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Indice AGRADECIMENTO 9 AGRADECIMENTO DOS TRADUTORES au Intnopugio ... 13, I =A conquista da gloria 00... 000ee0seeee es 19 X Il — Exigéncias neuréticas .... 44 I — A tirania do “dover” 0... ...eeeeeee . TK IV — Orgulho neurético 94 V — Odio ¢ desprézo por si mesmo .....-. 121 VI — Alheamento do “eu” .... VII — Medidas gerais pare aliviar a tensao VIII — Solugdes expansivas: A sedugao do dominio IX — A solugdo auto-anuladora: A sedugdo do amor 231 X — Dependéncia mérbida ... XI — Resignagéo: A sedug&o da liberdade ......- 280 XII — Perturbapées neurdticas nas relagdes humanas 314 XII — Perturbagées neuréticas no trabalho ......-- 333 XIV — Vias da terapéutica psicanalitica .....+.++ + 358 XV — Consideragdes tebricus .....sseeee nese eee 398 BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA . INDICE DE NOMES E DE ASSUNTOS . CAPITULO IL Exigéncias neuréticas M SUA CONQUISTA DA GLORIA, 0 neurdtico perde-se no mundo da fantasia, do infinito, das possibilidades ilimitadas, mas parece, externamente, levar uma vida “normal”, como membro da famflia e da comunidade, trabalhando e participando de atividades recreativas. Sem que disso se dé conta ou, pelo menos, sem se dar conta da extensio do fato, éle vive em dois mundos separados — o da sua vida privada e secreta, e o da sua vida oficial. E ésses dois mundos nao sao harménicos; repetindo a expressio de um paciente, j4 mencionada: “A vida é horrivel; é tao cheia de realidades !” Nao importa o quanto o neurético procure evitar defron- tar-se com a realidade que ela, forgosamente, se intrometer4 na sua vida, de dois diferentes modos. O individuo pode ser muito bem dotado, mas, em esséncia, continuar4 igual a todo mundo: cheio de limitagdes humanas e com muitas dificulda- des individuais a superar. O seu “eu” real nao coincide com a sua imagem endeusada, nem o mundo real o trata como um deus. Também para éle a hora tem apenas sessenta minu- tos; também éle precisa entrar em filas, como todos os outros individuos; também éle é tratado como um mortal qualquer, pelo chofer de t4xi cu pelo seu patrao. As indignidades a que um tal individuo se vé exposto estéo bem simbolizadas num pequeno incidente da infancia de uma paciente. Tinha trés anos, e, uma vez, estava devaneando, imaginando-se uma rainha, quando um seu tio pegou-a ao colo e exclamou: “Puxa, mas que cara suja!” Ela nunca se esqueceu da raiva impotente que sentiu nesse momento, Désse modo, uma pessoa assim esta quase sempre se defrontando com discrepancias inexplicdveis e dolorosas. Como proceder em relagdo a elas? Como explica-las, como reagir contra elas e como se desfazer delas? Enquanto o seu endeusamento Exigéncias neurdticas 45 pessoal fér de tal maneira indispensdvel, que nio possa ser tocado, o individuo sé poderd concluir que existe algo de errado no mundo. Ele deveria ser diferente; assim, em vez de modi- ficar as suas ilusdes, o individuo queixa-se do mundo exterior. De acérdo com as grandiosas ilusdes que nutre a seu respeito, acha que tanto o estino quanto as outras pessoas deve ter deleréncias especiais para com éle. Todos os outros indi- viduos deveriam respeitar as suas ilusGes, e tudo o que se manifestar contra elas é injusto. Fle merece uma oportuni- dade melhor. O neurdtico acha que os outros tém a obrigagio de lhe dispensar atengdes especiais, mais consideragio e deferéncia. Esta necessidade de deferéncia é bastante compreensivel, e as vézes 6bvia, mas é conveniente notar que ela é, apenas, uma parte de uma exigéncia mais ampla: a satisfagao de tddas as exigéncias decorrentes das suas inibigées, receios e conflitos, e o respeito pelas solugdes que oferece. Além disso, tudo o que pensa, sente ou faz nao devera ter conseqiiéncias adversa: Isso significa, realmente, pretender que as leis psicolégicas nao se apliquem a éle. Conseqiientemente, nao precisa reconhecer as suas dificuldades, ou, entao, introduzir quaisquer modifi- cagdes nelas. Néo mais compete a éle a tarefa de cuidar dos seus problemas; os outros é que devem evitar atrapalhd-lo. Harald Schultz-Hencke(*), um psicanalista alemio, foi o primeiro dos analistas modernos a perceber estas exigéncias, abrigadas pelos neurédticos. Chamou-as Riessenanprueche (exi- géncias de gigante), e atribui-Ihes uma importancia crucial no processo neurético. Ainda que partilhe da sua opinido a respeito da importancia dessas exigéncias, 0 meu conceito a respeito delas