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Ismail Xavier Sertaéo Mar Glauber Rocka e a estética de fome COSACNAIFY PROGRAMA INSTITUTOS LELAQUISIGAG TIENTO - CNP B 3 8 85 7 199 207 a 235 235 Apresentagio Introdugio carfroto 1 Barravento:alienagio versus identidade caPiruto 11 Contraponto 1: O pagador de promessas €as convengies do filme clissico capiroto mt Deus ¢ 0 diabo na terra do sol as figuras da revolugio capfruto 1 Contraponto 1: O cangaceiro, ou o bandido social como espetéculo, carituno ¥ Consideragdes sobre a estética da violéncia Posficio Leandro Saraiva Bibliografia geral Sobre o autor indice onoméstico 1s citados Ficha téenica dos filmes analisados (ter Roche sign Uo Sha] Gado Dl Rey em Dus data ra era do sok Apresentaciio ‘Meu intento neste livro, publicado originalmente em 198s, foi tratar de forma mais incsiva uma questao central na experiéneia do cinema novo: a da relagdo entre seu didlogo com a heranga modernistae os imperativos de uma militancia de efeito politico imediato na conjuntura dos anos 1960. ‘A demanda gerada pela insergo criativa na reflexio de longo prazo sobre a sociedade e a cultura brasileira era posta em correlagio com uma vontade de intervengao diretana vida pote, antes e mesmo depois do golpe militar de 1964, quando foi vivida em rermos distintos face ao periodo populisa ‘A retomada criativa do modernismo e a pedagogia politica forma- am, no entanto, uma equagio nem sempre bem resolvida, e 0 enorme saldo positivo do movimento muito deve & sua adogéo do principio de ‘awcoria que definiu — em nitida tensio com as cobrangas pela “corresio” do recado politico urgente ~a forma dos seus melhores filmes, ua estética. Neste sentido, meu propésito foi superar o cardter redutor e excessiva- mente ideolégico do debate em torno de Glauber Rocha, renovar a visiio dos seus filmes pela atenglo a forma, discutindo, em outros termos, 0 sentido politico de sua mise-en-scéne dentro de sua peculiar jungio entre oc olhar do documenrarista #0 cerimonial dos atores ~ gesto e palavra.! Era preciso assumir de modo mais radical o reiterado reconheci~ mento do que sempre houve de figurativo em seu cinema, de religioso em 1. Quanto a esa tenso enteespagoaberto « mie-anicinetetaizant,entendida como central no estilo de Glauber, ver Ismail Xavier, "Glauber Rocha edi de Phisoir”, in Paulo Paranagus (org), Le Cinéma bd, 1987, 9p. 145-4: Text include no livre de Ismail Navie,Ocinama Brae moderna, 3008, sua “critica da slienagdo”, de contraditério em sua riquissima encenasio da histéria, Expor 0 modo como o conflito entre distintas temporalida- des ganhava expressio na trama e no estilo, desestabilizando a critica da religido presente em seus filmes realizados antes do golpe de 1964. Dai o meu empenho em ressaltar 0 que ha de cireula: e magico no movimento que impulsiona Barravento [1961-62], € 0 que estéimplicado na alegoria da cexperanga de Deus eo diabo na tera do sol (1963-64), filme que oferece um ‘exemplo notavel de composicio do “realismo figural” tao bem explicado por Erich Auerbach em seu clissico Mimesis. Foi o ensaistaalemio que me ajudou a entender como conviviam, no plano da forma artstca, o Glauber Ikitor de Marx ¢ 0 Glauber leitor da Biblia, e de que modo o dilaceramento proprio & alegoria moderna se instalava no que parecia ser uma pedagogia feta de certezas. Procurei mostrar, na leitura do filme, sua condigio de obra- sintese capaz de tornar visivel,e artculada, uma concepglo messianica da Revoluglo muito presente na esquerda latino-americana dos anos 6o. Naquela conjuntura, Glauber encarnava o intelectual militante, com uma sensibilidade peculiar, mas era também o zineasta em clarissima sin- toni com a reflexio sobre cinema moderno realzada nos grandes foruns da época. Isto se evidencia em seus filmes e textos, mas de modos distintos, pois vale lembrar que a palavra do cineasta nfo se projeta de forma autom- tica nos filmes. Estes ndo so apenas produtos da vontade eda ida; sofrem inflexdes vindas das circunstincias e abrigam conflitos, mais ou menos declarados, numa travessia que pode estar cheia de atropelos, como aconte- eu com Barravento, Neste sentido, a andlise imanente no apenas esclarece a estrutura eos sentidos nela implicados, mas também especifica, com mais rigor, as perguntas que devem orientar uma pesquisa voltada para a géne- se de obra, ou sea, para 0 processo de eriaglo ede produgio material do filme. Tal pesquisa jd encontrow urna formulagdo mais sistemética no caso de Deus €0 diabo, em especial no trabalho recence de Josette Monzani, que analisa as varias versdes do roteiro escrito por Glauber ao longo de anos.* 1. Ver Erich Avetboch, Miers 1943. [Ed. brass Mina « presenti de ralidade na ratara ident, 199) 4. Ver Jonette Montani, Génie de Des odio meters dow, 2006, Em contrapartda, embora motivo de muitas observagies que ofereceram ‘dado de um conflito jé conhecido em seu contorno mais geral, a hist6ria de Barravento requer um exame do roteiro de Luis Paulino dos Santos e ‘uma ampliagdo dos dados referentes produgio das imagens, trabalho que esté por ser feito de modo mais rigoroso, Tal eritca genética traria grande contribuigao para o estudo do filme, nio porque aterasse a ordem das ima~ sens que de fato esto ld a exibir a forma criada pela montagem, tal como caracterizei em minha leitura, mas porque especificaria melhor 0 processo que gerou as contradigdes que aponteino filme assinado por Glauber. ‘Uma observagio sobre aandlise aqui feta. Nao se trata de solar os fl- mes e descartar outras interveng6es do cineasta, como as entrevistas, 0s rmanifestos. as declaragdes, Estes sio