel, e, em todo caso, pela certeza em que eu estava de que, na hipétese governamental em que ela persistia em se manter, a democracia nao podia realizar nada de bom. Quanto as massas, tao pobre que fosse sua inteligéncia, tao fraca eu descobrisse sua cora- gem, eu as temia menos em plena anarquia do que no escrutinio. No povo, como nas criangas, os crimes € delitos estéo mais proxi- mos 4 mobilidade de impresses do que da perversidade da alma: € 42 cu achava mais facil, para uma elite republicana, completar a edu- cacao do povo num caos politico do que fazé-lo exercer sua sobera- nia, com alguma chance de sucesso, pela via eleitoral*. PROUDHON CANDIDATO DESEMPOSSADO (ABRIL DE 1848°*) (...) Chegaram as eleig6es de abril. Tive 0 capricho de me can- didatar. Na circular que enviei aos eleitores de Doubs, sob a data de 3 de abril de 1848, eu dizia: ““A questao social esté posta: vés nao escapareis dela. Para resolvé-la, € preciso homens que unam ao maximo de espirito radi- cal 0 maximo de espirito conservador. Trabalhadores, estendei a MAO a VOssoS pattSes; € vs, pattGes, nZo recusais o avancgo daqueles que foram vossos assalariados. “Que vos importa, afinal de contas, que eu tenha sido mais ou menos atingido pela sorte? E suficiente, para merecer vossa es- colha, ter somente a miséria a oferecer, ¢ vossos sufragios nao pro- curam um aventureiro. Entretanto, se nao revelo minha calamitosa existéncia, quem me recomendara 4 vossa atencio? Quem falara por mim?”” Quando assim me exprimia, a influéncia da democracia ainda estava com toda sua forga. Nao esperei uma mudanca completa da sorte para pregar, como objetivo e significacio do socialismo, a re- conciliagdo universal. O 16 de abril reduziu minha candidatura a nada. Apés este dia deploravel, nao se quis mais ouvir falar de tadicalismo extremo: Prefetiu-se comprometer tudo lancando-se no conservantismo ex- temo. Candidato desempossado, publicista sem leitores, tive de me voltar para a imprensa. Disseram-me todos os dias: faga livros, isto € preferivel aos jornais. Eu admito isso: mas 0s livros, no so lidos; € enquanto o autor da Filosofia Positiva. Augusto Comte, reuniu Extraido de La Révolution Soctale Démontrée par le Coup d'Etat du 2 Decembre Confessions d'un Révolutwonnatre.... up. tt 43 em seus cursos apenas duzentos fi¢is, o Fauborien, o Pere Duchéne ea Vraie République conduzem o pais. Vos consumis dez anos de vossa vida a fazer vosso in-octavo cingiienta curiosos 0 compram, em seguida vem o jornalista que vos joga em sua caixa, e tudo esta dito. Os livros nao servem mais senao ao aprendizado do jornal © mais alto género em literatura, em nosso século, é 0 editorial, folhetim. PROUDHON CANDIDATO ELEITO (4 DEJUNHO DE 1848") Passados dez anos, quando penso em tudo o que disse, escre- vi, publiquei sobre o papel do Estado na sociedade, sobre a subor- dinacio do poder ¢ a incapacidade revolucionaria de governo, sou tentado a acreditar que minha eleicgao, em junho de 1848, foi o efeito de um equivoco por parte do povo. Estas idéias comecaram em mim desde a época de minhas primeiras meditacGes; sé0 con- temporaneas de minha vocagao para 0 socialismo. O estudo ¢ a ex- periéncia as desenvolveram; elas me dirigiram constantemente em meus estudos e em minha conduta; elas inspiraram todos os atos que vou justificar: € estranho que apés a garantia que elas apresen- tam, e que € a maior que um inovador possa oferecer, eu tenha po- dido parecer um Ginico momento, 4 sociedade que tomo por juiz € ao poder que eu nao quero, um agitador terrivel. APOS A INSURREICAO OPERARIA DEJUNHO DE 1848 O mea culpa de Proudhon** (...) Esta insurreigao € em si mais terrivel do que todas aquelas que tiveram lugar em sessenta anos. (...) Thiers foi visto aconse- Ihando o emprego do canhao para acabé-la. Massacres atrozes pot parte da guarda mével, do exército, da guarda nacional ocorreram. (...) Os insurretos mostraram uma coragem indémita. (...) O terror reina na capital. (.,.) Fuzila-se na Conciergene, na Camara Munici- + Idem. op et. Carnets de Proudhon, vol. (11. 1908, p. 68: Confessions dun Révolutionnatre op. ei. Bs Bz pal, quarenta ¢ oito horas apés a vit6ria* ; fuzilam-se os prisio- neiros, feridos, desarmados. (...) Propagam-se as caltinias mais atrozes sobre os insurretos a fim de provocar a vinganga contra cles. (...) Eu, apés as jornadas de Junho, nada protestei contra 0 abuso que ignorantes puderam fazer de alguns de meus aforismas ¢ reneguei minhas inclinagdes populares; nao ataquei o ledo mori- bundo. Mas nao esperei pelas jornadas de Junho para atacar as ten- déncias governamentais e manifestar meus sentimentos de inteli- gente conservacéo. Sempre tive, terei etetnamente o poder contra mim: € esta a tatica de um ambicioso e de um covarde? Em outro lugar, fazendo o balango do poder, eu provava que uma democracia governamental nao € sendo uma monarquia rediviva. (...) Para mim, a lembranca das jornadas de Junho pesara eternamente como um remorso sobre meu coragdo. Eu o confesso com dor; até 25 eu nada previ, nada conheci, nada descobti. Eleito h4 quinze dias representante do povo, entrara na Assembléia Na- cional com a timidez de uma crianca, com o ardor de um neéfito. Assiduo, desde nove horas, as reunides das comissées e dos comi- tés, s6 deixava a Assembléia 4 noite, extenuado de fadiga e de des- gosto. Desde que coloquei os pés sobre o Sinai parlamentar deixei de estar em relacdo com as massas; 4 forca de me absorver em meus trabalhos legislativos, perdi inteiramente de vista a marcha das coi- sas. Nao sabia nada, nem da situacao das oficinas nacionais, nem da politica do governo, nem das intrigas que se cruzavam no seio da Assembléia. E preciso ter vivido neste isolador que se chama uma Assembléia Nacional para conceber como os homens que ig- noram mais completamente o estado de um pais séo quase sempre aqueles que o representam. Eu me havia posto a ler tudo 0 que a comissdo de distribuigio remete aos representantes: proposigdes, relatrios, brochuras, até o Moniteur e 0 Bulletin des Lots. A maior parte de meus colegas da esquerda e da extrema-esquerda estavam na mesma perplexidade de espirito, na mesma ignorancia dos fatos cotidianos. Nao se fala- va de oficinas nacionais sendo com uma espécie de pavor; porque 0 medo do povo é o mal de todos aqueles que pertencem 4 autorida- Proudhon quer dizer, bem entendido. a vit ia das forcas governamentais 45 de; 0 povo, para o poder, é 0 inimigo. Cada dia, nds votévamos novos subsidios para as oficinas nacionais, perturbados com a inca- pacidade do poder ¢ com nossa impoténcia. Desastrosa aprendizagem! O efcito desta confugao represen- tativa em que era preciso viver foi que nao tive compreensao de na- da; que no dia 23, quando Flocon declarou em plena tribuna que © movimento era dirigido por faces politicas ¢ a soldo do estran- geito, deixei-me apanhar nesta mentira ministerial; ¢ que a 24 cu ainda perguntei se a insurreic4o tinha realmente por motivo a dis- solugao das oficinas nacionais! Nao, Senhor Senard, nao fui um co- varde em Junho, como yés me atirastes 0 insulto na frente da As- sembléia; eu fui, como vés € como tantos outros, um imbecil. Fal- tei, por estupidez parlamentar, a meu dever de representante. Eu estava la para ver € nao vi; para dar o alarme e nao gritei. Fiz como 0 co que nao late na presenca do inimigo. Eu nao devia, eu, eleito da plebe, jornalista do proletariado, deixar esta massa sem direcao sem conselho: cem mil homens arregimentados mereciam que cu me ocupasse deles. Isto teria valido mais do que me apoquentar em vossas mesas. Desde entio fiz o que pude para reparar meu erro irreparavel. 