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A HISTORIA E O OCEANO DA MEMORIA: ALGUMAS REFLEXOES” Regina Célia Goncalves” as lembrangas se gravam na minha meméria com tragos cujo encanto e forea aumentam dia a dia; como se, sentindo que a vida me escapa, eu procurasse aquecé-la pelos seus comegos”. (1.5, Rousseau, Contissdes)' Intensamente investigado, nos altimos anos, por varios pesquisadores de diferentes areas do saber, o campo da “Meméria” tém se constituido, em especial para os historiadores, um sério desafio a exigir permanentemente uma reflexdio mais aprofundada acerca das suas relagdes com a Historia. E no que diz respeito a esta questao, definitivamente ndo estamos a caminhar por terra firme, por nada que se assemelhe aos campos aparentemente placidos ¢ estaveis de outras areas, Para nos, historiadores, coloca-se a necessidade de um mergulho nas profundezas insondaveis das Aguas do imenso oceano da memria, alias, em seus mares: o da lembranga e o do esquecimento, Pols, sé a memoria € composia por mecanismos de depésito, armazenamento, retengdo, também o € por mecanismos de selegdo ¢ descarte. Trata-se de um oceano de aguas sempre agitadas, sempre vivas. Ao mar do esquecimento estava relegada até bem pouco tempo a “historia dos excluidos”, historia permeada por siléncios, muitos deles, inclusive. determinados pela propria sociedade. Na verdade, neste sentido, podemos observar a ocorréncia de uma “amnésia social”, que pode ser definida como o “esquecimento e¢ a repressdo * Este artigo foi extraido do Capitulo T da disserlagZo de mestrade Vidas no Labirinto: Mulheres © Trabalho Artesanal. Um Estudo Sobre as Astesas da Cha dos Pereita - Inga - PB, defundida junto ao Curso de Mestrade em Ciéncias Sociais/JFPB, ™ Professora dé Teoria ¢ Metodologia da Historia da UFPB. Mestre em Ciéncias Sociais pela UFPB. Doutoranda em Historia pela US 1 Citade por BSL, Eclia. Meméria e Sociedade. Lombrangas de Velhos, Sio Paulo: TLA, Queiroa/Edasp, 1987, p. 34, Saecufim Jan./Dez./1998/1999 B da atividade humana ¢ social que faz e pode refacer a sociedad MENEZES classifica as manifestagGes da amuésia social em trés tipos; a) a “dammatio memoriae” (a condenagio da memdéria, muito freqiente em regimes totalitarios): b) as ocultagdes, dissimulagdes, inversdes que ocorrem nesse cantpo ¢ que nem sempre esto ligadas as instincias de dominagéo, mas também 4 necessidade de esquecimento ¢ c) a amnésia da histéria dos excluidos. E, em especial, no que diz respeito a esta Ultima, o autor chama a ateng4o para o fato de que, apesar de todos os esforgos que se tem realizado para reverté- la, ndo basta“... apenas dar vor aos silenciados, £ imperioso detectar ¢ entender ay multiformes gradagdes e significagées do siléncio ¢ do esquecimento @ suas regras ¢ jogos’, Ov seja, neste oceano da memdéria, devemos ter a preocupagdéo de procurar entender os mecanismos através dos quais ele brota, Caso contrario, a emergéncia dos excluidos enquanto objetos/sujeitos da historia tornar-se-d irrelevante e seus efeitos, passageiros, por ndo implicarom em aprofundamento/ruptura da concepgdo hegeménica do conhecimento. Para que estas miltiplas vozes possam ter um efeito, de fato, transformador, ¢ necessirio que as conhegamos, bem como as condigdes de sua elaboragdo, de seu silenciamento ¢ de sua emergéncia. Parece-nos ser esta a trilha mais imovadora em meio ao verdadeiro “boom” da meméria que hoje observamos nas sociedades ocidentais. Esse “momento