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A POETICA DO SOM : UTOPIA & | CONSTELACOES Regina Porto Tome uma palavra viva de um vetho conto: ‘que se mescle com duas outtas em sua mente. entéo, com trés sons comporés 'nGo um som, mas uma estrela. © mundo modemo parece ter privilegiado a inflacdo das imagens frente & inflag&o dos sons, Imagens em movi- mento se dispdem e ocupam até mesmo o espaco do olhar disiraido, enquanto sons em discurso exigem ndo menos que o tempo da aten¢ao introspectiva. Esse 6 um fendmeno mundial © chamado rédio cultural, de vanguarda da midia a veiculo de comunicagéo de massa, acabou se tomando —em formato, contetido e em sua propria evolu¢Go—um dos tiltimos projetos utépicos dos canais de informagGo. Essa utopia da criag&o de um “espaco actstico men- tol" (na expressdo do diretor de audiodramaturgic finlan- ds Harri Hihtamaki) tem levado 0 radio & descoberta e ‘a0 desenvolvimento de muitas e novas formulacdes, a des- conhecidas possibilidades, a outros estilos e, por que Ndo, {@ distintos “visdes" aplicadas ao veiculo. Hoje, até pela auséncia de maior contato enire as produgées, nao ha uma tendéncia para o radio: ha varias (felizmente, co menos o radio néo-comercial ndo se padronizou!). Seja como fator cultural ou prética artistica, seja como fendmeno acistico ou ato social — passando pelo docu- mentério, a ficgdo, « poesia e amisica, até o radicalismo 16 Radio Nova, constelacées da radiofonia contemporénea 2 da experimentagdo sonora — esse rédio tem sido resulta- do do sonho, empenho e iniciativas inaividuais, encontran- do seu espaco de realizagéo junto a emissoras sem fins comerciais ov organismos de apoio 6 cultura. =O RUIDO Em 1913, 0 futurista italiano Luigi Russolo publicava seu maisimportante e decisivo texto: L'arte defrumori, tratado que propés pela primeira vez a incorporagdo de ruidos & misica, “marcando o principio de uma fundagao tedrica sobre a estética da arte actstica”(Schdning). ‘Algumas décadas depois, os experimentos raciofénicos elaborados em uma fita magnética por Piere Schaeffer, & frente do Club d'Essai na Radiodifusdo Francesa, acabam por levé-lo & inven¢do da musica concreta. A transmissé0 de seu Concerto de ruidos, no ano de 1948, produzido com sons naturcis previemente gravados, foi um marco 1G im- pactante quanto a publicagdo de seu Tratado dos objetos sonoros em 1966. "Schaeffer", afrmou 0 compositor Rodolfo. Caesar, “gerou a divide e perguntas ainda nd respondi- dos: —Isto € musica? O que é musica? O que é a musica?” + © STUDIO A partir dos onos 60, ganha impulso a musica eletréni- ca, que opera com sons artfciais gerados sinteticamen- te, evoluindo, no década seguinte, para a eletroacistica, que transforma e manipula sons acisticos. Seu ponto de orientagdo tem sido, desde o final da década de 80, um novo conceito amplamente difundido e discutide pelos pesquisadores e compositores franceses ligados ao Grou- pe de Recherches Musicales (GRM, antigo Club a Essai, entdo sob direcdo de Frangois Bayle: a Acusmatica, teo- ric oplicada 6 experiéncia da escuta sem reconhecimen- to de fonte ou objeto sonora. (Nunca, no universo da cria- Regina Porto 17 ‘gG0 sonora, arte e ciéncia estiveram tao fortemente rela- Cionados. Dessc investigagéo métua resultam inventivida- de estética e inventividade tecnolégica. “A tecnologia ja 6 a nossa segunda natureza"”, afirma Bayle.) Ill - A PALAVRA No principio, os futuristas — russos ¢ italianos — “destru- fram" 0 verbo. E a sintaxe. "Liberdade para as polavras”, clamariam, enquanto seus contempordneos dadaistas produziam “poemas de letras" (e 05 surrealistas explora- vam 0 inconsciente). Era 0 comeco deste século XX e aqueles seriam “os primeiros a estabelecer relacées entre sons, sinais gréficos e espago", escreve Jean-Yves Bosseur em O som e as artes visuais. (Os movimentos revolucionérios do inicio do século seri- ‘am incorporados pela midia e pela arte. Deles, 0 radio ab- sorveu a “poesia do som” como estética e a consciéncia da “fala como um mundo préprio"(George Sperber). Na criagGo literdria, seus conceitos foram decisivos para onas- cimento da poesia concrefa nos anos 50. De acordo com ‘Augusto de Campos, c poesia concreta, apoiada em duas outras expressdes-chave da arte contemporanea — “ver- bivocovisual", de