46 Manifesto Eleitoral do Povo* O Manifesto abatxo é uma das obras mais caracteristicas de Proudhon. Encontra-se nela ao mesmo tempo uma pres cténcta genial da autogestdo contempordnea, uma concepedo “‘mutualista’’, um tanto utépica e pequeno-burguesa, certa- mente, da reorganiza¢ao social, 0 cuidado um tanto aberrante de preservar a pequena propriedade e, opondo-se a taxé-la, de fa nao mats taxar a grande, e finalmente uma atitude socialista revoluciondria sobre a participacao num escrutinio presidencial que. para Proudhon, nao & mais que uma ''miserdvel questao’’ e pura e simplesmente uma ocasido de expor seu pro- grama O comité eleitoral central, composto dos delegados das quatorze circunscticdes do Sena, a fim de preparar a cleigio do Presidente da Repdblica acaba de determinar suas operacdes O cidadao Raspail, representante do povo, foi designado wrrndl da Peuple 8-15 de novembre de Isis por unanimidade como candidato do Partido Republicano De- mocratico Social. O comité central publicar4 incessantemente sua circular aos eleitores. Para nds, que aderimos com Animo e coragem a esta can- didatura; que, nesta circunstancia, julgamos necessario, para a dignidade de nossas opinides, separat-nos de outras fracdes menos avancadas da democracia, acreditamos dever estabelecer aqui quais so nossos principios: esta sera a melhor maneira de justificar nossa conduta. Nossos principios! Sempre os homens que fecorreram ao sufragio popular para chegar ao poder enganaram as massas pelas pretensas declaragdes de principios que, no fundo, nao foram nada mais que declatagdes de promessas! Sempre os ambiciosos € os inurigantes prometeram ao povo, em frases mais ou menos sonoras: A liberdade, a igualdade, a fraternidade; O trabalho, a familia, a propriedade, o progresso; O crédito, a instruc, a associacio, a ordem e a paz; A participacio no governo, a distribuicao equitativa do im- posto, a administraco honesta e barata, a justia justa, a igualdade pfogressiva das fortunas, a libertacao do proletariado, a extingao da miséria! Prometeram tanto que apés eles, € preciso confessa-lo, nao testa nada a prometer. Mas também o que eles cumpriram? E ao povo que cabe res- ponder: nada! Os verdadeiros amigos do povo devem mudar de comporta- mento de hoje em diante. O que o povo espera de seus candidatos, o que lhes exige, nao sio mais promessas, s40 os meios. E sobre os meios que propdem que é preciso julgar os ho- mens: € assim que exigimos que se nos julgue. Democratas-socialistas, no somos, para dizer a verdade, de nenhuma seita, de nenhuma escola. Ou melhor, se fosse preciso classificar-nos a nés mesmos, dirfamos que somos da escola critica. 48 OQ socialismo nao € de modo algum para nés um sistema; é sim- plesmente um protesto. Entretanto, acreditamos que nos trabalhos socialistas destaca-se um conjunto de principios ¢ de idéias opostos j rotina econdmica e que foram aceitos na f€ popular; © € por isso que nés nos dizemos socialistas. Fazer Profissao de socialismo ena- da aceitar do socialismo, como o fazem os mais espertos, setia zom- bar do povo € abusar de sua credulidade Nao é tudo ser republicano; nao é tudo reconhecer que a Re- pablica deve se cercar de instituigdes sociais; nao € tudo escrever so- bre sua bandeira: Repiiblica democritica e social, € preciso marcat claramente a diferenca da antiga sociedade com a nova; é preciso dizer o que produziu de positivo 0 socialismo; em que e por que a Revolucao de Fevereiro, que € sua expresso, € uma revolucao so- cial. Estabelegamos antes 0 dogma fundamental, 0 dogma puro do socialismo. O socialismo tem por objetivo a libertagao do proletariado ¢ a extinggo da miséria, quer dizer, a igualdade efetiva das condigdes entre os homens. Sem igualdade sempre havera misétia, sempre haverd proletariado. O socialismo, igualitario antes de tudo, € entio a formula de- mocratica por exceléncia. Se politicos menos sinceros experimen- tam alguma repugnancia em confessi-lo, respeitamos sua reserva; mas, é preciso que eles o saibam, a nossos olhos nao sao absoluta- mente democratas. Ora, qual € a causa da desigualdade? Esta causa, segundo nés, foi tornada ptiblica por todas as criti- cas socialistas que se sucederam, notadamente depois de Jean- Jacques (Rousseau): esta causa € a realizagao na sociedade desta tri- pla abstracao: capital, trabalho, talento. E porque a sociedade se dividiu em tés categorias de cidadaos correspondentes aos tés termos desta formula; quer dizer, porque fez-se nela uma classe de capitalistas ou proprietarios, uma outra classe de trabalhadores e uma terceira classe de capacidades, € que constan- temente chegou-se nela a distincao de castas e que a metade do género humano foi escrava da outra metade. 49 Por toda a parte em que se pretendeu separar de fato, organi- camente, estas trés coisas, o capital, o trabalho € 0 talento, o uaba- lhador foi esctavizado: ele se chamou alternativamente escravo, ser- vo, paria, plebeu, proletario; o capitalista foi explorador: nomeia- s¢ ora patticio ou nobre, ora proprietario ou burgués; o homem de talento foi um parasita, um agente de corrupcao e servidio: este foi primeiro o sacerdote, mais tarde o clétigo, hoje o funcionario pu- blico, qualquer género de capacidade e de monopélio. O dogma fundamental do socialismo consiste entdo em trans- formar a formula aristocratica: capital-trabalho-talento, nesta mais simples: trabalho! — em fazer, por conseguinte, que todo cidadao seja ao mesmo tempo, com idéntico valor e num mesmo grau, ca- pitalista, trabalhador ¢ sabio ou artista. O produtor € 0 consumidor, na tealidade das coisas, como na ciéncia econémica, € sempre 0 mesmo personagem, considerado somente de dois pontos de vista diferentes. Por que este nao seria da mesma maneira capitalista ¢ trabalhador? Trabalhador e artista? Separai estas qualidades na organizagao social € vos criais fatalmen- te castas, a desigualdade, a miséria; uni-as, a0 contrario, em cada individuo, e vos tendes a igualdade, tendes a Reptiblica. E assim ainda que na ordem politica devem se apagar um dia todas estas distingdes de governantes ¢ governados, administradores ¢ admi- nisttados, funcionarios pablicos e contribuintes, etc. E necessario, para o desenvolvimento da idéia social, que cada cidadao seja tudo; Porque, se nao € tudo, ele nio é livre; softe opressio € exploracao em algum aspecto. Qual € entao o meio de operar esta grande fusio? O meio € indicado pelo préprio mal. E, em primeiro lugar, esforcemo-nos para ainda melhor definir, se € possivel, o mal. Visto que o proletariado ¢ a miséria tém por causa organica a divisio da sociedade em duas classes: uma que trabalha e nao pos- Sui; a outta que possui ¢ no trabalha, que, por conseguinte, con- some sem