difere do déle em varios Pontos. Nao creio que a denominagao proposta seja apropriada; é enganadora, por- que sugere que as exigéncias mencionadas sao excessivas, em relagdo ao seu conteido. & bem verdade que, muitas vézes, elas, nao sémente parecem excessivas, como inteiramente fan- tasticas; mas, também é verdade que, em outros casos, essas exigéncias parecem ser perfeitamente razo4veis. Atentar para o conteido exorbitante dessas exigéncias, torna muito mais (1) Hana 5S: -Hencus: a pay ghana? Scwoura-Hexcis: Einfuehrung zur Prychoanalyse (Introdurdo 46 Neurose e desenvolvimento humano dificil distinguir, no proprio individuo e nos outros, as que parecem racionais. Tomemos, como exemplo, 0 caso de um homem de negé- cios, que se exaspera porque nao ha trem num hordrio que lhe seja conveniente. Um amigo, que sabe nao estar em jégo nada de importante, pode-lhe dizer que éle é por demais exi- gente; mas, 0 nosso homem responderia com outra manifes- tagio de indignacio, como se 0 amigo nio soubesse o que estava falando; éle é um homem ocupado, e é perfeitamente razoavel desejar que haja um trem, num hordario conveniente. Esse desejo nao deixa de ser razoavel. Quem nao desejaria que os horarios das estradas de ferro féssem feitos de acérdo com os seus interésses? Mas, nds nao temos ésse direito. E isso leva-nos ao Amago da questao: um desejo ou necessidade perfeitamente compreensivel, transforma-se numa exigéncia, e a sua nao-satisfacao é, entaéo, sentida como uma frustracaio injusta, uma ofensa, capaz de nos pdr, justamente, indignados. A diferenga entre uma exigéncia e uma necessidade é perfeitamente nitida, Entretanto, quando correntes psiquicas subterraneas transformam esta naquela, 0 neurdtico nao sé nao percebe essa transformagéo como nao quer mesmo percebé-la. Refere-se a um desejo natural e perfeitamente compreensfvel, uando, na realidade, se trata de uma exigéncia; sente-se com ireito a muitas coisas, que um pouco de raciocinio claro mos- traria que nao sao, obrigatériamente, suas. Estou, no momento, pensando em certos pacientes que ficam bastante indignados quando sao multados, por estacionarem em certo lugar, mais do que o tempo permitido. Novamente, 0 desejo de “ficar livre” da multa é perfeitamente compreensivel, mas nao Thes assiste o direito de se verem livres dela, Mas, argumentam (se é que, realmente, 0 fazem) dizendo que muita gente nao é multada e que, portanto, nio é justo que éles o tenham sido. Por essas razées, parece-nos melhor falar, simplesmente, de exigéncias irracionais ou neuréticas. Sao necessidades neu- réticas que o individuo, inadvertidamente, transforma em exi- géncias; sio irracionais, porque o individuo se arroga direitos e titulos que, realmente, nao existem. Em outras palavras: so excessivas pelo préprio fato de se revestirem do carater de exigéncias, ao invés de serem reconhecidas como necessidades neurdticas, apenas. O contetdo especial das exigéncias desen- volvidas varia nos seus pormenores, de acérdo com a particular Exigéncias neuroticas 47 estrutura neurética que estamos considerando. Mas, de um modo geral, podemos, entretanto, afirmar que o paciente acha- se com direito a tudo que lhe parece importante; com direito a satisfazer todas as suas particulares exigéncias neurdticas. Quando se fala em uma pessoa exigente, pensa-se logo em exigéncias feitas a outras pessoas e, de fato, as relagdes huma- nas constituem um importante campo para o desenvolvimento de exigéncias neuréticas. Mas, seria demasiadamente restrito considerar apenas essa espécie de exigéncias, porque elas tam- bém se dirigem as instituigdes humanas e a prépria vida. Um paciente, aparentemente timido e introvertido, e que, sem o perceber, sofria de uma inércia penetrante e sentia-se completamente inibido para concentrar os seus préprios recur- sos em alguma agdo, uma vez, expressou muito bem uma exi- géncia geral, em térmos de relagdes humanas, dizendo: “O mundo deveria estar ao meu servigo, e eu nao deveria ser aborrecido”. Outra exigéncia igualmente compreensivel era cultivada por uma mulher que, bem no intimo, tinha médo de duvidar de si prépria. Sentia-se no direito de ver satisfeitas todas as suas necessidades. Uma vez, disse: “E inadmissivel que um homem, que desejo que me ame, nao o faga”. A principio, as suas exigéncias afloraram em térmos religiosos: “Tudo que pego em minhas preces me é concedido”. No seu caso, as exi- géncias tinham uma segunda face: nio podendo