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Memória e narrativa: O primo Basílio e os meios de comunicação – estudo de

um caso

Carlos Alberto CORREIA1

Introdução

Entre os tipos de experiências que marcam a vida dos indivíduos na atualidade, pode-se
dizer que a interação que estabelece com os diversos meios de comunicação é uma das mais
significativas. Com o advento dos meios eletrônicos no último século e a sua entrada na casa e nas
rotinas domésticas contribuem com que esses mecanismos passem a ocupar espaços
anteriormente destinados ao lazer, ao repouso diário, sendo também fontes de informação,
formação passando a ser registrados como formas de arquivos, memória e narrativas. Dentro dessa
perspectiva este trabalho caminhará na desarquivação e (re)estruturação da memória coletiva ou
individual promovida pelos meios de comunicação, perpassando por conceitos de tradição
estabelecidos por Borges e Souza. Dar-se-á atenção aos conceitos de Derrida a respeito de
arquivo, contemplando a destruição e aproveitamento desse material, assim como também
traçaremos paralelos entre memória e esquecimento caminhando na esteira de Hugo Achugar.
A recepção e a mediação serão fatores importantes a serem considerados em nosso estudo, pois
se sabe que o leitor acaba por interagir com esses os novos meios de comunicação tornando-os
parte dele. Por isso, alguns estudiosos como: Fiske, Canclini, Martín-Barbero solidificaram esse
trabalho.
A fim de amarrar nossa leitura, estabelecer-se-á paralelos entre produção audiovisual e literatura,
uma vez que os objetos de análise desse projeto concentram-se nesses suportes. O estudo
abarcará as adaptações feitas a partir de um clássico da literatura portuguesa – O primo Basílio –
de Eça de Queirós, pretendendo estudar o processo de adaptação do texto para a tela do cinema e
da televisão.
A linguagem audiovisual, pela qual, o telespectador vê/lê a história na tela ou na telinha, exige de
seu criador um exercício articulado de linguagens (verbais e não-verbais), considerando a
complexidade de signos e códigos que devem ser compartilhados para o “bem” contar uma história.
“Esse bem contar audiovisual” não significa apenas uma adaptação ou narração habilmente
estruturada e tramada; a história tem de ser mostrada em cenas esmeradas, com papéis bem
concebidos (e bem interpretados) que com o auxílio do cenógrafo, fotógrafo, compositor, montador
e todos os demais colaboradores que acrescentam seus talentos à forma final com que as imagens
e palavras do roteirista apareçam perante o espectador. Assim, quando se fala do formato
audiovisual, não pode deixar de pressupor todo o conjunto de linguagens e respectivos operadores
que se lançam à tarefa de construir um artefato artístico a que chamamos de narrativa audiovisual.
E, vinculado a este trabalho coletivo, está toda uma gama de leituras, experiências e olhares
criativos que incrementam e alimentam o caráter do sucesso, do “bem contar” no formato
audiovisual. Contemplando a relação de diálogos entre diferentes suportes, o ato de criar, o ato de
enunciar geram novas formas expressivas, possibilitando a criação de novos produtos. Seguindo os
conceitos da cultura midiática, a qual se apropria de vários mecanismos de informação, a
enunciação em um produto pode lhe proporcionar novo corpo e forma. È o caso dos muitos textos
que circundam o fluxo midiático, que partem de uma matriz, o livro, e a partir de sua forma de
enunciação, de criação, são reelaborados, adaptados em outros suportes, no caso o audiovisual,
transformando-se em um novo produto.

1
Mestrando PG/MEL/UFMS.
Esta definição é o ponto de partida que permite retirar os textos audiovisuais do terreno das
evidências, pois esses textos passam a ser visto como uma construção que, como tal, altera a
realidade através de uma articulação entre a imagem, a palavra, o som e o movimento. Os vários
elementos da confecção de um filme, de uma minissérie, tais como: a montagem, os planos, a
fotografia, o enquadramento, os movimentos de câmera, a iluminação são elementos estéticos que
formam a linguagem cinematográfica, conferindo-lhe um significado específico que transforma e
interpreta aquilo que foi recortado de um livro, ou do real. Segundo Nagamini (2004), adaptar um
texto é reinterpretar e redimensionar aspectos da narrativa a fim de adequá-la à linguagem do outro
veículo. Porém, um fator importante nesse processo é a geração de sentido que é atribuída a essa
nova produção, pois conseguem produzir conceitos através de memórias e esquecimento, por meio
de arquivos audiovisuais.