documentos importantes. No entanto, rio detém a verdade da obra. Confundir a intengio do autor com o sentido efetivo produzido peas imagens e sons écair na “faliciaintencional”, para usar a expressdo do eritico norte-americano William K. Wimsatt Jr! A tarefa da critica muitas vezes envolve o gesto fundamental de apontar a diferenga entre projeto, intenglo e realizagio, pois € a obra que cria 0 autor, ¢ ndo 0 contrério. Cineasta-autor proclamado, Glau- ber se instalou no coragio desta problem: exemplar. Em seus filmes, o cardter heterdclito da enunciagio no cinema a expressou de maneira ‘ver a primeiro plano, pois ele soube inventar formas originais de arti- cular as bandas de som e de imagem, ora incorporando tracos da cultura popular, ora do teatro moderno ou da tradiglo literavia, sem elidir 0 seu didlogo intenso com o cinema de autor europeu que lhe era contemporé ‘neo, ou mesmo com o western dos anos 1950.” O seu cinema nao é cordel, 4. Ver William K. Winsat J. 8¢ Monroe C. Beardsley, “The Intentional Fallacy”. Somence Reriew, v.54 1946, Pp 468-38. Republicado in The Verbal la: Sandie nthe Meaning of oar, 1954 ‘5 Observe alguns tags deste dilogo com o wuz, mas nio expeciiquel alge fundamen ‘a No comentrio a filme, seqhénca por sqldacia, qu integra 0 bv0 de Deu 0 diab, estaeo onto eco da figura de Ethan, de Reso dea [The Stackers, John Ford 1936), n8 composigio de Antdnio das Mores como o parti do fasta, porém reitade. © personae {rm inerpretado por John Wayne, como Antini, éa figura do saber do enigma que faz taba de repress /beraglo dos demas, mas no tem hr na futuro da comunidad sta & uma conextosignifcaiva que no tematze neste io, Vale aqui repro. nem mito de fundagao, #0 ponto de gerenciamento dos confitos entre 6 virios eanais de expressio, confitos que os cineastas de sua geragio tornaram evidentes 20 questionar o imperativo de que uma tinica voz deve orquestrar tudo num flme, levando a exitica a mobilizar as noses de Mikhail Bakhtin para descrever as novas regras do jogo. No easo de Glauber, oessencial era mostrar de que modo o feitio das miscaras é tio importante quanto o teor das agbes priticas e como a dimensio mégica se tece junto com a idéia de determinagio material-hist6rica. Na primeira ediedo desce livro procurei condensar a introdugao e as justificativas de praxe quanto aos procedimentos da andlise, pois julguei que esta devia, por si mesma, fazer-se expresso do quadro conceitual de referéncia, Em contrapartie, vejo agora que, em algumas passagens dos capitulos de contraponto, fui pedagégico, talvez em excesso, nas obser ‘vagGes sobre o cinema cléssico e seu regime de autoridade. Minha tona- lidade seria hoje distinta, dada a ampla disseminacio de variadas formas de cotejo entre o cléssico € 0 moderno, ou entre o cinema de género € 0 cinema de autor. Naquele momento, o desafio maior era definir 0s termos de um capitulo brasileiro do cinema moderno em seu momento de grande impulsio e caracterizar a originalidade de Glauber na articu- lagio do estético e do politico, Sua obra exibe tensies reveladoras num estilo que procurei aprender em detalhe, tinica maneira de esclarecer as formas do tempo trazidas & cena nos seus primeiros filmes, nesses rituais instituidos no ponto de intersecgo entre mito e hist6ria ‘Auuavessundo espagos emblematicos, seu cinema procurou dialo- gar eriticamente com as grandes formas da meméria social e do ima- inirio popular para alcangar uma representacio apta a superar o que cle entendia como limitagdes do teatro psicolégico burgués. Seu ceri= ‘monial, tenso e descontinuo na montagem, compée, a cada passo, um dueto entre a cimera e os atores que ora incorpora o impulso épico de Bertolt Brecht, ora a intensidice do gesto prépria zo teatro da crueldade, de Antonin Artaud, Marcado por um impulso de contradigio, Glauber teceu em suas ‘imagens um drama barroco que, no sentido proposto por Walter Benja- smin, 86 se explicitou com maior clareza na estrutura eno estilo de Terra em erase {1967}. ste filme trazia uma reflexdo exasperada diante do que © cineasta entendia como um reiterado adiamento bem proprio & hists- ria truncada de uma naglo a construir, uma nagio-problema,talvez uma rmiragem, de qualquer modo um hipotético ponto furnro que em Deus ¢ 0 diabo [1963-64], havia pensado numa tonalidade distinta.* Na cena {que configurow no sertdo, a questio central nao era a crise de um projeto, ‘masa forma peculiar de Glauber compor uma teleologia — ada formagio nacional —que tem seu parentesco com outros exemplos de narrativas de fiandagdo, mas exibe ntida diferenca. O seu ponto essencial é 0 reconheci- mento de que tal formagio nao se completou, é da oxdem ds profecia, Tal diferenge se esclarece quando se toma como referéncia 0 western, ‘ou mesmo a representagao da hist6rla universal feita por outro cineas- ta leitor da Biblia: o David W. Griffith de Muolerncia [/nlerance, 1916}. Hollywood pensava o processo de formago nacional como um percurso consolidado e fazia do recuo 20 passado um momento de reflexio sobre 08 valores que deviam ser reafirmados no presente; era um ato de cele- bragio da virtude dos herdis que haviam sancionado, pelas armas, o prin- cipio da boa ordem expresso na le escrita. A procura da justiga, como. ppremissa maior da jornada alegérica das personagens de Glauber, é um. movimento que se repde a cada passo; no entanto, porque incompleto, tal movimento nio dé ensejo para a celebragio de uma totalidade ja consti- tuida, Pelo contrério, o passado e a violéncia slo objeto de uma reflexio tensa, dramitica, que se volta para herdis marcados pela ambivaléncia, ou ‘melhor, para