admitir que qualquer desejo seu nao fésse satisfeito, tratava de limita-los, a fim de nfo se arriscar a uma “derrota”. As pessoas que apresentam a necessidade de estar, sempre, certas, julgam-se com o direito de estarem ao abrigo de qual- quer critica, divida ou pergunta; as que apresentam a neces- sidade de poder, julgam-se com o direito de exigir uma obe- diéncia cega, da parte dos outros individuos; as que passaram a considerar a vida como um jégo, em que todos devem ser manipulados cuidadosamente, julgam-se com o direito de enga- nar a todos, e de nao ser enganados nunca; as que tém médo de enfrentar os seus conflitos, julgam-se com o direito de passar por cima dos seus problemas, ou, entio, de evité-los; as que sao agressivamente exploradoras, que intimidam os outros, com o fito de passar-lhes a perna, acham injusto que os outros individuos insistam num jégo limpo; finalmente, a pessoa arrogante e vingativa, que se vé compelida a ofender 48 Neurose e desenvolvimento humano os outros, mas que, apesar disso, necessita do seu apoio, julga- se com o direito de gozar de “imunidades”. Apesar de tudo o que faz aos outros, acha que ninguém deveria se ofender com o seu modo de proceder. A “compreensio” é uma versio diferente da mesma exigéncia. Nao importa o quanto um individuo é irritavel ou rabugento: deve ser compreendido. O individuo que considera 0 “amor” como uma solugao para os seus conflitos, canaliza as sugs exigéncias no sentido de uma devogio exclusiva e incondicional. A pessoa desprendida, que parece absolutamento sem exigéncias, insiste, contudo, numa coisa: que nao a aborregam; sente que nao quer nada de ninguém e, por isso, acha que deve ser deixada em paz, seja 14 a que respeito for. “Nao ser aborrecido” geralmente signi- fica estar isento de criticas, dispensado de satisfazer qualquer exigéncia alheia e livre de realizar qualquer esférgo, mesmo que seja no seu prdéprio beneficio. Os exemplos dados constituem uma boa ilustragao das exigéncias neurdéticas, que agem nas relagées entre indivi- duos. Em situagdes mais impessoais, ou em relagao a institui- imperarao as exigéncias de contetido negativo. As leis e goes, lamentos serio considerados justos, quando resultar os re; déles algum beneficio, e injustos, em caso contrario. Durante a ultima guerra ocorreu comigo um acidente, que, felizmente, serviu para alertar-me a respeito das exigéncias inconscientes que abrigava em mim, e que, conseqiientemente, contribuiu para a compreensio de idénticas exigéncias da parte dos outros individuos. De volta de uma viagem ao México, fui obrigada a descer do aviio em Corpus Christi, por causa de certas prioridades. Apesar de considerar o regulamento em causa como perfeitamente justificdvel, em principio, notei que fiquei muitissimo indignada, quando ésse regulamento foi apli- cado a mim propria. Fiquei exasperadissima com a perspectiva de uma viagem de trem até New York — trés dias de viagem — e senti-me muito cansada. Contudo, ao pensar que o inci- dente, talvez, tivesse sido providencial, porque poderia aconte- cer qualquer coisa com o avido, toda a sensagao de aborreci- mento passou. Nesse momento percebi, de repente, o ridiculo das minhas reagdes. Comecando a pensar nelas, reconheci claramente as minhas exigéncias: 1) ser a excegdo e 2) ser a filha dileta da Exigéncias neuroticas 49 providencia. E a partir désse instante, mudou completamente a minha atitude em face da viagem por trem. E claro que, com isso, a minha viagem em carros superlotados nao se tornou menos inconfortavel, mas desapareceu a sensagao de cansago que sentia, e€ cheguei, mesmo, a apreciar a viagem. Creio que qualquer pessoa tem uma experiéncia seme- lhante que se passou consigo prépria ou com outras pessoas, para contar. As dificuldades que muita gente experimenta, de obedecer aos regulamentos de transito, por exemplo — pedes- tres ou motoristas — resultam, muitas vézes, de um protesto inconsciente contra éles, Eles acham que nao deveriam estar sujeitos a ésses regulamentos, Outros aborrecem-se com a “insoléncia” do banco, quando acontece de éste chamar-lhe a atengio para o fato de estarem sacando quantias superiores aos seus fundos. Da mesma forma, muitas vézes, 0 médo de exame, ou a incapacidade de se preparar para éles, origina-se de uma exigéncia de isengao; ou, entao, a indignagao demons- trada perante uma representagao ma, pode derivar da sensagao de ter direito a um espetaculo de primeira classe. Essa