memorial”, expresso na preocupagdo com a -preservagdo de acervos ¢ arquivos, de patrimGnio histérico, cultural © eeologico da humanidade; na muitiplicagao de lugares da meméria (galerias, bibliotecas, museus, entre outros); no resgate da historia dos exeluidos, tem aspectos extremamente positives, “. na medida em que ndo sé reflete a salutar emergéncia da conscitneia politica, camo também recolhe, organiza e@ conserva indicadores emplricos preciosos. para o conhecimento de Jendmenos relevantey ¢ © PCL Russell Jucoby, citado por MENEZES, Uipiano B. A Histéria Cativa da Memoria? Para Ki -Mapeamento da Meméria na Campo das Ciénoias Sociats. In Revista do Institute de VMatusios Brasileiros, 1.24. S40 Paule, 1992, p.17. UMENDZES, Opsit. p18. “fa Saeculum Jan /Dez./1998/1999 merecedores de andlise e — apreensito historica’* Ou seja, um dos aspectos mais vigorosos dessa preocupagaa recente com a memoria € justamente a tentativa de recuperdla no sentido de buscar os elementos que néo foram registrados pela historia oficial, buscar 6 passado para recuperar os nexos perdidos. Antes de avangarinos nesta diresfio, se nos coloca a accessidade de precisar melhor a utilizagio que fazemos da categoria memoria, principaimente porque nos referimos a intmeras questdes levantadas pela ja vasta bibliografia sobre o tema. Questdes como: as relagées entre Historia e Mewdria; a conjuntura que explica o atual “boom” da memoria: as intersecgdes entre individualidade - ¢ coictividade; os lugares da memoria, entre outros. © que é memoria? Na verdade. o termo ¢ utilizado para designar fendmenos de duas ordens distintas, embora conflyentes. Se. por um lado, denomina um processo que ocorre a nivel da mentalidade humana, seja cla individual ou coletiva, por outro tém sido utilizado correntemente para caracterizar a. cultura material das sociedades através do tempo. * Este elemento - 0 tempo - s¢ constitui no lastro da memdria, que pode ser genericamente definida como a capacidade que o Homem tem de reter © guardar © tempo gue se foi, de evocar o passado, Concordando com Chaui*, seria cla, a meméria, a nossa primeira e mais fundamental experiéncia do tempo. E a consciéncia da existéncia de um passado, tanto 0 do sujeito que lembra quanto “... o relatado ou registrado por oulros em narrativas orais @ eseritas”. “A meméria no é um simples lembrar [que ocorre espontaneamente] ou recordar [que & umn trabalho deliberado da conscitncia], mas revela uma das formas fundamentais da nossa existéncla, que é a relacdo com o tempo, ¢, na tempo, com aquilo que estd invisivel, ausente.e distante, isto é, 0 passado pp.d-10, 5 No artigo “Meméria", da obra Historia © Memérfa (1992), Jacques Le Goff faz uma interessanie discussie aceren ds detinigiio do terme, dos tipos de memidria € de como ela foi sonvebids através dos tempos, partindo das sociedades scm exerita até os dias aluais, 6 CHAU, Marilena, Convite a Filosofia, Sao Paulo: Atica, 1995 TCHAUL, Opseit. p. 130, Sacculum Jan, /Dez./1998/1999 15 ~ Assim, como dissemos acuma, a palavra meméria denomina -lahto,.a) o mecanismo de lembranga e esquecimento do tempo vivido ~ pelos: individuos ¢ pelas sociedades (trata-se de uma dimensdo “Anterior” da meméria) quanto b) a existéncia objetiva.da experiéncia dos grupos, através do tempo, objetividade essa. expressa nos ~Monumentos, documentos ¢ relatos da sua historia, : Essa segunda dimensdo, a memoria que “...qparece como algo eoncreto, definido, cuja produgdo e acabamento se