uma ligio da histéria marcada pela ambivalénecia ‘Ao compor sua representagio a partir de tais premissas, a inovagio formal de Glauber traz a primeiro plano a descontinuidade; sua alego~ ria compe movimentos que afirmam avangos, mas no encontram um ponto seguro de apoio que permita a pedagogia serena do ritual civico da indistria cultural, seja a do western classico, seja a da novela de 1 contemporinea. Pelo contrario, os seus filmes compéem os tragos tipi- cos do dilaceramento da consciéncia moderna que ganhou expressio (6, Vermeu comentisio sabre a miragem da nago- sustain Alegre do subdesemovimeno nema now, topical, cinema marginal, 1993, 9.19915 cinematogréfica mais nitida nos anos 1960, em muitos paises. Deste ‘modo, ele se insere no conjunto de experiéncias de renovagio do cinema que aleangaram, naquele momento, um diélogo mais conseqiiente com a arte de seu tempo. Neste particular, hé neste processo uma outra inver- so no menos decisiva: no plano estético, o cinema de Glauber integra = juntamente com outros filmes do cinema novo e obras-primas da Amé- rica Latina, como Memérias do subdesenvolvimento [Memorias del subde- sarrollo, 1968], de Tomés Gutierrez. Aléa~ o elenco de filmes que veio «questionar o preconceito subjacente a uma teleologia que supée ser tare- {fa dos paises centrais (Estados Unidos e nagées européias) produzir as cexperigncias artisticas de ponta, enquanto caberia aos paises periféricos apenas trazer ao mundo da literatura e do cinema o suplemento de um contetido politico concentrado na temética nacional das obras.’ Recu- sando tal premissa, Glauber fer da invencio de estilo a condigdo para a suia intervengdo no debate politico, Definiu, nesta escolha, a forga maior de seu cinema, uma pega-chave no processo cultural que se desdobrow ‘no tropicalismo ¢ em outras experigncias de vanguarda dos anos 1970. © essencial, quando empreendi este estudo, era evidenciar 0 seu trabalho notavel de formalizacio, capaz de recolher o conflito de vozes de toda uma época, fazendo a ponte entre 0 cinema dos anos 1960 € 0 ‘movimento maior que envolve os caminhos do modernismo no periodo posterior & Segunda Guerra Mundial Ismail Xavier, juno de 2007 1 Tal remiss & mas feqjente e essen do que parece, marcendo até mesmo textos de randeoriginalidadee interes exits por autores a quetn dase pode nega agua conte nciapolitice, como Feed meson, Ver seu ens "Thiré Worl Literature inthe Era ‘of Mulknational Capitalism”, Soil Txt. 15, 068. 1986. Introdugao Da fome. A estética. A preposigio “da”, 20 contrario da preposiséo “sobre”, marea a diferenga: a fome nao se define como tema, abjeto do qual se fala. Ela se instala na propria forma do dizer, na propria textura das obras. Abordar 0 cinema novo do inicio dos anos 60 é tra~ balhar essa metifora que permite nomear um estilo de fazer cinema. Um estilo que procura redefinie a relagio do cineasta brasileiro com. a caréncia de recursos, invertendo posigdes diante das exigéncias _materiais e as convengdes de linguagem proprias do modelo industrial dominante. A caréncia deixa de ser obstaculo e passa a ser assumida como fator constituince da obra, elemento que informa a sua estrutura do qual se extrai a forga da expressio, num estratagema capaz de cevitar a simples constatagdo passiva “somos subdesenvolvidos” ou © mascaramento promovido pela imitagéo do modelo imposto que, a0 avesso, diz de novo “somos subdesenvolvidos”. A estética da fome faz da fraqueza a sua forga, transforma em lance de linguagem 0 que até entio € dado téenico. Coloca em suspenso a escala de valores dada, interroga, questiona a realidade do subdesenvolvimento a partir de sua prépria pratica, Neste trabalho, minha atenglo se concentrou nesse estilo de fazer cinema. O objetivo era caracterizé-lo a partir dos filmes, examinados com paciéncia; fazer comparagbes, revelar as implicagdes de certas cescolhas, Esta é a razdo pela qual falei de poucos filmes ¢ me concentrei ‘num 36 autor. Tudo aqui gira em torno da anilise e interpretagao dos filmes de Glauber Rocha realizados antes do golpe de 1964: Barravento [1961-62] e Deus ¢ 0 diabo na tera do sol [1963-64], 5 Como assumo que a melhor analise & aquela que entiquece a per- cepsio das diferengas, dos conflitos, da miinua negaclo existente entre estilo alrenativos, organizei o trabalho na base do ponto-contraponto, Para caracterizar o que o cinema de Glauber é em 1962-64, falo tam bém do que ele no é, marcando os pontos de transformagao, Para iso, tomei exemplos que julgo bastante representativos do cinema nlo-novo beasileiro: dois cléssicos, filmes consagrados que até possuem a curiosa peculiaridade de preceder o cinema de Glauber na esfera da repucago internacional e dos prémios: O pagador de promescas [1962], dirigido por Anselmo Duarte, e O cangaceiro (1953), por Lima Barreto. Um dado fan- damental nao pode ser esquecido: meu olhar sobre 0s filmes de Glauber mais interrogativo; sobre os contrapentos é mais diditico, tendendo 3 sublinhar neles os tragos que tém maior rendimento na comparacio. "Nese sentido, funcionam mais como espelhos, como funndo sobre o qual se torna mais visivel a forma que me interessa caracterizar e discuti. No meu trajeto, procurei dar a palavra ao einema, imagem e som. No entanto, nesse observat, o que bate na tela nio podia pretender com- pleta inocéne - Muita coisa do contexto se fer presente como parte do ‘meu instrumental. Nao fai eu quem escolheu com liberdade alguns dos problemas aqui discutidos, pois eada filme tinha associado a si uma critica que jd havia selecionado certos temas. Meu débito & flagrante para com tudo e com todos que interceptaram meu debate direto com 03 filmes. Sejam os manifestos do proprio Glauber, a critica da época do langamento dos filmes, a reflexio ensaistica de Luis Carlos Maciel, Zulmira Ribeiro Tavares, Paulo Petdigao e Raquel Gerber, para citar alguns exemplos. Seja, em especial o livro de Jean-Claude Bernardes, Brasil em tempo de cinema (1967), que foi pega de constante didlogo 20 longo do texto, mesmo quando nao nomeado. Diante das leituras j fetas, inssti em ver e ouvir, favorecido que ¢stava pelo intervalo de tempo entre produgSo (1962-64) eleitura (1979). 