You are on page 1of 7
(contempordhed) 3 20042 Jornalismo e Fic¢ao: as narrativas do cotidiano Heéris Arnt Professora Titular da Faculdade de Comunicacéo Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Resumo Ese artigo tem por objetivo. mostrar o papel predominance do jomalismo na for- -magio dos letores. A ligio que nos deixa o séeulo XIX é que as pessoas léem 0 jor nal pelo prazer da leitura, e néo somente pela necessidade funcional de informacéo. Como a literatura, o jornal tem também uma fungio narrativa, como mostra muito claramente a crénica jornalistica. Palavras-chave: crénica brasileira, crénica americana, folherim Abstract The newspaper has an important role in the reader’ formation. The leson of the century XIX is that the people read the newspaper for the pleasure of the reading, and not only for the functional need of information. As the literature, the newspaper abo has a narrative function, as display very clearly the journalistic chronicle Keywords: Brazilian chronicle, American chronicle, reading (bso tcsanatsdcts) 47 (contempordhed) 3 20042 Diante da incompeténcia brasileira em resolver o problema do analfa- betismo ¢ interessante revisitar a histéria da imprensa, no século XIX, que se confunde com a propria histéria da leitura e da ascensio do povo & cultura lecrada. Quando 0 desenvolvimento industrial tornou possivel 0 aumento das, tiragens dos jornais, havia na Europa e nos Estados Unidos, uma forte pressio popular das geragSes recentemente alfabetizadas, avidas por leitura. A publica- ‘40 de obras literérias integrou uma grande camada da populagio no cfrculo de Ieitores. Jé no Brasil, o jornalismo literdrio, apesar de ter tido importante papel cultural, nunca chegow a representar uma penetragio de fato no seio de uma sociedade mais vasta, Na segunda metade do século XIX, os regimes europeus dio inicio a um processo de alfabetizacio da populacio urbana, para formar mio de obra mais cficiente para as novas fungées criadas pela revolusio industrial, Os jornais vio cer um papel fundamental neste esforso, suprindo as necessidades culturais dos novos consumidores. O livro ainda era muito caro para os assalariados, ¢ 0 jornal vai ocupar este espago publicando folhetins, romances e contos, © editor do jornal francés La Prese, Emile Girardin, foi quem primeizo compreendeu a necessidade de cultura do mercado, e convida escrtores para taba tharem em seu jornal, © fendmeno se expande por toda Europa, ¢ chega também ao Brasil, Alguns jomnais populares franceses chegatam a publicar ses folhetins 20 mesmo tempo. Esses folhetins eram traduzidos ¢ reproduzidos pela imprensa de todo o mundo, num fendmeno de massiicagio cultural global. O Brasil nio ficou fora deste movimento, publicando as obras francesas; tanto que Machado de Assis afirmou que escrever folhetins ¢ continuar brasileiro era dificil No século XIX, literatura ¢ jornalismo vio ser indissocidveis. Os maiores cescritores da literatura universal passaram pela imprensa, nio s6 como jornalistas, mas como cronistas, escritores de folhetins ¢ romancistas. Este periodo que vai de 1830 ao final do século pode ser qualificado como de Jormalismo Literétio e se ccaracterizou pela presenga maciga de escrtores nos jornais, que melhoraram a qua- lidade do texto, produzindo um tipo de informagio mais sutil sobre a sociedade. Jornalismo literdrio, na acepgao que damos ao termo nio se refere & imprensa especializada em literatura, que foi um fendmeno que aparece no século XVII ¢ que perdura, hoje, nos jornais ¢ revistas especializados © nos suplementos de livros e na critica literdria. Jornalismo literdrio é uma forma de conceber ¢ fazer jornal que se desenvolveu no século XIX ¢ que se caracte- rizou pela milicancia de escritores na imprensa, com a publicagio de crénicas, contos ¢ folhetins. Este fendmeno marcou a imprensa como o lugar do debate cultural — uma das fungées do jornalismo, que predomina, na imprensa, até os dias de hoje, Charles Dickens cobria 0 parlamento inglés, enquanto Machado de Asssis, o Senado. Mark ‘Twain passou por todos os setores de um jornal, Balzac escreveu toda a sua obra em forma de folhetim. Dostoievki tirou Crime Castigo das paginas criminais dos jornais. H mais informagio nas crénicas (bso tcsanatsdcts) 48 (contempordhed) 3 20042 de Machado de Assis, Mark ‘Twain ¢ Seba Smith (Major Jack Dowing) do aque nas piginas exacerbadas dos