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COT eC att) Droneeen nian tec eee etary Derr wee eter Sea ie Pomel erat tarts ees en See ane FESTACOES,TEORIZADASPORCHITICOS, Gee es eee ed Rise aera — MODERNA VENGAO DE S| NICOLAS g=telO I ATAUDy \s0N 979-05-0069-010+ a) e307 83 martins Fontes fone eee ey lege aig Eola ry p 2011 Martins Buitora Liraria Ltda, Sd0 Paul, © 1998, 2003, 2009, Tons Dende Esta obra lol originalmente publica em francs robo titulo Formes deo ‘Vart moderne et Hlavention eso: por Nicolas Bouriauc. Ibliher Bundi Mendon Aden Foe Coordi clio Ful Prk eral Danie Zefor snk Da ols Camere Teva Pee Pet EnrlinesErtol Dados lntemmacionats de Catslogagto na Publicasta (C1?) (Cimaua Brasileira do Livro, SP, Brasil) BourFiaud, Nicolas | Formas de vida “a arte moderna ¢ a invensio de Nicolas Uouuriaud ; uaduslo Dorothée de Bruchsc, | ‘io Paulo Marine Fontes sclo Martin, 2011, ~ (cole Tada a Aes) Thule os de sai ISBN $76-85-5068.0158, ina Fornies devie:Yartmedeme et invention 1. Ante ~ Steulo 20 — Filosofia 2. Arte e sociedade ~ Histéria — Séeulo 20 4. Autopercepgto na aste 4. Cragto iersea,artstios ete) 5. Modernicade ~Fulosolia L. Tul. 11-0876 enn.709 Indice para catfloge sistertic 1. Arte: Sul 20: Filosofin 708, Tades 0 divitos desi ego vessonos Martine Evora Ligraria Ltd, ‘A, Dr. Aral, 2076 (012504000 Si Pauio SP Breit Tol: (1) 3116.50 fnfoSnartinceitoracon.in rinsnardinontes ec “A arte é apenas um meio de tornar a vida mais interessante que a arte.” Robert Filion “Niés ndo temos arte, nds fazemos tudo da melhor forma possivel.” Provérbio balinés O autor gostaria de agradecer a St que the para escrever este livre ao propiciow as melhores condigées conceder-the wma bolsa Lavoisier, assim conto a Claude Tarréne por sua ajuda e seus sabies conselhos. | SUMARIO Introdugao... “ moon LUMA GENESE DA MODERNIDADE......ccne 19 1, A valotizagio do presente . « i 1. Aedigtneia moderna, at | 2. Acatualidade 25 3. Batilos de vida e 29 | 2, Uma genealogia do artista modern... 39) 1.0 alquinsta sss aa 40 2.0 dana i 5 2. rte literatura: sindsome de Dorian Gray sacem 8B 3. O fim da arte: rumo a uma existéncia unificada?..... 65 | Marcel Duchanp, Dada. Keinir Madeit. Qs realise Salondor Dal. Yors Klein. Bn. Jceph Renys, Robert Fin Jacaues Chater A Interna! Situaionsta 4. arte € 0 trabalho... an 1. A sail das fabricas Lumiire (Faylor e o einen) ot 2. Aarte modems e a divisio do trabalho ... 1 Jackson Pollock, Robert Ryman, Piero Marzoni, Mavce Braodiaes, Giuseppe Piot-Galizio. Yes Klein Tl. AFORMAVIVIDA, 109 1. Exempla (a dimensfo ética da arte moderna). 115 1, Hlogio do eféimera . SE 115 it A existéncia precede a obta su. Jeques Lise. Signa Pole A obra como evento - Das, Alan Kaprow. George Breck. Arte eouceituat Elementos de semiondutica: 0 artista expoe sua trajetéria, Daniel Biren. André Cadre, Govdon Matta Economia da produgao artistica.. Rayon Hains. Alighia Bot. eral & ils Becher ort Smithson UMA ETICA SEGUNDO A ARTE MODERNA Postscriphuin sobre as novas técnicas. 129 137 145 177 187 INTRODUCAO (Aarte, o trabalho ¢ a existéncia) “Muitas pessoas definem a arte por oposigio ao taba- Iho, cdemonstrando assim a pifia opinido que tém tanto de uma como de outro, Pouco hes importa que as condigoes concretas de tra balho se mostrem duras, alienantes, desumanas, pois o cam- po da Criagao seria milagrosamente isento e alheado dos outros campos de atividade. Fxiste, de fato, yma diferenca fundamental entre 0 ‘oficio’ do artista ¢ os demais offcios, diferenga esta que reside na natureza dos gestos realizedos: enquanto a profissio de paceico, piloto de avido, operario mnetalixgico ou do redator de publicidade requer o aprendi- zado e 0 emprego de gestos previamente definidos, 0 artis ta moderno deve ele proprio inventar a sucessao de posturas ¢ gestos que Ihe permititéo produzi O ritmo, segundo 0 qual um artista executa esses gestos, depende de sua pré- ppria decisiio, como também dependem seu. eampo de apii 12 Nic LAS BOURRIAUD cagdo ea distribuigao dos produtos de sow trabalho. Nessa estranha profissao, nada é predeterminado. Ele resolve pin. tar em acrilico? Prefere empithar galhos, manipular méqui nas de lavar, fotografar a si mesmo sobre um fundo braneo? Isso é com cle, Em suma, a obra de arte hoje difere das ou tras classes de objetos pelo fato de nao ser determinada por uum contexto profissional normative, Nao que essa situagio exista desde que 0 mundo mundo: ela surgiu no final do século XIX, no momento em que a racionalizagio do traba- tho impunha normas draconianas (0 taylorismo, 0 fordis- mo), possibilitando a producaio em massa e a padronizacao dos bens de uso. Essa evolugio das relagdes de produgio instaurou novas praticas artisticas, assim como novos valo- res estéticos: a divisdo do trabalho, que fundamenta nosso emprego do tempo, também determinou de mode profun- do a ldgica da arte moderna, Em diferentes graus, e de for- ma mais ou menos deliberada, a arte do século XX poe em cena as relagdes de producio, quer para nega-las, quer para desvirti1s-las, quer para reproduzi-las segundo uma perspec- tiva critica, arremedando outras profissdes ~ produzir em série, mandar realizar ox prprios projetos por operirios es- pecializados, tornar-se prestadar de servigos ou mestre de obras. A hostilidacle do ptiblico em relagdo 4 arte moderna advém do fato de que cla reflete exatamente a miséria do cotidiano e a vacuidade de nosso emprego: gostarfamos de limitar a liberdade do artista a aptid6es profissionais preci- sas, a habilidades ¢ té& as cuja sobrevivéncia nos tranguilza FORMAS DE VIDA: A ARIE MODERNA E A INVENCAO DESI 13 Exige-se tradicfo, clama-se por um oficio, esse ‘oficio perdido’ elamentado por Claude Lévi-Strauss, © que na verdade se pul- verizou numa infinidade de vompeténcias heterogéneas. Em- bora a produgio em massa tena paulatinamente expulsado do mundo do trabalho a nogio de habilidade manual, parece normal, para o pubblico, que essa habilidace seja isolada numa espécie de reserva natural, a arte, a qual eslaria separada das otras atividades sociais. Ora, a arte moderna apresenta-se co- mo um conjunto de priticas clestituidlas de regras,irredutiveis a normas, cuja peda de toque se revela diffeil de descobrir. Ela constitu, portanto, um ‘embuste’, um escindalo permanente para o pensamento noxmativo. A arte modema nasce no momento da invengo da fo~ tografia, desenvolve-se simultaneamente ao sistema Taylor (1891) e ao cinema (1895), e é contemporiinea das andlises econémicas de Marx, que faleceu em 1883: a modernidade artistica, subproduto da eivilizacio inclustrial, nasce no ceme do processo de racionalizagéo do trabalho. A primeira luta da pintura moderna consistiu, evidentemente, em conquistar sua autonomia expressiva, mas tal reivindicacéo nao passava do preltidio de uma luta de morte contra anova ideologia do traballto: a arte moderna se dé pelo objetivo de constituir un espaco dentro do qual o individuo possa finalmente manifes- tar a totalidade de sua oxperidncia e inverter o processo de sencedeado pela produgao industrial, a qual reduz o trabalho humano a repetigio de gestos imutéveis numa linha de mon tagem controlada por um cronémetro. © pensamento de “4 NICOLAS BOURRIAUD Marx participa plenamente do desenvolvimento dese pro- grama ao mostrar que a produgéo de bens materiais (a poié- sis) ea produgio de si mesmo através de préticas individuals ( praxis) se equivalem dentro do quadro geral da produgio das condig6es de existéncia da coletividade. A aute moderna, © €essa sua principal virtude, nega-se a considerar 0 produto acabado ¢ a vida a ser vivida como senc separados, Pré igual a poiésis. Criax é criar a si mesmo. As obras de arte, con trariamente aos produtos da indtistria, revelam-se assim in separdveis lo vivido de seu autor, vinculo que se afirma com tanto mais vigor pelo fato de o sistema econémico, em sua Logica de padtonizagio ¢ maquinizacdo, apagar dos objetos que fabrica qualquer vestigio de criacgo humana. Jargen Ha bermas situa esse paradoxa no come de stia reflexaio sobre o projeto politico da modernidade, orto pela hiperespeciali vacao gerada pela ‘esfera técnica’. Tal 6a ironia da histéria do século XX qualificar como ‘modernos’ dois movimentos que combater um ao outro. Sob essa apelagao, temos assim a idleologia da racionalizagéo do trabalho, caracterizada por um processo global de mecanizagio da sociedade e novas moda- lidacles de acumulagio do capital’, mas também o seu mais ferzenho inimigo: essas formas artisticas cada vez mais sinté: ticas, unitatias, reftatarias & especializagao, Resistindo ao mo- vimento global de padronizagao, ao mesmo tempo que nele apoia, a arte moderna nao 6 ‘progressista’ 1. Benjamin Conriat, Atelier ete chronomene (Christian Bourgos, 197). FORMAS DE VIDA: A. ARTE MODERNA F A INVENGAO DES! 15 Para além da normalizagio da produgdo, 0 tempo vivido 6 que seré integralmente submetido & lei da produtividade assistida por crondmetro: ja que ‘andar a pé nao é remune rador’, o industrial Henry Ford submete os destocamentos de seus operitios a uma organizagio racional, baseada na geomnetrizagdo do espago. Quase um século depois, essa ino vagdo parece absolutamente banal. O andar a pé tendo sido declarado fora da lei pelos planejaciores da sociedade tecno crata, ndo é de surpreender que ele posterinrmente se tome objeto de uma arte plena, de que os faud artists Richard Long Hamish Fulton so hoje os mais famosos representantes: 0 artista moderne deambula nos intersticios ¢ tempos mor tos do produtivismo, onde o fldneur baudelaitiano vem se tnir a perambulador da land art. As errancias surrealistas, as derivas ubanas dos siluacionistas, os didrios de rota da arte conceitual celebram essa aciosa flanerie [deambulacao] ‘execrada pela sociedade do rendimento maximo, Diante de um sistema de pensamento que procura aumentar a quan- tidade e diminuir o custo unitétio dos produtos pela racio- nalizago do trabalho humano, vernos se refugiarem no campo artistica préticas que, pelo conteSric, minimizam a impor- tncia dos ‘produtos’, exaltam o gesto, a gratuidade ea dila- pidagdo das energias, o alegre esbanjamento das Forgas pro- dutivas. Até essa generalizacio dos principios ‘modernos’ de produgio, a arte se adequava harmoniosamente ao pro- cesso de trabalho comunitério ¢ se inscrevia dentro de um. conjunto homogéneo de ténicas. A fabricagéo em massa 16 NICOLAS BOURRIAUD criou um fosso intransponivel entre dois universos, abrindo, no campo dos modos de produgio, essa brecha no seio da qual se constituita arte moderna. Aarte do século XX se fundamenta, em boa parte, num conjunto de dispositives formais que eriam ponttos de passa- gem enire a arte e a vida. No mais das vezes, porém, nao se trata de abolir a fronteira que separa uma da outra, mas de suspenclé-la, a0 mesmo tempo que a mantém intacta. O tema da aboligio da arte e do seu desabamento no cotidia no constitui a pedra angular da modemnidade: a arte é mo: dema se postula stta prépria extingao, se se inscreve d da perspectiva de sua futura inutilidade, se programa os pa ro, ramettos de sua morte anunciada e contempla serenamente essa hipétese, Pintat, para umn modemo, é avangar ruma a um universo onde a pintura se tomasse i il. Como escre- ve Yve-Alain Bois, “a pintura [modernista] sé poderia ter uma existéneia real ao anunciar o seu fim” dentro de um contexto histérico caracterizado pela “dissolugao da ativida- de artistica na produgao industrial’, com a qual sabe que no pode competi”, ‘obra de arte moderna clama por uma economia global do signo que retina, para além do objeto em que resulta, um conjunto de elementos que costuma- mos levar menos em conta: as circ nstancias de sua produ- Go, a maneira como o autor expde sua propria existéncia, Dwr Boston, 1986) n Bois, "Painting: the task of mourning em Endgame (ICA, FORMAS DE VIDA: A ARTE MODERNA E.A INVENGAO DE St 17 as relacdes que a obra mantém com seu puiblico... Essa arte ‘sem qualidades’, destituida de especificidade disciplinar, essa ‘arte das atividades ordindtias’ profetizada por Paul Valéry, tem suas fontes no protovolo dnd, na literatura do final do século ou em Maréel Duchamp, Essa mutaca nse alinha em boa parte com a histéria da arte moderna, mas se ) maneira camo aplica menos a evolugao das formas do que 08 artistas indo habité-las ao transpé-las para o plano da exis- téncia, Assim, a arte contemporanea deriva antes do dan- dismo do que de Goya ou Turner, e tanto das atitudes cria- das por Manet ou Seurat quanto de seus quadros, Alguns gestos, alguns relatos, alguns modios de exis- téncia me parecem dignos da mesma atengao que uma es- cultura ou um quadro, Minha intengao nao é, de modo al- gum, desvalorizar esses tiltimos, ¢ sim mostrar como essa cultura do comportamento permite dar conta da especifici~ dade da arte desse século e sugerir que seria proveitoso dis cutirmos os prinefpios estéticos legados pela modernidade, em vez de nos comportarmos como se ela nao passasse de um paréntese enganoso entre a morte de Deus e o niilismo contemporaneo. Ao coneretizar em sua ora uma relagao com o mundo, 0 artista modemo altera o curso de sua vida, transforma-a, corrige-a, sugere-a como modelo a ser inves tido, Ble ocupa assim a posigo outrora ocupada pelo filésofo pré-soerético: sua obra se aparenta as hypontemata, cadler- nnetas pessoais nas quais os gregos anotavam casos e refle xdes no intuito de aperfeigoarem suas virtues morais ese 18, NICOLAS BOURRIAUD guiarem ao longo da vida, instrumentos de uma “tecnologia de si””. A Antiguidade grega dava to pouca importincia a0 além como nés, ¢ a moral se diferenciava da religiao. Ao privar-se do recurso & lei divina, a ética se aproxima de uma da existéncia, dispondo tao