James Joyce, e "klangfarbenmelodie", de ‘Anton Webem —tomou-se uma literatura por tradicGo visu- ‘al, com algumas experiéncias no campo da expresso oral. ‘Apenasrecentemente ela ganharia tratamento sonoro mais ‘elaborado, com 0 avanco dos meios tecnolégicos abrindo novas possibilidades formais e estruturais: a poesia sonora tomou-se, assim, uma arte também eletrénica. J6.a poesia fonética considerou exclusivamente o ponto de vista fisico da polavra, ou seja, fenémeno que é onda sonora, portant som e tuido. Seus criadores passaram a usé-la como “material expressivo independente, as vezes sem qualquer relagdo reconhecivel com o sentido da polayra”, Uma nova estrutura é descoberta. "A palavra entra na histéria” (Werner Klipeer). 18 Radio Novo, constelagdes da radiofonia contemporénea 2 Outra categoria actistica que devemos mencionar, no terreno da poesia ou simplesmente da palavra folada ou da emissGo vocal, é 0 Text-sound, um termo criado por compositores do E.MS., principal estidio de misica ele- trénica do Suécia, para um género que combina texto, fonética e experimentos eletroacisticos. IV - LITERATURA E FICCAO Ohérspie! (ou peca radiofénica), género de grande tra- digo na Alemanha, nascev nos anos 20 com adaptagées de obras do drama e da literatura; com 0 tempo adautriu ‘utonomia criativa, « ponto de, em muitos casos, suprimira narrativa linear e crior uma dramaturgia sonora propria. Seu valor decisivo continua sendo @ palavra, & qual subordi- nam-se 0 uido e a misica. De qualquer forma, como jé foi observado pelo jomalista Eduardo Dué, “sua atua¢do vai além do naturalismo ou de um realismo artificial”. (Um de seus desdobramentos, o feature é uma combinacao entre documentario, ficgdo e realidad). Com o neve hérspiel, que surge a partir da década de 60, 0 género atinge seu radicalismo aciistico méximo. In- fiuenciado pela poesia experimental e ndo-seméntica, eliminou qualquer hierarquia de valor entre os componen- tes e incidentes sonoros. (Mauricio Kagel. compositor ar- gentino radicado na Alemanha que dedicou varias obras ‘a0 género, definiu: “O novo hérspiel_n&o é um género literério ou musical, mas meramente um género actstico de contetdos indeterminados”). Foi também o neue hors- piel que levou artistas de outras éreas, como misicos e poetas, a investirem em uma produgao sonora inaugural, fornando-se autores de composicdes para o radio. V-OESPACO ‘As paisagens sonoras, invisiveis, servem a instalagées Regina Porta 19 ou mesmo ao deslocamento de ambientes actsticos {caso de Miche! Redolfi, compositor francés que projetou imagem sonora do pantanal brasileiro numa praca cen- tral da cidade de Nice; ou ainda da Bridge San Francis- co/Kéin, do norte-americano Bil Fontana, que projetou a emisso ao vivo de uma ponte sonora entre dois pontos centrais daquelas cidades). A paisagem ndo apenas é passivel de projecéo também em radio, como muitas ve- zes é fomentada por ele. O projeto Metrépolls, por exem- plo, mantido pelo Departamento de Arte Acistica da WDR, em Col6nia, comissiona obras de compositores do mundo todo para um ensaio fonogratfico sobre a acusti- ca de uma cidade. Em lugar do olho, 0 ouvido: a “paisagem sonora” é, fun- damentaimente, a arte da coptagdo “fotogrdfica” do som. O microfone € 0 instrumento que permite 0 instanté- neo e o close; a caixa actstica, sua amplia¢éo. Quando revelado, o objeto sonoro apresentaré uma releitura "psi- colégica” do real: afirmagao de seu interior, negacdo de sua superficie ou constatagdo de sua supremacia. As “esculturas sonoras” se propdem, na afirmagéo de Jean-Yves Bousseur, “um fendmeno acistico e social’. Fun- dadas pelo compositor norte-americano Hay Partch, suas qualidades so 40 mesmo tempo plésticas ¢ musicais, € suas dimens6es, actsticos e visuals. Raras vezes se utilizan- do de aparato propriamente eletrénico, preenchem o espaco fisico com um objeto pléstico-actstico inusitado e, com freqiéncia, pressupdem a intera¢éo com 0 publi- co. Escultura ou paisagem, ambas desafiam com sua pro- Posta de interferéncia urbana. Tomado por outra perspectiva de contexto urbano, o compositor e pesquisador canadense Murray Schafer foi © pioneiro na concepgao, pesquisa e pratica da ecologia sonora — ciéncia que estuda e propde solugées de or- dem prética