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LITERATURA E REALIDADE(S): UMA ABORDAGEM organizagao Heidrun Krieger Olinto Karl Erik Schollhammer Htcraas] Os restos do real — literatura e experiéncia Florencia Garramufio Unma literatura que trabalha com restor do real. Seria possivel se referie dessa maneira 8 uma lenta transformagio do estacuro do literério que vern se manifestando nas préticas de escritura desde os anos 1970 do século x que mas culruras argentina e brasileira, por percursos.variados, pode ser acompanhada a partir de algumas experimentagSes radicais acontecidas durante a década de 1970 ¢, com maior forca, na década de 1980. Nao inte- essa aqui fazer uma periodizagéo rigida, mas sim levancar questbes sobre as razées ¢ diregbes dessas primeiras mutagbes. TTextos que desestrururam géneros ¢ subjetividades (todos os tex- tos de Clarice Lispector publicados nos anos 1960 ¢ 1970, mas também. 0s textos ilegiveis de Osvaldo Lamborghini, poéticos ¢ narratives); nar- rativas que insistem numa primeira pessoa, muito embora desestimem. toda pulsio biogrifica (El fiasquito, de Luis Gusmén; La piel de caballo, de Ricardo Zelarayin, assim como todos os romances de Jodo Gilberro Noll); composigées que fazem referéncia a eventos ¢ acontecimentos con- + cemporineos & escricura, repletas de nomes de pessoas ¢ de locagées reais, (os romances de Silviano Santiago, Nadie Nada Nunca e Glosa, Juan José Sact) ~ todos esses textos que parecem existir como desgarramentos de formas ou implosées dentro do continente da obra sio exermplos dessas transformagées. Todos eaves textus, embora muito diferentes entre si, parecem se con- centrar numa forte e até chocante relagfo com uma experiéncia subjetiva ou histérica neles encenada com um descaramento que contém um force questionamento dos poderes de redengao de uma ideia de literatura auté- noma. Acexperincia do tato “Quanto a escrever, mais vale um cachorro vivo.” A frase ¢ de Cla- rice Lispector e aparece no seu iltimo romance A hora da exrela, publi- cado em 1977. Nele, a construcio de uma personagem marginal de tio R intensa tradigéo social na literatura brasileira, como o é uma imigrante nordestina, parecia encenar uma geferéncia social que chegou a colocar 1 possibilidade de se pensar numa “nova” Clarice Lispector, “exterior € cexplicita’* Mas jé para 1977 isso nfo era novidade se levarmos em conta que, pelo menos desde os anos 1960, Clarice Lispector vinha se exerci- tando no intuito de captar a vida na sua mais intima ocorréncia, o que viria a se manifestar no seu esforgo para aproximar a escritura de um conceito de experiéncia que incorporasse 0 irracional, a loucura ¢, até, 0 incompreensivel. Mas talvez o que fosse, sim, novidade, era a intensidade ‘coma qual nesse romance Clarice Lispectoriria se aproximar de uma cap- taco da experitncia que supSe, como na primeira citagéo, uma rejcigso do literério que na cultura br dos anos 1970 iria se manifestar em vrios esctitores.’ Também em Ana Cristina César, tinha desaparecidos uma ideia sublimacéria de literatura, & qual se opds na sua propria escri- ura. Numa famosa encrevista, ela se lamenta: A literatura ficou assim associada a tudo isso (..), a uma coisa que te dé prestigio, a um artificio pra vocé conquistar pessoas (..) Voeé fala: poeta ‘Ana Cristina, eu acho ridfeulo, (persia, 1981). Essa escritura no aurética vitia a se identificar, mais do que por uma série de procedimentos, pela proposigio de um funcionamento dife- rente da arte, no sentido da desfetichizagéo do objeto e da ideia de arte enquanto suporte de experiéncias.* Segundo Clarice Lispector, numa das tantas crbnicas publicadas no Jornal do Brasil que versa sobre 0 oficio de escrever, discutindo algumas das eriticas que tinham sido feitas a seu romance A paixio segundo 6.