O primo Basílio – adaptações conservando a memória

Estamos no século XIX, em Portugal, mas especificamente em Lisboa. Tem-se um romance; Luisa,
uma jovem que se apaixona por seu primo. Ambos vivem um tórrido relacionamento, que por
questões financeiras é desfeito. A jovem casa-se, agora com um engenheiro, Jorge, que por sua
vez, a ama muito. Estão felizes, fazem planos. Jorge é convocado a trabalho para o Alantejo e a
jovem Luisa está sozinha. O primo, seu antigo amor a visita, a seduz. E os primos tornam-se
amantes. Encontros apimentados movimentam a vida desses jovens. Cartas, bilhetes, flores. A
empregada desconfiada confirma sua suspeita ao se apoderar de um bilhete dos amantes. A
chantagem começa. Ocorre a inversão de papéis, a empregada vira patroa e a patroa por sua vez
torna-se a serviçal. O marido retorna do Alantejo. O amante foge para Paris e a esposa sem
alternativas recorre a um amigo da família, Sebastião. O amigo arquiteta um plano, recupera as
cartas, a empregada morre. O marido descobre a traição, a esposa acuada e adoentada acaba
sucumbindo à morte.
O pano de fundo da narrativa de O primo Basílio é um caso de adultério. Já no primeiro capítulo, o
autor lança as sementes do conflito que dá pretexto para o livro. Descreve o marido que viaja,
contrariado; a esposa que descobre a chegada do ex-noivo e suas calorosas lembranças. Introduz a
narrativa uma empregada ressentida e frustrada, que odeia suas patroas e as culpa pela situação
miserável que lhe conferida. Personagens secundárias são acrescentadas a trama. A relação
amorosa clandestina mantida por Basílio e Luisa é descoberta, o conflito está posto, a jovem
traidora não suporta a tensão e morre. Mas tarde o amante, ao retornar a Portugal, descobre o
infortúnio: a morte da prima, o jovem apenas lamenta não ter trazido consigo a outra amante
francesa.
Este enredo pertencente ao Realismo-Naturalismo português do século XIX é a base estrutural para
duas adaptações audiovisuais produzidas no Brasil. Tem-se em “O primo Basílio” de Eça de
Queirós, a leitura fiel de uma crônica de costumes de época. Através de seu relato está conservada
a estrutura e segmentação da sociedade portuguesa desse período. Ao ler o romance pode-se
traçar um panorama da vida em sociedade desse tempo. A partir dessa perspectiva, este trabalho
passa a ler os escritos de Eça como registro de memórias, já que esses textos ilustram com
precisão a vida em Lisboa.
As relações entre memória e adaptação se intensificam nas produções audiovisuais d’O primo
Basílio, que fazem ressurgir através de um resgate cultural fatos e situações narradas em pleno
século XIX. Ao se tratar de memória, deve-se primeiro situar seu lugar, seu espaço, para tal este
estudo lança mão dos conceitos apontados por Achugar que articula a memória a sua noção de
discurso, pois para o crítico “entender o lugar da memória, como um espaço geocultural ou
simbólico não é suficiente se não se leva em conta a enunciação, e, sobretudo o horizonte

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ideológico, político a partir de onde se constrói a tal enunciação (p.180/181. 2006)”. Nesse espaço
que as adaptações contribuem para retificação de alguns posicionamentos sociais e culturais de seu
período de produção. Mas como essa memória se manifesta em uma adaptação? Qual é o seu
papel? O crítico Achugar atribui ao conceito de memória um leque de pareceres, dentre os quais, as
adaptações audiovisuais se encaixam, pois para ele:
O signo escrito no papel da página, pintado na tela dos quadros, gravado na pedra dos
monumentos ou digitalizados sobre a tela líquida do computador ou sobre o intangível
ciberespaço do presente midiático, parece ser entendido como memória mesma. Daqui,
a história oficial e o arquivo, a biblioteca e o museu nacional, rela ou virtual; dali, todas as
outras formas de sacralização e armazenamento da memória ritualizada pelo poder que
os seres humanos tem idealizado. (ACHUGAR, 2006. p.180)

