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bap: //dx.doi.org/10.5007/2175-7968. 2014v1n33p343 Ricoeur, P. Sobre a tradugio. Traducio de Patricia Lavel- le. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011. 71 p. Steiner em Depois de Babel (1975), no capitulo “As deman- das da teoria”, afirma que os estudos sobre teoria, pratica e histéria da tradugdo estao anco- rados em quatro grandes grupos. primeiro, “no qual andlises pronunciamentos seminais bro- tam diretamente do empreen- dimento do tradutor” (2005, p. 259), vai de Cicero a Hlderlin (1804); 0 segundo, “marcado pe- la teoria e a investigaco herme- néutica” (2005, p. 260), comeca com Tytler e Schleiermacher e vai até Valery Larbaud, passan- do por outros importantes nomes como A.W. Schlegel e Humbol- dt, Goethe, Pound, Croce, Wal- ter Benjamin etc; 0 terceiro é 0 perfodo do contexto moderno, ou seja, da tradugao automitica, da aplicacao da teoria linguistica ¢ estatistica A tradugdo, que se desenvolve, grosso modo, entre os anos 40 a 60 do século XX; 0 quarto, ¢ tiltimo grupo, pode ser caracterizado por “um retorno & hermenéutica, a investigagoes quase metafisicas sobre tradugao e interpretacdo” (2005, p. 261). Na classifica proposta por Steiner, as reflexées do autor ob- jeto desta resenha, Paul Ricouer, se “encaixam” no periodo mar- cado pela teoria e a investigacio hemenéutica, pois como obser- va Patricia Lavelle nas primei- ras paginas do preficio edigao brasileira de Sobre a Traducdo: “O percurso filoséfico de Paul Ricoeur, consagrado em grande parte A hermenéutica, da qual ele se tornou um dos principais expoentes na Franca, passa pela tradugéo de Husserl, apresenta- da como um dos requisitos ne- cessarios 4 obtengao do titulo de “Doutor de Estado” (p. 7). Essa abordagem filoséfica/ hermenéutica percorre Sobre a Traducéo, que € uma coletinea de trés ensaios “redigidos no final dos anos 90 em contextos 344 diversos © publicados pela pri- meira vez em livro um ano an- tes da morte do autor” (p. 7). Na primeira parte, intitulada “De- safios e felicidade da tradugao”, Ricoeur expde alguns aspectos que considera obstéculos para a pratica da tradugao, e tenta tra- car um caminho possivel para se encontrar a “felicidade” no ato de traduzir, Ricouer acredita que os desafios da tradugfo podem se resumir ao termo “prova”, no duplo sentido de “provagao” ¢ “exame”. Defende que, ao assu- mir um texto, o tradutor torna-se mediador entre o leitor destinata- tio da obra traduzida e tudo que envolve o estrangeiro - 0 livro, 0 autor € sua lingua, colocando-se a prova. Para esclarecer o termo “prova”, ele sugere a revisio do texto “A tarefa do tradutor”, de Walter Benjamin, em confronto com as duas leituras da palavra “trabalho” quando Freud em um ensaio fala de “trabalho de lem- branga” e “trabalho de luto”. Para explicar seu ponto de vista, Ricoeur coloca o texto de Freud em confronto com a tradutologia. O trabalho de lembranga e de lu- Resenhas/ Reviews to, segundo 0 autor, reside nessa troca que ha entre o estrangeiro e o doméstico, na “desconfor- tavel situacio de mediador” (p. 22) em que o tradutor se coloca, tendo que servir a dois mestres: 0 estrangeiro em sua totalidade e 0 leitor da lingua de chegada. Nesse ponto, o autor remete 4 maxima dicotémica de Schleiermacher, que decompés este paradoxo nas frases “levar 0 leitor ao autor” € “levar o autor ao leitor”. Neste colocar-se & prova por parte do tradutor, aparece o desafio que Ricoeur coloca no cerne das di- ficuldades de traduzir: a resistén- cia ao trabalho da tradugao, Essa resisténcia se apresenta de duas manciras. Primeiro, por parte do tradutor, que antes mesmo de co- megar seu trabalho j4 se depara com uma ideia de intraduzibili- dade, como se a obra estrangeira se tornasse inatingivel e toda tra- dugSo nao fosse uma versio do texto, mas sim uma falsificagao do original. Questdes sobre como traduzir linguas com sintaxes di- ferentes, com outro ritmo, com um vocabulario totalmente distin- to se colocam ao tradutor desde o ‘Cadernos de Tradugio n° 33, p. 341-365, Florianépolis - janijun 2014/1 momento em que decide comegar © trabalho. Segundo, aparece a resisténcia do leitor, que presume inferior o texto traduzido e ten- de a se distanciar do estrangeiro. Apesar das dificuldades que o tra- dutor encontra em seu percurso, Ricoeur vé um horizonte diferen- te tao logo a traducdo comega. Os lapsos de intraduzibilidade que © tradutor encontra em meio ao texto, acabam se tornando mo- tivagdes para buscar a melhor solugao. Levando em conside- ragdo essas motivagdes, 0 autor francés consegue chegar a ideia de felicidade na traducao, que se resume no abandonar o desejo da tradugdo perfeita. Ricoeur acre- dita que a felicidade em traduzir s6 se encontra no momento em que 0 tradutor aceita a distincia entre 0 materno ¢ o estrangeiro, assumindo a impossibilidade de um absoluto linguistico. Seria is- so o “trabalho de luto” freudiano