realizaram no. A wadigko aigui compreendida voino.a meméria estetiortznda como miilelo, Modelo, esse que esi parmgnememente sujeito & dinimien social, 0 que quer dizer que née 6, hecessariamente, estatico, cristalzado, Além disso, muilas tradigSes sio. “inventadas” ¢ o seu estude contribu? pare esclarcoer ‘as relagdes humanss com pasado. A sua selaglo com a historia é bastante fntims, aa medida em que “Yoda tradipao inventada, na-medica do possivel, kitlize: a Histéria como, glemarnto legitimador de costa”. (ef Hobsbawen ¢ Ranger, spud SANTOS, 1986: 6), 24 SANTOS, Afonod C. M. dos, Meméria, Histinia, Naito: Propondo Questées. In Revista Tempo Brasileiro, n.87. Rio de Janging, 1986, p.10, Saeculum Jan./Dez./1998/1999 23 yalor cultural, [A segunda é uma resposta] ds alienagées provocadas pela expropriagiie da memoria @ representa pelo menos a emergéncia de ume consciéneia politica ...). [Nesta segunda diresdo] @ gue tem —havido, recentemente, wma mobilizagGo da memoria como bandeira politica e como combustivel para movimentos sociais. Paralelamente, é a propria atividade profissional do histortador que. é chamaca a lntegrar esse militancia da memoria”. ‘Tendo explicitado a abordagem em qué nos apolamos, no que diz respeito 4 possibilidade de tomanmos a memoria como materia prima para o exercicio da pesquisa, na perspectiva da “historia dos exclaidos”, torna-se necessirio, ainda, responder a seguinte questiio: de que forma se constréi a meméria? E nos referimos aqui 4 memoria compreendida como o mecanismo de tembranga ¢ esquecimento do tempo vivido pelos individuos ¢ pelos grupos sociais, :ou seja, nos referimos 4 dimensdo ‘interior da memoria. Enfrentar essa discusso ¢, necessartamente, confrontar as teorias de. dois pensadores que se debrugaram sobre © tema em grande parte de sua obra. Sao eles, o fildsofo alemfo Henri Bergson (1859- 1941), que se preocupou com o estudo da psicologia da memoria ¢ o sociélogo © Maurice Halbwachs, herdeiro da escola sociologica francesa. de vertente durkheimiana, que se dedicou ao estudo das relagdes ‘entre a meméria e a historia, conforme tivemos “a oportunidade de discutir anteriormente. Entre ambos ha. diferengas tedricas e metodologicas que se consubstanciam na oposigde acerca do estatuto do plano psicologice no que diz respeifo formagdo da memoria. Se, para, Bergson, ¢ fundamental o papel do corpo, para Halbwachs, s6 0 plano social contém os elementos capazes de explicar também o individual; sem aquele, este ¢ incompleto. As teses de Henri Bergson represeniaram, no campo da filosofia ocidental, na segunda metade do século XIX e primeiras décadas do século XX, uma oposicfo aos -paradigmas até. entio dominantes: o cientificismo. 2 0 positivismo. Seus estudos sobre a 26 dom, didem. pp.21-22. Saeculum Jan./Dez/1998/1999 meméria contribuiram mmuitissimo para a ampliagdo dos dominios da Psicologia que, até entio.. também esteve impregnada pelo espirito entificista, Os fendmenos psiquicos recebiam wm tratamento abjetivista, calcado na. mensuragao, na quantificagdo, e todos os estudos. se debrugavam sobre. 