produzir; segue-se que o mal de que sofre a sociedade consiste nesta ficcdo singular de que o capital é, por ele mesmo, produtivo; enquanto que o trabalho, por cle mesmo, nao 0 é. Com efeito, para que as condigées fossem iguais, nesta hipétese da 50 separacao do trabalho e do capital, seria preciso que, como o capi talista se desenvolve através de seu capital, sem trabalhar, também o trabalhador pudesse se desnvolver através de seu ae sem capital. Ora, ndo € 0 que acontece. Portanto, a igualdade, a liber- dade, a fraternidade s4o impossiveis no regime atual; portanto a miséria ¢ 0 preletariado so a conseqiiéncia fatal da presente orga- do da propriedade. fn Rea ise que o sabe € nao 0 confessa, mente igualmente 4 burguesia ¢ ao proletariado ‘ Todo aquele que solicita os sufrigios do povo e o dissimula nao é nem socialista nem democrata: Nos 0 repetimos: eee A produtividade do capital, aquela que o ctistianismo conde- nou sob 0 nome de usura, tal € a verdadeira causa da miséria, a verdadeira origem do proletariado, 0 eterno obstaculo ao estabele- cimento da Repablica. Nada de equivoco, nada de confuséo, nada de subterfiigio! Que aqueles que se dizem democratas-socialistas assinem conosco esta profissao de fé: com este sinal, mas somente com este sinal, nds reconhecemos neles irmaos, verdadeiros amigos do povo, nés subscreveremos todos 05 seus atos. E agora, o meio de extirpar o mal, de fazer cessar a usura, qual €? Sera atacar o lucro francamente, apoderarmo-nos da renda? Sera, ao professar o maior respeito pela propriedade, roubé-la atra- vés do imposto, na medida que ela € adquirida pelo trabalho ¢ consagtada pela lei? i E aqui sobretudo que os verdadeiros amigos do povo se dis- tinguem daqueles que nao querem sendo comandar © povo: é aqui que os verdadeiros socialistas se separam de seus pérfidos imitado- res. O meio de destruir a usura nao é, mais uma vez, confiscar a usura; € opor principio a principio, isto €, numa palavra, organizat o crédito. Organizar o crédito, para o socialismo, nao € emprestar a ju- Tos, visto que isto sempre seria reconhecer a soberania do capital: é organizar a solidariedade dos uabalhadores entre eles, é criar sua garantia mitua, segundo este principio de economia vulgar de que 51 tudo que tem um valor de troca pode ser um objeto de troca, po- de, por conseguinte, dar matéria a crédito. Do mesmo modo que o banqueiro empresta seu dinheiro a0 negociante que lhe paga isso em juros: O proprietario fundiarioempresta sua terra ao camponés que the paga um arrendamento; O proprietatio de imével empresta um alojamento ao locata- tio que lhe paga isso em aluguel; O comerciante empresta sua mercadoria a freguesia que com- Pfa a prestacao; Da mesma maneira o trabalhador empresta seu trabalho ao patro que lhe paga no fim do més ou no fim da semana. Todos quantos somos, nés emprestamos reciprocamente alguma coisa: no se diz vender a crédito, trabalhar a crédito, beber a crédito? Portanto, o trabalho pode dar crédito dele mesmo, ele pode ser ctedor como o capital. Portanto ainda, dois ou mais trabalhadores podem emprestar entre si seus respectivos produtos e, se eles se combinam por opera- GOes continuas deste género, organizarao entre eles 0 crédito. Eis o que compreenderam admiravelmente as associacdes ope- Farias que, espontaneamente, sem comandita, sem capitais, se for- mam em Paris e Lyon, e somente por isto elas se colocam em rela- ¢a0 umas com as outras, elas se esmprestam, organizam, como se diz, o trabalho. De modo que, organizagao do crédito, organizagao do trabalho, associacgo, € uma tinica e mesma coisa. Nao é uma es- cola, nao € um te6rico que diz isto: € 0 fato atual, o fato revolucio- nario que o demonstra. Desta maneira a aplicacao de um principio conduz 0 povo a descoberta de um outro, uma solucao obtida conduz sempre a uma outra solucao. Se portanto acontecesse que os trabalhadores se combinassem em todas as partes da Repiiblica € se organizassem da mesma maneira, € evidente que, senhores do trabalho e produzin- do incessantemente, pelo trabalho, novos capitais, logo teriam re- conquistado, por sua organizacao e sua concorténcia, o capital alie- nado; atrairiam a eles, primeiramente a pequena propriedade, o Pequeno comércio € a pequena indistria; depois a grande proprie- 52 dade e as grandes empresas; depois as exploracées mais vastas, as minas, 0s canais, as esttadas de ferro; eles se tornariam os senhores de tudo pela adesao sucessiva dos produtores ¢ a liquidacao das propriedades, sem espoliacdo nem saque dos proprietarios (...) Tal €a obra comecada espontaneamente sob osios olhos pelo povo, obra que ele continua com energia admiravel, através de todas as dificuldades da questao ¢ das mais horriveis privages. E nao convém se cansar de dizé-lo, nao so os fundadores de escola que comecatam este movimento, nao € 0 Estado que deu © prime- ro impulso, € 0 povo. Nés nao somos aqui senao seus avers Nossa fé, a fé democratica e social, j4 nao é mais uma utopia, € uma tealidade. Nao € de modo nenhum nossa doutrina que pre- gam.os; s4o as idéias populares que tomamos por tema de nossos desenvolvimentos. Aquelas nfo sfio os nossos que desconhcem, que nos falam de associacao e de Repiiblica € que nao ousam con- fessta para seus irmaos os verdadeiros socialistas, os verdadeiros re- publicanos. : Devotados ha dez anos a esta idéia, nés no esperamos o triunfo do povo para nos alinharmos com ele. i" (...) Que 0 governo, que a Assembléia Nacional, que a pro- ptia burguesia nos protejam e nos ajudem no cumprimento de nossa obra, seremos gratos por isso. Mas que nao se procure mais distrair-nos daquilo que vemos como os verdadeitos interesses do povo; que nao se tente nos iludir com indteis aparéncias de refor- ma. Estamos bastante esclarecidos para sermos novamente ingé- nuos, sabemos melhor como vai o mundo do que os politicos que nos honram com suas adverténcias. Nés estimariamos muito que o Estado, através de contribui- des tomadas sobre o orcamento, contribuisse para a emancipacao dos trabalhadores: nao veriamos senao com desconfianga 0 que se chama organizagao do crédito pelo Estado, ¢ que nao é, segundo nés, sendo a ultima forma de exploracao do homem pelo ho- mem. Nés rejeitamos 0 crédito do Estado porque o Estado, endi- vidado em oito bilhdes, nao possui um centavo do qual possa dar ctédito; porque sua procuragdo repousa somente sobre um papel de valor fixo; porque o valor fixo leva fatalmente 4 depreciacao € 53 porque a depreciacao sempre atinge o trabalhador de preferéncia ao proprietario; porque nés, produtores associados ou em vias de associac4o, nés nao temos necessidade nem do Estado nem de va- lor fixo para organizar nossas trocas; porque, enfim, o crédito pe- lo Estado € sempre o crédito pelo capital, no 0 crédito pelo tra- balho, sempre a monarquia, nao a democracia. No sistema que nos € proposto* ¢ que nés rejeitamos com toda a energia de nossas convicgdes, o Estado, para dar crédito, deve antes de tudo se prover de capitais. Estes capitais, € preciso que cle os exija 4 propriedade, pela via do imposto. E portanto voltar sempre ao principio, enquanto se trata de destrui-lo; é transferir a riqueza, enquanto seria preciso