pasquins politicos. Toda a matéria de jornal forma, mesmo os folhetins ficcionais. Com a ficgio folhetinesca, que nao se pretendia informativa, vemos re fletida como num espelho a sociedade da época. A literatura foi, em contrapat- sida, profundamente marcada por esta passagem dos escritores pela imprensa, O papel da imprensa foi fundamental para a segmentagio da cultura letrada. As massas, apenas alfabetizadas, encontraram nos jornais um estimulo & lei- cura, Em conseqiiéncia houve o aumento considerivel das tiragens de jornais. O extraordinério desenvolvimento da imprensa curopéia no século XIX estava fundado em modificagées profundas na estrucura social jornalismo nos Estados Unidos no apela para o folhetim, mas a influ- éncia literria vai ser grande, com a presenga de escritores nos jornais e articu- listas. A influéncia dos escritores vai se das, sobrecudo, através das revistas espe- ializadas que publicavam contos ¢ novelas. Estas publicagées eram extrema- mente populares e terdo um papel fundamental no programa de alfabetizagio de massa, desencadeado no pais, a0 final do século, O espago que ocuparam na sociedade americana ¢ equivalente ao do folhetim nos jornais da Europa. A revista Harper's Monthly, no final da década de 1850, atinge uma tiragem de 200 mil exemplares, record mundial & época. Estas revistas eram praticamente a tinica opgao para os escritores americanos publicarem suas obras. Como no cexistiam leis internacionais de diteito autoral, as editoras nio publicavam os autores americanos ~ sempre um risco editorial ~ preferindo publicar autores ingleses, que tinham puiblico assegurado. Os autores ingleses nada recebiam pelas publicagées americanas. Sir Walter Scott, eriador de Joanhoe, foi uma vivima deste sistema. Apesar de ter seus livros constantemente reeditados nos Estados Unidos, morteu na miséria, sem nuca ter recebido direitos de autor. Charles Dickens foi um dos primeiros autores a lutarem pelos direitos aurorais, criticando duramente 0s editores americanos. Balzac foi, talvez, 0 primeiro autor a ganhar um processo de direito autoral, contra um jornal italiano que publicou um romance sem autorizagio. A participagao de escritores na vida cotidiana dos jornais foi um fend- meno universal, no século XIX. Os escritores do século XIX estavam diteta ou indiretamente engajados num movimento de deniincia c critica das condigées sociais. Charles Dickens na Inglaterra € 0 melhor exemplo de luta pela melho- ria das condigées de vida dos trabalhadores. A miséria ¢ 0 analfabetismo do proletariado inglés ¢ denunciada em toda sua obra. E interessante, neste sen- sido, ver a visio de um eseritor brasileiro, José de Alencar, sobre esta questio, numa crénica publicada em 4 de marco de 1855, na coluna Ao correr da pena, no Corrcio Mercantil: “Porque a Europa ainda nao conseguiu chegar a solugio deste grande problema social, nao é razo para desanimarmos(..) no devemos deixar de concorrer com as nossas forgas para essa obra. filantrdpica de extin- io da pobreza prolerétia.” (bso tcsanatsdcts) 49 (contempordhed) 3 20042 No Brasil, sem o respaldo de uma sociedade que se urbaniza ¢ se alfa- betiza, os jornais vo atravessar 0 século com tiragens minguadas, a Revista Tustrada, em 1876, tem uma tiragem de 4 mil exemplares, enquanto o Sun em Nova lorque, com uma linha editorial popular, tem uma tiragem de 130 mil cexemplares. A influéncia do jornalismo literdrio foi particularmente i por ante, no Brasil ~ quase todos os escritores brasilciros publicaram através da imprensa. $6 que, sem um esforco institucional que promovesse um programa de alfabetizagio, o jornalismo literdtio nio representou a ascensio do povo & cultura letrada, como ocorreu nos Estados Unidos e nos paises europeus. No Brasil, apesar do. atraso social de um sistema escravocrata tardio, tivemos um jornalismo literatio ativo que lansou os fundamentos do romance brasileiro, com José de Alencar; permitiu a produgio de um romance como Memirias de um sargento de milicias, considerado pot Mirio de Andrade como um dos romances mais interessantes, uma das produgées mais originais ¢ ex- «raordinérias da ficgo americana; e possibilitou o aparecimento do maior ¢s- ctitor brasileiro, Machado de Assis. O BrasiL FOLHETINESCO Podemos considerar o inicio da fase do jornalismo literdtio brasileiro 0 ano de 1852 com a publicacéo do folhetim de Manuel Anténio de