somente de critérios re- lativos © abarcando essa parte de arbitrétio pela qual se aproxima da criagdo artistica, Em toda a histéria da arte do século XX, as obras expressam disposighes éticas através das formas. A arte moderna incluz uma ética criativa, refratéria a norma coletiva, cujo imperativo primeizo poderia ser as sim formulado: faz de tua vida uma obra de arte. 3, Michel Pouca t Lesonel de soi (Gallimanl, 1988) I UMA GENESE DA MODERNIDADE 1A VALORIZAGAO DO PRESENTE 1. A exigéncia moderna A hist6ria da arte moderna, cujos contornos variam se~ gundo os pontos de vista, nao constitui umn relato unitdtio e homogéneo. Segundo tal exegeta, a pintura modema teré inicio com Goya; segundo tal outro, com Courbet, Manet ou Tamer... Para aumentar a complexidade da situagao, 0 ter mo assume diferentes significados conforme os paises, as ‘pln mente 0 mesmo da arte, que tampouco ¢ 0 mesmo a que se refere o pensamento politico. Quanto a nogio de pés-no- dernidade, seré que ela significa o fim da modernidade ou sua prolongagao em outro nivel? Verdade é que a vulgata pés-moderna tende a conformar a histéria as suas préprias épocas, as dis 0 “modemno’ arquiteténico ndu é exata medidas, combinando modemidade, modemismo e vanguar- da, Mas nao é esse 0 nosso propésito, Contentemo- 10s em lembrar, com Jigen Habermas, que vemos surgi: uma mo- 22 NICOLAS ROURRIAUID demidade a cada ver que a tiadigao é posta em atise, tio logo um perfodio histé ico toma consciéneia de uma ruptura em relagio ao passado: “As pessoas também se achavam modemas no tempo de Carlos Magno, no séeulo XU, € no perfodo das Lares ~ ou seja, a cada vex que uma renovada relagdo com a Antiguidade fazia nascer na Europa a consci éncia de uma nova época”", Sua ligagao com 0 ‘projeto ina- cabado” da modemidade autorizou Habermas a criticar violentamente Michel Foucault, acusado de empreender, a partir de sua Histéria da loucura, uum implacdvel requisitério contta a tacionalidade moderna. Foucault retracou que, hoje, “a modermidade enquanto critica da razio substitui a raz%o enquanto modernidade” e que, por conseguinte, “a exitica da razao é a nossa modemidade”, A forma espeeifica de nose presente, explica cle, requer uma nova definigéo de moder nidade que s a ele pertenga, é que a tarefa a que a moderni- dade nos convida reside justamente nessa “critica penma- nente de nosso ser histérico”*. A modernidade nao poderia, pottanto, ser ‘ultrapassada’: s6 podem ser ultrapassadas as suas sucessivas formas histéricas, as formas que 44ncias Ihe dao, 3s circuns- Ser moxlerno, cabe repelir, nao significa dobrar-se a uma tradigao, Foucault ¢ Habermas concordam, aliés, em dizer 1. Jigen Habermas,’La modernité, un projet inachews* [A modest lade, um projeto inacabado], Critique, #413 (outubro de 198). 2. Michel Foucault 'Qu'est-ce que les Lumibees”[O que so as Luze re ltéraire, 2° 309 (ail d= 1993), FORMAS DE VIDA: A ARTE MODERNA E.A INVENCAO DE St 23 que a ‘pos-modemidade’ é uma bela oportunidade para uma ideologia antimoderna que resiste em se apresentar en quanto tal. Fis por que parece urgente insistir na exigéncia moderma e lembrar os seus principios, j4 que seus inimigos fingem confundi-la com as vanguardas de ontem’. Anunciar a morte da modernidade é permitir que 0 ddio do presente nao se nomeie: o retrégrado se desencadeia com tanto mais forca pelo fato de nao reconhecer nenhhum adversario endo contar cam a oposi¢ao de nenhurn pensamento organizado. As iceologias mais passadistas se fundamentam, hoje como outrora, em nogies camo bom gosto, Belo, Verdadeiro, Bem, esses pretenses valores eternos e universais. Cobrir a Cio conda com um bigode (Marcel Duchamp), comemorar o ho- ocausto com fotografias desfocadas, roupas velhas ¢ papel para presente (Christian Boltanski), comparar a Virgem Ma~ ria a uma maneha de tinta (Francis Picabia) ou, ainda, re- presentar a Elernidade com as feigdes provocantes de uma dangarina de music-hall (Jacques Charlier), sio gestos que encarnam essa desconfianga moderna em relagao ao eterno. Vale lembrar a resposta de Hipias a Séerates, o qual lhe pe dia que definisse a Beleza: “O Belo é uma bela mulher", Uma bela mulher, ou seja, uma apariggo fugaz, uma ima~ gem que convém a wn lugar ¢ a um momento determina- dos, ¢ ndo uma Ideia abstrata ¢ normativa que a arte teria a 5, Sole esta distingdo entre modeznidade ¢ vanguard, vide Henti ‘Meselienaie, Modernité madernits (Verdier, 1988), 24 NICOLAS HOURRIAUD fungo de declinar’. Jé 0 eredo do classicismo, pelo contra- rio, esté em que, para Nicolas Poussin, a Histéria represen- ta um lugar fechado onde a Beleza pode finalmente reinar, pois jd nao se pode alterar em nada as circunsténcias do tempo. De fato, a arte moderna tem inicio com a rentincia & pintura histéxica, de que Delacroix teré sido 0 coroamento, em prol do “mergulho no desconhecido para encontrar 0 novo” praticado por Baudelaire Mas esse ‘nove’, esse ‘desconhecido’, nao passa, na pe- na de Baudelaire, de sinénimo do presente, qual 6 0 qua~ dro de referéncia ¢ campo de ac&o da modernidade. Esta nao se resume a um simples perfodo da histéria: constitui uma atitude, como indica a ctimologia do termo (modemo: © que pertence 20 seu tempo). Ser moderno é trabalhar pa- 4a seus contemporineos, e ndo para se medir a ficgdo de valores eternos e ideais. Ser modemno é privilegiar o instan- te em relagéo aos tempos pretéritos ou futuros’. Francis Pi- cabia criou assim, para qualificar sua obra, 0 inequiveco termo fitstantaneisnro. Quando da estieia de seu balé Re- Hicke, produzido por Rolf de Maré sobre uma mitsica de Erik Satie, em 27 de nayembro de 1924, declarava Picabia: “Re- 4.Nide Plato, Hippias mujer [pias maior, 0 coment Clément Rosset, Fagique cu pire (PUR, 1971), 5, 0 que ny impediria as vanguardas, fiturismo & frente, de lamar ppor dias melhores; mas Marinetti seus amigos acaso nao buscaram as ‘Componentes de sua toleologia radical na atualidade que partilhavam com seus contemporincos? © fturisma no pertence 20 dominio da ficca0 Clentifca; ele segue até o final uma certs Iégica do presente, vivido como uma dinimica exponendial fo foto por PORMAS DE VIDA: A ARTE MODERNA EA INVENGAQ DESI 25 che &, além disso, a vida, a vida tal como a amo; a vida sem amanhé, a vida de hoje, tudo para hoje, nada para ontem, nada para amanha”. Da ‘pequena sensagao’ de Cézanne a exaltagéo do cotidiano pelo Marcel Duchamp dos Rendez vous d'art, da captura da banalidade pelos attistas do movi mento Fluxus aos retratos de Warhol, da dilatagdo do ins- tante na frase proustiana & Tentative d’éputisement d'un licw parisien (Tentativa de esgotamento de um local parisiensel de Georges Perec, 0 pensamento modemo se enuncia no presente, Baudelaire pedia a Manet que mostrasse em sua pintura “o quanto somos grandes e posticos com nossas gravatas pretas e nossas botas de verniz”, ou seja, aqui e agora, Esse amdvel conselho significava que € preciso aprevn- der e eternizar 0 tempo presente, mas também esculpir 0 tempo vivido, construir a vida cotidiana como se modela a argilo, 2. A atualidade Em 1983, ou seja, um ano antes de sua morte, Michel Foucault dedicou uma de suas iiltimas aulas no Collége de France ao estudo de um texto de Kant, Was ist Au- Jilirung? [O que so as Luzes?}. Foucault atribuia uma importancia fundamental a esse texto pouco reconhecido no qual, pela primeira vez, a filosofia colocava ditcta- mente @ questao de sua atualidade e questionava “seu 6. Gitaco por Cathy Bernheim em Picabia (Bd. du Féin, 1995) 26 NICOLAS BOURRIAUD pertencimento a um certo nds”, Texto fundamental na medida em que nele vemos a filosofia [..J problematizar sua prépria atwalida- de discursiva, afmalidade que ela interroga enquanto even to, evento de que ela precisa dizer o sentido, 0 valor, a sin- ularidade filoséfica, e no qual ela deve encontrar tanto sua prépria razio de ser como 0 fandamento daquilo que ela diz. ‘Kant inaugura assim, com esse texto, uma ‘segunda tradi atitica’ a0 colocar a questo da atualidade des discursos da verda- de para além des “Filosofia analitiea da vertiade em geral’ que a Critica da rato pra consttui. Foucault situa. se elaramente na 6r bitad Greunstancias nas quais estao inseridas as categorias do pensa- segunda tradiggo: néo podemos, diz ele, subestimar as mento, os discursos e enunciados, sob pena de cair num idealismo ue invariavelmente resulta em perpetuar a ordem existente. As circunstincias, ou seja, o presente em sua forma mais fugidia e ‘movente, devem fer seu espago no pensamento, Esse raciocinio se aplica ds produgies culturais: se a arte depende tanto das ci amstancias sociais como do campo auténomo da arte, & possivel julgar 0 comportamento de cada artista em relagio a essas ctcuns- ‘fincas, pois cada situagéo hist6rica apresenta um campo de pos “Michel Honcault’Un cours inéclt [Uma aula india, Magoziae tt térmire, n° 207 (anaio de 1984), FORMAS DE VIDA: A ARTE MODERNA E A INVENCAO DE ‘Si 7 sibilidades que s6 acontece uma tinica vez, induzindo atitudes mais ou menos pertinentes e acertadas em relacao as finhas de forca da época. Como escrevia Manx, a histéria s6 pode se repetir sob forma de ‘farsa’, As problemdticas passadas nao podem ‘vol tar, explica Foucault, jé que dependem de uma configuiagio geval ‘em perpétua mobilidade, Nada é mais ridiculo do que esperar ter fem maos duas vezes sepuidas, durante uma partida de poquer, um jogo absolutamente idéntico. © artista e o filésofo devem, pportanto, renovar constantemente seu esforgo para ‘diagnosticar 6 atuais possivels’, para criar sentido om relagio & sua propria atualidade. Hi de inventar, de certa forma, uma moral da attal- dade que integre a duplicdade do temo, que sign que tanto @ conjinto dos coentes qite ocorrent eon deternvinado moniento como também ¢ que éativo no acomenio presente, o que ficiona dentro da duragao, Assim, toda obra deve interrogar tanto o seu perteni- ‘mento ao presente como o seu higar na Histéria, De que modo a obra de arte problematiza a atualictade @ qual pertence? Como escrevia André Breton a propésite do Guernica de Picasso, “o problema jé nfo é saber se un quadro se sustenta ao lado de um campo de trigo, e sim se cle se sustenta ao lado do jomnal didrio, que é uma selva”. A obra moderna materializa transagées, nogociagées, um co- mércio com o atual que pressupde uma visio aberia do pre- sente, Com efeito, o tempo fechado do Antigo Regime, cer ceado pela autoridade real, nao permitia a existéncia do conceit atualidade: quando Kant escreve O que sito as Lwes?, est pensando na Revolugéo Francesa, a partir da 28 NICOLAS BOURKIAUD quala pintura se verd confrontada com o imperativo de uma atualidade em andamento. Comega-se entdo a retratar 0 pre- sente enquanto tal, mas ainda prendendo-o a alguns sim- bolos: David transforma A Merte de Marat numa descida da cruz, 0 bario Gros imortaliza Napoleso visitando Os Pes- tiferos de Jaffa sob as leigdes de um Jesus de bicozne cum- prindo seu milagre do dia... Quanto mais o presente se mostra mével, fugidio e in 6 artista pode problematizar a atualidade en- certo, mai quanto tal sem recorrer a nenhuma alegoria. A velocidade & que vem modificar radicamente as relacées dos attistas com seu trabalho: as melhores telas de Goya, cuja rapid de execugio vinha de sua pritica com moldes de tapecaria, seriam pintadas num lapso de tempo muito breve. Quanto & gravura, devido ao seu método de confec favoreceu 0 tratamento de eventos ainda candentes: a série jo e difusao, ela Desastres da guerra remete & attialidade em fungio de sew tema, a invasao napolednica, ¢ tambéni porque, com suas pinceladas febris, Goya ji manifesta essa paixéo pela velo- cidade que itia se generalizar por toda a Europa. Assim, 0 Fantoche (1792), a pretexto de retratar um jogo popular, iro- rriza a valsa dos primeiros ministros da corte da Espanha. Grande admirador de Goya, Manet tentou, por sua vez, re~ presentar os acontecimentos de seu tempo: A Exectgio de Mavimiliano, por exemplo, perfaz.a proeza de relatar a his- t6ria em curso ao mesmo tempo que a subordina 4 materia~ lidade da pintura, Manet compreendera que ji nao era pos- FORMAS DB VIDA: A ARTE MODERNA EA INVENCAO DE St 29 sivel figurar @ atualidade sob forma do monumento ou da alegoria, que congela 0 fato ao lastred-1o com valores eter- nos e simbdlicos. Sua pincelada é que é atual. 