2 Nese an, fo regis arte apresentada i Faculdade de Filosofia, Letras € Ciéncias "Humanas da Universidade de Sto Paulo (us, sob orientago do peo. Antonio Candide ‘de Mello Souza, que acompaniou o trabalho apés a mons de Paulo Emilio Sales Gomes. > Na raiz da minha insisténciaestava a conviego da necessidade de retomar as interpretagDes e discutir os temas mais amplos da estética e da politica dos anos 60 a partir de um contato mais euidadoso com as obras. Sabemos que Glauber Rocha, como outros artistas naquela década, trazia consigo o imperativo da participagdo no processo politico-social, assumindo inteiramente 0 cardter ideolégico do seu trabalho ~ ideol6- ‘gico em sentido forte, de pensamento interessado e vinculado & luta de classes. Afirmava entio o desejo de conscientizar o povo, a intengio de revelar os mecanismos de exploracao do trabalho inerentes & estruta- +a do pais ¢ a vontade de contribuir para a construgao de uma cultura nacional-popular;linhas de fora que se manifestavam no cinema, na riisica, no teatro. Era a forma especifica encontrada por artistas bra- sileiros para expressar 0 seu compromisso histérico e sew alinhamento com as forgas empenhadas na transformagéo da sociedade. Diante daquela atmosfera de engajamento, meu propésito foi iden- tticar como, nos filmes analisados, as caracteristicas de imagem e som +e poem como respostas a demandas que vém da esfera do politico e do social, e como também elementos de outra natureza entram no jogo que constitu a obra. ‘Tea chnce ded com Mis i vo Jot Aland Babs, Lig Chap iMate, dro Pt Cai ee Clade Berar que oe a imodigts pouring pars lr angi ex rouge penn tle No sy see oom de miu nies cps de capt et tins deus ego gue om a0 cnt. Nov pd ends Cl ve nen qu ine cn ees ign deo dios nover avi mete arts Clo ao ao mine doe Hoc fi poten Se Mar lar fc tres he a pain remain qu age omen doe estar ‘hen cm cpus om pda cenaogefe cm oul tem sry n> a ive, fare om ra 9676 ponte prado deum paso we i Sime bras q nero de modo daa no proce clos dvd + elo do oie enon dor os Cada filme define um modo particular de organizar a experiéncia em discurso, sendo um produto de miiltiplas determinagées. £ comum se dizer que sio redutoras as andlises que reconhecem no filme apenas aquilo que esti na ideologia formulada nos manifestos ou nas entre- vvistas do autor. E 0 mesmo é dito das analises que, partindo do filme, saltam com certa pressa de um resumo do enredo para a caracterizagio da mensagem da obra ou da ideologia do autor. Fala-se de associa- gio mecit ‘a, que nio leva em conta ax mediagtes do processo de representagio. Ou seja, 0 modo pelo qual se conta a estria, os meios 4 disposicdo do autor, as limitagbes impostas pelo veiculo usado, as convengdes de linguagem aceitas ou recusadas, a inscriglo ou no em determinado género. Meu objetivo era justamente levar em conta as mediagdes. Para esclarecer como procurei fazé-lo, comento aqui 0 referencial utilizado na lida com o especifco, a0 cinema ou & narrativa como forma geral de representagio. No percurso que vai da textura do filme & interpretagio, procurei cescolher uma categoria descritiva, um aspecto da elaboragao do filme que servisse de baliza para marcar identidades e rupturas. Ao teabalhar com elementos como decupagem, camera na mio, faux raccord, descon- tinuidade, campo-contracampo e som off, organizei a an de uma questio: a do ponto de vista do narrador, Em outros termos, preocupei-me com o “foco narrativo” (foco no sentido de ponto de onde emana, fonte de propagagio): sua caracterizagio nos diferentes filmes ¢ os significados sugeridos pelo comportamento do narrador em cada caso, Perguntei sempre: Como se conta a estoria? Por que os fatos so dispostos deste ou daquele modo? © que esti implicado na escolha de um certo plano ou movimento de edmera? Por que este enquadra- mento aqui, aquela miisiea a? em torno, Na busca de respostas, procurei reduzi 20 minimo 0 apelo a con- ceitos gerais. Nesta introdugdo sinto apenas necesséria uma observagio «a respeito da nogio de narrador, embora o proprio texto deixe claro 0 seu sentido neste trabalho. Para evitar equivoeos, é preciso nio confun- dir figura do narrador, que pertence & obra, e é elemento a ela inter- no, coma figura do autor, sujeito empirico responsiivel pela produgao 6 da obra, seja uma pessoa ou um complexo industrial, elemento exterior 8 obra. Autor e narrador pertencem @ mundos distintos. Este é figura imagindria tanto quanto as personagens e oatros elementos ligados & ficgdo. Isto fica bem nitido quando explicitamente uma das personagens da estéria € a propria figura mediadora que nos dé a conhecer 0 mundo imaginario que emana de palavras impressas ou de imagem-som na sala escura. Machado de Assis, quando esereveu Dom Casmurro, escolhew fazer de Bentinho narrador da catéria c, nessa cscolha, fez de uma personagem envolvida na ficgio (que tem rome, feigies e comporta~ ‘mento dentro dela) a figura mediadora. No entanto, mesmo quando “na rmoita”, escondido, o narrador pode ser caracterizado e, da mesma for~ rma, ndo se confunde