0 cérebro ¢ as localizagdes cerebrais. das funcdes psiquicas. E no debate com esta corrente que-se situa-a obra de Bergson. A partir da claboragdo de dois conceitos basicos - 0 “eu superficial” e o “eu profundo”-, discutira com seus conternporaneos (materialistas ¢ deterministas) no campo mesmo que thes. agradava, ou seja, a partir de nogdes. que defindiam: a de médida em Psicologia ¢ a redugdo do mental ou do espiritual ao meramente cerebral, E, neste campo, se Bergson reconhece que a inteligéncia, a atividade intelectual tipica do “eu superficial”, ¢ que possibilita a sobrevivéncia do Homem ¢ a propria ciéncia (justificando, assim, 03 estudes realizados por seus contempordneos); por outro lado, identifica os scus limites. E quais sio eles? A inteligéncia opera através da construgéo de conceitos ¢ do procedimento -analitico ©, ao fazé-lo, acaba por fragmentar e fixar a realidade que é, em si mesma, continua mudanga qualitativa. Ou seja, para Bergson, o “eu superficial”, automatizado, pragmatico, espacializado, acorrentado a necessidade de. resolver as questées praticas da sobrevivéncia e da vida em sociedade, enfim, esse “eu” totalmente determinado (que nao permite ao homem o exercicio do-livre arbitrio), no consegue, através douse da inteligéncia, compreender a realidade; “... @ conceito deixe eseapar a natureza. mesma do: objeto concreto. O conceito (.,) 86 pode simbolizar uma propriedade especial tornando- a comum a uma infinidade de coisas (JA inteligéncia que se move no plane das abstragées esta jadada, portanto, a permanecer no nivel das relagdes entre as. objetos, yendo incapaz de apreender o que cada objeto tem.de essencial-e de proprio...” Para Bergson, a busca do essencial, ov seja, o mergulha na intimidade do. real conereto, s6 pode ocorrer sem a mediaciin da inteligéncia. O estabelecimento da plena relacdo cntre a intimidade do 27 Cf Bergson, citado por PESSANHA, José Américo M. Bergson. Vida ¢-Obra. Sao, Paulo: Nova Cultural, 1989: pp.l 6-117. Saeculum Jan,/Dez,/1998/1999 25 sujeito - o “eu, profundo” (que. -€ puro dinamismo ¢ constitul a vertiadeira personalidade do individuo) - ¢ a intimidade do. objeto, 86 pode ocorrer através daquilo que o autor entende por “intuigdo™. “Ao contrério. da andlise, que muitiplica indefinidamente ox pontos de vista tentando completar a representagéo do objeto, a ininigdo coloca-se no proprio objeto, B. ao contraria do conceito que espaciatiza a duragdo real € eslagna,o tovimento (reduzindo-o ao espago, a irajetoria), a iniuigdo, destituida de motives utilitérios, permitiria a apreensGo do que é a yida, dinamismo, mudanca —-quatilativa, duragdo. criagéio (...)°.* Sendo assim, o “eu profundo” fluiria em perpétua mudanga por tras da aparéncia do “eu superficial”. E é através da memoria. enquanto atividade unificadora, que esse processo todo se viabiliza. Para Bergson, "a duragdo interior é a vida conlinna de uma memdria que prolonga o passado no presente’ Em telagdo a seus contemporfincos, a concepgao de. Bergson representou um grande avango no campo. da Psicologia, e set livro Matitre et Mémoire, publicado.na Franga, em 1897, se constitui, ainda hoje, . “fno] centro de debates sobre tempo ¢ memdéria, provocando reagdes que ajudaram.a Psicologia social a repensar os liames sutis que. unem a lembranga & consciéncia atual e, por extensGo, a lembranga ao corpo de idéias ¢ representagbes que se chama, hoje. correntemente, ideologia”. Para as ieses que s¢ sustentavam no esquema biolégico determinista hegeménico, em fins do século XIX, o estudo do sistema. nervoso central e o feconhecimento da locatizagao cerebral das fungdes psiquicas constituia o objeto da Psicologia: Bergson avangara no sentido de demonstrar que o cérebro nfo funciona como produtor das percepgdes, mas que assume ora 0 papel de condutor, ora o de bloqueador delas. Alids, ¢.a experiéncia da