3. Fstilos de vida e técnica “Heroicizagéo da vida cotidiana”, segundo a expressito de Baudelaire, a atitude moderna se dedica assim aquilo que aduém no presente. Trata-se de se harmonizar com as novas candigées de vida produzidas pela Revolugao Industrial, de inventar novos modos de pensamento e estilos de vida. Es sa atitude, que se caracte a pela busca de uma existéncia correta em telagao as circunstncias, requer uma ética cujas bases Baudelaire estabeleceu com notével lucidez: a moder nidade, explica ele, é uma paixdo pela época, uma moral da ‘moda que implica principios de ago ¢ uma filosofia getal. Para 0s visitantes do Salo dos recusados de 1863, a pintura smpressionista marcava, antes de mais nada, uma ruptura moral com um sistem ideolégico. Q que queriam ver em Olympia os contemporaneos de Manet sendo o sinal de um ‘comportamento transgressor, ou seja, uma prostituta rece- endo uma visita? O autor de Alntoco na relva é criticado por seus temas escabrosos e vulgares, suas mulheres nuas cer cadas de homens endomingados. Suas obras escandaliza ram pela imoralidade, posto que as pessoas estavam cegas diante da pintura em si e do-vazio metafisico que ela mani- festa. O impressionismo, ao afirmar a autonomia do espaco NICOLAS BOURRIAUD pictérico, coloca igualmente a questo de uma possivel ade- quaga sua relagéo com 0 Zeitgeist, o espitito do tempo. Assim, mais (0 do ser humano ao tempo que passa, 0 problema de do que um novo estilo, a mademnicade constitui uma nova relago com o mundo. E o que percebe Paul Klee, quando desereve os movimentos artisticas em termos comporta- montais em sua Teoria da arte moderna: "Q impressionismo se abre passivamente para a natureza, aborda-a num estado de total disponibilidade visual e procura conhecé-la em seus efeitos 6pticos” Os estilos de vida s3o modos de pintar, € vice-versa Para a gerai 10 dos impressionists, ir até 0 motive nao re presentava apenas a possibilidade de um realise éptico capturando os estados cambiantes cla luz: ao finear seu ca- valete no meio da natureza, eles sistematizam um compor: tamento. A invengio da pintura com éleo em tubo, nos anos: 1830-1840, contribuiu para o desenvolvimento da pintura a0 ar livre, oferecendo uma solugao prética para esse desejo de mobilidade: doravante, é possivel trebalhar em qualquer lugar. Degas, e depois Seurat, frequentam os cafés-concer- tos, Toulouse Lautree acampa nas espeluncas € cabarés, ‘Manet pinta A Miisioa to Tulherias ou Un bar no Folies-Ber- gee. A pintura moderna gera novos comportamentos, de que 0 mito do ‘artista maldito’ nao demoza a reunir grossei- 8. Paul Klee, Ttdorte de Pat maderne (Deno8l-Genthier),p 5. FORMA DEVIDA: A ARTE MODBRNA EA INVENGAO DESI 31 ramente as nuangas..., A rapidez de execugo dos croquis, método acessivel ao viajante, iria representar outta contri- buigio fundamental para essa época vida de cadernetas ¢ digtios intimos, Hé de ser r4pido, cercar 0 ‘pitoresco’ ¢ 0 ‘vivo’: Claude Monet trabalha assim em varias telas a0 mes- mo tempo, de modo a captar um raio luminoso. A partir dos anos 1860, a pintura frente ao modelo torna-se us novo credo, © 0 ritme imposto ao viajante incita ao croqui ligeizo, que participa do nascimenio de um estilo pietérico menos acabado, mais livre. J4 que & doravante, po: vel percorrer ‘o mundo sem deixar de pintar, o lendério Oriente de Gusta- ve Moreatt vai aos poucos se esvanecer perante as coisas vistas do grande turismo pietérico: Delacroix parte para o Magrebe em 1832, Paul Gauguin para o Taiti em 1891, de- pois de percorrer a Bretanha, ao passo que, trés anos antes, Yan Gogh trocava sua Holanda natal pela luz do sul da Franca depois de uma breve estada patisiense. No inicio do século seguinte, André Derain seria inclusive despachado para Londres por seu mazehand, na esteira de Monet. A pin- tua de viagem, € claro, nao eta uma novidade, e Diirer pro: duzira em 1495 espléndidas aquarelas entre Veneza ¢ Nu remberg, Esses instantiineos, porém, jd nao tém © mesmo valor: se a aquarela era vista como um trabalho preparat6- tio, as paisagens impressionistas so obras no sentido ple- 9. sta vulgata seria explorada por Rodolphe Murgor em S nes de la ve de bohme [Cena dr nia de boeia) (184), 32 NICOLAS BOURRIAUD no. Entre 0 aprimoramento dos meios de transporte, a in vengio da tinta em tubo e da fotografia, novas ferramentas permitiam a wssim 0 advento de novos modos de vida, os quais vinham, por sua vez, influenciar as préticas pictéricas. Posto que existia uma maquina de reproduzit o real, a fotografia, a salvacéo dla pintura passava pela subjetividade. Os impressionistas, tal como a cdmera fotogratica, retratam © jogo cambiante da luz sobre as formas, mas através do filtro de uma sensibilidade expressiva ¢ enfatizando a mate rialidacle do suporte, Assim, a problemética moderna come a, como observava Roland Barthes, no momento em que “se toma consciéncia daquile que esta morto” ¢ com a de- cisiio de assumir essa perda, Pois os mociernos estéo longe de uma tela fascinago pelo universo da técnica: assim co- mo Baudelaire diferenciava a modernidade do progresso, esse efeito funesto da "progressiva dominacao da matéria”, os modemos reagem as formas emergentes do presente criando possiveis relagdes entre o fugaz eo duradouro. Uma posi¢io, por assim dizer, de equilibrista”, Mas os pintores impressionistas acaso nfo conciliam as mecanismos da per- cepsie revelados pela fotografia com as exigéncias da tradi- io pietdrica? 10, Porque a modernidade nasce dos hiatos, das fraturas do pensa- mento» €que a montage seria um dass procediientos mais earacerticos da arte do aéeulo XX: a montagem poe em velao, sutura realidades hetero .éneas. A“unio fortuita de uma maquina de costura com um puana. ch. ‘a numa masa de dissegio" zeta todo tipo de consens, esse emblems da racionalidade ocidenta). P FORMAS DE VIDA: A ARTE MODERNA E A INVENCAO DES! 33 © impressionismo é contemporaneo da fotografia por sua recusa da profundidade, seu gosto pelos efeitos dpticos, sua definigdo da forma por meio do jogo dos raios de luz. A invengio do cinema pelos irmaos Lumitre iria transformar de modo ainda mais radical a trajetéria da arte moderna, ‘embora nao suscitasse 0 surgimento de um estilo pictsrico particular. O futurismo, que se inspira antes no automével do que no projetor, nao esté diretamente ligado ao cinema. ‘Tampouco o cubismo, cujo movimento é inteiramente men tal, E Marcel Duchamp, com seu Nu descendant lescalier [Nu descendo a escadal, relere-se a uma ‘representagia estatica do movimento’ inspirada por uma invenca io anterior, a Crono- fotografia de Brienne Jules Marey e Muybridge, Com efeito, ainda que fosse possivel a pintura competi com a imagem fixa da fotografia, seria impossivel para ela medir-se com 0 ritmo das 24 imagens por segundo. A cimera fotogréfica ti- nha estimulado a atividade pictérica, a camera ind destocar as implicagdies da prética artistica para além da pintura, Walter Benjamin via, entre o pintor e o cameraman, a mesma dife- renga que hé entre um mago e um eirurgizo: “Um observa, pintando, uma distancia natural entre a realidade dada e ele proprio, o cameraman penetra em profundidade na propria trama do que é dado”. Mas nao seria através da decupa 11. Walter Benjamin, Leasuvre dart & Vere de si reprodtsctibilié tech nique’, em Fssais 2 (Denosl-Conthier), 112. [No Bras obra de arte na era da reproduiibilidade técnica’, cm Obras Escollides. vo. I: Magia teenica, arte e politica, Sao Paulo, Basiliense, 1985 | 34 NICOLAS BOURRIAUD gem do movimento nem do enquadramento que 6 cinema se tomaria 0 modelo dominante da arte moderna, Nem mes: mo pela estética do ‘choque’, embora Walter Benjamin nela vvisse, em 1934, a principal influéncia do cinema sobre a pin- tua; “De espeticulo atraente aos ohos [..] a obra de arte, com 0 dadafsmo, fez-se choque. Ela confrontou 0 especta~ dor ou ouvinte. Adquiriu um poder traumatizante”. Se tal fosse 0 aporte do cinema para a arte, este aporte ndo teria sido determinante nem profundo, sendo o sensacional um mero ingrediente auniliar tanto do cinema como das artes plsticas. © fato de os espectadores terem um dia fugico em LiEntrée du train en gare de La Ciotat [A chegada do trem na estagao de La Ciotat], de hoje tremerem ante o som THX ou ante 0s efeitos de morphing, ndo tem relagio com a lingua gem cinematogréfica, ¢ sim com 0 ilusionismo. Ajinfluéncia do cinema 6 muito mais radical. Incide an- tes sobre os meios da arte do que sobre © modo de repre~ sentagdo. O que o cinema realmente trouxe em termos de ‘uma nova linguagem? © registro do movimento, Mas tam bém, c principalmente, a possibilidade de representar 0 real para além de qualquer mediacio linguistica. Colocam-se objetos e corpos dante de uma objetiva, e esses objetos e corpos nela se imprimem. © que conta é o que acontece diante da camera, A ideia de uma ‘autonomia expressiva do real’ ird, assim, tomar corpo no campo da arte, Como rea a0, a pintura se vé remetida, ce um lado, & sua natureza de m acaso se objeto e, de outro, ao seu valor de signo: seré FORMAS DE VIDA: A ARTE MODERNA F A INVENCAO DE St essas duas nogies esto na base da pintura do século XX? Com @ cinema, um novo espago mental que se abre: do- ravante, & possivel passar som simbolos linguisticos para fazer uma obra, expressando a realidacle por meio da prépria realidade... Gragas & camera, j4 niio & necessério criar um signo para descrever um objeto: basta passi-lo, mosiré-to. O cinema € “o momento escrito da realidade", segundo a expresso de Pasolini, uma “lingua escrita da ago”. Pouca importa que o cineasta lance mao de uma linguagem sim- bolica, de uma metafora, de um texto: estar sempre regis- trando mecanicamente a realidade conereta, quaisquer que sejam os estralagemas através des quais expressa stia visio pessoal de mundo, © cinema é, portanto, repleto de um ‘realismo ontolégico’, para retomar as termos de André Ba~ in, que o define enquanto linguagem., Preso ao real para todo o sempre, sua esséncia reside no presente, O cinema & de fato uma “invengio sem futuro”, segundo as palavias dos inmios Lumitre: mas é sem futuro por ser a arte do presente, como bem compreendeu Jean-Luc Godard. A primeira obra de arte a tirar as consequéncias do cine- ma é Roda dle bicieleta, de Marcel Duchamp, Foi concebida em 1913, ow seja, quase vinte anos apés as filmagens de L’Arroseur arrasé [O Regador regado|. Logo, 0 ready-made (apresentagio tal qual de um objeto de série) representa a primeira obra cinematogréfica em set principio, ow seja, a primeira a tirar partido dessa nova linguagem, sem, no en. tanto, imilar suas formes, Duchamp utiliza a possibilidade 36 NICOLAS BOURRIAUD ‘cinematogralica’ de significar através da prépria realidade, € ndo mais pelo viés do signo, ou seja, por intermédio de uma representaciio. O museu 6 que cumpre aqui o papel da pelicula: a instituiedio actistica constitui, para Duchamp, um modo de regi ro, O mundo da arte é um espaco dentro do qual as formas sio registradas, mecanicamente, e inscritas dentro de wna hist6ria, Com o ready-made, Duchamp de- monstra que qualquer objeto, uma vez que penetrou no museu, pode ser registrado enquanta obra de arte. Em fun~ Gao do sistema expressivo que utiliza, o Poria-garrafas reve~ laser, portanto, muito mais cinematografico do que Anemic cinena, 0 filme abstrato que ele produ >posterionmente € que, segundo ele, se fundamenta num efeito de éptica.. © artista poderd agora trabalhar como um cineasta, compondo sua obra a partir de objetos reais sem recorrer & mediagio do simbolo, do signo. © mundo, em sua totalida~ de, torna-se cinegPnico: de Kuct Schwitters aos movimentos dos anos 1960 (0 Novo Realismo, a pop ari, Fluxus), 0 artis- ta se torna 0 ator e diretor de sua obra, Encontramos essa necessidade da expressdo ‘direta’ ao longo de todo o século, sem que a palavra ‘cinema’ precise ser pronunciada. Assim, os Novos Realistas, para o critico de arte Piette Restany, “consideram o mundo como um quadro, como a grande obra fundamental, e se apropriam de seus gmentos dotados do significdncia universal”. Seu trabalho visa a uma ‘higie- 12. Pier Reetany om catilogo Nounan ites, musées de Nice (1982). PORMAS DE VIDA: A ARTE MODERNA B A INVENCAO DE SI 37 ne da percepgao’ que utiliza o mundo como um set de fil- ‘imagem, Criar é enquadrar: o tempo vivide © 0 tempo da criagdo se sobrepdem um ao outro, Assim, se o ready-made assinala a irrupgdo do objeto ce consumo no campo rnuseal, ele indica, antes de mais nada, a passagem de um espaco simbélico para um tempo real do objeto, indexado sobre 0 modelo cinematogrdfico; e a figura do cinessta fornece aos atlistas um modelo de prética do presente suficientemente aberto para influenciar profundamente seus métosios de pro: dugo. O local de exposigdo se transforma numa cimera, ©. criagio artistica ird recorter av elenco, a representa O ready-made 6 a pintura que se fez. filmagem: UMA GENEALOGIA DO ARTISTA MODERNO. O discurso da modemidade se escora, portant, no presente; mas ao longo de todo o século XIX, antes mesmo que 0 cinema abrisse para 0 artista » possibilidade de um genio do objeto, a figura do astista foi profandamente modi- ficada por ele. Antes que Duchamp chegasse a rejeitar em loco a pandplia do pintor - esse ‘crogado com terebentina’ ~ foi preciso que surgisse uma nova mitologia da arte, a par- tir de modelos que tivessem em comum o fato de estabele- cerem vineulos entre a arte a vida cotidiana. Em primeira lugar, 0 alquimista: referéncia arcaica que se revela titil para compreender de que modo se eonstitui 0 discurso da mo- demnidade, Assim como o dani, que inaugura a ideia con- creta da vida enquanto obra de arte, Mas também alguns es critores, entre eles Lautréamont, Mallarmé, Jarry ou Roussel, de que conhecemos a influéncia que tiveram sobre Du- champ e os surrealistas... A modernidade artistica esté as 40 NICOLAS BOURRIAUD simn estreitamente ligaca aos avangos da literatura do século XIX ea algumas de suas personagens mais marcantes, como © Dorian Gray, de Oscar Wilde, protétipo da vida-obra de arte, A alquimia, o dandismo ¢ a literatura constituem assim trés diferentes campos de referéncia pertencentes A genea- logia da arte atual. 