crid-la; é afastar a pfo- priedade apés té-la proclamado, pela Constituicao, inviolavel. Que outros, com idéias menos avangadas ¢ menos suspeitas, de moral meticulosa, apiem tais idéias, ndo acusaremos de modo algum sua tatica. Quanto a nés, que nao fazemos de maneira al- guma guerra aos ticos mas aos principios; nds, que a contra- revolugao nZo_cessa de caluniar, nés devemos ser mais tigorosos, N6s somos socialistas, nds ndo somos espoliadores. Nao queremos imposto progressivo porque o imposto pro- gressive € a consagracdo do produto liquido € nés queremos abo- lir, pela associacao, o produto liquido; porque, se o imposto pro- Bressivo nao retira ao rico a totalidade de sua renda, nao é sendo uma concessao feita ao proletariado, uma espécie de resgate do direito de usura, numa palavra, uma decepgao, ¢ porque, se reti- ta toda a renda, é 0 confisco da propriedade, a expropriacéo sem indenizagao prévia ¢ sem utilidade pablica Que aqueles portanto que se dizem antes de tudo homens politicos invoquem 0 imposto progressivo como uma represdlia em relacao a propriedade, como um castigo ao egoismo burgués; 6s respeitamos suas intengdes e, se jamais Ihes for dado aplicar seus principios, deixaremos livre-transito a justica de Deus. Para nés, representantes daqueles que tudo perderam no regime do capital, 0 imposto progressivo, precisamente porque é uma resti- tuicao forcada, nos é interdito; nés jamais proporemos isso ao po- © de Louis Blan vo. Nés somos socialistas, homens de reconciliagio e de progresso; nés nao exigimos nem reagdo nem lei agraria N6s ndo queremos 0 imposto sobre as rendas do Estado por- que este imposto €, como o imposto progressivo, em relac4o aos capitalistas, somente um confisco €, em relac4o ao povo, somente uma transagdo, um logro. Nés acreditamos que 0 Estado tem o diteito de resgatar suas dividas, por conseguinte, de emprestar a juros mais baixos: nao pensamos que lhe seja permitido, sob pre- texto de imposto, faltar a seus compromissos. Nos somos socialis- tas, nds ndo somos bancarroteiros Nés nao queremos 0 imposto sobre as herancas porque este imposto no € também senao uma revitada da prapriedade, e que, sendo a propriedade um direito constitucional reconhecido por toda a gente, € preciso nela respeitar o voto da maioria; por- que isto seria um ataque 4 familia; porque nao temos que prtodu- zir, pata emancipar o proletariado, esta nova hipocrisia. A tans- missao de bens, sob a lei da associaco, ndo se aplicando de modo algum aos instrumentos de trabalho, nao pode tornar-se uma cau- sa de desigualdade. Deixai portanto a fortuna ir do proprietario morto ao seu parente mais distante, freqiientemente 0 mais po- bre. Nés somos socialistas, nds ndo somos captores de herancas. Nés nao queremos o imposto sobre os objetos de lu- XO porque isto seria aniquilar as indtistrias de luxo; porque os produtos de luxo sio a propria expressao do progresso; porque, sob o império do trabalho e com a subordinagao do capital, 0 luxo deve ser acessivel a todos os cidadios sem excecao. Por que, apés haver encorajado a propriedade, nés puniriamos de seu g0z0 0s proprietarios? Nos somos socialistas, n6s ndo somos invejo- $08. (...) Nés nfo queremos a expropriacéo pelo Estado das minas, canais ¢ estradas de ferro: sempre é a monarquia, sem- pre o salariado. Nés queremos que as minas, os canais Cas €s- tradas de ferro sejam entregues as associacGes operarias, organi- zadas democraticamente, trabalhando sob a fiscalizagao do Es- tado, nas condigées estabelecidas pelo Estado, e sob sua pré- Pria responsabilidade. Nés queremos que estas associagGes se- 55 jam modelos propostos a agricultura, 4 indéstria ¢ a0 comércio, © primeiro niicleo desta vasta federagio de companhias e socie- dades, reunidas pelo lago comum da Reptblica democratica ¢ social. Nés nao queremos tanto o governo do homem pelo ho- mem como a exploragao do homem pelo homem; aqueles que pegam tao depressa a formula socialista refletiram sobre isso? N6s queremos a economia nos gastos do Estado, assim co- mo queremos a fuséo completa, no trabalhador, dos direitos do homem e do cidadao, dos atributos do capital e do talento. E por isso que nés exigimos certas coisas que o socialismo indi- ca, € que os homens que se pretendem mais especialmente po- liticos nao compreendem. A politica tende a especializar e multiplicar indefinida- mente os emptegos: 0 socialismo tende a fundi-los uns nos ou- tros. Assim, nds acreditamos que a quase totalidade de obras pablicas pode e deve ser executada pelo exército; que esta par- ticipacao nas obras pablicas é o primeiro tributo que a juventu- de republicana deve pagar a patria; que em conseqiiéncia 0 or- camento da guerra ¢ o das obras pablicas é um gasto inatil. E uma economia de mais de cem milhées; a politica nao se preo- cupa com isso. Fala-se de ensino profissional. Nos acreditamos que a es- cola da agricultura € a agricultura; a escola das artes, profissdes e manufaturas € a oficina; a escola do comércio € 0 balcdo: a es- cola das minas ¢ a mina; a escola da navegacao € o navio; a es- cola da administracio € a administracao, etc. Oaprendiz é tao necessatio ao trabalho quanto o operario por que coloc4-lo 4 parte numa escola? Nés queremos a mesma educacao pata todos: de que servem estas escolas que, pata 0 Povo, nao sao senao escolas de aristocratas e pata nossas finan- Gas um gasto inutil? Organizai a associacao e, imediatamente, toda oficina tornando-se escola, todo trabalhador é mestre, to- do estudante aprendiz. Homens de elite se produzem tao bem ou melhor na obra como na sala de estudo A mesma coisa no governo. 56 Nao € suficiente dizer que se é contra a presidéncia se nao se abolem os ministérios, eterno objeto da ambi¢ao politica. Cabe 4 Assembléia Nacional exercer, pela organizacao de seus comités, 0 poder executivo, como ela exerce por suas delibera- des em comum € seus votos o poder legislativo. Os ministros, sub-sectetérios de Estado, chefes de divisao, etc., sio uma re- peticao inatil dos representantes, cuja vida desocupada, dissi- pada, entregue a intriga e a ambicdo, é uma causa incessante de embarago para a administragdo, de més leis para a socieda- de, de despesas estéreis para o Estado. Que nossos jovens sécios 0 metam na cabeca: 0 socialismo € 0 contrario do governamentalismo. Isto é tao velho para nds quanto o preceito: Entre senhor e escravo nada de sociedade. Nés queremos, ao lado do suftagio universal, e como con- seqiiéncia deste sufragio, a aplicacgéo do mandato imperativo. Os politicos se revoltam com isso! O que quer dizer que a seus olhos o povo, elegendo representantes, nao se da de modo al- gum mandatdrios, ele aliena sua soberania! Com certeza isto no € socialismo, isto nao € nem mesmo a democracia. Nos queremos a liberdade ilimitada do homem e do cida- dio, salvo o respeito a liberdade do outro: Liberdade de associagio; Liberdade de reuniao; Liberdade de culto; Liberdade de imprensa; Liberdade de pensamento e de palavra; Liberdade de trabalho, de cométcio e de indiistria; Liberdade de ensino Numa palavra, liberdade absoluta. Ora, entre estas liberdades ha sempre alguma que a velh: Politica nao admite, o que acarreta a ruina de