percepgdo 0 eixo. a partir Saeculum Jan /Dez./1998/1999 do qual Bergson-inicia @ sua andlise sobre a memoria” Ha que considerar @ papel central que o corpo ocupa na formutagdo bergsoniana, pois & ele; ao mesmo tempo, o veiculo de comunicagao do cu com a realidade exterior, ¢ 0 local de transito das sensagdes, ¢ também é a manifestagdo mais acabada de um presente continuo. A corporeidade é uma imagem sempre presente, que "..convive no interior da vida psicoldgica, com a@ perceppdo da meio fisico ow social que circunda 0 sujeito. f..) esse presente continue se manifesta, na maioria das vezes, por movimentos que definem ages e reacdes do corpo sobre um ambiente," Tal processo desenrola-se por meio das sensagdes que, como (#4 foi dito, transitam pelo corpo: “was sensagées (..) ndo sdo as imagens percebidas por nds fora de nosso corpo, mas anies inclinagoes localizadas.em nosso proprio. corpo. Porianio, ele yesulta da nansreza e da ‘destinagao de nosso corpo (..) que, cadaum de seus elementos dito sensitivos tem sua agdo real propria ¢...) sobre og objetos exteriores que ele, ordinariamente, percebe, de maneira. que compreenderemos assim porque cada um dos nervos sensitives parece. vibrar segundo um modo determinado de sensagao".” Ocorre, no eutanto, que nem sempre. o corpo, através do cérebro, veicula um determinado estimulo de forma a transforma-lo: em agio. Quando’ isso acontece, isso é quando um determinado estinul nao é devolvido ao mundo exterior sob forma de ago, ocorre © fenémeno da percepgdo. Assim, a percepedo ¢ também a consciéncia acabam por ser o resultado de um processo inibidor realizado ‘no centro do. sistema nervoso: a inibigdo de uma sensagSo que do se consolida em ago, mas se toma representagéio, Assim, no esquema ¥W.Reléa BOSI, no capitulo T de seu livre Meméria ¢ Sociedade, Lembrangss de Velhos (1987), reconstitui de fonnd Drithunte a trajetdria teorica de Bergson averca da memséria, Sau fivro ¢ 0 artigo “Bergson & Halbyuchs: Retomvando 0 Debate” (1946), do socidloge André. LAINO, teonstituem 0 pano de:fiandlo, de nossa breve sintese sobre a abre do autor, 31 Adena Thidern. p.6, 32 Cl. Rergson, vitado, por LAINO, André, Bergson ¢ Halbwacks: Retomande wm Debate, In Revista Tempo Brasileiro, N 87. Rio de fancira: Tempo Brasileiro, 1986, pp.26-7, Ssecutum Jan /Dez./1998/1999 27 “herysomiano, como colocamos acima, 0 cérebro pode assumir tanto o papel de condutor de uma agdo, quanto o de bloqueador (caso de quando ocone a pereepgao, a conseitneia). ees “este corpo nao pode armazenar as imagens. de vez que ele fuue parte das imagens... B entdo oe lugar de passagem dos movimento recebidos c reenviados, 0 wago de unidio entre coisas que agem sobre mim ¢ as coisas sobre as quais eu agi. a sede, em suma, dos fendmenos senserio- motores”* A discussdo sobre a percepgdo é muito importante para @ compreanséio das suas teses sobre.a meméria. O seu eixo principal & a oposigao entre pereeber e embrar, ou melhor, entre a percepgao atual ¢ aquilo que chamard de lembranga. E aqui se coloca a questio da ~passagem do tempo: “Se é verdade que cada ato perceptual é umato presente, wna relagdo atual do organismo cam oambiente, também verdade que cada-ato de percepedo é nin novo.ato. Ora, “novo” supde que cnies dele qconteceram outras experiéncia, ‘ulrox movimentos, outros -extados de psiquisma”, * Responder a esta questo & um desafio para Bergson, uma vez, que. como ja dissemos, ele pensa o Jembrar ¢ o pereeber como opestes No