1. Oalquimis ta Le Chef-d’eaxore inconnu [A obra de arte descomhecida} (1845), que traz & cona um pintor, 6 similar, em sua trama, a outro conto filosético de Balzac, La Recherche de Vabsolu [A procura do absoluto], cujo protagonista é un alquimista. Nos duas narratives, 0 modo de vida do herdi se organiza em torno de uma demanda inicidtica, uma ascese rigorosa aspi- rando a uma inacessivel perfeigfo, Ora, a alquimia, longe de se limitar a0 folelore que evoca hoje em dia, fol uma pratica precursora do espirito cientifico moderne’. Durante toda a Idade Média, ela foi, homens de laboratério e guardides do saber esotérico e filo- inclusive, sua principal manifestagio: séfico, os alquimistas se dedicavam a experiéncias sobre a matéria. O fato de Raymond Lulle ter inventado 0 bicarbo- nto de potissio, de Paracelso ter descrito as propriedades quimicas do zineo ou de Blaise Vigenére ter descoberto o 1LVide Serge Hutin, Histoire de aldhinie (Marabot, 1971) [No Brasil Histvie da alaquima, tred. Chavies Marie Antoine Bouéry, Sao Paulo, MM, lal, Pilesohio de Vatchinie (PLE, 1992), 1972}, ¢ Frangoise Boru PORMAS DE VIDA: A ARTE MODERNA E A INVENGAO DE ST 41 Geido benzoico nao impediu que se negasse qualquer valor cienitfico a essas priticas nas quais ac ago ainda ocupava um lugar central, em detrimento do rigor experimental. Pois, contrariamente ao protocolo codificado por Claude Bernard no século XLX, o alquimista procedia por repeti- io: misturava, aquecia, evaporava ¢ recaleinava milhées de vezes 0 mesmo sélido. Em oposigéo & Idgica cientifica que conhecemos, a qual procede por deducio e eliminagées sucessivas, o alquimista cria uma espécie de dispositive ma~ terial imutdvel, na expectativa de um evento quimico surgido da purificacio extrema da matéria. O que poderia estar mais proximo das atividades de alguns artistas contempord neos? Até 0 século XVI, 0 alquimista encarnou, portanto, a mais elaborada forma da vida intelectual, uma mescla de positividade cientifica e ascese estoica. Essa forma seria posteriormente suplantada pela figura do eseritor-erudito, encarnado por Erasmo ou Rabelais, ¢ depois.pelo fildsofo das Luzes, vulgarizadotes da Razio. Ora, se 0 mito da al- quimia perdeu félego no inicio do século XX, dele encontra mos alguns vestigios flagrantes na figura do artista moder- no. Odilon Redon ou Seurat, Mondrian ou Giacometti substituem Nicolas Flamel ou Robert Fludd no imagindrio ocidental: o artesiio-cientista-asceta, cujas pesquisas her- ‘méticas exalam um atoma de enxofte, ndo é mais o.alqui- mista, e sim o artista. Claude Lévi-Strauss it legitimar essa tese ao estabelecer um convincente paralclo entre as duas 42 NICOLAS BOURRIAUD atividades’, cujos representantes possuem ambos algo ‘tan- to do cientista como do biscateiro’, Um folelore de pigmen tos @ pincéis, miscelénea de esbogos e preparacées cientifi. cas de tintas iria entZo substituir 0 das retottas e metals. ‘A arte moderna surge no momento em que o pintor se aproxima do imagindrio ascético do alquimista, pesquisador solilério e grande intelectual. Esse parentesco tern, eviden- temente, sets precursores, de JerSnimo Bosch a Leonardo da Vinci ou Diirer, mas os métodos obsessivos ¢ 0 espirito experimental ds pintores de vanguarda se confundem com a disciplina alquimica, da qual herdaram o Iéxico ¢ 08 obje- tivos simbélicos: fazer brotar o espirito encerrado na maté: ria, A existéncia de um alquimista conduz & pedra filosofal, simbolo esatérico da sabedoria e da perfeigio; a do artista, em uma obra-prima, termo tirade da tradigio magonica. Da obra em negro a Grande Obra, 0 vocatulétio dos alquimis- tas jd evoca aquele da arte, numa época em que as guildas de pintores se pautavam mais naturalmente pelo glossério do ariesanato. O artista modemo retoma para si expresses come ‘buscar o absoluto’, ‘transmutar 0 chumbo em ouro’, ‘encontrar a pedra filosofal’ ou ‘purificar a matéria’. Tal como o alquimista, ele divide o espago mental de seu traba: Iho em duas unidades distint : © aratério, lugar da elabora. fo tedrica, e 0 lnboratérie, espaco da experimentagao material. 2. Claude Lévi-Strauss La Pes eange (Plon, 1962), .23. [No Brasil (0 pensennentoseongen, trad, Tania Folegrni, Campinas, Paps, 2004] 2ORM DE VIDA: A ARTE MODERNA # A INVENCAO DE St 43 Ao evocar a experiéncia da ‘invengao de si’ através da expe rimentagio e da ascese, a modernidade ngo hesita em recor ret a0 vocabutlitio alquimico. Marcel Duchamp acimitia de bom grado seu parentesco com alquimista, embora especificando que, se era alquimis ta, o cra sem saber... Tomemos, por exemplo, uma das observa- Ges contidas na Boite verte [Criva tende] referente 8 sua obra mestra, Lat Marige mise a nu par ses edlibataires, méme [A noiva despida por sens celiontdrins, snesmo}: “Recipient plano de video (recebendo) todo tipo de liquidos coloridos, pedagos de pau, de ferro, reagées quimicas. Agitar o recipiente e observar por transparéncia”. Se a tentagdo esotérica que perpassa sua obra jndo precisa ser demonstrada’, 0 trabalho de Duchamp sobre © Grand Verre [Grande Vidro| evoca o de um Nicolas Flamel buscando, trancado em sett lahoratério, dominar as leis do acaso. O artista moderna, tal como o alqquimista, centra a sua pritica em si me: mo: contrariamente ao pintor eléssico ou ientifico, cuja attiagio estd sujeita a um resultado cancreto (@ semelhanga, a prova), 0 mademo tatefa, engana-se e acumula experiéncias. Para ele, 0 objeto nao passa de um elemento acessério e transitéria dante do dispositivo de vida que a pra fica artistica representa, A modemidade comega com essa sola tivienciio do objeto de arte no processo cristive, que correspon- de ao surgimento do oratério ao lado do laboratstio pictérico. ‘Marcel Duchamp, Duchamp dt signe Plannmarion, 1991), p. 189, 4. Jean Clair, Marcal Duchamp ow le gi tf (Cali, 1975), 44 NICOLAS BOURRIAUD Toda a obra de Yves Klein foi igualmente perpassada por essa concepcio alquimica da arte: “Inspitado pelo inde~ finivel de Delacroix, ele transpunha a doutrina alquimica em termos artisticos: uma verdadeira pintura contém una ‘subs~ Lancia’ invisivel e indefinivel que a transmwuta num eterno absoluto”*, A ‘sensibilidade pictérica pura’ diferencia as boas pinturas das més: ela representa, para Klein, uma substin- cia andloga ao ouro dos filésofos. Também George Brecht vislumbraria na alquimia um modelo possivel: “Para mim, a relagao ideal entre a cigncia ¢ a arte data do tempo da alquimia” Se Yves Klein, 0 qual transpunha todas as referéncias artisticas para o plano da espiritualidade, recorria de bom grado a essa comparacio, Sigmar Polke resiste em se ver en cerrado na metéfora do alquimista: percebe nela uma pre- guiga mental, mesmo reconhecenclo um “trabalho quimico, uma alguimia da pintura”. Polke, no entanto, mantém-se em estado de vigilancia, atento ao que pode surgit na tela, como cabe a um experimentador: “Se eu trabalho com telt- rio, p6s-impuros ou elementos reduzidos a pé, é simples- mente para ver o que acontece...”. Sabe-se que as grandes descobertas alquimicas foram frutos do acaso: Polke, que 5. Thomas Mc Filley,"Ywes Klein conquistedor du vide’, em catalog Yes Kein (MNAM, 1983), p. 38 ‘6, Em Henry Martin, ut Tutruction to George Breda Book af Tbler| ‘on Fire (Mulehiplaedizioni), p82. 7, Sigivat Polke, What interests mais the unforesecable', em Flash a 140 (maio-junine de 1988), ORMAS DE VIDA: A ARTE MODERNA E A INVENGAO DESI 45 nao ¢ preocupa com essa ‘substiincia imaterial’ que Klein buscava isolar na pintura, espreita o incidente que vird per turbar a mecanica das imagens. Citarei aqui apenas tum exemplo da arte contempora- nea recente, porém bem significativo: a atitude artistica de Peter Fischli e David Weiss, que intitularam O atelié do al- quimista uma escultura de 1984, evoca tanto as desastrosas empitias caras a Bouvard e Pécuchet como as bricolagens do alquimista amador. Um de seus filmes, Le Cours des choses (0 curso des coisas] (1988) ~ uma narrativa muda de uma pura contaminagio dos objetos uns pelos outros —, descreve uma cadeia de mintisculos incidentes que acabam por a cangar a dimensio do universo: saga burlesca cujos atores sio objetos ¢ reagdes quimiras, Le Cours des choses & um ale gre saber da matéria, subtendide por um dever de experi mentagio que se aplica tanto as coisas como a todas as for- mas da existéncia vivida, Nesse sentido, também ele ativa a meméria da alquimia 2,0 dandi O alquimista 6 um arquétipo que desempenha um papel apenas sublerréneo na constituigéo do discurso da arte moderna, Em compensagio, nao pode deixar de impressionar-nos o fato de © maior tedrico da moderni- dade, Charles Baudelaire, ter siclo igualmente 0 grande pensador do dandismo. Sem diivida, antes que o autor de Flores do mal dele se apoderasse, Balzac e Barbey 16 SOLAS BOURRIAUD d’Aurevilly ja haviam introduzido o dandismo na Franca, na es ira de uma farta literatura vinda da Inglaterra, da qual se pode citar Bulwer Lytton, Thackeray e seu Livro dos esnobes, Gronow ou Captain Jesse. De qualquer mo- do, Baudelaire descobre no dindi os ingredientes de uma modernidade artistica selvagem, ainda nao institu- cionalizada, ainda nao integrada @ cultura. Ele percebe de que maneira Brummell, ao reivindicar © artificio em oposigéo ao natural, solapa os fundamentos da moral crista e desqualifica o ser em prol de um parecer conside- rado a tnica realidade tangivel. A verdade, valor teoldgi- co, cede lugar & ‘mentira de arte’ cara a Oscar Wilde. O clogio da maquiagem, relomado por Baudelaire, torna ridiculos o mito da autenticidade e a lei natural. Ae pre- cipitar a cultura ocidental num jogo de imagens flutuan- tes e intercambidveis, Brummell antecipa nossa cultura sem transcendéncia nem origem sagratla, anuncia nosso universo complexo e incerto, Pode-se, assim, considerar @ dandismo como sendo a primeira manifestacéo da subjetividade modema: ao afir- mar um sujeito auténomo e soberano, insular, o dandi nia depende de nenhuma regra moral comunitaria ¢ se declara #9 tinico autor das obrigagées que se atribui™. Autorregula do, edita normas de que ser o tinico destinatadrio, confor- mando-se a uma ética criativa que anuncia as ‘mitologias 8, Francoise Coblence, Le Dandy ebligition dincerttude (PUF, 1988), FORMAS DE VIDA: A ARTE MODERNA E A INVENCAO DE St a7 pessoais’ caracteristicas da arte do século XX. Pois o artista modetno, a exemplo dos diindis, s6 obedece, em seu traba- Iho, a regras pessoais vélidas no Ambito de uma ética provi- séria: 56 acrescenta-Ihes a preocupagéio de produzir. E 0 dandi, serd que ele cria formas? Basia pensar na inovagéo primordial de Brumuncll, a wulada gravata de musselina branea € no seu né, refeito toda manhi por mao de mestre: 0 dindi nela investi tanto tempo e ciéncia [.], tanta habilidade, que ela se tornou a obra de arte que o simboliza. Sua braneura € a expresso de seu culto da limpeva. Sua exibilidade engomede, a de sua preocupacio em con: trolar a natureza’ © vestuétio nao é para o dindi, um fim em si, mas 0 “simbolo da superiotidade aristocratica de seu espitito”, ex- plicava Baudelaize. Para distinguir Brummell do mero ele gante, Barbey d’Aurevilly insiste nos processos que fazem de seu cotidiano um dispositivo formal. Por que era o prin- cipe de Kaunitz um auténtico dandi? Porque todo dia, “pa- ra dar ao seu cabelo 0 tom exato, passava por uma sucessao de sales cujo ntimero e tamanho ele caleulara, ¢ lacaios munidos de borlas © empoavam durante o tempo exato que ag, Het Ls Lt ey De anata Balai Qos Ct 19, pis 48 NICOLAS BOURRIAUD ele levava para atravessi-los”™, A gravala de Brammell re presenta uma ferramenta visual, tanto quanto 0 azul de ‘Wes Klein, as listras de Daniel Buren ou o pedago de pau de André Cadere. Embora nao tivessem por objetivo suscitar obras como de modo geral as entendemos, tais estratégias da vida cotidiana visavam produzir sentido, assim como Jo- seph Beuys quando se tranca por um més numa galeria nova-jorquina, enrolado num cobertor cle feltro ¢ tendo por companheiro um coiete": “Uma vez. produzido 0 efeito, & preciso partic”, aconselhava Brummell Essa aproximagio entre o déndi e o artista contempo. rineo chocard aqueles que subestimam a dimensao intelee tual do dandismo, aqueles que nele sé enxergam afetagao, desprezo de classe, gravura de moda e vacuidade. Mas se 0 ‘examinarmos a luz de certos movimentos de vanguarda, co- mo a arte conceitual, a arte de atitude, a body art, nfo ha como nao ver no dandismo um fenémeno artistica em sua esséncia ¢ em suas ambigGes. Encontramos nas praticas ar ti ticas contempordneas a mesma dimensio aseética, um equivalente trabalho de si, um similar desejo de manipular €5 signos para além de qualquer intuito produtivo imediato que caracterizam o pensamento dandi. Se 0 aleance ético da 10, Babey 6’ Aunevily, Du dandy e ce George Bruno! Galland, 1986), INo Brasil: Do dindesnoe de Googe Bommel, al Tra Tce, ex Maal do ian Belo Horizonte, Autéatica 2009] 11. Joseph Beuys, ‘like America and America likes me’, ga Block (1974) seria Ren FORMAS DE VIDA: A ARTE MODERNA fA INVENGAO DESI 49 atividade de Brummeil se mostra dificil de delimitar, ¢ por gue ele 6, com demasiada facilidade, reduzido & cena social na qual se desdobrava, reproduzindo alguns de seus aspec- tos apenas para subverlé-la, Estética das circunsténcias... Qualified-la de {itil 6 confundir a ago com o material que ela transfigura: acaso condenamos Cézanne por pintar com- poteiras? E indireta a influéncia do dandismo na arte mo: deta, mas ambos atestam a manifestagio de uma ética que “no liberta o homem em seu ser préprio”, mas “restringe-o & tarefa de elaborar a si mesmo”*, © dandi antecipa a confi guragao ética em que seria mergulhado o artista moderno, na qual pensamento e alos terZo por tinico sustento a divi ds, 0 axbitrétio e individualismo, Para tomar um exemplo inquestiondvel de pase ou mundanidade, consideremos a obra de Roman Opalka: a rigorosa tarefaa que ele se propos em 1965, que consistia em cifrar de um a infinito o curso de sua existéncia, vincula- -se indubitavelmente a uma tradigao ascética moderna ini- ciada pelo dandismo. Para cada uma de suas obras, de for- ‘mato idéntico, a tinta branca com a qual ele traca a sucess io dos ntimeros se aplica sobre um fundo a que um por cenio de branco 6 acrescentacio a cada nova tela, o descoramento progressivo do fundo pintado diminuindo a legibilidade dos rndimeros, Enquanto pinta, Opalka enumera em vor alta, re- 12, Michel Foucault, Qu'es raire,n? 309 (1999), ce que les Lumirey, em Magazine fité- 50 NICOLAS BOURRIAUD, gistrado por um gravador. Antes de par maos a obra, ele tira uma fotografia do seu rosto, vestido com uma