todas! Nos dirao um momento, mas quer-se a liberdade com excecio ou sem ex cegéo? ““Nés queremos a familia: onde estdo aqueles que a respeitam Mais que n6s? Mas n6s nao tomamos a familia como modelo da sociedade. Os defensores da monarquia nos ensinaram que 57 era a imagem da familia que as monarquias eram constituidas. ‘A familia € 0 elemento patriatcal ou dinastico, 0 rudimento da realeza: o modelo da sociedade civil € a sociedade fraternal. Nos queremos a propriedade, mas colocada em seus justos ii. mites, quer dizer, 8 livre disposigao dos frutos do trabalho, a pro- priedade menos a usura! Nés nao temos necessidade de dizer isso mais. Aqueles que nos conhecem nos entendem. : Tal é, em substAncia, nossa profissdo de fé Era importante, sem diivida, saber, de um lado, se 0 povo devia se abater ou votar; em segundo lugar, sob que bandeira se fatia a eleicao, sob que profissao de fé (...) O comité eleitoral central decidiu, por unanimidade, apresentar como candidato 0 cidadao Raspail. Raspail, o eleito de 66 mil votos parisienses € 35 mil lyoneses; Raspail, o democrata-socialist Raspail, 0 implacével denunciador das mistificagdes politi- cas; Raspail, cujos trabalhos na arte de curar 0 colocaram ao lado dos benfeitores da humanidade*. ‘Aderindo a esta candidatura, nao tencionamos de modo al- gum, como escreveu em algum lugar 0 honoravel Senhor Ledru- Rollin, dar eventualmente a Repablica um chefe; longe disso, nds admitimos Raspail como protesto vivo contra o principio da Presi- déncia! Nés 0 apresentamos ao sufragio do povo nao porque ele é ou se cré possivel, mas porque ele é impossivel: porque com elea Presidéncia, imagem da realeza, sera impossivel. és no mais tencionamos, ao convocar os votos para Ras- pail, lancar 4 burguesia, que teme este gtande cidaddo, um desa- fio. O que nds buscamos antes de tudo é a reconciliacio, a paz. NOs somos socialistas , nds nao somos desordeiros. Nés apoiamos a candidatura de Raspail a fim de exprimir mais fortemente aos olhos do pais esta idéia de que, de hoje em diante, sob a bandeira da Repablica, nao ha mais sendo dois par- tidos na Franca, o partido do trabalho ¢ o partido do capital. © CE Francois Vicens Raspail, Jerome Martineau, Paris. 1968 58 Do Principio de Autoridade* Eis como, passada a tempestade revoluciondria de 1848, Proudhon dela tira as ligdes: uma condenacao sem apelo Ma dhon de ees: uma conde ee ¢d0 Se: lo do Esti OPRECONCEITO GOVERNAMENTAL** A forma sob a qual os primeiros homens conceberam a or- dem fa sociedade € a forma patriarcal ou hierarquica, isto é, em Principio, a autoridade, na pratica, 0 governo. A justia, que Mais tarde foi diferenciada em distributiva € comutativa, ndo lhes apareceu de inicio sendo sob a primeira face: um supetior repre- Sentante para os inferiores o que pertence a todos. i A idéia governamental nasceu portanto de costumes de fa- oo oa eapeuene doméstica nenhuma tevolta se produziu governo parecendo tao natural 4 sociedade quanto a su- © Exttaidis de fale Générale de ution au SIX eme Stécie. IsSi Os subtituins sda nassas bordinac&o entre o pai ¢ seus filhos. Eis por que 0 filésofo reacio- nario De Bonald péde dizer, com razao, que a familia € 0 em- brido do Estado, de que ela reproduz as categorias essenciais: 0 tei no pai, o ministro na mae, o stidito no filho. E por isto também que os socialistas fraternitarios, que tomam a familia por elemen- to da sociedade, chegam todos 4 ditadura, a forma mais exagera- da de governo. A administracio de Cabet, em seus Estados de Navoo", € um belo exemplo disso. Quanto. tempo ainda nos sera necessirio para compreender este parentesco de idéias? A concep¢ao primitiva da ordem pelo governo pertence a todos os povos: ¢ se, desde a origem, os esforcos que foram feitos para or- ganizar, limitar, modificar a agao do poder, aproprid-lo as neces- sidades gerais e as circunstancias, demonstrem que a negacao esta- va implicada na afirmacao, é certo que nenhuma hipétese rival foi formulada; o espirito permaneceu o mesmo por toda a parte: A medida que as nagées sairam do estado selvagem ¢ barbaro, viu-se-as imediatamente se engajar na via governamental, percor- ret um circulo de instituigdes sempre idénticas e que todos os his- toriadores ¢ publicistas colocam sob estas categorias, sucedaneas umas das outras, monarquia, afistocracia, democracia. Mas eis o que € mais grave. O preconceito governamental, ao penetrar no mais profun- do das consciéncias, ao marcat a tazo com sua forma, tornou im- possivel qualquer outra concepcdo durante muito tempo € os mais ousados entre os pensadores chegaram a dizer que 0 governo era um flagelo, sem dtivida, um castigo para a humanidade, mas que era um mal necessatio. Eis pot que, até nossos dias, as revoluges mais emancipado- ras e todas as efervescéncias da liberdade conduziram constante- mente a um ato de fé e de submissio ao poder; porque todas as revolucGes 6 serviram para reconstruir a titania: ndo excluo disso a Constituicio de 93 nem a de 1846, as duas expresses mais avancadas, entretanto, da democracia francesa GREECE eer Cr CREE eee eee * Comunidades que o comunista francés Etiénne Cabet (1788-1856), autor de Voyage en Icarie, tertou fundar nos Estados Unidos. 60 O que manteve esta predisposigéo mental ¢ tornou a fascina- co durante tanto tempo invencivel € que, em conseqiiéncia da analogia suposta entre a sociedade ¢ a familia, o governo sempre se apfescntou aos espiritos como o 6rgao natural da justiga, 0 pro- tetor do fraco, o conservador da paz. Por esta atribuicao de provi- déncias ¢ de alta garantia,o governo se enraizou tanto noscora- gdes como nas inteligéncias. Ele fazia parte da alma universal; ele eraa fé, a supersticao intima, invencivel, dos cidadaos. Se aconte- cesse dele enfraquecer, dizia-se dele, assim como da teligiao e da ptopriedade: nao € a instituicéo que € m4, € o abuso. Nao € 0 rei que € ruim, sao os ministros. ‘‘AA! Se o rei soubesse!”’ Assim, ao elemento hierarquico ¢ absolutista de uma autori- dade governante, acrescentava-se um ideal falando a alma e cons- pirando incessantemente contra o instinto de igualdade e de in- dependéncia: enquanto 0 povo, em cada revolucao, acreditava re- formar, seguindo as inspiragdes de seu coragdo, os vicios de seu governo, era traido por suas préprias idéias; acreditando colocar 0 poder dentro de seus interesses, tinha-o sempre, na realidade contra si: em lugar de um protetor, tornava-se um tirano. : A experiencia mostra, com efeito, que por toda parte o go- verno, por mais popular que ele tenha sido em sua origem, sem- pre se colocou do lado da classe mais esclarecida e mais rica contra a mais pobre ¢ a mais numerosa; que apés ter-se mostrado algum tempo liberal, tornou-se pouco a pouco excepcional, exclusivo; enfim, que em lugar de manter a liberdade ¢ a igualdade entre todos, trabalhou obstinamente para destrui-las, em virtude da sua natural inclinagao ao privilégio, (...) A negacao governamental, que est no fundo da utopia de Morelly*; que langou uma luz, imediatamente apagada, atra- vés das manifestagdes sinistras dos enraivecidos ¢ dos hebertistas; que sairia das doutrinas de Babeuf, se Babeuf soubesse racionar € deduzir seu proprio