A ligação entre o lugar da memória e a obra do escritor português é relevante, pois se deve pensar
que foi escrita no movimento Realista-Naturalista, que propunha moralizar através de seus escritos
a sociedade de leitores. Ao se referir ao Movimento Realismo português, o crítico Massaud Moisés
(2003), aponta para seguinte afirmação: “o romance passa a ser, no Realismo, obra de combate,
arma de ação transformadora da sociedade burguesa dos fins do século XIX. Torna-se instrumento
de ataque e demolição (p.189)”. Portanto, a literatura passa a ser um importante veículo de
denúncia social e arma transformadora de uma sociedade. O autor atribui à literatura a possibilidade
de escancarar os problemas e propor soluções, chegando a comparar os escritos deste período a
uma ferramenta cirúrgica: o bisturi. Para Massaud, a escrita deveria funcionar como veículo
denunciador, revelador dos problemas sociais, nesse ínterim que a comparação se estabelece-se,
pois é com o auxílio desse instrumento que o médico consegue perfurar o corpo e focalizar o
problema de um paciente. Nessa mesma perspectiva deveria funcionar um escrito literário, como
uma espécie instrumento que amplie a visão de quem o lê e possibilite um maior esclarecimento,
o bisturi ia diretamente á grande chaga social e expunha-a friamente, no intuito inicial e
principal de moralizar, reformar, pela revelação do erro. Dar-se-ia a Burguesia a
possibilidade de tomar consciência da situação e de encontrar saída honrosa para ela.
(MOISÉS, 2003, p.190).

Ao se falar em “O primo Basílio” podemos considerar a produção de três obras significativa: o


romance, a minissérie e o filme, entretanto cada produção usa seus próprios recursos. A linguagem
literária, por exemplo, é uma arte que trabalha essencialmente com recursos da imaginação, pois
depende principalmente do potencial de seu autor, na elaboração de sua narrativa, dos
personagens, das ações e tramas. Tem como apoio fundamental a figura de um leitor que com sua
capacidade de conectar-se a esse universo criativo acrescenta-lhe de maneira particular o seu
mundo e comunga desta linguagem com suas próprias experiências.
O produtor que trabalha com o audiovisual, além da linguagem verbal, escrita ou oral, dispõe de
outros meios de expressão, tais como a música e a imagem visual. Tem-se, portanto, o cinema e a
televisão que transforma palavras em imagens, a partir da visão de um roteirista, e da manipulação
do diretor, mantém uma atmosfera mágica, que se aproximando da literatura, por meio de um jogo,
concretizado por linguagens, que seduz, e envolve seu espectador.
Dentro dessa reflexão, trago a luz os escritos de Jorge Luiz Borges, ao referir-se a questões de
memória e arquivo. Proponho-se a comparar as adaptações audiovisuais e o romance como fonte
de arquivo que ao se desenrolar, ou desarquivar, trazem à tona questões, discussões e reflexões
sobre a memória do outro. Ressaltada as devidas proporções, Jorge Luis Borges (1999) em “A
memória de Shakespeare”, tece um jogo intrigante compreendendo algumas das relações
estabelecidas pelo jogo da memória. Dentro da perspectiva abordada pelo escritor argentino, a
memória é concebida como uma espécie de arquivo, onde ficam registrados os acontecimentos
referentes a tudo. A partir daí compara-se as produções audiovisuais e o romance que dialogam e