Almeida, Memerias de um sargento de milicias, no Correio Mercantil, e 0 seu término no inicio do século XX, cuja morte de Machado de Assis, em 1907, pode ser considerada um marco. Apesar do género folhetinesco ter ido mais longe no século XX, ¢ a crénica de influéncia literéria nunca ter deixado de estar pre~ sente no jornalismo brasileiro, a influéncia literéria diminui paulatinamente e os jornais comegam, a partir dai, a ter caracteristicas diversas, caminhando em diregio & grande imprensa informativa. © Correio Mercantil, fundado em 1852, por Otaviano de Almeida Rosa, consegiu reunir os intelectuais mais representativos de sua época. Era tum jornal cheio de variedades, que logo se tornou 0 mais lido do Rio de Janciro. Memérias de um sargento de milicias passou desapercebido na época, dominada pelos folhetins de origem francesa. O impacto do folhetim brasi- leiro se dard em 1854, quando € publicado 0 Guarani de José de Alencar, no Diario do Rio de Janeiro. © folhetim de Manuel Antonio de Almeida é uma dessa obras de gran de valor para a anilise de costumes do povo carioca, da primeira metade do século passado. O romance é caricato, irénico, mas em nada diminui a veraci- dade do quadro social. Os personagens sio simbolos de sicuagées genéricas da populacio pobre, formada pelos portugueses recém chegados ao Brasil, os bra sileiros das pequenas profissbes, policiais, ciganos, baixo clero, despachantes, cenfim esses cidadios de segunda classe, Manuel Anténio de Almeida foi um memorialista dos usos e costumes da sua época e da época anterior a sua (final (bso tcsanatsdcts) 50 (contempordhed) 3 20042 do perfodo colonial ¢ Reino Unido) heranga que ele recebeu através de relatos orais ¢ que néo queria que se perdessem, narrar as festas populares, as dangas, os desfiles das baianas que antecediam as ica, Sio muitas as interferéncias do narrador que tem 0 cuidado do historiador a0 procissdes, as pastoras a m deixam claro sua intengio de memorialista, A explosio do folhetim brasileiro se daré com O Guarani. A cor local, dos amores do indio Peri pela branca Ceci, trouxe uma revolugio ao género ¢ abre cespago para a publicagio de autores brasileiro. No Rio de Janeiro analfabeto, O Guarani sera lido pata empregados e agregados. Em Sio Paulo 0 Diétio do Rio de Janciro era esperado com entusiasmo ¢ era lido em grupos, conforme escreve Visconde de Taunay em Reminiscéncias. Os primeitos folhetins de Dickens tam- bbém eram destinados & leitura em grupo, entte os operirios ingleses analfabevos. A eisura de folhetins foi, na Europa, um estimulo & alfabetizagio, A. CRONICA AMERICANA jornalismo norte-americano do século XIX, apesar de ter recebido uma forte influéncia da literatura, através da colaboragio de muitos escritores cronistas, teve algumas caracteristicas diferentes do jornalismo literdrio eu ropeu ¢ brasileizo. A maior delas foi a nio publicagio de folhetins literarios na grande imprensa, Os jornais americanos nao apelaram para os folhetins em capitulos, para ganharem leitores, eles seguiram um caminho que se tornou caracteristico do jornalismo nos Estados Unidos até 0s dias de hoje, que sio as matérias de interesse humano - com relatos de crimes ¢ dramas familiares. Os fatos sio vistos a partir do ponto de vista dos protagonistas, numa forma nar rativa que se aproxima da ficgio. Apesar da grande imprensa no publicar folhetins, os eseritores partici- pam ativamente da imprensa, como jornalistas ¢ cronistas. © jornalismo ame- ricano produziu em meados do século passado um género de crdnicas de critica aos politicos e aos costumes piiblicas do pais que tinham grande sucesso. O primeito escritor a se dedicar a este género foi Seba Smith no Portland Courier em 1830. Com o pseudénimo de Major Jack Dowing ele publicava cartas cenderegadas a amigos e parentes, onde ia telatando fatos da vida politica e par- lamentar americana. Suas crénicas tornam-se muito populares, ¢ fazem escola. Charles Brwne foi outro cronistas que adotou o mesmo género de crdnica de humor, ¢ que abrem caminho para o maior deles, Samuel Clemens que adota do pesudénimo de Mark Twain. A sitira politica ¢ a critica aos costumes chegaria ao apogeu, nos Estados Unidos, com Mark Twain. Seguindo 0 caminho aberto por Seba Smith, a principio imitando o estilo de Charles Browne, Mark Twain torna-se 0 me- Ihro jornalista de sua época ¢ o maior escritor americano de século