#.: ‘Mas & que me surpreende um pouco a discussfo sobre se um romance é ou do um romance. (...) O que é ficeo? é, em suma, suponho, a criagio de seres ¢ acontecimentos que no existiram realmente mas de tal modo pode- iam existir que se tornam vivos. Mas que o livro obedega a uma determinada forma de romance — sem nenhuma irrtagio, je m’en fiche, Sei que o romance ‘se faria muito mais romance de concepgio clissica se eu 0 tornasse mais atra~ ente, com a descrigéo de algumas das coisas que emolduram uma vida, um romance, um personagem, etc. Mas exatamente 0 que no quero é a mol- dura. Tomar um livro atraence é um eruque perfeitamentelegitimo. Prefiro, ‘no entanto, escrevet com um minimo de truques. (PExXOTO, 1994, p. 67)-" B ‘No entanto, nfo se trata nesses casos — ou pelo menos no unicamente de uma escritura debochada, pouco aprimorada ou resolutamente abjeta, muito embora em muitos casos possam esses textos se alicergar nesse tipo de recurso. Em outros, no entarito, a esctitura pode ser, como em alguns romances da mesma Clarice Lispector, intensamente “poética” ou de um forte lismo, que até poderia set confundido com uma artifcialidade “sublime”. De um a outro extremo, trata-se de formas diversas de uma impugnacéo a uma ideia de objeto literdrio acabado, e € precisamente por isso que esses textos-sdo muitas vezes atravessados por interrupgbes ¢ inter- feréncias que manifesta force tensio formal e instabilidade estrutural.6 Nessa instabilidade, ¢ na figuracio dessa instabilidade por meio de uma escricura que insiste em uma desauratizacio do litersrio, esse tipo de escritura desenha um conceito de experiéncia afastado de toda cer- teza. Nio é que elas substancializem uma experiéncia primeira, corporal e absoluta sobre a qual se sustentaria uma narrativa ou poderia se desenvol- ver um eu lirico. Seria imposstvel assumir o conceito de experiéncia como uum conceito fundacional a partir de uma leitura dessas préticas que enfa- tizam a incomensurabilidade e a fraqueza da nogio de experiéncia. Em Songs of Experience, Martin Jay apresenta detalhadamente os dis- tintos significados que 0 conceito de experincia assumiu no decorrer sda histéria Gay, 2003). Mas nio é s6 0 conceito de experincia o que tem mudado: a prépria experiéncia, estremecida na irrequieta torrente do devir histrico, encontrar-se-ia, segundo virios pensadores, num estado terminal,’ A existéncia na modernidade se caracteriza por uma dissolugio cada vez mais dramética da experiéncia, agravada a cada passo por uma radical devastagéo provocada pela violéncia hist6rica que se verd no Brasil na Argentina, intensificada durante os anos 1970 ¢ 1980 no contexto de suas respectivas ditaduras militares. ‘A esctita lirerdria € um dos espagos nos quais se exibe essa histo- ricidade do conceito de experiéncia. No decorrer dos anos, a liceratura tem se relacionado de diferentes maneiras com o que em cada um desses momentos chamou-se experiéncia. No seu modo de relacéo com a expe- ‘idncia, no género e na forma que a literatura adquire para falar dela, na forma pela qual a literarura consticui experiéncia, definem-se também os diferentes conceitos do que é 0 literério e do que nio é, do que é a lite- ratura ¢ qual é a sua fungio € 0 seu papel na sociedade. Até que ponto dererminadas concepyées da experitncia privilegiam certas formas literd- M sias para serem narradas ¢ néo outris? De que forma a literatura influi na construgio de uma determinada concepgo da experiéncia e, por sua vez, de que forma um determinado conceito histético de experiéncia resulta em formas literdrias que se adequem a esses conceitos de experitncia? E é que precisamente essas priticas foram acompanhadas por uma série cde experimentagGes vitais que chegaram a se converter na marca histbtica da época: a experiéncia com as drogas, o descobrimento do corpo, a nosio de experimentacio, 0 desbunde, a curtigéo, até os numerosos suic{dios e ~mortes precoces de muitos desses anistas — Ana Cristina César, Torquato Neto, Paulo Leminski, Cacaso etc. - bem como a experiéncia do exilio, da guerrilha ¢ da militincia politic, que apontam nio tanto para uma pobreza de experiéncia (como dizia Walter Benjamin), mas para a emer- géncia de outras formas de experiéncia, dramaticamente intensas, mas sem. davida no necessariamente relacionadas com uma decantagio do saber ‘ou uma narragio linear, completa e totalizante, dessa experiéncia.