invariével camisa branca, a fim de melhor enfatizar a degradacéo de seu aspecto fisico. Regido por esse ritual, 0 trabalho de Opalka assume toclos os aspectos da existéncia humana, co- mo que para melhor destacar seu implacdvel e trégico des- fecho, 0 destino comum que une a obra e seu autor, Fase protocolo pictérico descreve a existéncia como o desdabra- mento de uma forma desaparecente, gradualmente desfigu rada pelo informe que acabard por tragé-la A obra de arte moderna se apresenta como uma rea- lidade a ser experimentada e vivida, Do mesma modo, a arte da exist cin dndi no tomava forma num objeto ma- terial, pois néo ha dandismo possivel fora da ciéneia do efeito produzido, sem uma prévia avaliagio © uma aposta sobre a reagdo do interlocutor: Brummell ¢ seus émulos criam assim uma arte da intersubjetividade, que sé 0 cam, po social t 1a visivel e sd sobrevive através do testemu- nho e da tradigéo oral: era precis estar presente. O dandi “ obtiga os outros a crié-lo, negando seus pr6prios valores” Excentricidade calculada, formalizat 10 do comportamen- to, 0 dandismo ditige ao mundo wn desafio metafisico do qual percebemos as premissas nos libertinos do século XVIIL cuje atefsmo paradoxal nao abolia Deus, contentan- 13. Albest Camus, Uhuumae éeolt (Gallimard, p. 71 (Colegao le). [No Brasil: © liomei revotiado, tad. Valérie Rumjonek, Rio de Janeiro, Re- cord, 1996] JORMAS DE VIDA:A ARTEMODERNAEATNVENCAO DESI 51 do se em negé lo, enfrenté-lo, mediante uma ri ralizagao da soxuslidade", O dandi também busca sustentar o olhar de Deus, brandindo o i sétio do parecer & face da insufi- eioncia de ser, produzindo forma acima do abismo moral, fazendo pouco da maldita concise humana, “A atitude dandi, escreve Albert Camus, tine numa estética o homem entregue ao acaso e destrufdo pela violéncia divina, O ser que deve morrer pelo menos resplandece antes de desapa- ecer, € esse esplendor constitui sua justifica a0." Bs dimensao tragica separa radicalmente o artista ¢ o dandi sic tiltimo sujeita-se voluntariamente @ uma regra que aumenta a distancia que o separa de seus contemporaneos; 0 primeiro nao tenta se separar da sociedade, embora suas buscas de fato 0 isolem, ¢ pretende estabelecer com © mundo relagies exemplares, mesmo que a titulo provisd~ rio: o artista entabula transact negocia seu isolamento, partilha sua relagio com o mundo. ‘Mediante a valorizagao do insignificante ¢ do irrisério, 0 dandi problematiza algumas areas que s6 viriam a adqui rit valor filos6fieo com a sociologia modema e a escola de Frankfurt. “Ele nos ensina, escrevia Jules Lemaitre em 1895, que 0 tinico valor das coisas ¢ aquele que Ihes atribuimos.” Ao valorizar assim o insignificante 0 banal num universo cultural fortemente hierarquizado, ainda ordenado em tor 4.Nide Roger Vailland, Laclos (Le Seuil, 1953, Colegao Berivains de toujours). 15. Allert Camus, Ine Gh 52 NICOLAS BOURRIAUD no dos valores cristiios (estamos bem no inicio do século XIX), 0 dandismo antecipa es a estética da pouco que se ma~ nifesta na arte do século XX. Antiespetacular, pouco demons- tra iva, a toalete do dandi $6 se diferencia por um mintiseu- Jo detalhe: um né de gravata, uma barra, a fineza do tecido ‘ou uma combinagao de cores. Criador de um cerimonial do infimo, ele atribui uma significagio esiética ao menor de seus gestos, & mais anédina de suas falas, Socialmente £- Iando, seu inin to, € preciso partir [..]”. Estética minimalista do comporta- mento: a execucio nada significa, escolher é suficiente. No {20 6 0 excess: “Lima vex produzido o efei- século seguinte, ao acrescentar duas pinceladas de cor a um ready-made que ele intitula Pharmacie Farmécia], ou pelo desejo de secura que o leva a privilegiar o desenho técnico, Marcel Duchamp afina-se com a impassibilidade ¢ a parci ménia do danci, “Das mais insignificantes bagatelas, [Brum ell] cria questes importantes, o resto todo ele trata com soberana negligéncia ¢ igual indiferenga", irritava-se um cronista da época’. Tsse julgamento no poderia se aplicar a pop art, particularmente ao trabalho de Andy Wathol? Nao hé nada mais banal que os temas pop: histGrias em quadri- hos de Roy de James Rosenquist, banheitos de Tom Wesselmann... Os tenstein, produtos de consumo corente métodos utilizados, emprestados da inddstria ou imitados da midia de massa, desestimulam qualquer tipo de pathos. 16. George Hazlitt, Brunelli (1828), p. 152, FORMAS DE VIDA:A ARTE MODERNA E A INVENCAO DESI 33 CQ quadro pop surpreende por sua insignificéncia: essa ba~ nalidade a dandi, segundo o principio de que “mais vale surpreendet sumida € essa frieza sem concessio sao valores: do que agradar”, O desprendimento do artista pop e sua preocupagdo com o impacto imediato existem, em germe, na arte de viver de wn Brummell, que designa a beleza do transitério por wn comportamento frio e por dar forma ao minimo momento, esvaziado de qualquer obsesso por pe- renidade, livre para todo © sempre de qualquer veleidade de sedugio. ‘Um tiltimo e nio desprezivel aspecto da atitude dan- di: essa disposigo mental que Frangoise Coblence linda- ‘mente batizou de ‘obrigacSo de incerteza’. Trata-se do ab- soluto coticismo sobre 6 qual se baseava a pensamento em atos do dandi. A anedota seguinte esclarece: ao duque de Bedford, inchado de vaidade, que Ihe perguntava sobre a qualidade de seu sabretudo, responde Brummell laconica~ mente: “O senhor chama essa coisa de sobretudo?”, Para além de sua insoléncia, esse dito nao visa causat 0 riso, € sim espalhar incerteza. O déindi leva a aporia por onde pas- sa, destila a diivida, incita a suspeita sobre a evicéncia do usual. A maneira dos efnicos gregos, a resposta de Brum- mell rompe o peso do habito e do costume. Brummell, portanto, remote a pergunta para o piiblico: como julgar um sobretudo, como julgar seu proprio sobre- tudo? Seré possivel passar do sobretudo do dandi para a 54 NICOLAS BOURRTAUD, universalidade do conceito, uma vez que a imitagao neces sariam ite se degrada em macaguice?” © sobretudo de Brummell, no contexto de seu dispo- sitivo de existéncia, assume 0 valor de um objeto de co- nhecimento. Esse sobretude que nao é sobretudo prenun- cia outta pega de bravura, o Ceci n’est pas une pipe [Iss0 nito @ wn cachimbo| de René Magritte, que representa, justa~ mente, um cachimbo. Na Nova York de 1917, quando Du- champ envia ao Saléo dos Independentes um mictorio de porcelana batizado Foutaine [Foitte], nfo estard perpetuan- do esse gosto dandi pela apotia? Ao sobretudo do duque de Bedford a que € negado 0 status de sobretudo, Du champ responde com um mictério que tambéu seta uma obra de arte, ja que cle assim decidiu. Eo senhor chama essa coisa de obra de arte? “E inadmissivel que um homem deixe uma marca de sua passagem pela terra”, declarava André Breton em seu Primeiro manifesto dada. Em parte por causa dessa rejeicio da posteridade, um outro nome para ‘édio do monumento’, que um obscuro ilustrador seria batizado por Charles Bau- delaire de Pinior de vida moderna, mum eanhecido texto em que ele, alids, s6.é mencionado através de suas iniciais, CG Colaborador do Mustrated London News, Constantin Guys era um simples desenhista da imprensa. Cabe se perguntar 17. Frangoise Coblence, op. et, p. 108 FORMAS DE VIDA: A ARTE MODERNA T A INVENCAO DESI 56 que profissio 0 poeta escolheria hoje em dia para ilustrar suas ideias: um criador publicitério? Um produtor de video- clipes? Um roteirista de sitcoms? Pata servir de modelo ao manifesto da modemidade, cle nfo podia atuar no ambit do cterno. O que 0 poeta admira ¢ o método de Guys, em- bora elogie diseretamente set: estilo: sua arte implica um modo de vida que prima sobre as qualidades formais mani- no tem nada de festadas; pictoricamente falando, sua obr inovador, contrariamente & de Manet ou Delacroix, que Baudelaire admira por outros motives. Nao, nesse colecio- nador de presentes que ¢ Guys, poeta louva 0 comporla mento, a opeao pela fldnerie, a capacidade de ‘extrait eterni dade do efémero’ - a frégil eternidade do instante vivido, desce ‘bloco de eensagses' materializada pela obra de arte Num universo cultural em que 0 marmore tem por fimgdo ‘sobreviver & cidade’, todos devem se empenhar em ser um busto mavente, ‘um grande homem ¢ um santo para si pr prio’, e participar anonimamente do herofsmo da vida mo derna esgueirando-se em meio & multidao. 3. Arte elileratura:a sindrome de Dorian Gray Formalizar o presente, inventar-se através da propria obra; tal 6 0 eixo em torno do qual se forma a ideologia modema. Antes de se tornar uma teoria estética, porém, & vida-obra de arte existia enquanto figura literéria, O século XIX abunda em narrativas da vida conformada, recriada pela vontade, As vezes, pelo contrério, a matéria suspensa ou 56 NICOLAS BOURRIAUD inerte é que se transforma em ser vivo, como na novela de Gogol, O reirato. A época estd para fantasias de desdobra. mento, como atesiam o Doutor Jekyll e Mister Hyde de Sto- venson, O retrato oval e William Wilson de Edgar Allan Poe 0u O duplo de Dostoiéyski. O corpo humano se desloca, fragmenta 0 Peter Schlemitl de Chamisso perde sua sombra, Constatam-se os efeitos perversos da arte com 0 pintor Claude Lantiet, da Obra de Emile Zola, o qual desvi- taliza sua companheira e acaba por maté-la ao sujeité-la a ‘exaustivas sessdes de pose, Iniimeros escritores sonham, com uma vida que seja de fato uma obra, pois o espitito do final de século ja nao se satisfaz com visGes da arte ¢ dama Por tm real a sua desmedida, “Ha que fazer a propria vida como se faz unta obra de arte, escreve D'Annunzio, A vida de um homem intelectual deve ser sua prépria obra. A ver dadeira superioridade esté toda nisso,”"* © estetismo geno ralizado dos ‘cecadientes’ do final de século prefigura assim, €m modo elitista, 0 projeto vanguardista de uma estética Uunitéria da vida cotidiana. A casa se toma tm ambiente: 0 interior dos irmios Goncourt é um dédalo de bibelds raros € tecidos preciosos; as loucuras asiéticas de Pierre Loti em Rochefort, a datcha suburbana de Tourgueniey, surpreen. dem 0 visitante. Ainda mais impressionante é 0 apartamen to de Robert de Montesquiou, que serve de modelo para o 18. Gabriele D‘Annwunzo, enfin de volupté[0 pho de otiva) (189), sitado por Fiilien Carassus, em Le nthe dt davidy (Armas Colin, 1972) {pORMAS DE VIDA: A ARTE MODERNA E A INVENCAO DESI 87 yetiro de Des Esseintes, 0 herdi do mitico A rebomrs [As avessas] de Huysmans, Essa morada possufa, aliés, todas as caracteristicas de um ‘ambiente’, tal como o compreende- mos hoje no mundo da arte, a comegar por sua funcao de- dlarada: mergulhar os visitantes num espaco oxganizado de modo a que experimentem sensagées especificas. Assim, Montesquiow relata como convida Mallarmé eso espitito curioso |. ndo podia deixar de sentir inten- samente a representagao ocular em cuja presenga eu de siibito © colocave, e que acontecia de lancar subitamente sobre a minha pessea, que ele apreciava, uma nova luz epleta de maravilhas. Ele saiu de minha casa num estado de fria exaltagto. Fatd tudo af, ou quase: 0 caréter ‘ocular’ da experiéncia, 0 desejo do ‘artista’ de oferecer ao visitante uma represen- tacdo impactante ¢ até o aspecto ‘terapéutico” do ambiente, segundo os termes de Montesquiou, ou seja, stta capacida de de atuar sobre o espirito humano e suscitar emogdes. A evocagao dessas casas-obras de arte, ver a mente a Merz- bau de Kurt Schwitters em Hanover; o apartamento vazio de Duchamp em Nova York, mobiliado cam um mero tabu- leiro de xadrez; as Grotas de Dubuffet; a casa construfda por 1, Robert de Montesquios, es ps fe vo. Emile- Pas, 1928), pins. 58 NICOLAS BOURRIAUD Jean-Pierre Raynaud & imagem ¢ semelhanca de sua obra glacial, um bunker inteiramente revestido de ceramica e com decoragéo evohutiva, resid@ncia em que ele viveu ‘feito um cosmonauta’ antes de destrui-la totalmente em 1993; tam bém vem a mente-a Factory de Warhol, o Moinho de Erik Dietman, a mansdo em Nice de Ben, incrustada de obras de arte... Him suma, todas essas habitagdes que materializam o trabalho de um artista em sua vida cotidiana, sob forma de um ambiente total. A personagem Des Esseintes, em As avessas (1884), constrdi sua existéncia de acordo com um plano estéti- co cuidadosamente concebido, representativo da hipersensibi lidade fin de siécle, Sua casa 6 uma méquina de viver regulada nos minimas detalhes: ele aruma cada cdmodo com um ex dado maniaco, mandando fabricar cada mével, selecionando cada objeto e cada tom de cor em fungdo de projetos precisos que corespondem a neces idades psfquicas ou psicolégicas, Des Esseintes chega, assim, a vestir seus empregados como os camponeses retratados pelos mestres holandeses do século de ouro, de modo que vé-los the propicie uma rara sensagio, quando eles saem para cortar Jenha sob su s janelas. Huys- mans-Des Esseintes cria assim uma utopia cotidiana em que a atte 6 0 modelo de organizagio, Jé Monsieur de Bougrelon, 0 herdi de Jean Lorrain, coleciona latas de conserva: “Somente Rue bens, ou methe pmente Van Dyck pode competir com 0 rosado da pele e a prata rehuzente de alguns frascos de anchova”™ 20, lean Loersin, Monier de Bougrelo (1897, Passage ds Mavis, 1992) FORMAS DR VIDA: 4 ARTEMODERNA B A INVENCAO DE SI 59 ‘A. modernidade eneontraré, mum romance de Oscar Wilde publicado em 1891, retrato de Dorian Gray, uma metdfora que se tornaria célebre, Dorian Gray é um dandi trdgico ¢ desencantado, cujos atos, por uma maldigao inex- plicivel, alteram um quadro em que ele esté representado, Cada mau pensamento, cada agao imoral contribuem para desfigurar seu retrato: em contrapartida, ele para de enve Ihecer. © estranho sortilégio que atinge Dorian anuncia a imagem do attista total da modemidade: etiador de uma obra