principio: esta grande ¢ decisiva negacdo atra- Vessou, incompreendida, todo o século XVIII Mas uma idéia nao pode morrer: ela renasce sempre de sua contraditéria. (...) Desta plenitude da evolucao politica surgira, Autor do Code de la Nature, 1755 61 finalmente, a hipdtese oposta; o governo, destruindo-se sozinho, produzira, como seu postulado histérico, 0 Socialismo. Foi Saint-Simon* quem primeiro, numa linguagem timida e com uma consciéncia ainda obscura, retomou 0 filao: “*A espécie humana, escrevia ele desde o ano de 1818, foi chamada a viver primeiramente sob o regime governamental e feudal; “Fla foi destinada a passar do regime governamental ou mi- litar ao regime administrativo ou industrial, apés fazer suficiente progtesso nas ciéncias positivas e na indiistria; “Enfim, ela foi obrigada por sua organizacio a suportar uma longa ¢ violenta crise, por ocasiao de sua passagem do siste- ma militar ao sistema pacifico. “A 6poca atual € uma época de transi¢io; “A crise de tansigio foi iniciada pela pregacio de Lutero: desde esta época a diregao dos espiritos foi essencialmente critica € revolucionaria.”” (...) Todo Saint-Simon esta nestas poucas linhas, escritas no estilo dos profetas, mas de uma digestZo muito rude para a €poca em que elas foram escritas, com um sentido muito condensado para os jovens espiritos que se ligaram desde 0 inicio ao nobre inovador. (...)O que quis dizer Saint-Simon? Desde o momento em que, de um lado, a filosofia sucede & fé ¢ substitui a antiga nocao de governo pela de contrato; em que de outro lado, em conseqiiéncia de uma revolugao que aboliu o sistema feudal, a sociedade exige se desenvolver, harmonizar suas poténcias econdmicas; desde este momento torna-se inevitavel que o governo, negado em teoria, se destrua progressivamente na pratica. E quando Saint-Simon, para designar esta nova ordem de coisas, conformando-se ao velho estilo, emprega a palavra gover- no ligada ao qualificativo administrativo ou industrial, € evidente que esta palavra adquire sob sua pena uma significagao metafori- ca, ou melhor, analégica, que nao podia iludir senao os profanos. + Henri de Saint-Simon 11760-1825 1. fundador de socialismo “urdpice”: dite saints moniano 62 Como se enganar sobre o pensamento de Saint-Simon lendo-se a passagem, mais explicita ainda, que vou citar: “Se se observa a evolugao que a educacao dos individuos se- gue, nota-se, nas escolas primarias, a acdo de governar como sen- do a mais forte; € nas escolas de um nivel mais elevado, vé-se a agao de governar as criangas diminuir sempre de intensidade, en- quanto que © ensino representa um papel cada vez mais impor- tante. Aconteceu 0 mesmo para a educagéo da sociedade. A aco militar, isto é, feudal (governamental), teve de ser mais forte em sua origem; ela sempre teve necessidade de granjear importancia: ¢ 0 poder administrativo deve necessariamente acabar por domi- nar o poder militar’’. A estes extratos de Saint-Simon seria necessario acrescentar sua famosa Parabole, que caiu, em 1819, como um machado so- bre 0 mundo oficial, ¢ pela qual o autor compareceu ao Supre- mo Tribunal de Justica a 20 de fevereito de 1820 ¢ foi absolvido. A extensio deste fragmento, aliés bastante conhecido, nao nos permite cita-lo. A negacao de Saint-Simon, como se vé, nao é deduzida da idéia de contrato, que Rousseau ¢ seus seguidores hd oitenta anos corromperam ¢ desonraram; ela decorte de uma outta intuicéo, totalmente experimental e @ posteriori, tal como ela podia convir aum observador dos fatos. O que a teoria do contrato, inspiragio da légica providencial, desde o tempo de Jurieu* teria deixado entrever no futuro da sociedade, a saber o fim dos governos, Santi-Simon, aparecendo no auge da confusio parlamentar, 0 constata a partir da lei de evolugdo da humanidade. Assim, a teo- tia do direito ¢ a filosofia da hist6ria, como duas balizas plantadas uma frente & outra, conduziam o espitito para uma revolugao desconhecida: um passo a mais ¢ nés chegamos ao éxito. (...) O século XVIII, creio té-lo estabelecido superabundan- temente, se nao tivesse sido desencaminhado pelo republicanis- Mo classico, retrospectivo e declamatério de Rousseau, chegaria Pelo desenvolvimento da idéia de contrato, isto é, pela via juridi- Ca, 4 negacao do governo. Pierre Juriew (1637-1713), teélogo protestante francés, adversario do abw luis emi geval ¢ de Luis XIV em particular 63 Esta negacao, Saint-Simon a deduziu da observacio hist6rica e da educagao da humanidade. Eu o conclui, por minha vez, se me é€ permitido citar-me neste momento em que ecu represento sozinho o elemento revolu- cionario, da anilise das fungdes econdmicas e da teoria do crédito e da troca. Nao tive necessidade, penso eu, para estabelecer esta terceira observacdo, de retomar as diversas obras ¢ artigos em que ela se encontra consignada: elas alcangaram ha trés anos bastante repercussao. Assim a Idéia, semente incorruptivel, passa através das épo- cas, iluminando de tempos em tempos o homem cuja vontade é boa, até o dia em que uma inteligéncia que nada intimida a aco- Ihe, a alimenta, depois a lanca como um meteoro sobre as massas eletrizadas. A idéia de contrato, saida da Reforma em oposi¢ao a de go- verno, atravessou o século XVII ¢ o XVIII sem que publicista al- guma tevelasse, sem que um Gnico revolucionario a descobrisse. Tudo 0 que ai houve de mais ilustre na Igreja, na filosofia, na po- litica, entendem, pelo contrario, de combaté-la. Rousseau, Sie- yés, Robespierre, Guizot, toda esta escola de parlamentares, fo- ram os porta-vozes da reacdo.* Um homem, advertido muito tarde pela degradacdo do principio diretor, traz a luz a idéia jovem ¢ fecunda: infelizmente o lado realista de sua doutrina engana seus pfoprios discipulos; eles nado véem sendo que o produtor é a nega- cao do governante, que a organizacao € incompativel com a auto- tidade; e durante trinta anos mais perde-se a formula de vista. (...) A idéia anarquista esté apenas implantada no solo po- pular e logo se encontrem os chamados conservadores para bombarde4-la com suas caltinias, fortalecé-la com suas violéncias, esquecé-la sob os vitrais de seu 6dio, prestar-lhe 0 apoio de suas estiipidas reacdes. Hoje ela levantou, gragas a eles, a idéia gover- namental, a idéia do trabalho, a idéia do contrato; ela cresce, ela se amplia, ela arranca de suas cascas as sociedades operatias; € * Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), 0 autor do Contrato Social’ Joseph Sieyés (1748- 1836), te6rico do terceiro estado: Maximilien Robespierte (1758-1794), lider revolu- cionario parlamentar; Francois Guizot (1787-1874), historiador ¢ politico conserva- dor, chefe de governo durante os dltimos anos de reinado de Luis Felipe 64 dentro em pouco, como a pequena semente do Evangelho, ela formara uma drvore imensa, que cobrira toda a Terra com seus fa- mos. Asoberania da razio tendo sido substituida 4 da revelacao; A nogio de contrato sucedendo a de governo; A evolucio histérica conduzindo fatalmente a humanidade a.uma nova pratica; A ctitica econdmica constatando que sob este novo regime a instituigao politica deve se perder no organismo industrial. Concluimos sem temor que a