com o autor. Seja qual for 0 processo pelo qual se conta a estéria, 0 narrador é figura logicamente necesséria, mediago pressuposta, em verdade invengao decisiva dos responsiveis pela obra, Invenio como outras e que ocupa Iugar fundamental na organizagao do filme, conto ou romance. No cinema corrente, ¢ em certa literatura naturalist, a figura do narrador se esconde por trés do seu préprio ato, o qual ele executa com certos cuidados. Nao é palpvel, nao tem rosto, nem nos deixa nehum outro trago que ndo seja 0 ato mesmo de narrar. Pelos cuidados que toma, acaba por provocar em nés uma relago muito particular com a Fiegdo, tal como se esta se desenvolvesse por si mesma e a mediasio no existisse, tal como se estivéssemos diante de algo tao autdnomo quan- to certos acontecimentos de nosso cotidiano. Mas, sabernos, li no fun~ do, que estamos diante de um jogo de linguagem, de um faz-de-conta com o qual desenvolvemos uma relagio toda especial e que resulta de uma cumplicidade sutil que envolve a todos. Afinal, o jogo da fiesio implica varias metamorfoses, nos dois extremos do processa: prog consumo, A do préprio autor, que se transforma em alguém ou numa entidade que acredita no que conta como se houvesse visto ou estivesse vendo, testemunhando, ¢ esté empenhado em manter o encanto frente 08 ouvintes ow espectadores; estes, por sua ver, tém a sua metamorfo~ se, pois se transformam em entes capazes de “suspender 0 descrédito”, para usar a expresso de Samuel T. Coleridge, e accitar a autenticidade 7 os eventos os mais maravilhosos ou prosaicos, de modo a completar © cireuito de cumplicidades necessério 20 faz-de-conta. O narrador essa figura mediadora que resulta da metamorfose do autor, ou da sua invengao, como diriam alguns, ou da linguagem de seu trabalho, como diriam outros. Num processo inverso, mas de estatuto semelhan- te, como espectadores, acionamos quem ou 0 que dentro de nés esté isposto a se envolver no jogo porque precisa da ficgdo, a deseja. Para ilustrar, lembremos 0 exemplo de metamorfose dado por Wolfgang ‘Kayser: a mie ou o pai, ao narrar um conto de fadas, abandona a atitude de adulto para se transformar em alguém que acredita no universo ima- ginério que a sua prépria encenagto eaté eriando. H& muita coisa séria implicada nesse jogo que, no momento, des- ‘crevo apenas esquematicamente, Fixemos apenas a idéia de que, nessa simulacao geral, seria ingénuo atribuie diretamente ao autor aquilo que € proprio ao narrador que ele inventa. Se hi algo a “cobrar" de cineas- tas € escritores, é0 sentido de suas invengdes —incluido 0 narrador ~ no conjunto de relagdes internas a obra, relagdes que definem a contribui- io de cada aspecto para as significagées do filme ou do romance. Em cada caso, 0 nartador tem certas capacidades e saberes, mas trabalha dentro de certos limites. No cinema, as mediagdes que me levam a fiegao so complexas, envolvendo todos os recursos de elabo- ragio da imagem e do som. Examinar o trabalho do narrador & mergu- har dentro do filme para ver como imagem e som se constituem, numa anélise imanente que, ao caracterizar os movimentos internos da obra, oferece instrumentos para discussdes de outra ordem, particularmente aquelas que nos levam a0 contexto da producto do filme e sua relagio com a sociedade. Nessa ordem de idéias, meu estudo dos filmes de Glauber Rocha procura percorrer os meandros da aividade do natrador, investigar em detalhe como a mediaglo opera. S20 os proprios filmes que permitem ccaracterizé-a. Seja qual foro tipo de producio, independentemente das intengOes de 4 ou », posso examinar os filmes e falar da postura da nat ragdo, de seus critério, de seu saber, de sua logica. A obra de ficglo & a invengao de uma estéria ¢, a0 mesmo tempo, de um modo de narré-la, 8 Neste trabalho, a andlise de diferentes modos de narrar se artcula a consideragdes tematicas particulares, em especial a relagio entre o estilo dos filmes e as formas de representacio préprias & cultura popular. Ou, ‘mais precisamente, a perspectiva segundo a qual os filmes incorporam. za sua representagdo determinadas formas de conscigncia. A partir de anilise centrada na questio do “foco narrativo”, tento responder as perguntas: Quais as implicagdes de certo aspecto formal no plano da significagio? Como se concebem os movimentos da consciéncia de seg ‘mentos especificos — camponeses, pescadores de uma comunidade de origem africana — no interior de uma visio global do processo his- ‘rico? Que estaruto ganha a religido do oprimido? De que forma, em suma, 0 cinema de Glauber encontra seu lugar entre o circulo da lenda 0 vetor da historia? Capitulo 1 BARRAVENTO: ALIENAGRO VERSUS IDENTIDADE Barravento: lienagdo versus identidade Aalicnago come parimetro:retomando a questo Logo no inicio da projegio, o lerreiro que introduz Barravento & contun- dente na indicagio de leitura: No litoral da Bahia viver os nagras puxadores de ‘ward’ ewjos antepas~ sados vieram escravos da Affica. Permanecem até hoje os ultos aos deeser afticanos¢ too esse povo & dominado por um mistieismo tndgico¢ faralista, Accicam a mivria, o analfabetismo 2 a explorasdo com a passividade carac- teritca dagusles que esperam o reino dvino, ‘lemanja &a rainka das éguas, «0 etha mae de rect, senkorado mar gue ara, guard «castiga o pscadsres ‘Barravento’ é0 momento de violénca, quando as coisas da terrae mar se transformam, quando no amer, na vide ¢ no meio social ocorrem siieas ‘mudangas. Tados os personogens apresentades neste fle no tm relogio com pesioas vives ou morta ¢ isto seré apenas mera coincidénca, Os fatos contudo existem, Barravento foi realiado numa aldeia