comparado a tradutologia. Assim, a felicidade esté no que Ricoeur chama de “hospitalidade lingiiis- tica”, onde habitar a lingua do outro, aceitando-a como diferen- te, € to prazeroso quanto recebé- 345 -la no seio da lingua materna. No segundo texto, “O pa- radigma da tradugao”, Ricoeur comega expondo dois modos como a tradug&o pode ser vista: como um meio de transferir uma mensagem verbal de uma lingua para outra e como uma interpre- tagao de todo o significante dessa mensagem na lingua de origem. © autor reconhece que ambas as abordagens tém seu valor, a primeira por levar em conta a pluralidade ¢ a diversidade das linguas, e a segunda por valori- zat a compreensio num sentido mais amplo. No caso da segun- da, Ricoeur apoia-se na ideia de George Steiner, presente no livro Depois Babel, de que “compre- ender é traduzir”. Partindo da primeira premissa, Ricoeur ex- plica que a diversidade das lin- guas na perspectiva da tradugio pode ser encarada de dois modos diversos. Ou existe uma hetero- geneidade radical que torna es- sa tarefa impossivel tornando, assim, as linguas intraduziveis umas nas outras, ou a traducao é fato e um meio de encontrar um fundo comum nas linguas, uma 346 pista de uma lingua originaria, universal (ideia que alude ao mi- to de Babel). Em ambas as for- mas de encarar a traducao existe uma necessidade, uma utilidade no ato de traduzir. Ricoeur, toda- via, acredita que haja algo ainda mais forte: o desejo de traduzir. Esse desejo € capaz de alargar os horizontes da propria lingua, ¢ até mesmo descobrir nela lugares ainda nao explorados. Ao propor uma troca do paradigma traduzi- vel x intraduzivel, por fidelidade x trai¢déo, 0 autor explora a ques- tao do julgamento critico das tra- dudes, uma vez, que acredita que nao seja possivel a existéncia de um critério absoluto de avaliagao que defina 0 que é uma boa tra- dug&o. Por isso, a tinica maneira de criticar uma obra traduzida é propor uma nova traducao que se presuma melhor, Segundo ele, aqui aparece 0 “trabalho de luto” de Freud comparado 4 tradutolo- gia, j4 que waduzir é renunciar a ideia de que possa existir uma traducdo perfeita, mas somente uma “equivaléncia presumida” (p. 47). Por fim, o autor conclui que apesar de toda a problemé- Resenhas/ Reviews tica que envolve a tradugio, sua inclinagio é continuar apoiando “a entrada pela porta do estran- geiro” (p. 55). Na ensaio final do livro, inti- tulado “Uma ‘Passagem’ — Tra- duzir o Intraduzivel”, Ricoeur percorre 0 caminho do intradu- zivel. Ao apresentar trés pos- sibilidades de aparigao do “in- traduzivel”, 0 autor resume as dificuldades da tradugao expostas anteriormente. A primeira trata da pluralidade linguistica, que sugere uma heterogeneidade ra- dical, defendendo que as Iinguas “(...) nao sfo diferentes apenas pela sua maneira de recortar o re- al, mas também pelo modo de o recompor no Ambito do discurso (..)” (p. 60). Isso leva 0 autor a afirmar que a tarefa do tradutor nao vai da palavra a frase, mas parte de uma imersao na cultu- ra, para assim, chegar a palavra A segunda possibilidade fala da incontornavel diferenga entre o proprio ¢ o estrangeiro, na qual Ricoeur sugere que traduzir é “construir 0 comparavel” entre as linguas, transformando 0 es- trangeiro em algo atingivel, atra~ ‘Cadernos de Tradugio n° 33, p. 341-365, Florianépolis - janijun 2014/1 vés de uma apropriagao criadora por parte da lingua de chegada. A ideia de construgao do comparé- vel remete ao conceito de “cho- que do incomparavel”, proposto por Marcel Déttiene em seu livro Comparar 0 incompardvel. Por fim, a terceira possibilidade diz respeito ao sentido. O autor fran- cés acredita que traduzir apenas sentido é uma forma de renegar toda uma aquisigao semidtica que une sonoridade, ritmo, espaca- mento, etc. Neste ponto, retoma Antoine Berman, que defendeu a tradugdo da letra como solugao tradut6ria. Podemos afirmar que as reflexdes de Paul Ricoeur sao encorajadoras, pois, a0 mesmo tempo em que enumera diferen- tes dificuldades relacionadas a0 oficio de traduzir, em momento algum as coloca como obstéculo, ou como impossibilidade de tra- duzir. Desmistificando a ideia da tradugo perfeita, o autor tira do tradutor 0 peso da fidelidade ab- soluta e quebra a tensio do inicio 347 da tradugao: a suposta intraduzi- bilidade. Nesse sentido, 0 texto de Ricoeur além de ser muito itil para os tradutores é também importante para os pesquisadores em traduco, apresentando refle- xées originais dialogando com algumas das mais significativas teorias da tradugao. Ademais, em todas as suas reflexes ha uma valorizacao do ato de traduzir, j4 que é uma forma de ampliar os horizontes da lingua, de acolher © estrangeiro e ainda de enrique- cer a prépria cultura. Andréia Guerini Universidade Federal de Santa Catarina Andréia Riconi/CNPq Universidade Federal de Santa Catarina Recebido em 03/01/2014 Aceito em 08/04/2014

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