entanto, ao discorrer sobre a passage. da percepgao para.a consciéncia, o autor alude @ idéia de que a pereepcdo nao é um mero resultado de uma interagdo do ambiente com 0. sistema -nervoso Coloca que a percepgéio, as representagdes, esto sempre impregnadas de lembrangas, que ha uma conservagdo subliminar, inconsciente, de toda a vida psicologica ja transcorrida que acaba por combinar-se com © processo corporal e presente da percepgdo. : “£ chegado 0 momento de reintegrar a memoria na percepgdo |...) de determinar, assim, com maior preciso, 0 ponto de contacto enire.a consciéncia e as coisas, entre 0 corpo e “0. espirito (...) sobrevivencia das imagens Saeculum Jan. /Dez./1998/1999 passadas, estes. tnageny —_misturar-se-do consianiemente & nossa percepedo do presente (..) elas se conservam para se tornerem titel a todo instante elas completa a experiéncia presente, enriquecendo-a de. experiencia adguivida (...) 0 fimdo de intuigéo co real (..) sobre o gual se estende nossa percepedo do mundo exteriar, é pouca coisa em comparagdo com ido agquilo que nossa memoria the adiciona”. * Sendo assim, reintegrando a memoria na percepgdo, Bergson ayanca, indicando. que & justamente a memdéria que permite a relagdo do corpo presente com o passado, ¢ que também, ao. mesmo. tempo, interfere no precesso tual” “das representagdes. A memoria conslituiria, assim, o. lado subjetivo do nosso-conhecimento das coisas, 9 lastro do “eu profindo”, inica capaz de penetrar a. intimidade do objeto e deixar-se-penetrar por cla. ‘Nossa vide psicolégica normal ascila (..) entre estas duas extremidades, De um lado, 0 sensorio-motor orienta a-memédria {...) e, de outro, por-esta mesma memoria (...) exerce uma. pressdo para a frente, para insersr na agdo presente a maior parte possivel dela: mesma”. Assim, ¢ por existir a memédria que podemos definir o . escolhendo entre as alternativas que um novo estimulo pode “A membria teria uma fungéo prética de limitar a indeterminacGo (do pensamento e da agdo} ¢ de levar o sujeite a reproduzir formas de comportamenta que jé deram certo. Mais uma Vez! a percepeda concreta precisa valer-se do passado que de algum modo se conservou; a memoria & essa reserva consciente a cada instante e que dispée da totalidade da nossa experiéncia adquirida”’ *" 35.CE Bergon,citsdo por LAINO. Opec, p.27, 46 Idem {bidem, p.32. 37 BOSH, Opsit. pp.2-10, Saeculum Jan/Dez./1998/1999 29 Ou seja, para concluir, a presente & que requisita a resposta da lembranga. No entanto, as teses de Bergson nao param neste ponto, ele considera. fundamental distinguir entre dois tipos de meméria: a memédria - habito e a memoria - recordagdo. A primeira corresponderia a memoria psicofisioldgica. que repete © torma sempre. presente o efeito. pratico de experiéncias passadas. E uma memoria fixada no organismo, que simula a experiéncia passada mas nao evoca a imagem, A memoéria-habito ¢ adquirida pelo esforgo da atengao ¢ pela repeti¢ao dos gestos ou palavras. E um processo que se da pelas exigéncias da socializagdo, um servigo para.a vida cotidiana, faz parte de todo o nosso adestramento cultural. E a. meméria dos mecanismos motores. “A meméria do corpo, constituida pelo conjunto dos. sistemas sensorio-mosores que 0 habito tenha organizado, @ entdo wna memoria quase instantdnea para a qual a verdadeira imagem do passado serve de base (J De wm lado. (J a meméria do. passado apresenia para os mecanismos sensdrio- snotores todas as lembrancas capazes de guid- los.em sua tarefa, e de dirigir a reacdo motor. no sentido sugeride pelas ligdes da experiéncia (...) Mas, de outro lade, os aparelhos sensdvio-moiores fornecem as lembrancas impotentes (...