de pescadores na praia de Buraguinko, alguns guilémetros depois de Itapoan, Bahia. Os pro~ dures agradecem & prefitura municipal de Salvador, ao governo da Behia, «0s proprisirios de Buraguinko ea todos agueles que trnaram posstveis as flmagens, prncipalmente aos pescadores, a quem este filme & dedicade ‘As declarages de muitos criticos ea propria posigdo de Glauber Rocha na época da realizagao do filme nos sugerem uma interpretagio de Barravento que se alinha aos termos do letreiro inicial: 4 Em Barravento enconiramas 0 inicio de um génere, 0 filme negro’ como Trigucirinko Neto, em Bahia de Todos os Santos, deseji um filme de rup- sura formal como objeto de wm discurso eitico sobre a miséria das pescadores negros¢ sua passividade mistica.! Assim dizia Glauber em 1963, no Revisdo ertisa do cinema brasileir, Luis Carlos Maciel, por sua ve, observa: Barravento revela« preocupasao fiadamental de Glauber com a alienagao religiosa do povo brasileiro. Nelo a erengas religinsas dos pescadores de wna praia da Bahia s20 0 grande obsedculo para a luta de libertagio do jugo eco- émico a que extao submerides. Sao as erengas que impedem a rebeliao, Sao las gue impedem a humanizagio? Barthélémy Amengual, em 1973, diz: Ainda em 1962, 0 cinema politico tem idéias simples eclaras:o Bem é a rete, a solidariedade, a conscincia de clases 0 mal éa iracional, a religio, a a isd, resignagao, Barravento termina com a imagem de um farolerigide como simbolo politico: lug poder e jusiga prometidas aos trabathadores se les se consciensizarem de sua forga ede sua unidade? Em 1977, a0 tentar a descrigio de um percurso do cinema novo frente is formas de representagao popular, eu trazia uma hipétese que carninhava nna mesma direglo: a década de 60, no seu conjunto, corresponderia a0 momento do que se poderia chamar “critica dialética” da cultura popu- lar, marcada pela presenga da categoria da alienagio no centro de sua abordagem da consciéncia das classes dominadas; a década de 70 corres- ponderia a um gradativo deslocamento pelo esforgo de “compreensao 1 Glauber Rocha, Reid erica do cinema Brasil 1963] 200). bo. + Luis Carlos Maciel, “Diaétia da violencia" in Glauber Rocha al, Deus eo dado no tera do sol 195, p20. 5. Darhélémy Amengua, “Glauber Rocha eos caminhos da isesdade”, in Raquel Getber (org), Glaber Roch, [1975] 1979. 8-99 24 antropol6gica”, tornada possivel através de um recuo do cineasta, que resolve por entre parénteses seus valores ~ em alguns casos, a visio arxista do processo social e da ideologia ~ e renuncia a idéia da reli- siosidade popular como alienagio. Abre-se espago para uma politica de adesio que privilegia, nas representagbes dadas, uma positividade quase absoluta, que as torna intocdveis porque testemunho da resisténcia cul- tural frente & dominagio e afirmagao essencial de identidade. Barravento € Deus ¢ 0 diabo na terra do sol seriam dignos repre- sentantes da década de 60, Nessa esquematizagio, despontavam como exemplos claros da critica & alienagio pelo misticismo. EO dragao da maldade contra 0 santo guerreiro (1969] era apontado como ponto de inflexdo, no caso particular de Glauber. © panorama era mais amplo « localizava o termo final dessa tendéncia & adesao ao popular na pro- posta de Nelson Pereira dos Santos, crstalizada em O amuleto de Ogum [1973-74] (sua versio mais feliz) e Tenda dos milagres [1977] (versio. caricatural e doutrindra). ‘Ao analisar com mais cuidado o filme Barravento, percebi o quanto a Jeitura marcada pelo contetdo de critica & alienagao religiosa era seletiva, podendo apenas dar conta de certos aspectos do enredo e de uma parcela dos didlogos, minimizando os problemas colocados pela composigio da ‘imagem. Ficou clara a presenca de um estilo de montagem que, associado uma utlizaglo particular da cdmera ea uma movimentagio coreogeitica dias figuras humanas, estabelece relagdes de tal natureza que esta interpre- taco 6 posta em xeque. Ela nfo dé conta do filme em sua complexidade de percursos e deixa de lado elementos cuja presenga, nlo apenas episédi- «a, € recorrente a0 longo do filme. Feita essa constatagio, tornou-se dificil assumir Barravento como um discurso univoco sobre a alienagio dos pes- cadores em sua miséria e reduzir os elementos de estilo a expresses do temperamento do cineasta cuja relevancia seria menor ou quase nula nas consideragdes sobre a sua significag3o social e politica. Estabelecida uma dlitegio de lerara que procura integrar, em pé de igualdade, como fonte de significagdes os diversos procedimentos presentes no filme, procuro aqui retomar a anise evitando 0 preconceito que opde a0 “eixo” do diseurso, via de regra o enredo, os “ornamentos” 35 Recusando essa hierarquizagdo, que deprecia justamente o espe- cifico, procuro um tipo de integraczo diferente daquele proposto por René Gardies no seu livro.