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reavivam a memória, pois todo vez que um leitor/telespectador fizer uso desse mecanismo estará
desarquivando, cultivando, retroalimentando aquela narrativa. Para Nagamini (2004), essa
afirmação se concretiza através do jogo estabelecido pelas adaptações, uma vez que adaptar um
texto é reinterpretar e redimensionar aspectos da narrativa a fim de adequá-la à linguagem do outro
veículo.
Portanto, tem-se no ato da adaptação a reescritura daquele texto que, às vezes, se utiliza de
recursos simbólicos, para propiciar significados e até (re)criar metonímias que conecte o romance à
adaptação audiovisual. Um exemplo clássico pode ser atribuído ao destaque que é dado pelo autor
aos sapatos de verniz de Basílio. O personagem Basílio de Brito tem registrado a marca do
janotismo e da superficialidade em seus sapatos: “o verniz dos seus sapatos resplandecia”,
“estendia sobre o tapete comodamente, os seus sapatos de verniz”, “fitou um momento seus
sapatos muito aguçados” (QUEIRÓS, p, 51/55). Na minissérie global o conceito de superficialidade
é mantido ao personagem. Em vários momentos, Basílio aparece exaltando o brilho e a beleza de
seus sapatos. Em uma das cenas, o personagem está localizado em frente á casa de Luisa, e em
um momento de destaque dobra seu joelho direito e esfrega o sapato na perna esquerda da calça, e
depois repete o gesto para o outro sapato mudando a perna. Esses gestos simbolizam a valorizam
dos sapatos por parte do personagem, portanto, trata-se de uma reacrição, já que muda o gesto,
mas permanece a ideia. No filme, essa superficialidade do personagem é retratada através de bens
materiais, no caso: o carro, hotel, as viagens, vestuário, adornos, tudo é ressaltado pelo
personagem com o objetivo de obter vantagem e demonstrar sua superioridade em relação aos
demais personagens.
Assim, as estratégias utilizadas por seus adaptadores tentam em maior ou em menor grau
estabelecer conexões com a obra original, tentando assim propiciar a adaptação audiovisual um
resgate da essência do texto adaptado. Dentro dessa reflexão, uma tela de cinema, uma cena
televisiva poderia ter o papel de reavivamento de uma cena memorável em um livro? Sobre esse
ponto de vista Silverstone, em seu livro: Por que estudar a mídia?(2002), estabelece relações entre
mídia e memória. Para o crítico, a relação existente entre essas duas esferas se baseia pela
experiência, pois “a textura da memória se entrelaça com a textura da experiência (p.237)”.
A experiência é um fator primordial também para Borges, porque é ela que irá conduzir e somar as
memórias de Shakespeare e seu leitor. Em “A memória de Shakespeare”, é um anel o mecanismo
possibilitador do resgate da memória shakespeareana. Seu portador ao desarquivar a memória
desse escritor acaba que a retificando, fazendo viva, estabelecendo conexões:
Perguntei-lhe:
– O senhor, agora, tem a memória de Shakespeare?
Thorpe respondeu:
– Tenho, ainda, duas memórias. A minha pessoal e a daquele Shakespeare que
parcialmente sou. Ou melhor, duas memórias me têm. Há uma zona em que se
confundem. Há um rosto de mulher que não sei a que século atribuir. (BORGES, Op. cit.)

A partir desse fragmento borgiano, pode-se observar que a memória não é um conjunto que se
realiza de forma individual. Ela se bifurca e se transforma. Tem-se nessa passagem a junção das
memórias do escritor inglês e as memórias do guardião do anel. Portanto, a experiência e as
recordações de ambos estão entrelaçadas, tornam-se unas. Caminhando nessa perspectiva
Achugar afirma existir dois articuladores principais que comandam esse jogo: a memória e o
esquecimento. Dentro dessa reflexão Borges parece dialogar com Achugar, já que a resposta de
seu personagem caminha ao encontro com o proposto pelo crítico:
“... não invente lembranças. O acaso pode favorecê-lo ou atrasá-lo, segundo seu misterioso
modo. À medida que eu vá esquecendo, o senhor recordará. Não lhe prometo um
prazo... (BORGES, Ibid.)