* ‘Ao rejcitar a associagao entre a experincia € 0 vivido, esses textos cer- cciam a experiéncia de sua relagio com a certeza e com o saber. Inten- sificam © poder de afetagio e se colocam eles mesmos como formas de produzir experiéncia, alicergando na presenca a possibilidade de uma nar- ragio das fraruras mesmas que constituem essa experiéncia hist6rica e pes- soal, sem centar sanar essas fraturas, Trata-se de uma presenga da expe- rigncia que seria impossivel reconciliar com uma ideia de representagio porque, a0 incorporarem a dimensio da cercania fisica e da tatilidade, fogem da distancia que sustenta a representagio. Como assinalou Jean Luc Nancy: “Presence does not come without erasing the presence that repre- sentation would like to designate” (NaXCx, 1993, p. 3-4). Trata-se de experincias que arrencam o sujeito de si mesmo, experi- éncias localizadas no sé fora da representacio, mas também fora da exis- téncia vivida, distantes dessa nogao téo problematica. E por isso que nes- ses textos perambulam sujeicos espectrais, que se definem por uma leveza estendida ¢ uma espécie de esvaziamento, desarmando toda possibilidade de se aglutinar numa identidade fixa, stavel, e numa hist6ria que 0 cons- tisua. Os personagens que erram pelas paginas de La piel de caballo evi- denciam um tipo de amnésia constitutiva que os faz fluirem por uma nar- rativa que os confunde ¢ dilui. No entanto, nessa insisténcia subjetiva, com o traco indelével de uma experiéncia historicamente marcada, que cesses sujeitos encarnam e esses textos narram? xB Base “cancer do sujeito” que reina em nossa era desponta nesses tex- tos e vai se fazer, com o passar do cempo, cada vez mais evidence.” Na ddespersonalizagio, na distincia da individualidade, na generalizagio de ‘uma experiéncia que poderia pertencer a qualquer sujeito mas que no [deixa de set subjeciva, a questo do sujeito — que tem recuperado relevan- da _ se institui como uma réplica altiva dessa “sombra de nossa era”. A pergunca pelo sueito volta a ser relevante nfo para reinstalé-lo no trono de untrsujeito rodo-poderoso, mas precisamente por reconhecer que, s© ‘a modéfnizagZo capitalista tem sido bem-sucedida cont 2 fragmentaséo ¢ no desmembramento do sujeito, os embates com essa nogio, assim como Com a'foggo de autor, convertem-se em conctitos fora de tempo ¢ foco. ‘Ante a fragmentacio cada vez mais violenta do sujeito, os romances res- pondem suspendendo o que Huyssen chamou de “she modernise ltany of the death of the subjec", substivuindo-a pot uma intensficago dos esta- dos emocionais e pelas subjetividades paradoxais que essa fragmentaglo engendra (HUYSSEN, 1986, P. 213). ‘A patti dessesujcco com fronteiras porosas pelas quais pode penetrar uma realidade que o desborda; a escritura do real despedacado permite pen sar em uma forma de experiéncia diferente. Como diz o narrador-persona- gem Rodrigo S. M. em A hora da etrela “cansgrediz, porém, meus pré- Prios limites me fascinou de repene. E foi quando pensei em escrever sobre ‘a realidade, j4 que esta me ultrapassa” (LisPECTOR, 1977, P- 23)- ‘Uma série de pensadores contemporineos tem tentado pensar nesse tipo de presenga mais asociada ao tato € & cercania do que a0 conhec- ‘mento ou a representaggo, ¢ que reinaria em virias priticas artisticas con- temporineas, como far tatiimente vistel 0 desenvolvimento da arte de Hallo Oiticiea, com a utilizagéo de recidos ¢ substincias que se exibem ~ ena maioria dos casos se oferecem — a0 tato do espectador. Ainda que dm outras ocasi6es se crate de um tato puramente visual, como na arte