XIX. Sua trajetéiria nio difere dos grandes escritores da mesma época - como Dickens, Balzac, Machado de Assis, toda sua vida esté ligada & atividade jornalistica. (bso tcsanatsdcts) 5 (contempordhed) 3 20042 ‘Na segunda metade do século XIX os Estados Unidos vio conhecer um grande movimento cultural, com a criagio de cursos piiblicos, aulas a0 ar livre, alfabetizagio de adultos, ea instalagio de bibliotecas piblicas por todo o pais, sobretudo a partir de 1880. As revistas literdrias tiveram importante papel neste perfodo de efervescéncia cultural, que representou avango nas artes grafic cas, com a introdugio de ilustragées. Algumas das. publicagécs especializadas fem autores americanos, foram Hapers Monthly, Century, Scribner's Atlantic Monsthly, Literary Digest, mais ao final do século que se ocuparia também do ambiente politico e social Se os Estados Unidos néo conheceram o impacto sobre as massas que os jornais com base nos folhetins propiciaram, o jornalismo literdrio foi eve um papel importante na consolidagio da alfabetizagio e divulgacio da cultura letrada. A influéncia literdria na grande imprensa americana foi sobre a forma de critica, humor e sdtira politica. Seba Smith, Charles Browne, Charles Smith ¢ Mark Twain fizeram escola e criaram um género de cronica critica as institui- ‘ses que nunca deixou de ser publicado nos jornais americanos. Art Buchwald um exemplo moderno de escritor herdeito deste estilo que foi determinan- te do século XIX. Este estilo de narrativa, préximo da crénica, ¢ denomina- do, nos Estados Unidos, de “colunismo” ‘Uma crénica de Art Buchwald, disponibilizada na rede mostra esta proxi- midade tematica entre a arte da crénica brasileira e um certo jornalismo narrati- vo americano. (geocities.com/CollegePark/Quad/8357/sonho_impossivel.hem). Este relato sobre o jornalismo literdrio tem por interesse mostrar quanto o jornal teve um papel preponderant na formagio dos leitores. Uma questéo bastante ébvia, que de tio dbvia é esquecida, é que as pessoas Iéem por ler, pelo prazer da leitura; ¢ Iéem o jornal nio exclusivamente pela neces- sidade funcional de informagio, mas pela fungao de narratividade, incrinseca ao género jornalistico, Ao narrar, o jornal “ficciona” a realidade. A crénica é um género hibrido, que melhor marca esta fusio de dois géncros distintos, 0 litersrio e 0 jornalistico. A cronica brasileira torna-se um género literdrio pe- culiar, que vai se formar a partir das primeciras crdnicas do século XIX, que ja traziam muitas das caracteristicas contemporineas, Nessas crdnicas, encon- ramos clementos de interatividade, nos didlogos explicitos com os leitores; de virtualidade, na invengio de um leitor “tipo” que serve de interlocutor; ¢ hipertextuais nas interferéncias do autor — caracteristicas essas que vamos encontrar, nas reinvengées.narrativas da Internet, Por trés das brincadeiras muitas vezes desconexas dos blogs, existem elementos da narrativa ficcional, da crdnica ¢ do diétio, confirmando esta necessidade social de narracéo, ou seja a necessidade de leicura e de encantamento da vida. (bso tcsanatsdcts) 52 (contempordhed) 3 20042 REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ALENCAR, José de. Feo completa e outros excrtos. Rio de Janeiro: Aguilar, 1965. ____. Ao correr da pena. S40 Paulo: Melhoramentos, 1955. ALMEIDA, Manuel Anténio. Memérias de um sargento de milfcias. Sio Paulo: Ediouro, (s.d.), AMOROSO LIMA, Alceu. Jornalismo como género literério. Rio de Janeiro: 1968. ARNT, Hétis. A influéncia da literature no jornalismo: O folhetim e a cronica. Rio de Janeiro: E-Papers, 2002, ASSIS, Machado. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1986. BALZAC, Honoré. Ocuvres de H. de Balzac. Paris: Alexandre Houssiaux, 1866. EMERY, Edwin. Historia da imprensa nos Estados Unidos, Rio de Janeiro: Lidador, 1965. GREBANIER, Bernard. The essentials of english literature. New York: Barrows Education Series, 1948. MAUROIS, André. Promethée ou la vie de Balzac. Paris: Hachette, (s.d.) MEIDER, Chatles. The complete humorous sketches and tales of Mark Twain. New York: Double Day Company, 1961. sop! Civilizas Nelson Werneck. A histéria da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Brasileira, 1966, WEILL, Georges. Le journal — origines, évolution et réle de la presse périodique. Paris: La renaissance du livre, 1934, (bso tcsanatsdcts)

You might also like