cuja textura se compde do tempo vivide, Dorian Gray 60 protétipo desses demiurgos instantineos, de Duchamp aBeuys, que metamorfoseiam seu comportamento em obra. “Sem diivida, a vida era para ele a primeira ¢ a maior de todas as artes; para csta arte, as outras todas néio passavam de uma introdugao”, escreve Wilde. A ambigio de Dorian Gray, “de elaborar um novo plano de vida, inspirado numa filosofia racional de prinefpios rigorosamente encadeados € cuja Suprema perfeigio seria a espiritualizagao dos senti dos”, permane extremamente contemporanea. O retrato de Dorian Gray manifesta assim uma perturbadora anclogia estrutural com a obra de arte moderna: lagos vitais o pren: dem a existéncia humana; ele depende de um conjunto de eventos extemos cuja imbricagio vem gerar uma forma, A imagem da méguina celibatiria duchampiana ~ cujos mode los s 1, sobretude, literdsios —, em Dorian Gray a arte mo: dema se encontra em estado embrionario. A criagio de poeira empreendida por Marcel Duchamp em seu Grande vidro 60 NICOLAS BoURRIAUD (imortalizado por uma fotografia de Man Ray) poderia pas- sar por um distanciamento kidico do retrato maldito de Os car Wilde, com a diferenga de que sua significagio 6 inver tida —a poeira de Duchamp afirmando o valor estético do efémero, do tédio e do acaso. Em O retrato de Dorian Gy, encontrames a moral dandi formulada por Baudelaire: "Viver e dormir em frente do espelho”. E esse espelho é a arte A partir do inicio do século XIX, alguns literatos fabri caram para si uma lend Xavier Fomeret, vinhateiro toma- do pelo deménio da literatura, publica em edigées do autor textos revolucionérios do ponto de vista tipogratico: vestido de preto em qualquer circunstancia, tal camo Baudelaire, fazia-se chamar 0 homem preto branco de rosto, e passou a maior parte de sua vida trancado numa torre, Lord Byron, cuja conslante preocupagio teré sido administrar uma agenda compartimentada por intimeros amores paralelos, tomava pela manha “um ché verde, fortissimo, sem leite ow agiicar, ¢ uma gema de ovo crua”*, enquanto seguia uma rigida ascese esportiva pontuada por esbémias desenfrea- das. Alfred Jarry, que construiu sua vida identificando-se com 0 seu: Pai Ubu, assinava a correspondéncia com seu nome ¢ empregava © vocabulitio, o andar grotesco ¢ 0 pen- samento de sua criatura, Para ele, “o papel de Ubu substitu © papel de poeta e de literato”. Confinado, por falta de 21. Gabriel Matzneff, La p26, que de lord Byron (La‘Table ronde, 1984), 22, Patrick Bosnier, Af Jorzy (Plan, 19M), p 44 FORMAS DE VIDA: A ARTE MODERNA E A INVENGAD DE St 61 dinheito, em sua Mayenne natal e com a vaga esperanga de jrear um alcoolismo exponencial, Jarry tenta dar fim aos boatos relativos & sua morte préxima: deve, portanto, aparecer em excelente forma para tranquilizar seus editores, 0s quais Ihe concederam adiantamentos considerdveis, Nese intuito, abandona Ubu e cria para si uma nova personagem: manda fazer um retrato seu, vestido de esgrimista, cruzando ferro com um mestre de armas de Laval. Um Jarry espottista © vi- goroso, pequene supermacho com brilhanting, acaba de nas cor. Puro simulaero, ja que © poeta desabou tio logo voltou para Paris, corrofdo pela enfermidade. Indo visité-lo para ver como estava stia satide, seus amigos Valette ¢ Saltas perceberam que Jarry estava clemasiado fraco para se arras tat até a porta do quarto onde se eniocava, e chamaram um chaveiro. Ao dar com Jarry agonizando, transportaram-no para o Hospital de Caridade, Uma vez deitado, o escritor pediu que Ihe trouxessem um palito para os dentes, e mor- teu. Peca de bravura patafisica’? A imagem desses aventu- reiros da agenda cotidiana, 0 universo literdtio do final do século manteria distancia da vulgar necessidade de produzit. Empenhando-se em ‘cultivar os momentos raros’ € a arquitetar a possibilidade de um pensamento totalmente voltado para si mesmo, Monsieur Teste, a personagem cria- da por Paul Valéry, faz de cada um de seus dias uma obra de + Pataisca: ciéncia“das solucOes imagindtias”, eiada pelo dramatur 50 Alfred Jarry. LT) 62 NICOLAS BOURKIAUD euAS DE VIDA: A ARTE MODERNA FA INVENCAO DE ST 68 ionformado por uma ética cotidiana e inseride num disposi- jvo formal global, adquire o poder de significar. Numa pa Javra, depois que o artista ‘circunsereveu sua esfera’ e se arte cerebral, Os surrealistas apreciaram em Valéry 0 que ne- Je encontravam da personatidade de Teste: um poeta sem obra, entao autor de wn tinico livro, Maurice Blanchot, em s Le livre 4 cenir [O livro por vir], redescobre Joubert, um autor prence mais a ela do que aos objetos que dele irdo resultar do século XVIIL, considerado um moralista menor, mas que tinha em comum com o heréi valeriano varios tragos de ca- rater. Joubert nao gostava de produvir: “Sacrificando os re sultados & descoberta de suas condigées e nie eserevendo para somar um livro a outro, e sim para dominar @ ponto de onde Ihe pareciam sair todos os livros ¢ que, uma vez encon= trado, 0 dispensaria de escrever livros”, Joubert considera a obra como uma linha do horizonte, um objeto ideal a partir do qual se elabora um cotidiano em forma de esbogo, "A obra é a espera da obra"; ndo estamos distantes de siléncio. de Marcel Duchamp. Importa apenas essa exig&ncia inicial, que determina uma trajetéria; em matéria de arte, nao se busca: encontra-se, Ao perguniar a Joubert quando ele final mente comecaria uma grande obra em vex de se dispersar em mintsculos aforismos, um inoportuno ouviu a seguinte resposta: “sé depois de circunserever a minha esfera”. A arte moderna comega com 0 nascimento desse espago mental, desse suporte a partir do qual o individuo é capa de dar sentido & forma mais banal, a0 sigho mais insignificante, a mais reles imagem; no momento em que © minimo gesto, 23, Mausice Bianchot, Le Liore @ venir (Gallimard, 1959), p. 76, (No Brasil: O foro por ir, wad. Leyla Perrone-Maisés, Si Paulo, Martins Fontes, 205) 3, O FIM DA ARTE: RUMO A UMA EXISTENCIA UNIFICADA? E possivel canceber uma ‘6pocs” ex que as artes especial zadas e intencionais fossem abolidas © substitufdas pela arte das atividades corriqu 1s. E, em uma, pela arte de viver, Tsso seria de fato a civilizaeao, e quem sabe tudo se oriente (com dificuldades, como deve se) para ela, Nossas artes especiais seriam apenas etapas ‘Ao escrever essas linhas, Paul Valéry certamente nao pensava na arte modema, mas expressava esse desejo de uma arte total que perpassasse a histéria das vanguardas do século XX. Para a vanguarda, essa emergéncia de uma esté fica unitéria é inseparével da nogdo de ‘fim da arte’, ou seja, de seu desaparecimento enquanto atividade especiali- zaula. Para que essa nogdo de estética do comportamento € 1. Paul Vali 938, Cahiers, vol H (Galirnand, Bbliothéque de la Place), 66 NICOLAS ROURRIAUD, a de uma arte unitéria possam adquitir wna real consistén- cia, é preciso que, primeiro, se desenvolvam diferentes rela tos do fim cla aite, ¢ que sua ‘superagiio’ seja teorizada, A {sso iriam se dedicar 0 futurismo, o dadaismo, o suprema- tismo, © surrealism e muitos outros movimentos. O artista, ja vienos, question o papel e 08 métodos que a ‘tradigao Ihe altibui 0 momento em que o sistema de produgao capitalista reifica as relagSes socials, clispondo os individuos mu ‘ma cadeia de tarefas imutéveis, reduvindo-os a sua forga de tra- balho e subordinando-os a maquina. Observe-se que 0 dandis- mo aparece no Reino Unido, entao a nagio mais avangada no Proceso de inclustrializagao, Instaura-se uma légica segundo a qual os alos, sentimentos, modos de pensar, devem se dobrar 8 lei da mercadoria. A essa ideologia produtivista, o dindi opde umaarte de viver de que o aulto anacrénica do delalte € 0 aspec- to mais evidente, Lénica evocacéo da divistio do trabalho, as Juvas de Brummell eram confeccionadas por cinco operiios, um para cada deco... Ao fazer assim de sua existéneia uma obra de arte, 0 dnd firma sua recusa em vé-la fancionar em qualquer espécie de engrenagem. Sua agio imiséria se compara a de um, gro de areia estético na maquina de formatar as conseiéncias “O que é0 homem superior?,incaga Charles Baucielaire, Nao & © especialista, Eo homem do lazer e da cultura geral.” Alguns anos mais tarde, Karl Marx se insurge contra essa fragmentagdo da experiéncia humana com suas Teses sobre Feuerbach de 1845, mas somente em A ideoiogie alema © pensador alemao atacaria o grande tabu filosélivo da se- FORMAS DE VIDA: A ARTE MODERNA EA INVENGAO DESI 67 paracio entre prixis ¢ poiésis, A praxis, na filosofia grega, designa a aciio ‘livre’ pela qual o hamem busea transformar a si mesmo no intuito de se aperfeigoar. A poiésis, pelo con- Weério, remete A ac&o servil, utilitéria, sujeita as condigdes mate jais. O golpe de forca de Marx consiste em definir a equivaléncia entre essas duas nogées: te liberdade efetiva que ndo seja tambim uma transformagio material, que néo se insereva historica iente na exterioricade, como tampouco existe um traba~ Iho que nfo seja uma transformagiio de sf. Em outras palavras, 0 produto do trabalho nao pode ser considerado fora das condigdes de sua produgio. A pré- tica ea producao compéem as duas faces de uma mesma moeda, a tal ponto que a teoria pade ser assimilada a uma ‘produgie de consciéncia’: 0 homem produz a i mesmo através de sua ago, ¢ os humanos se distinguem dos animais “assim que comecam a produzir suas condigées de existén- cia, um paso a frente que constitui a propria condigto de sua organizagio corporal. Ao produzir seus meios de exis- t8ncia, os homens indiretamente produzem a vida material 2, {enn Palio, L pibsie de Aan (La Deen, 1995), p41 INo Basi A fle de Mi rad Lucy Magalies Ro de Joneko, Zao 195] 68 NICOLAS ROURRIAUD, em si", O concsito de produgiio se encontra aqui estendido a0 conjunto das atividades humanas, a toda atividade de transformagao da natureza e, por conseguinte, & produgso que se empreende sobre si mesmo: a reflexdo de Marx sobre a divisdo do trabalho corresponde, ponto por ponto, a0 pro- grama da modernidade artistica tal como ¢ anunciado pelo dandismo e tal como realizado pelas vanguardas, de dadé a0 situacionismo A ctimologia da palavra produgao (do m producere) significa ‘por 3 frente, fazer avangar @ sua frente’: no prolon- gamento da intuigdo marxiana, o artista moderno mostra que criar nao significa para ele fabricar objetos, e sim fazer car uma obra, mesclar produgdo e produto num dispo- sitivo de existéncia. Unindo praxis ¢ poiésis, ele visa a uma totalizagao da experiéncia, totalidade de que o homem foi desapossado pela civilizagdo industrial, A arte modema se autocritica enquanto atividade ‘separada’, em busca de uma unidade perdida, Em sua alocugio inaugural do College de sociologie, em 1937, Georges Bataille apresenta 0 individuio da era ‘moderna’ como sendo marcado pela ‘rendincia a existéncia em troca da fungio’. Somente uma concepgao ampliada da arte poderd permitir a reconstituigao da exis- téncia mutilada, compartimentada e secionada em tatefus servis: “A existéncia assim quebrada em trés pedagos deixou 3-Karl Mans idl alienante (1846) (tons sociales, 1968). No Basil ideolegin len, ad. Lue Cio de Casto € Costa, S20 Palo, Martins Martins Fontes, 2002 {FORMAS DE VIDA: A ARTE MODERNA F A INVENCAO DESI 6 de ser existéncia: jé ndo é mais do que arte, ciéncia ou poll- fica’. Félix Guattari, trazendo para 0 cere da filosofia 0 problema da subjetividade humana, encontra argumentos similares em 1992, ao lamentar que 1 época contempordnes, ao exacerbar a produgéo de bens ‘materiais ¢ imatetiais em detrimento da consisténcia dos terit6rios existenciais individuais e de grupo, eriow um imenso vazio na subjetividadte, o qual tende a se tomar ca dda vex mais shsurdo @ sem apelacao! Pega de substituico de uma maquina que roda sem ele e fora dele, o homem do século XX é um ser desapossado. A economia capitalista é um agente ‘desterritorializante’ que destoca as formas de nossa existéncia, decodifica e re- codifica, reorganiza como Ihe convém os fluxos vitais: Guat- tari cria um instrumento de combate, a ecosofia, uma pratica de existéncia que consiste em replantar subjetividade onde jéndo ha mais subjetividade e em unir num mesmo proces- so de experimentagao 0 ambiente, 0 social e a criatividade. “A Sinica finalidade aceitivel das atividades humans 6 a producio de uma subjetividade que autoenriquega de forma continua sua relaco com o mundo,” O que Guattari desig 4, Ralix Guatiar, Les trois éologes (Cali, 1989). [No Brasil: As hrs ccolegias, rad. Matia Cristina F. Bittencourt, Campinas, Papicus, 1990,] 3, Ideun, Chaosinse (Galiée, 1992), p. 38. [No Brasil: Coosrose, tad. ‘Ana Lieia de Oliveira eLicia Claudia Lado, Rio ee Janeiro, Hltora 34, 1992.) 