} 0 meia de tomar um corpo, de se. materializar...".™ J4 a outra memoria, a memoria - recordagao,. corresponde as lembrangas isoladas, ‘singulares, independentes de quaisquer habitos, quase que auténticas ressurreigdes do passado; @ memdria que nao precisa de. repetigdo para conservar uma. lembranga, pois éa jembranga pura, Lembrariga. que canstitui fluso temporal interior do ser. Ser este - o Homem - que sc distingue dos demais porque conserva 0 seu passado ¢ 0 atualiza no presente, Ser que tem tradig&o, que tem historia, que reproduz o passado enquanto, pas sado, revivendo-o, . ° A meméria-recordag@o registra sob a forma de imagens-lembrangas, todos os jergson. Citado por LAINO. Op.cit. pl “$0. x oy Saeculum Jan /Dez./1998/1999 acontecimentos. de. nossa. vida cotidiana, a medida que eles ye desenrolam, sem. negligenciar nenhum pormenor, ao contrario. deixando ‘a-cada fato, a cada gesta, seu lugar ¢ sua data’. Essa seria a memoria verdadeira, que recupere 0 proprio. passado, sem intencao utilitaria. Para evocar desse modo 0. passado, sob a forma de imagens, &necessdrio, todavia, abstrair-se daagdo presente, 'é preciso atribuir valor ao intel, € preciso querer sonhar'.” Ou seja. a fembranga sé aparece através’ da. evocagdo, via memoria. Ndo ocerre mecanicamenie -como na memédria-babito, incorporada ao cotidiano, parecendo fazer um so todo com a percepgdo do presente. Enfim, para. Bergson, a memoria tem uma dindrica. interna: parte de uma imagem. qualquer e, através de. inimeras associagdes a outras imagens, forma um sistema. Dessa. forma, a recordagdo é dindmica, é movel, varia de acordo com o pouto de partida ¢ os elementos tomados para se estabelecer as associagdes. E essa concep¢do da memoria enquanto ‘fendmeno dindmico e, de. certa forma, livre, que contrapée claramente as tescs bergsonianas as de seus confemporaneos, que buscavam localizar a sua posigéo em determinado lugar de cérebro. “Antes de ser atualizada pela consciéncia, toda lembranga ‘vive’ em estado latente, potencial. “see estado, porque esté baixo da consciéncia atual (abaixo., metaforicamente), é qualificado de ‘inconsciente. O mal da Psicologia cldssica, racionalista, segundo Bergson, é 0 de niio reconhecer a existéncia de tudo o que esté fora da consciéncia presente, imediaa ¢ ativa, No entamto, 0 papel da eonsciéncia, quando solicitada a deliberar, é sobretudo 0 de colher e escolher, dentro do processo psigiuico, Justamente 0 que ndoé a consciéncia atual. (...) Logo, a propria agdo da consciéneia supde. 0 “outro"(..). EE 398 ANBA, Opel p18, Saeculum Jan./Dez./1998/1999 31 precisamente nesse reino de sombras que se. deposita 0 texouro da memoria" ” Concluindo, para Bergson, a memoria 6 conservagéio do. passado, que sobrevive, “...quer chamado pelo presente vob as formas da lembranga, quer em si mesmo, em estado inconsciente”’”, em cada individuo, © pento de partida de Halbwachs para seus estudos sobre a meméria ¢ completamente diferente do de Bergson. Para: ele, a meméria $6 pode ser compreendida a partir do plano social. ela s6 existe no interior de um grupo social ¢ assim o € porque, na verdade, a meméria é por cle concebida como uma reconstrugio do passado inspirada, exigida pelo presente, A principal influéncia de ‘Halbwachs foi, sem divida alguma, 4 obra de