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Podemos, portanto estender as discussões para refletir o quanto somos atravessados por esses
objetos simbólicos que nos fazem recordar nossa memória, e a memória de outrem como afirmou
Borges em seu conto. Porém a discussão abarca para outro ponto, quanto carregamos de memória
audiovisual? Quanto de nós ou de nossas memórias não são construídas ou constituídas pelos
meios de comunicação? Assim, ao se ler em Borges, a metáfora do anel, ou seja, o uso de um
instrumento mágico capaz de propiciar o entendimento de outras linguagens, no caso do conto a
possibilidade de ouvir os pássaros, a linguagem audiovisual e as tecnologias também podem
contribuir para a formação de um individuo leitor. Nesse prisma Canclini (2008), ressalta a
contribuição das tecnologias, pois esse fenômeno é resultado “de um processo tecnológico de
convergência digital e da formação de hábitos culturais diferentes em leitores que, por sua vez, são
espectadores e internautas (p. 21)”.
Dentro dessa reflexão John Fiske em seu livro: Television Culture (1987) discuti a mediação e
intervenção dos meios de comunicação e novas tecnologias na formação do público leitor. Fiske
(1987) aponta que esse novo leitor criado por essas novas tecnologias quanto em contato com a
televisão ou produtos audiovisuais explora a polissemia desse veículo ativando em sua memória
outros textos, interligando-os em lugares distintos, lançando mão do conceito de intertextualidade, já
que essa teoria conclui que textos são lidos em sua(s) relação(es) com os outros, incluindo os de
formato audiovisual que se interagem e se interligam com os mais variados textos que coabitam o
fluxo midiático. Dentro dessa perpesctiva Balogh (2002) afirma que o telespectador/leitor precisa ser
muito competente para captar o rico tecido oferecido por esta intertextualidade antropofágica, que
deixa de ser apenas citação, mas a partir da deglutição passa a constituir a cerne de um processo
criativo.
Na sociedade moderna os meios de comunicação ocupam grande parte do cotidiano das pessoas.
A televisão é o meio de comunicação que adquiriu grande espaço neste território, não sendo
utilizada somente para o entretenimento, mas também para formação e até contato social. Muitas
das experiências sociais são mediadas por esses veículos que influenciam cada vez mais nossas
experiências e mediações. Sobre essa perspectiva Denílson Lopes se valendo de Bellour afirma
que:
A experiência se faz fluxo a ser narrado, compartilhado. Ao considerar o fluxo como
experiência ou falarmos em experiência multimídia, estamos num horizonte em que as
linguagens se cruzam e convergem tecnologicamente, tanto na produção quanto numa
recepção cada vez mais marcada pela simultaneidade de meios e sensações.
(BELLOUR apud LOPES, 2003, p.28).

Deste modo, pode-se perceber que o ato de narrar implica um uso afetivo, num contexto
indissociado do mercado, porém não deixa os fluxos aprisionados no lugar-comum e no clichê, joga
com esses elementos para uma elaboração com uma pluralidade semântica em diálogo com o
público transformado em autor. Assim ao assistirmos as adaptações do romance português
compartilhamos nossos conhecimentos e nossas experiências. A discussão estabelecida por Lopes
contribui para pensarmos as produções “d’O primo Basílio” como fonte de arquivo; uma das
possibilidades seria indagar sobre o que representa o ato de escrita e a conservação da memória
através da linguagem imagética. Derrida ao tratar das relações de um arquivo pontua que
Outra maneira de dizer o arquivo, como impressão, escritura, prótese ou técnica
hipomnésica em geral, não é somente o local de estocagem e de conservação de um
conteúdo arquivável passado, que existiria de qualquer jeito de tal maneira que, sem o
arquivo, acreditaríamos que aquilo aconteceu ou teria acontecido. O arquivo tanto produz
quanto registra o evento. È também nossa experiência política dos meios chamados de
informação. (DERRIDA, 2001. p.29)
Assim, como apontado antes, um processo importante na concepção de um arquivo é a experiência
do leitor, deve-se levar em consideração para a concepção desse arquivo visual a memória desse