70 NICOLAS BOURRIAUD na pelo terme ecosofia em nada difere do projeto moderno, ‘© qual nos incita a produzir a vida cotidiana enquanto obra, meio eficaz de se opor & reificacio e & divisio da expetiéncia em pequenas unidades separadas, A umn jornalista que Ihe pedia para zesumir sua existn- em poucas palavras, Marcel Duchamp zespondeu que linha usado a arte para estabelecer certo mado de vida, e tentara fazer de sua ‘maneira de respirar, de reagir’, uma espécie de ‘quadro vivo’. le se definia, assim, como um ‘respirador’, © sua obra, como Ima espécie de permanente euforia’. A obra com que estava mais satisfeito? “O empre- g0 do meu tempo.” Desde 1920, o jogo de xadrez se revela- va para Duchamp como um modelo de comportamento attistico, a ponto de ele considerar seu papel de lider da equipe francesa de xadrez muito mais importante do que seu papel de ‘ctiador’ no sentido banal do termo. Artista? Nao, muito mais do que 80: Fespitador. Duchamp foi sem didvida © primeito a assumir com plena consciéncia, © até suas conclusies logicas, a él ica da modernidade. Para ele, a criagao artistica est ligada a uma moral que tama de em- préstimo aspectos do dandismo, do estoicismo, do budismo zen, uma moral baseada na aceitago ¢ no controle do aca- so, consideraclo como um espaco de jogo. Certa noite, seus amigos Ihe perguntaram se iria fica em Paris ou voltar para Nova York, ele jogou sua decisdo no cara ou coroa, Deu coroa: embarcou no dia seguinte para os Estados Unidos. Seu atelié na Lincoln Arcade, na Broadway, transfere a arte {FORMAS DEVIDA: A ARTE MODERNA E A INVENGAO DE St para a invengio de um modo de vida: no centro, uma ba- pheira; um cord’o, para abrir a porta a disténcia; um tabu- Jeiro de xadrez. na parede. Acredito que a arte 6 a tinica atividade pela qual o homem enquanto tal se manifesta como auténtico indivicua, So- mente alraves dela ele consegue ultrapassar 0 estigio ani meal, porque a arte é uma sida para regides nao dominadas pelo tempo ou pelo espace’ Duchamp texé passado a vida a se libertar de um e de outro, a usar a arte como campo de experiénicias: em outras palavras, a se tomar, ele préprio, sua maior obra Ao libertar a Linguagem da obrigagio de significar, 0 ‘movimento dada inicia um novo comportamento. © espon- taneismo abgoluto exallado pelo grupo de Tristan Tzara, investe decididamente contra a Razdo ocidental, acusada de ter resultado na camnificina da Primeita Guetra Mundial, ow de, pelo menos, té-la permitido, Contra a barbiirie de fei- Bes cartesianas, 0 dadafsta propde um novo contrato s0- cial: 0 homem reconeiliado com suas pulsdes animais ¢ sua desrazio constitutiva, lancando mao da linguagem para inanifestar o Sere selar um acordo imediato, de ordem ma~ gica, com 0 universo que o cerca. As imitagoes de mascaras 6. Marcel Duchamp, Duchamp di sigue (Flammarion, 1991) 2 NICOLAS BOURIAUD, africanas vestidas por Hugo Ball e Tzara no Cabaret Voltaire de Zurique remetem ao tribi mo} Os poemas ‘bruitistas’, & oragio e as melopeias das civil ages ditas ‘primitivas’. A espontaneidade 6 algada a arte de viver: j& que o individiio sé 6 realinente livre dentro da ‘loucura do momento’, dada pretende estruturar poeticamente a espontaneidade. “O que interessa a um dadafsta 6 a sua propria maneira de vi- ver”: com essa frase, 0 dads se introduz concretamente no mundo da arte, quase vinte anos depois de Dorian Gray, ‘um principio até entdo confinado a literatura ou ao folcloze dandi, As coisas tornam-se claras, viver a arte é mais impor tante do que produzi-la ou consumi-la: dada faz. da arte um evento, e do evento uma arte. "O que nés queremos agora 6a espontaneidade”, explica Tzara em sua Conferéncia sobre dadé de 1922. Nao que ela mais bonita ou melhor do que as outras coisas, Mas porque tudo 0 que brota livremente de nés ‘mesmos, sem a intervengéo das ideias especulativas, nos representa. E preciso acelerar essa quantidade de vida que se gasta facilmente por toda parte. A arte no é a manifes 10 mais preciosa da vida. A arte no possui esse valor celestial e geral que gostam de Iheatribuic. A vida é muito ais interessante. Acelerar a vida: ao libertar a arte da obrigacao de signi ficar, dada livra a Tinguagem do fardo da comunicagao. Ja FORMAS DE: VIDA: A ARTE MODERNA & A INVENCAO DF St 2 nio se trata de produzir forma, imagem ou entico, e sim de manifestar 0 ser espontineo, de celebrar a existéncia através, do evento, o qual permite a partilha. “Tudo que um artista cospe é arte”, dizia o dadatsta alemao Kurt Schwitters: a arte est contida em todo © qualquer ato da vida cotidiana, desde que © artista nele se projete por inteiro. Qual a neces- sidade de criar obras impeteciveis, jé que tudo nos representa? “As Tuas so nossos pincéis, as pragas, nossas paletas”, declara Maiakévski em meio & euforia que sucede a revolu cao bolchevique. Fuforia tao intensa que o suprematismo russo, entre 1913 ¢ 1918, passaria muito rapidamente da emaneipacgo da pintura, liberada de qualquer referéncia ex- trapict6rica, para uma dissolugio pura e simples da ativida- de artistica. Kazimir Malevitch qualifiea de ‘ago pura’ o sew Quartrado braxco sobre finde branco (1918), ¢ clama por uma superagdo do conhecimento material. Dois anos depois, abandonaria “o pineel auepiado em prol da acuidade da pena [..]”. Segundo ele, "jd nao 6 possivel pintar dentro do suprematismo. A pintura prescreveu jé faz muito tempo, e © proprio pintor é uma ideia preconcebida do passado [...1", Em meio a esse clima de exaltagao revolucionétia é que, em 1921, Rodtchenko pinta seus trés monocromos, azul, ama elo ¢ vermelho, qualificados pelo critico Tarabukin como ‘suicidio do pintor’. Nesse perfodo radical é que Osip Brik leva 25 membros do Instituto de Cultura Artistica de Mos- cou a votarem por um deereto ordenando a total cessagao de qualquer ‘criagio de formas puras’ em beneficio da pro- 4 NICOLAS BOURRIAUD FORMAS DE VIDA: ARTE MODFRNA BA INVENCAO DE ST B dugio de objetos utilitérios... Assim, a vanguarda russa vi vou aceleradamente a utopia modemista até suas mais crudis peita quanta ao valor de uma obra, quando nao im- plicam em sua nulidade, As exclusdes retumbantes, 03 contradig6es, Porém, ao parar ‘definitivamente’ com a pin andtemas, as violentas dispntas fratricidas que maream a tua (gabe-se que ele retomaria mais tarde seus pincéis, mas histéria do surrealismo parecem incompreensiveis se ne para ima figuragao derivada da tradigo do fcone russo), Kazimir Malevitch ainda se situa dentro do repertério da modemidade: a partida, 0 abandono, a fuga. Rimbaud acre- ditando que j& dissera tudo aos vinte anos. Duchamp reti. rando suas telas do Saléo dos Independentes de 1912, gligenciarmos este axioma fundamental: a obra se mede com a vida, e os minimos detalhes de uma podem ser usados contra a outra, A arte se verifica no cotidiano, ou no é arte. Philippe Soupault encarna essa poesia em es tado puro que liga o movimento dada aos primérdios do surtealismo. Ao pedir fogo a um transeunte, em lugar do cigarro ele achando que precisava romper com a comédia da arte e en contrar outros meios de subsisténcia... f de se supor que ‘a do colete um enorme castical; pede esmo. la com os mendigos; introduz-se em festas particulares ou cerim6nias familiares fazendo-se passar por convida Malevitch havia simplesmente chegado ao termo da de ‘monstragdo suprematista ou, mais precisamente, de sua te- leologia: a cessagao de toca ativicade pictérica ainda signi- do do c6njuge... Soupault chegaré a ser encarcerado de- pois de acender uma fogueira na Praga da Concérdia, em 2 de agosto de 1920, a pretexto de estar com frio fica a pintura, mais do que Ihe poe wm temo. Abandonar a arte era continuar sendo um artista sem renegar a si mesmo, Para todas as vanguardas, a questio ¢ distanciar-se da vergonhosa postura do criador e se aproximar da vida conereta. “O mais simples dos atos surrealistas, escreve Breton, consiste em descer até a rua e atirar na multidao O sutrealismo, porém, é to ctiativo em seu funciona- mento coletive como em agies individuals desse tipo. A forma representada pelo grupo, de que © movimento de Andhé Breton constitu 0 arquétipo, constitu ela propria uma obra de arte € induz modos espeecificos de vida. A ex- pressiio de Maurice Blanchot, que define o surrealismo co- mo uma “pura pritica de existéncia’, nao 6 mera frase de feito. Assim, intimeros escritores sem escritos vieram jun- como um canhao.” Os surtealistas denigrem a arte de modo a melhor combinar comportamento individual ¢ exigéncia postica: algam 0 cotidiano ao nivel da obra, tra- tando de conformar o fazer ao dizer em nome de uma moral da verdade ¢ da transparéncia. O comportamento tar-se ao grupo surrealista: Jacques Rigaut (autor de uma repreensivel de um membro do grupo, escolhas conside~ radas incompativeis com as opgGes coletivas, introduzem 7-Bemacd Motina, Pilppe Sonpauit (La Manufacture, 1987). 76 NICOLAS BOURRIAUD PORMAS DE VIDA: A ARTE MODERNA EA INVENCAQ DE SI magra, porém fascinante, coletinea, L’Agence générale dit suicide [A Agéncia geral do suicidio)), Jacques-Andté Boiffard, Jacques Baron (que s6 muito mais tarde escreveria suas Me- mérias), Gengenbach ¢ muitos outros, cujo aporte pa prupo se resume & sua participagio na criatividade cotidia- nna, Para ndo produzir, pertencer a um grupo constitui uma automatismo, o sano, as brincadeiras do cadaver requinta- do’ as colagens, passando pela esfregadura ou pela decalco- mania, os passeios em busea desses intersignos que empur- ram o sonho para o real, so técnieas que visam a uma auitoproducto do individuo, a uma postica da existéncia: “técnicas de si", para retomar um termo de Foucault, que a0 0 solugdo, Um coletive, enquanto forma, permite a seus tém por fungdo transpor para o nivel da vida cotidiana 0 membros guardarem © silencio. Presenga aninimalista no funcionamento do cérebro durante o sonho, criar a disponi- mundo das formas, © grupo € a construgdo moderna por bilidade, © maravilhoso: a deriva urbana, criada pelos surrea- exceléncia, privilegiando a elaboragdo de uma atitude & pre- listas e radicalizada pelos situacionistas, revela ser a pratica meditagao de uma obra que se intercala entre os artistas e de grupo por excel@ncia, 0s compromissos do meio artistico ou literdrio. Seus inimi 08? A vaidade do autor; ¢ seu lacaio, © belo estilo. Edificio No cireulo surrealista dos anos 1930, Salvador Dali se mostrou particularmente prolifico em matéria de ‘poesia artistico, o grupo representa uma das mais eficientes tenta- tivas de ociosicinde da arte: se “a poesia deve ser feita por todos, € nao por um sé”, de acorde com a palavra de ordem. cic Lautréamont, 0 grupo aparece como uma forma adequa- da, instancia fundadora de préticas, rituais, métodos. A es- crita automatica se coloca a servigo de todos, despersonaliza da vida’. Seu famoso método paranoico-critico, que per- mite desencadear a vontade a alucinagZo ocular, introduz na vida cotidi na a forca plastica do sonho, antes de se fi- xar na tela por intermédio de um vocabulario pictérico ver-realista, Dali no contenta com a passividade dos ‘sonos surrealistas’ ¢ consegue elaborar as condigées de ‘uma atividade onitica controlada. “Alravés de um proceso el Gimultaneamente ao aulamatismo ¢ outros estadas passi- a eserita e a pintura a0 combater @ ideia de propriedade ar- tistica em si. A modetnidade sonha em voz alta com uma pra de cunho paranoico ¢ alivo do pensamento, serd pos: ica de escrita ou de arte em forma de ‘comunidade ocio- sa’, @ 0 surrealismo representa para os seus membros tanto uma estética da existéncia como um espago de criagio, Pois Hs Uae al Cp pu ine korg consist em virias pessoas formarem coletivamente uma frase sem qe nenituma soubesse o que a outta havia escrito. O nome do jogo deriva da primelza fase asim eviada, Le endaore exis boa le vin nowweat (O cadéver equintado bebers o vinho novo). (N.T} os procedimentos inventados pelos surrealistas visam — pe- Jo menos teoricamente ~ produzir certo tipo de subjetivida- de, para além de toda e qualquer preocupagao literéria. O 20 NICOLAS BOURRIAUD, 1950, ou seja, depois de Duchamp, mas na mesma época que John Cage, George Brecht ¢ Robert Fillion, Klein cria um equivalente credivel do budismo zen, ‘Tendo praticado de dentro para fora a disciplina oriental e frequentado os rosa-cruzistas, ele pode melhor do que ninguém sintetizar as aspiracdes da vanguarda, 0 saber alquimico tradicional ¢ © pensamento zen, Nao sem cecler 2 uma exallagao as vezes inquictante: “O fato de eu existir enquanto pintor serd o tra~ balho pict6rico mais formickivel deste tempo”. Seja como for, Klein sabe o que est dizendo quando fala em “existir enquan- to pintor’: pintar 0 quadro no é fabricé-lo enquanto objeto, € sim vivé-lo, transfundir-se nele, impregné-lo. © verdadeiro trabalho é outro: aquele que ele efetua em si mesmo é que constitui a matéria-prima do quadro e sua verdadeira peda angular. Por essa per spectiva, o ato de pintar um monocromo ou de saltar no vazio (no importa se essa proeza é realizada ou fantasiadla) articula-se em tomo de uma mesma vontade de superagiio de si, de um mesmo desejo de ir além do ego para inradiara tela, deultrapassar os proprios limites a fim de desen- volver potencialidaces ignoradas. apoteose da aventura de Yves Klein foi, sem dtivida, a publicagéo de Dinmarohe, le journal d'un seul jou (Domingo, o jomal de um dia s6], com 0 qual ele se apropriava do percurso do mundo ao longo de 24 horas, em 27 de novembro de 1960. Klein, al, foi até o fim na sua légica do instante, de ‘superagio da problemética da arte’, para aborclar a légica da existéncia, teatro do teatro, ‘sem ator, nem espec- tador, nem cenério, nem paleo’: a vida. FORMAS DE VIDA: A ARIE MODERNA B 4 INVENCAO DESI BL Da posigao surtealista para uma arte de atitude, basta- va um passo, cujas bases tedricas Marcel Duchamp jé forne- cera desde muito empo. A ideia de oferecer a atitude uma autonomia que lhe permitisse constituir a forma de uma pré- tica artistica © organizar seu conterido remetia diretamente a aventura de Duchamp. Ben Vautier foi quem primeiro uti~ lizou, no inicio dos anos 1970, o termo ‘arte de atitude’, a partir dos ‘happenings’ de Allan Kaprow, do pensamento de John Cage (também ele muito influenciado por Du- champ) e das posigSes de Yves Klein, A atitude 6, para Ben, a pedra angular de uma ‘arte total’ que ndo passaria da “realizagao de todos os verbos (amar, dormir, cantar, [..] cziar, cuspit, posar etc.) enguanto obra de arte”. Ele vanre, assim, a rua de Bscaréne, em Nice, do niimero 1 ao niime- 10 32 (1967), ou, num de seus 61 “Quadros gestos” de 1964, fica 16 minutos esperando 0 Gnibus. Ao propor, a titulo de ‘obra de arte, agGes exemplarmente banais, materializadas ‘ou ndo por um ‘quadro’, Ben constrdi uma cenografia artis tica que gira em tomo de uma obra possivel ~ e objeto de suas préprias fantasias ~ incapaz de se coneretizar se niio em forma de anotagdes e comentirios sobre a arte ou sobre simesma, Seu trabalho artistico nos oferece o espeticulo de uma dtivida fundamental quanto & prépria possibilidade de se fazer arte depois ce Marcel Duchamp, mas também mos tra um historicismo levado ao extremo, desqualificando to: Ga obra que nao traga ‘alguma novidade’: “De fato, a arte no é a vida, a menos que esta vida seja verdade [..]”