formula revolucionaria nao pode mais ser nem legislacao direta, nem governo direto, nem governo simplificado; ela é: nada de governo. i Nem monarquia, nem aristocracta, nem mesmo democracia, pois que este terceiro termo implicaria um governo qualquer, agindo em nome do povo, ¢ dizendo-se povo. Nada de autorida- de, nada de governo, mesmo popular: eis a revoluco. DO PODER ABSOLUTO A ANARQUIA (...) Toda idéia se estabelece ou se refuta em uma seqiiéncia de termos que sdo como o organismo, e da qual o tiltimo termo demonstra irrevogavelmente sua verdade e seu ero. Se a evolu- cao, em lugar de se fazer simplesmente no espirito, pelas teorias, se efetua ao mesmo tempo nas instituigdes e nos atos, ela consti- tui a historia. E 0 caso que se apresenta para o principio de autori- dade ou de governo. O primeiro termo sob o qual se manifesta este principio é 0 poder absoluto. £ a formula mais pura, a mais racional, a mais enérgica, a mais franca, e, pensando bem, a menos imoral ¢ a menos Penosa de governo. Mas 0 absolutismo, em sua expressao ingénua, é odioso 4 ta- 240 ¢ 4 liberdade; a consciéncia dos povos sempre se sublevou contra ela; apés a consciéncia, a revolta fez ouvir seu protesto. O Principio foi portanto forcado a recuar: recuou a passo, por uma sétie de concessdes, todas mais insuficientes umas que as outras, € Cuja Gltima, a democracia pura ou o governo direto, desembocou 65 no impossivel € no absurdo. O primeiro tetmo da série sendo por. tanto o absolutismo, o termo final, fatidico, € a anatquia, enten. dida em todos os seus sentidos. Nao iremos passat em revista, uns aps os outros, os princi- pais termos desta grande evolugao. A humanidade pergunta a seus senhores: ‘‘Por que vos pre. tendeis teinar sobre mim e€ me governar?"’ Eles respondem: “Porque a sociedade nao pode abdicar da ordem; porque é preci- so numa sociedade homens que obedecam € que trabalhem, en- quanto que outros comandam e dirigem; porque as faculdades individuais sendo desiguais, os interesses opostos, as paixdes anta- gOnicas, o bem particular de cada um oposto ao bem de todos, é preciso uma autoridade que marque o limite dos direitos e dos deveres, um Arbitro que tesolva os conflitos, uma forca pdblica que faca executar os julgamentos do soberano. Ora, 0 poder, o Estado € precisamente esta autoridade discriciondria, este atbitro que toma a cada um o que lhe pertence, esta forca que assegura € faz tespeitar a paz. O governo, em duas palavras, €0 Principio ea garantia da ordem social: € 0 que declaram ao mesmo tempo o senso comum e a natureza’’. Em todas as épocas, na boca de todos os poderes v6s a en- contrareis idéntica, invaridvel, nos livros dos economistas malthu- sianos, nos jornais da reacao ¢ nas profissdes de fé de republica- nos. Nao ha diferenca, entre eles todos, senao pela extensio das concessdes que pretendem fazer a liberdade sobre 0 principio: concessdes ilus6rias, que actescentam as formas de governo ditas moderadas, constitucionais, democraticas, etc., um tempero de hipocrisia cujo sabor no as torna sendo mais despreziveis. Assim 0 governo, na simplicidade de sua natureza, se apre- senta como a condi¢ao absoluta, necessatia, sive gua non, da or- dem. E por isto que ele sempre aspira, € sob todas as mascaras, 20 absolutismo: com efeito, segundo o principio, quanto mais 0 go- verno € forte, mais a ordem se aproxima da perfeicéo. Estas duas NogGes, 0 governo ¢ a ordem, estariam portanto uma para a outta numa relacdo de causa a efeito: a causa seria o governo, o efeito seria a ordem. Fis na verdade como as sociedades primitivas tam- bém pensaram. 66 (...) Mas este pensamento nao é por isso menos falso, ea conclusio de pleno direito inadmissivel, visto que, one a dlassificacao légica das idéias, a relacéo de governo a or: - tee de nenhum modo, como 6 pretendem os chefes de Esta do, 0 ; le causa a cfeito, € 0 de particular ao geral. A ordem, cis o género; 0 werno, eis a espécie. Em outros termos, ha varias maneiras de conceber a ordem: quem nos prova que a ordem na sociedade se- quela que agrada a seus senhores de the atribuir. Alega-se, de um lado, a desigualdade natural das faculda- des, de onde se induz a das condicées; de outro, a impossibilida- de de reconduzir 4 unidade a divergéncia de interesses ¢ de conci- liar os sentimentos. fl : Mas neste antagonismo, s6 se saberia ver no Maximo uma questao a resolver, ndo um pretexto a tirania. A desigualda- de de faculdades? A divergéncia de interesses? Eh! Soberanos de coroa, de sabres e de estolas, eis precisamente 0 que nés chama- moso problema social: ¢ vés acteditais em triunfar pelo cassetete e pela baioneta ? Saint-Simon tinha uma razdo em fazer sinéni- mas estas duas palavras, governamental € militar. O governo fa- zendoa ordem na sociedade é Alexandre cortando com seu sabre ogordio : Quem entao, pastores de povos, vos autoriza a pensar que 0 pfo- blema da contradicao de interesses e da desigualdade de faculdades nao pode ser resolvido? Que a distingao de classes dai decorre necessa- riamente? E que, para manter esta distincao, natural e providencial, a forca € necesséria, legitima? Eu afirmo, ao contrario, ¢ todos aqueles que o mundo chama utopistas, porque eles repelem vossa tirania, afir- mam comigo, que esta solugao pode ser encontrada. Alguns actedita- ram descobri-la na comunidade, outros na associagéo, cuttos ainda Na série industrial. Eu. de minha parte. digo que ela esta na orga- nizacio das forcas econdmicas, soh a lei suprema do. contrat Quem vos diz que alguma destas hipdteses nao é verdadeita? A vossa teoria governamental, que nao tem por origens se- nao vossa ignorancia, por principio senao um sofisma, por meio Sendo a forca, por objetivo sendo a exploracao da humanidade, o jaa 67 progresso do trabalho, das idéias, vos opde por minha boca esta teoria liberal: encontrar uma forma de transagdo que, reconduzin. do a unidade a divergéncia de interesses, identificando o bem particular e 0 bem geral, fazendo desaparecer a desigualdade de natureza pela da educacao, resolva todas as contradicées politicas © econémicas; onde cada individuo seja igual, ¢ por sinénimo, produtor ¢ consumidor, cidadao e principe, administrador e ad- ministrado; onde sua liberdade aumente sempre, sem que ele te- nha necessidade de jamais alienar nada dela; onde seu bem-estar se desenvolva indefinidamente, sem que ele possa experimentar, do fato da sociedade ou de seus concidadaos, nenhum Prejuizo, nem em sua propriedade, nem em seu trabalho, nem em sua ren- da, nem em suas relagdes de interesses, de opinido ou de afeicio com seus semelhantes. Como! Estas condig6es vos parecem impossiveis de se reali- zar? O contrato social, quando vos considerais a espantosa quanti- dade de relacdes que ele deve regular, vos parece 0 que se pode imaginar de mais inextrincavel, algo como a quadratura do circulo € 0 moto continuo. E por isto que, ao cabo de grandes esforgos, v6s vos entregais ao absolutismo, a forca. Considerai entretanto que se 0 contrato social pode ser acer- tado entre dois produtores — e quem duvida que, reduzido a es- tes termos simples, ele nao possa ter solug3o? — ele pode ser acer- tado igualmente entre milhdes, pois que