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telespectador, ou seja, a memória do outro. Portanto, O contexto de recepção dessas produções é
um importante fator a ser considerado para sua desarquivação, uma vez que as experiências e as
leituras variadas efetivadas pelo espectador contribuem como afirmou Lopes para compreensão e
entendimento desses produtos. Este fato é importante, pois as adaptações d’O primo Basílio,
baseiam-se em um romance português, do século XIX, e o que permite o leitor dessa produção
entendê-la como produto simbólico é sua capacidade de desarquivação que é construída ao
relacionar essas adaptações com outros textos. Por isso temos a capacidade de reinterpretar signos
estrangeiros, já que o romance é português, e lhes atribuir novos valores. Derrida ao abordar as
relações sobre arquivo continua pontuando que
não se vive mais da mesma maneira aquilo que não se arquiva. O sentido arquivável se
deixa também, e antemão, co-determinar pela estrutura arquivante. Ele começa no
imprimente. (DERRIDA. Ibid. p. 30)

Os escritos de Queirós confirmam os pressupostos de Derrida, uma vez que o escritor vale-se em
seu processo de escritura de fatos do cotidiano para ilustrar as relações de determinado grupo
social da classe portuguesa do século XIX. Nesta passagem observa-se através das descrições de
cada personagem sua composição moral e social. Essas atribuições são atravessadas pelo olhar
desse escritor que já de antemão nos sugere o desenrolar de cada personagem na narrativa.
Aos domingos à noite havia em casa de Jorge uma pequena reunião, uma cavaqueira,
na sala, em redor do velho candeeiro de porcelana cor-de-rosa. Vinham apenas os
íntimos. “O Engenheiro”, como se dizia na rua, vivia muito ao seu canto, sem visitas.
Tomava-se chá, palrava-se. Era um pouco a estudante. Luísa fazia crochê, Jorge
cachimbava. O primeiro a chegar era Julião Zuzarte, um parente muito afastado de Jorge
e seu antigo condiscípulo nos primeiros anos da politécnica. Era um homem seco e
nervoso, [...] Às nove horas, ordinariamente, entrava D. Felicidade de Noronha. [...]
Falava- se nessa noite do Alentejo, de Évora e das suas riquezas, da capela dos ossos,
quando o Conselheiro entrou com o paletó no braço. [...] Houve um silêncio comovido, e
à porta uma voz fina disse: - Dão licença? – Oh, Ernestinho!... – exclamou Jorge. [...] –
Ora muito boas-noites – disse, à porta, uma voz grossa. Voltaram-se. Ó Sebastião! Ó Sr.
Sebastião! Ó Sebastiarrão! Ele era Sebastião, o grande Sebastião, o Sebastiarrão,
Sebastião tronco de árvore – o íntimo, o camarada, o inseparável de Jorge desde o latim,
na aula de frei Libório, aos paulistas. (QUEIRÓS, Eça. Op. cit., p. 32-48)

Neste sentido, o arquivo não seria um conjunto de enunciados mortos e findados, mas aquilo que
possibilita entrever o valor diferenciado pelo qual uma obra singular é comentada e julgada através
de tempos e de espaços distintos, quer seja por suas experiências, tradições ou por traduções
culturais. Por conseguinte como afirma Derrida “não há arquivo sem consignação, por isso, somos
lembrados que a lógica da repetição, e até mesmo a compulsão à repetição, é, segundo Freud,
indissociável da pulsão de morte, ou seja, da destruição (p.22/23)”. Consequentemente no
arquivamento só encontraremos aquilo que nos expõe a destruição, introduzindo a priori o
esquecimento e a arquiviolítica no coração do momento. Sobre esse prisma, o crítico nos diz que
essa pulsão tem a vocação silenciosa de queimar o arquivo e lavar a amnésia,
contradizendo assim o principio econômico do arquivo, tendendo arruinar o arquivo como
acumulação e capitalização da memória sobre algum suporte e em um lugar exterior.
(DERRIDA, Ibid. p.23)

Desse modo, nas adaptações audiovisuais não se deve priorizar o acúmulo de memória, pois na
verdade essa somatória não existe, o que realmente contribui para proliferação desse arquivo é a
sua destruição, ou melhor, sua (re)significação, uma vez que a pulsão de morte age de forma
silenciosa em sua destruição. Nesse viés, um conceito muito interessante vem á tona nos processos
de resignificação, a questão das mediações que passam a ser vistas como diversas possibilidades
interpretativas com as quais o receptor lida quando se apropria dos discursos da mídia ou