. A 82 NICOLAS HOURRIAUD obsessiio de Ben 6 antes a atiiude do artista em relacdo criagdo do que © comportamento desse artista no dia a dia: pretender fazer da vida uma obra pode ser considerado arte, mas no a vida em si, contrariamente ao que afirmam, no mesmo momento, outros membros do movimento Fluxus como George Brecht ou Robert Filliou. Ben oferece assim uma imagem do artista simultaneamente heroica e estreita, assumindo sozinha todas as contradigdes da modernidade: irrecuperdvel, dispie & sua volta de uma espécie de loja de antiguidades conceitual proliferante, cuja forma ¢ estilo de- sestimulam © bom gosto; provocador, multiplica conferén- clas e debates; alegre niilista, acredita piamente no fim da arte ao propor um caos colorido e tagarela como alternativa para a obra moderna A obra de Joseph Beuys, também ele aderente do movimento Fluxus, insereve-se toda ela num projeto mo- numental que dé forma e densidade ao conjunto de seus desenhos, aquarelas, esculturas, instalagSes ¢ discursos. Pro- jeto sobre si, mas também, ¢ mais que tudo, pata a socieda- de em seu conjunto: Beuys identifica sua agio a de um cura dor, de um xamé, ¢ s6 aparece em piiblico vestindy seu chapéu e jaqueta de aviador, atributos simbélicos que refl tem sua biografia atormentada. Esse trabalho sobre sua pr6- ptia identidade € o prettidio de um ‘conceito ampliado da arte’ para o qual ‘falar é esculpir’, e pensar 6 agir. Esse con ceito ampliado da arte deve resultar na liberago do poten al criativo do ser humano, porque ‘todo homem é um ser PORMAS DE VIDA: A AKTE MODERNA EA INVENCAO DR ST 83 criativo’, ¢ a atividade escultérica comeca no momento em a Katl Marx em Berlim, conversar com uma lebre morta, trancar-se nutina galeria com um coiote a fim de cativé-to, plantar ar- que ‘se imprime um ato na matéria’. Varrer a pra vores, so todos gestos-programas para uma ‘escultura do tempo" que exige uma aplicagio universal, O fim légico da atividade artistica, segundo Beuys, ndo é sendo a ‘escultura social’, & emelhanga cla colmeia de abelhas, Equivaleria es- sa pléstica inter-humana, como se preocupa Eric Michaucl, a submissio do homem ao papel de instrumento do livre exercicio da Gesialinng, da ‘conformagio’ do mundo? Ali onde Hegel via a histéria humana resultar no ‘espirito abso- Tuto’, Beuys afirma que ela se encaminha para a forma ab- soluta de uma escultura global. Com essa desinedida, ele se mostra muito préximo do jovem Marx, para quem a essén- ia da humani de era "o conjunte das relagoes sociais” ¢ nada mais. © attista contenta-se em substituir 0 conceito de trabalho polo de ‘criatividade’. No entanto, Beuys nao prevé um verdadeiro ‘fim da arte em seui dispositivo, a prosenga fisica da obta desempenha o papel crucial, insubstituivel, do emissor de calor capaz, mais do que qualquer outro meio, de transformar as menialidades. Na visiio beuysiana, a arte ndo busca se dissolver no social, ¢ sim ampliar suas prerrogati- vas naturais: © conceito de criatividade, ao mesmo tempo 8. Bue Michauel fi dh slut par Fnnage aequeline Chambon, 1982) 84 NICOLAS BOURRIAUD que estende ao infinito o dominio da arte, mantém intacta a separagao entre os géneros. ‘Nao tenho nada a ver com a politica, explica ele, eu s6 eo rnhego a arte. Seria preciso, enti, que a tarefa politica vol- tasse a set um trabalho humans. Os conhecimentos que a arte permitie que eu adquitisse nesse campo deveriam re- pereutir dentro da vida, Robert Filliou, embora origindrio de Sauve, no depar- tamento do Gard, fez nos Estados Unidos um curso de eco nomia muito sério, que o levou a fundamentar sua obra sua vida numa ‘economia postica’ segundo 0 postulado de que 0 universo esté baseado na ‘eriagéo permanente’, Scu objetivo era chegar a uma ‘organizacao ideal da sociedade’, cujo critério absoluto seria a ‘feliz solidao de cada ser huma~ no’, Tal como a economia marxista, a obra de Filliou parte da nogéo de trabalho, mas o artista pretende substituir a faina sofrida e imposta por uma versio hidica do trabalho, considerado um potencial ‘harmonizador do. cérebio! Filliou inverte a fonte do valor: j& que, nos dias de hoje, “o valor de um objeto cresce ou decresce conforme ele aumen- 1a, ou n3o, a divisio do trabalho”, a questdo estd em reabi- litar a eriagio pura em detrimento do objeto fragmentario, simbolo da alienagaa universal. Em oposigdo & padroniza~ ‘ao do ser humano observével no mundo do trabalho e nas trocas comerciais, Filliou vai propor assim a instauragéio de FORMAS DE VIDA: A ARTE MODERNA EA INVENCAG DESI 85 ‘uma Verdadeira taxa de troca: “Temos todos as mesmas dife rencas, e é justamente isso que temos em comum. Propo nho, portant, que essa troca, bascada em nossas diferencas, seja chamada de V.T.E. (Vrai Taux d’Echange [Verdadeira Taxa de Trocal)”. A obra de Filliou asgenta as bases para. una reconstituigéo de homem total, laminado pela diviséo do trabalho, Essa recomposicao 56 pode ser efetuada atra- ‘vés da nogao de criatividade, razo pela qual ele privilegia o genio em relagdo ao talento, o qual encerra o individuo nu- ma tarefa e 0 separa dos outros: everybody is perfect... Em 1971, Fillio apresenta em Amsterda seu Territério da repit biica genial, botequim de baitro algado ao nivel de prinefpio metafisico, O mito da habilidade refreia a criatividade, de modo que ele desenvolve 0 ‘prinespio de equivaléncia’, afir mando 0 igual valor do benfeito, do malfeite © do nia feito Esse principio de equivaléncia representa para Filliow a lei dla ‘criagio permanente do universo’: ele insere uma meia vermelha numa eaixa amarela, respeitando as proporgdes ¢ 0s valores crométicos; em seguida, repete a operagéo, s6 que imalfeiia, con cores & propargties erradas. Depois, conceitual- mente, nao feita. "Depois, explica ele, refiz as trés enquanto malfeitas e nfo feitas. Como antes disso os trés modelos me pareciam benfeitos, refiz novamente como malfeitos ¢, de novo, como nao feitos.” Filliou chega assim a uma obra 9, Catdlogo The Eemal Network Presents Robert Filliow (Hanover, Kunsthalle Born, ARC, 1984), 86 NICOLAS BOURRIAUD de “40 pés” de comprimento. Caleula ele que “as dimen- sdes de uma série de cem chegariam a dez anos-luz (na poténcia 21) [..]". Ele nunca para de inventar brincadeiras, como o Jogo de Leeils, que ve joga de othos vendados, ¢ ctia © Poipoidrome, un centto de eriagao permanente. A arte de Filliou representa, entre outras virtudes, uma versao oci- dental credivel do budismo zen. Suas obras percutem sua- vemente 0 espitito, como oaits urbanos. Suportes, cai- xas, pedagos de papelio, tijolos, cartas de baratho: & imagem da pega de 1983, Daily miracte-daily void, seus trabalhos concentram o maximo de energia postiea reci clavel a partir de elementos irrisérios, no limite do per ceptivel. La Botte & outils de In création permanente [A xa de ferramenta da criagdo permanente) (1968) ilustra perfeitamente sua busca filosdfica: as palavras ‘Inocéncia’ ¢ ‘Imaginagio’ esto inscritas numa caixa contendo uma espécie de jogo de construgao. A ética de Filliou? Cons- troa-se a si mesmo. Pesquise: “Quando detemos nossa atencio numa coisa que nao conhecemos, estamos fa- zendo pesquisa”, afirma, Pratica do outrismo: “O que quer que voeé faga, faca outra coisa, o que quer que voce pense, pense outra coisa”. A arte? “Lima fungato da vida, mais a ficgao.” A agéo? Reearrer, par exemplo, ao dicio- nério como a um ‘roteiro’ infinito e andnimo. A vida? “A. arte é tudo aquilo que torna a vida mais interessante do que a arte.” FORMAS DF VIDA: A ARTE MODERNA B.A INVENCAO DR ST 87 Em 1970, Jacques Charlier expe os trabalhos fotogré- da cidade de Lidge, de que funciondrio. Torna-se assim. 0 “apresen- ficos realizados pelo Service Technique Provi tador —privilegiado — de documentos que emanam do [seul universo profissional, produzidos por um funcionério do S/1.P."; nao se trata de uma obra nem de um objeto achado ido’. Charlier critica assim o ‘pretenso milagre artistico’ ¢ conten- moda de Duchamp, ¢ sim de um ‘objeto aprese ta-se em sobrepor, ponto por ponto, uma atividade criativa e uma alividade tediosa e repetitive: “Nao considero que ‘isso que faco sejam pinturas, ou esculturas, ou coisas. $0 atividades"”. A postura do artista se encontra aqui remetida & sua definigao minima, ou seja, a um mero acesso ao mun. do da arte, mundo em que nosso olhar sobre a atividade mais banal adquire outra natureza. O projeto da Internacional Situacionista (1958-1972) é contemporéneo das propostas de Beuys e Filliou, mas as teotias de Guy Debord, Raoul Vaneigem e seus colegas ra- dicalizam 0 mito moderne do fim da arte: seja como for, eles propdem desse mito uma versio cocrente ¢ sintética que figura uma conclusdo légica. O fim da arte é considerado sem amargura: “Nao recusar a arte, ndo a abolit, realiz °". Contudo, as ideias situacionistas se cumpriram, num. 10, Jacques Charles, Connersations aowe René Debamierle (ander, 1990, p.18. “TL Joan-Prangolc Mattos, Mise de Vintonavionate simationsite (Champ lbve, 1989), p. 137 88 NICOLAS FOURRIAUD primeiro momento, no dmbito artistico, par intermédio de antigos protagonistas do movimento Cobra, como Constant ou Asger Jom, e depois com Giuseppe Pinot-Gallizio, artis- tas profissionals que logo foram intimados a escolher entre arte e revolugao. A obra de arte ~ fruto da divisao do traba- Iho ~ deve suceder a ‘situagao: ou seja, segundo a definigao deixada por Debord, “um momento da vida concreta e de liberadamente construfdo pela organiza ambiente unitério e de um jogo de acontecimentos coletiva de um Aarte jd no se encontra no objeto; para enfeitar a vida, hé de se virar sozinho, ou com os amigos, em vez de se apoiar em lojas cult is especializadas. Pois o situacionismo é também uma teoria © uma estética da festa. ‘Emprego do tempo! é ‘uma de suas expressbes mestras, Ao contudtio da ‘estética ampliads’ praticada por Beuys, 0 qual insiste na nogio de transmissao de energia, 0s situacionistas iaicizan definitiva mente a arte recomendando uma série de métodos que vi sam aprimorar o cotidiano mediante a construgio de situa~ ges e ambientes originals. ‘Tais métodos 86 existem a titulo temporétio, jf que prefiguram a revolugao total que resulta~ num urbanismo unitério e na proliferagio das livremente vividas. Ancoram-se as vezes, porém, na histéria uagéies! da arte, tal como a ‘deriva’ pela cidade que sistematiza 0 passeio surrealista em busca do ‘acaso objetivo’: trata-se de uma ‘técnica de passage apressada em ambientes varia- do: consiste numa “reutilizagéo, numa nova unidadle, de ele~ Da mesma forma 0 ‘desvio’, teorizado por Asger Jorn, FORMAS IDA: A ARTE MODERNA EA INVENCAO DESI 89 mentos artisticos precxistentes”. Permite recarregar com novos contetidos as imagens alienadas da arte e da publici~ dade, “detritos politicos e sociais [..]". Tais métodos, po- rém, nao passam de engrenadores de imaginério, meras ferramentas usadas na “Tata cultural’ contra a padronizagaio do tempo vivido: eles representarn modos de subversio da cultura burguesa, subversfio que representa, aos olhos dos situacionistas, a ‘nica forma de acdo que transcende a se- paragéo entre a arte e a politica’, Pois “nenhuma disciplina 8 parte pode sez aceita por si mesma, estamos caminhando para uma criagio global da existéncia”™. A critica situacio- nista da arte, que visa abolit a atividade artistica, refere-se essencialmente a “sua funcdo enquanto espetacula”™: trata- se entio de inventar wma arte de viver que realize a arte no cotidiano, e no de viver de forma diferente a relagdo com a arte ou revitalizar uma pela outra. © manifesto de 1960, pu blicado no ntimero quatro da revista da Internacional Si- tuacionista, discore longamente sobre o que deveria ser a prética artistica ‘unitaria’ Em oposigio & arte conservada, 6 uma organizacéo do mo- mento vivido, ditetamente. Em oposigao & arte parcelar, se 1 uma prtica global sustentada simultaneamente por to dos os elementos utilizaveis. [..] Em oposigiio & arte 12, Ibi, (urbanisme unitaire’[O ubenismo unitéri), 1959} 13. Guy Debord, Pour un jugement révolutionnaire de Far, etn Noles critiques, 2°3 (1962), 90 NICOLAS BOURRIAUD. unilateral, a cultura situacionista sera uma aste do didlogo, 4, AARTE EO TRABALHO ‘uma arte da interagio [1 O situacionismo apoderou-se da ideia modema de uma arte unitéia ¢ reverteu-a para o plano politico. Depois da morte de Guy Debord, quando uma visio asseptizada da soci dade nos incita a nao ver na revolia radical mais do que uma exceniticidade tremendamente simpética, as ideias si- tuacionistas seriam utilizadas como um material de adorno a servigo do status quo vigente, Camo, entao, nfo voltar contra 0 situacionismo as palavras que Debord dirigia ao dadé? “Nossa época esta recuida a um padrio, “O papel revoluciondrio da arte modema, escrevia ele, SACRA EAE ak ER que culminou com 0 dadaismo, foi a destruigao de todas as aqquele que € pridigo de suis horas €, de fate, um esbanjaclor de dinheiro, BENJAMIN FRANKLIN convengiies na arte, na linguagem e nos comportamentos. Posto que, evidentemente, 0 que foi destruido na arte ow na flosofi nem por isso foi coneretamente varrdo dos jo-

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