para os efeitos da polui¢do sonora urbana e industrial sobre o bem-estar e o meio ambiente, ) 20 _ Rédio Nova, constelagSes da radiofonia contemporénea 2 VI - © DESIGN “Em mUsica, o leitmotif tem uma fungGo direta e cons- ciente; no design sonoro, o som recorrente atua sobre a percepcéo subconsciente”. © pronunciamento é de Ri- chard Beggs, um dos mais concortidos designers sonoros do cinema norte-americano. O desenho sonoro equivale a0 conceito de mUsica aplicada: interage com outro(s) meio(s) — cinema, dan¢a, teatro, tv e video, artes visuais, radio, etc. — mas pode igualmente interagir com o meio ambiente. (Michel Redoff jé mencionado, concebev um amplo projeto sonoro para os doze espacos aéreos @ su- baquaticos da exposic&e Nausicaa do Centre National de la Mer, em Nice, Fran¢a). O design sonoro é a descrigéo actstica — verista ou abstrata — de uma imagem ou idéia em exposi¢o. Cine- ma e desenho animado foram fontes criativas. Nesses, a colagem, que a teérica e esteta Tatiana Marschenko con- sidera “proceso mesmo do préprio pensamento huma- no", torna-se essencial. Mais produto da cultura e da comunicagao de massa, sem no entonto perder sua integridade aristica, os “ele- troclipes”, inaugurados numa proposta do niicieo cana- dense Empreintes Digitales, seriam uma resposta do dudio & linguagem do video (ou & estrutura do videoclipe em 4udio}: mensagem reduzida, em técnicas de sinteses, cor- te, recorte, miniatura, instant&neos e resumo. Em todos 0s casos, estamos falando de uma arte origi- nariamente “de pesquisa” (“experimental”, portanto), de um véo livre sobre a sityagdo sonora; de um produto da Era Eletrénica (e da dade Midia); de uma arte que nasce em estiidios laboratérios cientificos: e finalmente, de um espaco de escuta virtual e imaginério. Embora sejam categorias actsticas distintamente em- pregadas, no € raro resultarem semanticamente préxi- mas: atuam nos mesmos dominios — ora conscientes, ora inconscientes — do teatro da mente. Som que nos desafia @ percep¢Go por comportar a mais abstrata imagem — 21 Regina Porto ‘aaquela que néo existe no mundo real (tomamo-nos “ce- gos”) — e que, paradoxalmente (expresso méxima da pura sugestaol), induz formas, verbais ¢ ndo-verbais, no imaginério humano. Esse universo “fantasmatic mundos invisiveis, 6 produzido pelosom tornado paisagem eimagem actstica. Elemento cuja voca¢ée melhor se ex- pressa na “evocagao de impressbes". John Cage, que sempre esteve proximo da experién- cia. em radio (em 1952, antecipando os happenings, apre- sentou numa acée musical no Black Mountain College, Imaginary landscape n°S, peca para varios aparelhos de rio) e que logo percebeu © veiculo como insirumento sonoro, para o qual comporia varias obras, observou: vocé ignorar os sons ao seu redor, eles certamente it incomodé-lo. Mas se vocé prestarihes atengao, descobr- r6.0 quanto sao fascinantes’ ‘Arie do escuro, o mundo dos sons é um voltar-se para dentro, para 0 escondide — olhar interior através do qual a mente exercita suas préprias imagens. Nesse jogo lbdico e introspectivo, liberamos a onimagao criativa e sensivel de nossas préprias fantasias. A experiéncia subjetiva e mitada da escuta, quando 0 ouvido esta “em estado de alerta", no expresso de René Farabet (no maximo de sua consciéncia, portanto), alcanga 0 terreno do inconscien- te ov, pelo menos, como afima Hari Hahtamari, “ultra- passa nossarealidade consciente". Nesse dominio, deixam- se emergir verdadeiros “sonhos vivos”. Produz-se uma mu- dance do nivel de realidade. Néo-realidade? Supra-reali- dade? Irealidade? Peer Raben, autor das trihas de Fassbinder, afirma: “através da musica, o olho vé imagens". O ouvido, “or ‘gdo sem pélpebras" (Janete El Haouli) e sempre aberto, sentido que ndo dorme, estabelece uma conexao imeci- ata com camadas profundas da mente, diferentemente dos vicios culturais do olhar. cuja percepedo tende a ser mais gestaitica. Com 0 som, os outros sentidos despertam (experimente ouvir o vento, Ggua: a paisagem viré ndo 56.005 seus ohos, como & sua pele]. Como som, o espaco 22 Rédio Nova, constelagdes da radiofonia contemporénea 2 fisico ganha em amplidéo e profundidade. “Ouvir seré cri- ar sua prépria cenografia num espaco infinito de escuri- dao", diz René Farabet — grande esteta do radio e diretor do Centre de Création da Radio France. Da mesma forma que altera a node de espaco, a.es- fera actstica instaura uma outra qualidade — e percep- G0 — do tempo|!). Sem excitar a superficie dos sentidos, mas 0 profundo da psique, essa linguagem estabelece ndo apenas nove paradigma para a cria¢do sonora, como também para 0 potencial da percepgdo humane: fala- mos da arte de escutar, um gesto poético.