sempre se trata da mes- ma obrigacéo, e que o ntimero de assinaturas, ao tornd-lo cada vez mais eficaz, no acrescenta af um artigo. Vossa tazao de impo- téncia, portanto, nao subsiste: ele é ridicula e vos torna indescul- paveis, Em todo caso, homens de poder, eis 0 que vos diz o produ- tor, o proletario, o esctavo, aquele que vés aspirais fazer trabalhar para vs: Eu nao exijo os bens nem as bracas* de ninguém, e nao estou disposto a admitir que o fruto de meu trabalho torne-se Presa de outro. Eu também quero a ordem, tanto € mais que aqueles que a perturbam por seu pretenso governo; mas eu a que- to como um efeito de minha vontade, uma condigdo de meu tra- balho ¢ uma fé de minha razdo. Eu nao a suportarei jamais vindo Brave (brava). no francés antigo, significava o comprimenta dos dois braves 68 de uma vontade estranha e me impondo por condigGes prévias a servidao ¢ 0 sactificio. DAS LEIS Sob a impaciéncia das multidées ¢ a iminéncia da revolta, 0 governo teve de ceder; cle prometeu instituigoes € leis; ee que seu mais ardente desejo era que cada um pudesse de: rutar do fruto de seu trabalho a sombra de sua vinha e de sua figueira. Isto era uma necessidade de sua posigao. Uma vez que, efetiva- mente, ele se apresentava como juiz do direito, arbitro soberano dos destinos, nao podia pretender conduzir os homens a seu bel- prazer. Rei, presidente, diretério, comité, assembléia popular, no importa, € preciso regras de conduta para o poder: sem isto, como ele chegara a estabelecer uma disciplina entre seus stiditos? Como os cidadaos se conformarao 4 ordem, se a ordem nao lhes é comunicada; se, apenas comunicada, ela é invalidada; se ela mu- da de um dia para outro e de uma hora para outra? : O governo, portanto, devera fazer leis, isto é, impor-se a si mesmo limites; porque tudo 0 que € regra pata o cidadao torna-se limite para o principe. Ele fara tantas leis que chocara interesses: € visto que os interesses sio inumerveis, que as relagdes nascentes umas das outras se multiplicam ao infinito, que 0 antagonismo nao tem fim, a legislacdo devera funcionar sem parat. As leis, os decretos, os editais, as ordens, as decisdes cairao em abundancia sobre o pobre povo. Ao cabo de algum tempo, 0 solo politico sera coberto por uma camada de papel que os gedlogos no terao se- nao que registrar sob o nome de formacao ‘‘papesdica "5 fas revo- luges do globo. A Convencao, em trés anos um més ¢ quatto dias vomitou onze mil ¢ seiscentas leis e decretos; a Constituinte € © Legislativo nao produziram muito menos, 0 Império ¢ os gover- nos posteriores trabalharam do mesmo modo. Atualmente, 0 Bulletin des Lois contém, diz-se, mais de 50 mil; se nossos repre- sentantes cumprissem seu dever, esta cifra enorme seria logo du- plicada. Acreditais que 0 povo, € 0 proprio governo, conserva sua tazao nesta balbardia? 69 Certamente eis-nos ja distantes da instituigao primitiva. O governo, diz-se, preencheu na sociedade o papel de pai: ora, que Pai jamais se lembrou de fazer um pacto com sua familia? De ou- torgar uma Carta a seus filhos? De fazer um equilibrio de poderes entre ele ¢ a mae? O chefe de familia, em seu governo, é inspira- do por seu coracdo; no rouba o dinheiro dos filhos, sustenta-os com seu préprio trabalho; guiado por seu amor, nao se aconselha sendo com o interesse dos seus e das circunstancias; sua lei € a sua vontade e todos, a mae ¢ os filhos, confiam nela. O pequeno Es- tado estaria perdido se a aco paternal encontrasse a menor oposi- G40, se estivesse limitada em suas prerrogativas e determinada de antemfo em seus efeitos. Pois qué! Seria verdade que o governo nao é um pai para o povo, visto que ele se submete a regulamen- tos, transige com seus stditos ¢ se torna o primeiro escravo de uma taz4o que, divina ou popular, nao é a sua? Se fosse assim nao vejo por que eu me submeteria 3 lei. Quem € que nela me garantiu a justica, a sinceridade? De onde ela me vem? Quem a fez? Rousseau explica textualmente que, num governo verdadeiramente democritico e livre, 0 cidadao, ao obedecer 4 lei, nao obedece senao 4 sua prépria vontade. Ora, a lei foi feita sem minha participacao, apesar de meu absoluto desa- cordo, apesar do prejuizo que ela me fez agiientar. O Estado nao negocia nada comigo; nao permuta nada, ele me saqueia. Onde portanto esta o vinculo, vinculo de consciéncia, vinculo de razao, vinculo de paixdo ou de interesse que me obriga? Mas o que digo? Leis para quem pensa por si mesmo e nao deve responder senao a seus préptios atos, leis para quem quer ser livre € se sente feito para o futuro? Estou pronto a negociar mas nao quero Icis; nao reconheco nenhuma delas; protesto contra to- da ordem que convira a um poder com suposta necessidade de se impor a meu livre arbitrio. Leis! Sabe-se o que elas sdo ¢ 0 que elas valem. Teias de aranha para os poderosos € os ricos, cadeias que arma alguma teria meios de romper para os pequenos ¢ os pobres, tede de pesca entre as maos do governo. V6s dizeis que se fara poucas leis, que se as fara simples, que se as fara boas. E outra vez uma concessio. O governo é completa- mente culpavel se confessa deste modo seus ¢rtos! 70 Leis em pequeno namero, leis excelentes? Mas isto € impos- sivel. O governo nao deve regular todos os interesses, julgar todas as disputas? Ora, os interesses sao, pela natureza da sociedade, jnumerdveis, as relag6es varidveis e moventes até 0 infinito: como é possivel que se fagam somente poucas leis? Como clas ae simples? Como a melhor lei nao seria em breve detestavel: Fala-se de simplificagdo. Mas se se pode simplificar em um ponto, pode-se simplificar em todos; em lugar de um milhao de eis, uma tinica é suficiente. Qual sera esta lei? Nao faca a outro o que vos nio quereis que se vos faca; faga a outro como desejais que vos seja feito. Eis a lei e os profetas. Mas € evidente que isto nao é uma lei; é a formula elementar da justica, a regra de todas as convengées. A simplificacdo legislativa nos reconduz portanto a idéia de contrato, conseqiientemente, a negacao da autoridade. Efetivamente, se a lei € tinica, se ela resolve todas as antinomias da sociedade, se ela é consentida e votada por todo mundo, ela é adequada ao contrato social. Ao promulgé-la vos proclamais ° fim do governo. O que vos impede de aplicar esta simplificagao ime- diatamente? O SISTEMA REPRESENTATIVO (...) Nao ha duas espécies de governo, assim como ndo ha duas espécies de religido. O governo é de direito divino ou nao & assim como a teligido é do céu ou nfo é nada. Governo democra- tico € religido natural sio duas contradigoes, a menos que se prefi- ta ver ai duas mistificagdes. O povo nao tem mais voz consultiva no Estado do que na Igreja: seu papel ¢ obedecer € acreditar. Deste modo, como os principios nao podem falhar, que os homens sozinhos tém o privilégio da inconseqliéncia, o governo, em Rousseau, assim como na Constitui¢ao de 91 € todas as que s¢ seguiram, nao € sempre, apesar do sistema cleitoral, senao um governo de direito divino, uma autoridade mistica € sobrenatural que se impée a liberdade € a consciéncia, mesmo parecendo solici- tar sua adesao. Sigai esta seqiiéncia:

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