de Victor Grippo, por exemplo, na qual as superficies se exibem numa trans- formasio e numa mutagio que atentam contra a reauratizacio do objeto para mostré-lo em uso, ou para exibis, em todo caso, 0 uso inscrito no ‘objeto, ou uma visualidade ctl que, ainda que nao se oferega & manipu- lagéo, parece lesionar o olho com a sua contundéncia material. ‘Me inceressa sobretudo insistir em que ao pensar a experiéncia como tato minha intencio no é simplesmente apontar para o predominio de cexperiéncias titcis na arte do perfodo. De fato, limitar-se a essa observa 6 ‘lo seria ficar dentro de um esteticismo puro que muitos desses artistas refutam com a mesma violéncia,com a qual essas claboragbes exibem uma impugnagao ao fetichismo da obra, Mais que uma referencia aos mate- riais com os quais se constroem esses textos ¢ priticas, pesquisar essa tati- lidade supée perceber a transformagio radical da relagdo entre arte ¢ expe- ritncia que supée essa aptidio. ‘Como diz Hélio Oiticica, referindo-se & participagao do espectador: Niio quero isolar aqui as experitncias sensoriais, vivenciais etc.; que este seria o lado esteticista da coisa; quero & dar um sentido global que sugira um novo comportamento, um comportamento este de ordem ético-socal, que traga ao individuo um novo sentido das coisas. (OITICICA, 1986, p. 100). Esse mesmo tipo de impugnagio a uma categoria de arte sustentada em objetos que se oferecem a distincia de uma contemplacio ascética € ‘a que se encontra no parangolé ~ as capas de tecidos que os participantes vvestem ¢ que s¢ inserem nesse conceito de “antiarte” de Oiticica: (..) parangolé é antiarce por exceléncia; inclusive pretendo estender 0 sen- tido de “apropriagéo” as coisas do mundo com que deparo nas runs, terre- nos baldios; campos, o mundo ambiente, enfim — coisas que no seriam transporciveis mas para as quais eu chamaria 0 piblico & participagio - seria isto um golpe fatal ao conceito de museu, galeria de arte, etc, ¢ 20 préprio conceito de “exposicio” — ou nés modificamos ou continuamos na mesma. Museu ¢ 0 mundos é a experiéncia cotidiana. (p. 79)- Por isso essa tatlidade deve ser compreendida como signo de uma aberrura maior a0 mundo que questiona todo tipo de concepgio da esté- tica como aspecto puramente formal, abandonando esse formalismo da autonomia em prol de uma certa heteronomia que se sustenta numa entrega a logicas desestabilizadoras e até desconhecidas. A noo de auro- ‘nomia, entendida como aurorreferencialidade ¢ centramento exclusivo na linguagem que se alicerga numa forte antinarratividade desapareceu para esses textos. Ante a perda do valor transcendence da literatura ¢ da arte, essaspriticas deslocam a nogio de valor estético para colocar a énfase naquilo que, nessas obras, afeta 0 leitor ou espectador* ‘Como apontou Jacques Derrida: All touch traverses the boundary between interiority and externality and reciprocally return othe agent of touching. Touch, like dizzines, i a reshold sci-tech aber (oeRRIDA, 2005, p- 178). A cxperiéncia que emerge dessas préticas brasleiras e argentinas no adota jamais a figura’do saber. Concebida como comarca da fantasia ¢ do goto, quando nao do padecimento, a experiéncia aparece nelas como devir que nio cessa, ¢ a que nao pode se ter acesso a ndo ser de maneia frarurada, duvidosa. Daf que seja tio ubique a figura da interrupgio nes- ‘8e5 textos que nfio se concebem com finais ou acabamentos claros ¢ taxa- tivos. Nio decorre dees a ideia de que um sujeito e uma experincia ple- nos habtem “no real” mas nio possam ser caprurados pela poesia ou pela cscriura; a ideia¢, pelo contrério, que nessa captagio de um sujeito e de ‘uma expetiéncia incompletos os textos se colocam como indiferenciados do real, Lda escritura recusa-se & surura dos desvios ¢ escolhe, em troca, operagées diversas, a figuracio dessas fraturas, desenhando uma continui- dade - sem divida problemética — entre arte e vida. Essa