(Parafraseando Oswald de Andrade, “ouvir com ouvidos livres"). Diante dessa nova organizagao dos sons, 0 radio de arte, em toda sua dubiedade (espantosa para alguns, fos- cinante para outros), torna-se muttimiaia quando em acéo com outros meios; torna-se intermidia quando em simbio- se com outras linguagens. Em qualquer caso, como instru- mento de composicao e experimento de arte, ganha di- mensées “pidsticas", sem deixar de ser aquilo que funda- mentaimente é: um veiculo de massa. Para muitos, as novas técnicas de rdcio inspiraram-se nas teorias de montagem de Eisenstein e Pudovkimn elabora- das para 0 cinema’. Em outra aproximagao comparada, ‘0s mecanismos de produgdo da linguagem actstica, tais como os da filmagem, revestem-se de paradoxo. Como firmou 0 designer sonoro norte-americano Richard Beggs. a gravagdo de um som nao serd sendo o fragmento do som original”. ov, nas polavras de René Farabet, “o som gravado é uma verso fragmentada da realidade’ ~ Tecnicamente, a estrutura de base de sua formulacao &st4 na instrumentalizacdo dos processos de producéo e, artisticamente, na articulagéo dos elementos sonoros. As- sim, 0 discurso verbal e/ou sonoro, sob a perspectiva esté- tica do autor, seré definido pela edi¢do. “A justaposicéo se assemelha ndo a uma simples soma, mas a uma cria- 0", escreve Eisenstein. O corte cumpre papel fundamen- fol nesse trabalho e permite, sobre ¢ palavra falada, resul- tados como 0 anagrama, a anéfora ou 0 fluxo de consci- ‘in: George Sperber. org. Introdu- (G80 6 peca radiofénica. Sao Pau lo: Eaftora Pedagégica e Univers ‘gra Lido, 1960. Regina Porto 23 €ncia; quanto aos sons, determina o ritmo, a “respiracao", ‘a.dindmica. Recursos como a mixagem e a fusdo, as filtra- gens, distorcdes e modulacées, o volume espacial e a ‘coreogratia estereofénica (ov multifénica), por exemplo, constituem igualmente os fundamentos tecnicos para a operacionaliza¢éo instrumental de um radio novo. Ape- nas a arte verdadeira, entretanto, 0 transformard em lin- guagem auténoma. ‘A engenharia estética dos sons, portanto, pressupde todos 05 recursos do aparato tecnolégico e, desde que ‘liada ao métier, total iberdade de criagao. Cria-se 0 di- ferencial. A informacGo foi deslocada de sua realidade objetiva para a esfera privada e subjetiva do criador. Lé, peritiu-se ainvestigacao, « anéise e. finaimente, a com- preensdo. EntGo, insetida em um novo campo de viséo, ganhou luz e somibras; 0 detalhe talvez esteja em espacos aber- tos; © conjunto, em esconderios. Eis agora 0 receptor: um ouvido que divaga. Farabet: "O autor (ou criador) cons- tr6i a dramaturgia da realidade, 0 owvinte inventa suas préprias ilusdes”. Jd se disse que “a linguagem da arte actstica 6 a lin- guagem do filme”. Consta que @ primeira obra de ficgéo para 0 radio aconteceu em 1924, na Radio London. No escuro. Como um cinema sem imagens. (Muitos consideram a vis8o interior a mais nitida € me- mordvel de todas as experiéncias visuals — porque oniri- ca, profunde e... livre. O cineasta russo Eisenstein, no cita- do enscio sobre seu oficio, escreveria: “A imaginag&onéo evoca quadros acabades, sendo suas propriedades de- cisivas e determinantes"). ~ Para o radio — especialmente para esse veiculo e con- siderado todo seu potencial dindmico de organizagao e articulagao (ruido, som, palavra, mésico, voz, fonética, ambience, siéncio, caos...) e, sobretudo, sua capacida- de de penetracao na subjetividade psiquica — viriam a escrever escritores (Samuel Beckett]. cineastos (Orson We- lies), fldsofos (Walter Benjamin), poetas (Gerhard Rhiim), 24 Rédio Nova, constela¢des da radiofonia contemporénea 2 dramaturgos (Antonin Artaud) e, finalmente, os compos tores (John Cage}, para citar apenas alguns entre incon- tdveis exemplos. Na cultura de massas, a escuta sensivel é um processo

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