* A formalizagéo da andlise na base de um inventério dos eédigos em agdo na obra de Glauber Rocha visa, no caso de Gardies, a um levantamento capaz. de identificar uma constelaga0 de procedimentos como foco do sistema textual” caracteristico da obra. ‘Nessa linha, hi um avango pela integracio de procedimentos especifi- 05 no corpo da analise, pois eles constituem uma parcela dos cédigos «em agdo, mas a tendéncia a descrigio topol6gica, onde se definem puras recorréncias ¢ seus lugares, deixa a leitura a meio caminho. Compa- +a-se 0s filmes no conjunto ¢ opera-se uma decomposigaio que encai- xa todos num tinico engradado, perdendo-se a chance de reconstruir a dindmica de cada filme na sua particularidade. Tornam-se invisiveis as transformagies que marcam o trajeto do autor ao longo dos anos e far~ se um discurso por demais genérico sobre a presenga de referenciais histéricos e miticos, que acabam por flutuar nos filmes. Nao hé uma tentativa de precisar melhor como 0 movimento interno de cada filme define os eritérios e valores que orientam a incorporagio desses ele- ‘mentos da historia, da cultura popular e do mito. Estdo ld apenas como ‘objeto da representasio, ou estio ld para definir a propria perspectiva que preside o discurso sobre o mundo e a sociedade? Estas sio algumas das razSes que me levam a privilegiar a anilise individual de cada filme ¢, dentro desse percurso, optar pela considera- ‘920 particular e detalhada de alguns segmentos que assumi serem capa- 2es de condensar os problemas. No caso de Barravento, segmento a ser tomado como né da discussdo € constituido de seis planos e marca a passagem entre duas seqiiéncias, fundamentais do filme. Antes de sua deserisio e anilise, para situs-lo, apresento um retrospecto onde a divisio do filme em sete blocos narra~ tivos e sua descricio sumiria jé pressupdem uma selecto e seus criérios -4 Rend Gardies, Glauber Rock, 1974. [Bd bras: "Glauber Rocha: politica, mit lnguae gem", n Raquel Geer (org), Glauber Rock, 1979} ‘5 Coneeitopreposto por Chrisian Metz em seu vo Langue cing, 1971p. 69-90 26 ‘Ao mesmo tempo, para definir melhor certos tragos de estilo, comento em seguida meu préprio retrospecto para poder chegar mais perto da ima- ‘gem e som de Barravento ‘Montando e desmontando o esqueleto: tradutor/traidor LOCO F: CHEGADA DE FIRMING, Os pescadores trabalham puxando a rede, enquanto Firmino & visto caminhando na praia, numa montagem que alrerna as imagens do tra~ balho com a aproximagio solitaria do malanéro que volta da cidade. © reencontro de Firmino com sua comunidade de origem gera o dis- curso contra a exploracdo e a permanéncia das condigdes preciias de vvida, Parcela substancial do trabalho da comunidade é apropriada pelo dono da rede, que nio vive na aldeia; enquanto isto se reproduz, os pescadores aceitam passivamente tal condicao, submetendo-se a0 poder despético do Mestre, velho lider que organiza o trabalho, negocia com © dono da rede a partilha aviltante dos peixes ¢ exerce infiuéncia em imiltiplos aspectos da vida da aldeia. O Mestre tem sua lideranga legiti- ‘mada pelo sistema religioso da comunidade. Firmino chega, ¢ 0 acom- panhamos em diferentes diglogos que nos esclarecem sobre suas antigas relagbes ¢ sobre a atual condigio das personagens principais da est6ria Arua, Cota, namorada de Firmino, e Naina —a moga angustiada que «gosta de Arud e tem posi¢éo ambigua na comunidade devido 8 sua ori~ ‘gem branca. Cenas de roda de samba e capoeira permeiam essa primeira fase, cujo objetivo é fornecer um retrato da aldeia, povo e paisagem, trabalho ¢ costumes, deixando clara a condiglo de Firmino como figura que vem perturbar a ordem de Buraquinho. B10C0 I: FIRMING DESFERE 0 PRIMEIRO ATAQUE CONTRA ARUA Pescador de “corpo fechado”, figura protegida pelos deuses e sob a tutela do Mestre, Aru deve permanecer virgem para conservar sua santidade e Ea estar em condigses de substituir o Mestre no fururo, assumindo o poder «© protegendo os pescadores. Este bloco se inicia com a cena noturna em que Firmino deita com Cota na praia; no diflogo ele revela sua revolta contra Arua, prometendo fazer despacho contra o jovem, para acabar com a adoracdo que o cerca. Enquanto isso, no terreiro de candomblé, (8 atabaques maream o ritual de Naina para verificar se ela ¢ filha de emanj. Firmino, apesar da oposigdo de Cota a0 uso do feitigo, pe seu plano em pritica. © despacho nio funciona. Na manhi seguinte, Firmiro promete continuar aluta e mudar de ttica, LOCO M. CENTRADO NA QUESTAG DA REDE (© Mestre entra em discussio com o representante do dono da rede a Propésito da queda do rendimento do trabalho, o que diminui a cota do patrdo; as explicagBes que fornece nao convencem o representante ¢ (© Meste termina por renunciar § sua reivindicacdo por uma rede nova, Firmino aproveita a ocasizo para fazer novo discurso contra a explora~ so, ¢ Arua, oscilante, no traduz em agZo sua discordincia para com 0 Mestre, Acata a decisio de remendar a rede, 0 que é feito com paciéncia pelos pescadores. No entanto, Firmino aproveita a noite para corté-la danifica-la de vez. Cota 0 surpreende no ato de sabotagem ¢ ele dis- cursa sobre a condigdo dos negros desde a vinda da Africa reiterando a necessidade de mudanga. No dia seguinte, os pescadores se véem des- providos de seu instrumento de trabalho ¢ os representantes do patrio vvém buscar a rede inti. Em siléncio, todos assistem & retirada. Fir- ‘ino agita novamente, incitando & resisténcia e acusando o pessoal de covarde. Isto causa confronto com Arua, mas a intervengio dos pesca- ores impede o conflto, O Mestre define que podem pescar sem a rede, como st fazia nos velhos tempos. BLOCO Iv: A COMUNIDADE REVIVE SEUS MITOS. Sem a rede, os pescadores ndo vio para o mar. Ha um tempo morto, hhiato pera recordagdes e lamentos frente & miséria geral, no sertio seco 28 no litoral. Homens e mulheres, em rodas, contam estérias dos velhos tempos, da pesca sem rede, do barravento. Nesse momento, somos informados de algumas tradigdes ¢ lendas da comunidade que explicam melhor seus valores e 0 papel de algumas personagens na sua vida. Uma velha conta a historia da mae de Naina. A posigio de Arua no sistema simbélico dos pescadores fica mais clara. Em conversa com Chico, seu. amigo, Arua comenta sua prépria condigio e demonstra influéncia dos discursos de Firmino numa fala confusa, Isto ndo 0 impede de assumir 0 papel de protetor da pesca, cumprindo