captagao bruta, dicta, sem mediagées do real, pode ser incompreenstvel ¢ desesperanga- dora quando nio é descarada e politicamente problemitica —, mas sem ddvida desarma uma ideia da arte que se erigitia como contestagio, subli- magio ou promessa de felicidade de uma vida sem sentido. Ou que res- ponders, dessa maneira, & uma prévia pobreza de experiéncia. ‘Autopia da auronomia artstica ou do que, na critica latino-americana, se chamou de “cidade letrada’, viu nesse espaco distanciado e autnomo 0 Jocala paid qual construir o valor transcendentee prestigioso de uma arte «que propunha realidades altemativas (FRANCO, 2002, p. 7). Essas realidades alrernatvas abrigavam a idcia de que uma repeticio da experiéncia poderia facitar uma edencéo dessa experiénciafracurada e fragmentada. Segundo Leo Bersani, a0 se referic 0 que ele denominou “a cultura da rendengio" ‘A crucial sumption inthe culture of redemption is hata certain ype of repeti- sion ofexperience in art repairs inherently damaged or valueless experience. Expe- rence may be overwhelming, practically impossible to absorb, but i is assumed — «and this is pecially evident in much encyclopedic fiction — that the work of art ‘has the authority to master the presumed raw material of experience in a man- 3s ner that uniquely fer value ta, perbaps even redeems, that material. Ths may sound like an unateackabletruigm, and yet I want to show that such apparently acceptable virus of arts benficealy reconstructive function in culture depend on 1 devaluation of historical experience and ar. (BERSANI, 1990, P-1)* Em troca dessa simultines desvalorizagio da arte ¢ da experiéncia, cessas priticas estriadas pelo exterior que contestam uma ideia de obra ausOnoma parecem, no entanto, outorgar mais valor ¢ importancia a essa cexperiéncia, ¢ um valor mais imanente do que transcendente & arte. Serd que todas essas experimentagées propiciam uma ideia de obra diferente, na qual & autonomia artstica opée-se uma nogio de heterono- mia que destréi as oposig6es entre obra e exterior? Talvez seja posstvel pen- sat, a partir dessas préticas, ume mudanga na cultura na qual aquela ideia de arte como redengéo do social ~ sustentada no conceito de autonomia da arte — encontra-se absolutamente interrompida. Na sua abertura ¢ na sua vulnerabilidade diante do mundo, esse tipo de arte ¢ de escritura con- juga légicas diferentes e desestbilizadoras que exibem uma vulnerabili- dade do sujeito e da experitncia que jamais poderia corresponder & nogéo de um sujeito ou obra autnomos. Abandonada a utopia da autonomia, esse tipo de literatura propor-se-ia como uma reflexdo sobre as légicas dife- rentes e heterogéneas que regem o espaco social. Objetiva e subjetiva, tra- tar-se ia de uma literatura que sé pensa na forma como manifestagio hete- rénoma das légicas heterogéneas sobre as quais se desdobra. Resumo ‘A utopia da autonomia artstca ou do que, na critica latino-americana, se chamou de “cidade letrada’,viu ness espago distanciado e autBnomo © local a partir do qual constrir valor transcendente e presigioso de ‘uma arte que propunha realidades alternativas. Essas realidades alterna- tivas abrigavam a idela de que uma repeticéo da experitncia podetia fai- licar uma redencéo dessa experiénciafraturadae fragmentada, (O artigo analisa experiénciasestéticas produzidas a partir dos anos 1970 znas quais uma relagéo com a experidncia que se distancia do vivido ‘impugna uma ideia de obra auténoma e parece, no entanto, outorgar mais valor e importincia a esa experiéncia, e um valor mais imanente do que transcendence & arte. » Notas * Bate artigo éum fragmento do primero capulo do seulivro mais recente, Laexpritncia apace Literatur y daencante, Buenos Aires, Fondo de Cultura Econdmica, 2007. * Eduardo Porella em “O grito do silénci, introdugéo a0 romance em sua primeira cedigio publicada pela editora José Olympio. » A casio aparece como eplgrae do volume