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audiovisual. Nesse sentido, os processos de mediações passam a significar os lugares que estão
inseridos entre a produção e a recepção. Segundo Martín-Barbero (2009) “Pensar a comunicação
sob a perspectiva das mediações significa entender que entre a produção e a recepção há um
espaço em que a cultura cotidiana se concretiza”
Portanto, as adaptações audiovisuais não registram apenas memórias coletivas ou individuais, ela
também cumpre um papel social, pois seus arquivos estão em constante destruição pelos seus
telespectadores que resignificam seus conteúdos. E ao se falar em arquivo devemos, pois,
considerar que os mesmos não são fixos nem cristalizados, pois ao passar pelo processo de
mediação os conteúdos apresentados pela linguagem audiovisual estabelece vínculos com seu
espectador e o seu presente, constituindo assim, a intertextualidade do sujeito na sua relação com o
mundo. Jauss, ao abordar questões sobre a recepção confirma essa vertente afirmando que
A obra não é um objeto que exista por si só, oferecendo a cada observador em cada
época um mesmo aspecto. Não se trata de um monumento a revelar monologicamente
seu ser atemporal. Ela é, antes, como uma partícula voltada para ressonância sempre
renovada da leitura. (JAUSS, 1994, p.25)

Sobre esse determinado assunto, Derrida confirma os posicionamentos apontados pelo trabalho e
discuti nesse patamar questões sobre as técnicas de arquivamento, porém o autor nos deixa ver,
por outra perspectiva a ampliação do pensamento de Jauss, quando aquele afirma que
Não se deve fechar os olhos pra revolução sem limites da técnica arquivística atual. Esta
revolução não determina mais, e nunca o terá feito, o momento único do registro
conservador, mas sim a instituição mesma do acontecimento arquivável. (DERRIDA, op.
cit., p. 29)

Assim, não pode entender as produções audiovisuais como mera reprodução ou arquivo único de
épocas e narrativas literárias, pois as mesmas estabelecem com seus espectadores pactos de
morte, constante pela presença infindável da pulsão de morte apontada por Derrida. Já que ao gerar
produção de sentidos esses interlocutores precisam recorrer sempre a seus recortes culturais como
apontou Kellner (2001) ao abordar a reconfiguração que os produtos midiáticos, incluindo nesse
caso as produções audiovisuais de “O primo Basílio” a noção de que todo obra dialoga com seu
contexto histórico-social produzindo assim novos valores simbólicos e de concepções
multiperspectivas.

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Referências bibliográficas

ABDALA JÚNIOR, Benjamin; PASCHOALIN, Maria Aparecida. História Social da Literatura


Portuguesa. 3. ed. São Paulo: Ática, 1985

ACHUGAR, Hugo. Planeta sem boca. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004

BELLINE, Ana Helena. ROTEIRO DE LEITURA: O primo Basílio de Eça de Queirós. São Paulo:
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DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo. Trad. De Claudia de Moraes rego. Rio de Janeiro: Relumbre
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GOMES, Márcia. Telenovelas, Aprendizagem de Conteúdos Sociais e Entretenimento. Estudos


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KELLNER, Douglas. A cultura da mídia: identidade e política entre o moderno e o pós-


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KLINGER, Diana Irene. Escritas de si, escritas do outro. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007.

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MATÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia.


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MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. 32ª ed. São Paulo. SP: Cultrix, 2003.

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SANTIAGO. Silviano. Eça, autor de Madame Bovary. In: Uma literatura nos trópicos: ensaios
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SOUZA, Eneida Maria de. Notas sobre a crítica biográfica. In: Crítica Cult. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 2002. p. 111/120.

Filmografia:
O PRIMO BASÍLIO. Direção: Daniel Filho. Roteiro: Gilberto Braga e Leonor Basséres. Rio de
Janeiro: Globo Marcas, 2007. 3 DVD (160 min.)

O PRIMO BASÍLIO. Direção: Daniel Filho. São Paulo: Buena Filme

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