as expectativas da comunidade & se Tangando no mar, sozinho, para buscar o peixe, na jangada e sem rede. Arui é bem-sucedido e sua volta é festejada pela aldeia, Os pescadores saem para o mar, sentindo a proteglo e a forga de Arua. A movimen- tagio das jangadas e dos remos, sob os olhates das familias, marca um momento de integragao feliz.da comunidade com sua tradigio. Firmino resolve acabar com essa “mistifcacio” e convence Cota a seduzir Arua antes que seja tarde. LOCO V: A PROFANAGAO DE ARUA SE CONSUMA, 'Na praia, Cota aproveita a noite para banhar-se nua no mar, exibindo- se ostensivamente para Arud, Este ndo resiste & seducdo, aceita a sua sexualidade ¢ viola os preceitos que, segundo a {&, gerantem o seu poder sobrenatural. Paralelamente, no terreiro, uma nova fungao da continuidade aos rituais que envolvem os varios estagios de preparacio, de Naina. Ela é filha de lemanja e a mie-de-santo determinou que ela deve fazer um ano de isolamento na camarinha, Os detalhes de sangue do ritual se alternam com o encontro sexual na praia, nur processo de intensificagio dramética, Na manba seguinte, Arua acorda, s6 ¢ sereno, na praia tranqiila, LOCO Vi: BARRAVENTO S€ CONSUMA, Deflagra-se a empestade sempre temida pela comunidade. Seu Vicente, pai branco de Naina, estd no mar. Arua e Chico tentam salvé-lo, Cota 39 corre pela praia ¢, em meio a convulsio geral, morte afogada em cir- cunstincias nada clara. A natureza se acalma e Aru voltas6, informando ‘que Chico e seu Vicente esto mortos. Ele no acredita mais em seus Poderes sobrenaturais; assume-se definitivamente como homem, fali- ‘vel como os outros. Firminc agita novamente c Arud investe eonira ele No duelo, Firmino 0 derrota, mas pede & comunidade que siga Arui, 0 novo lider que tem nova consciéncia, e abandone a obedincia ao Mes- tre, Dado seu tiltimo recado, Firmino desaparece. LOCO Vir DESENLACE, Em alongada seqUéncia notuma, acompanhamos 0 cortejo finebre na des- Pedlida a Chico, até o amanhever. Arua assume o discurso de Firmino con- tra o Mestre. Este procura isoli-lo da comunidade, Naina tem seus cabelos cortados esta quase pronta para o ano dedicado a lemanjé. As mécs-de- santo comentam que sua dedicagio pode salvar Arua. © casal se encontra na praia e, a0 se despedir, Arua promete voltar depois de trabalhar um tempo na cidade. Diz que Firmino rem razo; 28 coisas devem muda. Faz planos de comprar uma nova rede, “para consertar a nossa vida eade todo mundo”. Garante a Naina que ela nao esta s6, podendo fcar um ano na ‘caminhada religiosa para depois reencontré-lo. Ao amanhecer, Arua se vai, passando pelo mesmo farol que marcara a chegada de Firmino. Esse retrospecto traduz.o desenvolvimento geral da est6ria e seleciona ‘lgumas indicagdes sobre dilogos ¢ combinagées de imagens que per- ‘item avangar certas interpretagdes. Podemos, a partir dele, perceber a situagdo bisiea do filme e seu desenvolvimento, marcado pelo trindmio: «quilébrio— inicial & vida da comunidade antes da chegada de Firming; desequiltbrio ~ causado pela presenga de Firmino e sua campanha sub- -versiva; novo equiltbrio ao finel — comunidade permanece nas mesmas condigéea, endo o esforyu de Firmino resultado na transformagio de ‘Arui, que vai para a cidade, tel eomo ele um dia o fzera Dentro da evolugdo dos episédios, essa triade pode ser detecta- da em escala menor, comandando as transformagdes do enredo. Por 30 exemplo, Firmino cria um problema com a danificasao da rede e as ten- ses geradas pela sua iniciativa sio resolvidas na palavra de ordem do Mestre: “Pescaremos sem rede, como antes”; quando Arua assume seu papel ¢ a comunidade se ajusta & palavra de ordem do Mestre, traba- Ihando segundo a tradigSo, & outra ver. Firmino quem toma a iniciativa para gerar nova ruptura do equilibri, insistindo junto a Cota para que seduza Arua. Nessa configuragao geral, fica nitido o papel de Firmino como ele- ‘mento motor das transformagoes ¢ fonte dos desafios que pOem as per- sonagens em movimento. Se é ele quem empurra a est6ria, no admira ‘que seu discurso venha a primeiro plano. A sua dentincia tem como alvo 4 religifo, acusada de ser um obstéculo & tomada de consciéncia ¢ & rei- vindicagdo de direitos por parte dos pescadores, Ele procura firmar sta lideranga, fazer-se ouvir, mas sua atuagao junto & comunidade é proble- mitica, num trajeto de isolamentos e fracassos que torna seu método questionével.' O maior efeito de sua pregaglo se exerce sobre Arua, seu adversério, mas a andlise de Jean-Claude Bernardet jé nos chamou a atengio para a repeticio ai envolvida: quando toma consciéncia de que é preciso mudar, quando assume um discurso progressista, Arua também se isola, Essa identidade de situagio frente a Firmino nio se evidencia apenas no nivel do enredo, pois ao abandonar Buraqui- nnho numa atirude pessoal, Aru deixa a pergunta: voltard algum dia para completar a repeticéo? Ela se faz. presente na propria forma da narragio. Ao longo do filme, os discursos de Firmino assumem uma impostagio teatral-didatica na mire-en-scéne e 0 enquadramento 0 isola dos pescadores. Discursa praticamente para a ciimera e encontra seus ouvintes numa suposta platéia fora do mundo de Buraquinho. Quando ‘Arua, no final, esboga a mesma postura doutrinria diante dos pesca- dores, o enquadramento também o isola e pe em suspenso sua figura, filmada em ligeiro contre-plongée (cimera baixa), de modo a recortar 0 céu chapado ao fundo. 1. Retomo aqui snlise js desenvolvida por Jeso-Claude Besnacdet, in ul em trp de nea: esc sobr icra brasil de 1988 «1968, [1967] 2007, p>. 7581 3

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