de contos Monanges mofidor de Caio Fer- rando Abreu, um dos tantesesctitores desses anos para os quais Clarice Lispector foi uma referencia inspiradora. CE. Caio Fernando Abreu, Morangos mofides . s. Vejase também sobre ssa questo a nota do autor segunda edigio de 1995. “Em "The Hour Trash of Clarice Lispecor’, fro Moriconi analisou os rexos de Lispector que desde os anos 1960 sustentam um jogo encre o sublime ¢ a dessublima- «40, que exibem 0s limites, 0 exgotamento de um projeo de progressiva radicalizagio dia esrtura. Caracterzados por uma fragmentagio extrema, trata-se de livros curts, ‘esquemaicos, que interatuam com a esritura no jornal ¢ exibem uma dualidade encre co literiro ¢ojornalistico, a vanguarda ¢ 0 kitsch, a poesia € cliché, aironia ¢o senti- mencaismo. ftlo Moriconi, op cic, in: Brasil 2001, A Revisionary History of Brazilian Lizererre and Culsore,simero especial de Portuguese Liteary and Calsural Studies 4/5, primavera/outono de 2000. * “Figo ou nie", publicada em 14 De feverczo de 1970, recompilada em A dacoberta cdo mando, p. 270-271. Numa cara enviada por Pesanha que se encontra no arquivo de ‘Catice Lispectorno Instituto Moreira Salles, acham-sesublinhadas- provavelmente pela prépia Clarice ~as segues Fass referentes a Agua va: “I tried to place the book; note? Thought? Autobiographical fragments? [came tthe conclsion that itis all of that togeter.. Lid the igen that ou wanted to rite spantancouss aliterariy ls thats? Ie seems thas afer the artifice and wis of reason (or bece yet of aionalzations) you sce to want ectthe asf ofa Ando denude yourself disguising ounelfles in your oun ger and these of the reader” Citado por Marta Peixoto, Passionate Fictions, p. 67. A carta est dacada de s de margo de 1972. Essa mesma pulsio manifst-se em virias outras pritiasartisticas que se evidencia na inestabilidade ecrucural¢ na exbigSo constante dos limites do médio expressvo. Sobre ‘tes problema, ver Flora Sissekind, “Chorus, Contraries, Masses: The Tropicalst Expe- sence nad Brain the Late Sixes, in: Carlos Basualdo (ed), Tropica: A Revolution in Brazilian Art, Sio Paulo, Cosac Naify, 2005, p. 44. 7 CE. “La experiencia y sus iesgos”, in: Experiencia, cuerpo y subjetvidades.Litenesura brace contempordnes, op. ci. * Dashundee curio io pala intensamenteassociadas a0 periodo ue vai desde fins dos anos 9602081970. As dua sto relacionadas com uma entregraexperizaciasincensas de cdesbordamentoe, em muitos casos—mas néo exlusivamence —is drogas a0 sexo. Existe tina arte ¢ uma cultura do desbunde e da curticio que definem uma parte importante 1 1 1 a cultura dos anos 1970 no Brasil e, muito embora néo existam termos equivalents 90 cspanhol, seria possvel propor uma semelhance para uma ceta zona da caleura argentina desses mesmas anos. Para uma andise destes dois termos no contexto braiiro, cf Silvano Santiago, “Os abutres” e *Cactano Veloso enquanto superasto”, ambos em Uma literatura nos trépices, Rio de Janeiro, Rocco. » Segundo Alan Paul sobre Le pel de cabale: “No er una precsén de experiencia l qu hay (que pedire; como una réplica sarcstca del Gauna de El suefio de ls héroes, ef Chuckde La piel de caballo tempoco se acuerda de nada, ni sabe quitn cs, ni podria decir eudnto impo (pub dee qu... Per relatos implacable, de wna ecrapulecided casi manideica cuando se eristales sociales que salpican la novela: un pantalin de acrocel verde, la camisa graf, el‘botn Patria 45, el haguehit, el Jormasch’, el ‘ucumano mesalingce, el ‘obreritatlefinic’ area galego ref’ la Chara, la Cstanera Sur. Es todo un imagi- ‘nari de la subaternidad, becho de tonades, manchas de gress, diminutive, inurias, marcas populares opografias marginale, el que reaparece con una fueraa exiraondinari en ls novela de Zelanayin, el mismo que alguna vez habla derpuntado en as hamacas voladoras de Biante, ‘Nanina de Germén Garcia o en El frasquito de Luis Gasman”, Pigina 12! Radar Libres © Observa Philippe Lacoue Labarthe, em Poctry ax Experience “Nothing, not evn the ‘mort obvious phenomena, not cven the purest, the most wrenching lve, can escape tis ers shadow: a cancer ofthe subject, whether in the ego or inthe masses. To deny this on pretext of avoiding the pull of pathos is 0 behave like asleep walker. To ransform it into pathos, s0 110 be able ‘il! ro produce art (tensiment, ec.) is unacceptable”. Poetry as Experience, Stanford University Press, 1999, p. 8-9. * Vitios pensadores tém postulado a necessidade de se repensaraestécica a partir de peé- ticas contemportneas. John Rajchman faz uma resenha muito dil dles em “Unkappy returns: John Rajchman on the po-mo decade ~ Writing the 80's ~ post-modertism. [Nela, aponta: “(..) aesthesics needs to become anew what it in fact began as, a scienceof the sensible now concerned with exposing us to what is singular and outside rather than with the intenaliing tublmason ofthe Kantian judge For we should nos imagine that ashetics inthe firs instance is about norms of judgment concerning arsworks o ‘beauty (or ‘ualiy). ‘The base problem, 10 be elaboraed in many varianss in pore-Kansian aesbescy sistent 0 question how thinking itself becomes Yensiblé ~ something we can se, sense touch fel something thas ‘fc us” ArtForum, abil de 2003. * CE Também sobre esa questi, ver John Rajchman, “Foucault, or the Ends of Moder- nism”, October, vol. 24 (primavera de 1983), p. 55. Referéncias bibliogréficas Annzu, Caio Femando. Morangos mofados, io Paulo: Editora Braslinse, 1985. nensant, Leo. The Culsure of Redempeion. 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Sao Paulo: Cosac Nai Uma pedra no meio do caminho do real Heidrun Krieger Olinto hope thas are can give mea brea: from Erkenneis Hans Ulich Gumbreche Uma reflexio sobre fenémenos literirios dirige o nosso olhar, 4 inevitavelmente, para questdes sobre possiveis nexos entre arte, experi cia estética e produgio de conhecimento acerca do real. Em suas extte- midades polares, oscilando entre uma apreensio do mundo por meio de interpretag6es conceituais e 0 entendimento de express6es artisticas a par- tir de atos de fruigao sensoriais, confrontamo-nos com uma infinidade de respostas hibridas, enraizadas em definig6es anteriores, interiorizadas 2a forma de conhecimento técito. Uma série de reticéncias tanto contra os modelos realistas quanto consteutivistas radicais sinaliza deslocamentos de acento exclusivo ~ seja sobre ideias do sujeito construtor de realidades, se sobre a existéncia de abjetos extcriores & sua obscrvasio ~ para uma concepsio nZo dualista, que prioriza movimentos emergentes ¢ intercimbios recursivos. O que, & primeira vista, pode parecer uma perspectiva relaivista aleat6ria revela-se como posicio avessa a binarismos tradicionais 20 minimizar a busca por verdades absolutas a favor de uma visio de ciéncia sensivel a diferencas, ‘em sua qualidade (re)construtora de modelos de realidade. Esse caminho abre espaco também para novas articulagdes entre o real eo ficcional, tra~ dicionalmente localizados em campos opostos nos estudos literdrios. No Ambito dessas hipéteses, construimos a nossa realidade empirica a par tir de processos de percepgio, agio e comunicagio, sem que estes sejam. entendidos como correspondentes de uma realidade objetiva indepen- dente deles. Nesse sentido, lidamos com uma série de “ficg6es operacio- nas". O termo construcio usado nessa argumentagio sublinha a indcle processual de todos os esbogos de realidade elaborados em condigdes bio- légicas, cognitivas e socioculturais por individuos socializados ao longo de sua histéria evolutiva, se aproxima, nesse sentido, de teorias sistémi- cas e de modelos da chamada observacio de segunda ordem. ‘A compreensio da cultura como mundo de fendmenos artificiais, como mundo de formas de aco, normas ¢ valores sociais, como mundo 8

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