Emile Durkheim, o primeire socidlogo. a realizar pesquisa de campo, partindo das hipoteses de Auguste Comte: acerca da primazia do “fato social” ¢ do “sistema, social” sobre fenémenos de ordem psicoldgica, individual, A sociedade concebida por Durkheim ¢, em primeiro lugar, uma. “massa social”, Nogiio, alids, também presente nas duas obras principais de Haibwachs sobre a memoria: Le Cadres Sociaux de la Memoize ¢ La Memsire Collective”. Essa massa social, uma unidade organica, envalve, penetra, se faz sempre presente sobre o individuo, regulando a sua conduta. Individuos que é a sua imagem ¢ semelhanga. “As representagées, as emogies, as tendéncias coletivas nde tém como vausas geradoras certos estados de consciéncia individual, mas as condigées em.que se encontre o corpo sociat em seu conjunto. ‘Ao reconhecer essa preexisténcia ¢ esse dominio do social sobre o individual, Halbwachs, ao contrario de Bergson, desconsideraré o papel. dosempenhado’ pelo corpo do’ individuo em seus estudos sobre a memoria. Substituira’o corpo bioldgico do homem pelo corpo social. Invertera a equacdo & buscara investigar como as idéias ¢. representagdes produzidas. pela sociedade nen 40. BOSI, Op.eit. p14. 41 Ider, Hoidean. p.15. 42 Le Cares Sociaux de Ia Memdire, Bevis: Sloan, 1925; La Meméire Collective, Paris: PUF, 1950, 43 LAINO, Opacit. 9.18, 32 Saeculum Jan/Dez./1998/1999 influenciam a vida psicolégica’ dos individuos, Buscar aquilo que fallava em Bergson, © ‘tratamento. da meméria- como um fendmeno social: estudara os “quadros soviais da memoria”, perseguindo a realidade inferpessoal das instituigdes sociais A relagio entre sociedade e memoria é muito forte om Halbwachs. E tio forte que, da mesma forma que em Durkheim. a “situagao atual” imprime, mesmo, o sentido e 0 ritmo da propria “evocacio”. Ou ja. € cesta forga social que interliga as “representacdes atuais” a um quadra preexisiente, Halbwachs atirma que: “Um dos defeitos mais graves da psicologia lassica £..) & que, limitande-se ao estudo do homem isolado, ela descuida-se de mutliiplos fatores que afetam externamente o individuo, fais como as institisgdes, ax costumes, as trocas de idéiay e sobretudo a Ungua que, desde a infincia, condicionc. ao longo de vida, sen entendimenty, seus semtimentos, sew comportamenio ¢ stias altitudes de madneira que seria inconcebivel para um individuo isolado (..) Uma realidade mental que ultrapassa as mmentalidades individuais, contribuindo para constituted tal é a naiureza essencial das representagoes coletivas’’. E neste principio que as ciéncias.sociais devem inspirar-se: a sociedade se compde de grupos ¢ ndo de individuos, Assim sendo, tem-se claro que as lembrangas, por mais que parecam ser individuais, na verdade sic o resultado das experiéncias vivenciadas por cada individuo, ao longo do tempo, em cada um dos lugares onde as tenha vivido, E dessa. massa: social, que esta continuamente a envolvé-lo e penetra-lo, que emanam as representagdes, as lembrancgas que. aparentemente. sio individuais. E dos grupos sociais, encarnacio do tempo presente. vivido pelo sujeite. que sc desencadeia curso da. memoria, Ea, partir dessa ‘insergao social (ou inserges socials), ¢ da situagdo presente que o ccvano da. memoria pode ser navegado. “O cardfer livre, esponténeo, quase ontrieo da memoria ¢, segundo Halbwachs, excepcional. 44 CE, Halbweachs citade por LALNO, Op.cit.17. Sacer Jan,/Dez,/1998/1999 33

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