exigéncia de ser uma excegao também pode aparecer em relagao as leis naturais, psicolégicas ou fisicas. E espantoso como certos pacientes inteligentes demonstram falta de com- preensio, quando se trata de verificar a inexorabilidade da relagao de causa e efcito, em assuntos psicoldgicos. Refiro-me a certas conexdes evidentes, tais como as seguintes: se dese- jarmos conseguir aiguma coisa, deveremos trabalhar para obté- Ja; se desejarmos ser independentes, deveremos tentar assumir a responsabilidade de nés préprios; ou, enquanto formos arro- gantes, seremos vulneraveis; enquanto nio nos amarmos, nao poderemos crer que os outros o fagam e, naturalmente, suspei- taremos da sinceridade de qualquer prova de amor. Quando apresentamos essas seqiiéncias de causa e efeito a alguns pa- cientes, éles comegam a discutir ou, entao, tornam-se evasivos ou nebulosos. Muitos sao os fatéres envolvidos na produgao desta obtu- sidade especial(*). Devemos nos convencer, em primeiro lugar, que fazer 0 paciente compreender essas relagdes de causa e efeito, significa fazé-lo encarar a necessidade de mudangas (2) CE. o Capitulo de Fragmentagho Psi the Resigned ‘Person’ Pesson Resignada”). I, “The Process of Psychic Fragmentation” (“0 Processo ) e o Capitulo XI, “The Aversion against any Change in versio Contra ‘Qualquer Mudanga, Apresentada pela 50 Neurose e desenvolvimento humano internas. E, naturalmente, muito diffcil mudar qualquer fator neurotico. Além disso, conforme jd tivemos oc » de observar, muitos pacientes tém intensa aversio inconsciente em reconhe- cer que podem estar sujeitos a qualquer necessidade. As pré- prias palavras “regulamentos”, “necessidades” ou “restrigdes” sio capazes de fazé-los ficar arrepiados, quando permitem que o significado dessas palavras cale fundo nos seus {ntimos. No seu mundo particular, tudo é possivel para éles. Como conse- qiiéncia, o reconhecimento de qualquer necessidade referente a éles, arrasta-os do seu mundo superior para a realidade, onde estariam sujeitos as mesmas leis naturais, que governam a exis- téncia de todos os outros individuos. E ésse impulso para eli- minar das suas vidas as necessidades, que se transforma numa exigéncia. Durante a anilise, ésse fato transparece na sensagio de que éles estéo acima da necessidade de transformar-se. Recusam-se, assim, inconscientemente, a ver que precisam mudar as suas atitudes interiores, se desejarem tornar-se inde- pendentes ou menos vulnerdveis e se quiserem ser capazes de acreditar na possibilidade de serem amados. Certas exigéncias secretas, relativas a vida em geral, sao, ainda, mais espantosas. Neste particular, desaparecem tddas as dividas que possamos manter a respeito do carater irracio- nal das exigéncias neuréticas. Naturalmente o reconhecimento de que, também para éle, a vida é precaria e limitada, que o destino pode, a qualquer momento, atingi-lo, por meio de um acidente, uma falta de sorte, uma doenca ou a morte, e ani- quilar, assim, o seu sentimento de onipoténcia, destruiria a sensagao de endeusamento de qualquer individuo, porque ( (para repetir uma antiga verdade) muito pouco poderiamos fazer para evitar ésses fatos. & verdade que podemos evitar certos perigos mortais e que, atualmente, podemos, mesmo, proteger- nos contra desastres financeiros, decorrentes da morte; mas, a morte, ela prépria, nao pode ser evitada. Incapaz de suportar a idéia da precariedade da sua vida como um ser humano, o individuo neurético desenvolve exigéncias de inviolabilidade ou de invulnerabilidade, ou de ter, sempre, a sorte ao seu lado, ou da vida ser facil e sem sofrimentos. Ao contrério do que acontece com as exigéncias relativas as relages humanas, as que se dirigem a vida em geral nao podem ser efetivamente colocadas. O neurdtico préso dessas exigéncias tem apenas duas coisas a fazer, a saber: pode negar, Exigéncias neuroticas 51 mentalmente, que lhe possa acontecer algo, ou cair no outro extremo. No primeiro caso, torna-se afoito: expde-se ao mau tempo, quando est com febre, nao se precavém contra possi- veis infecgdes ou mantém relagdes sexuais, sem tomar precau- gdes; em resumo: vivera como se nunca fésse envelhecer ou morrer. Assim, é natural que qualquer adversidade com que se defronte represente uma experiéncia abaladora e seja capaz de provocar-Ihe um médo panico. O fato em causa pode ser extremamente trivial, mas, nem por isso, deixa de destruir as suas crengas extraordindrias de inviolabilidade. Pode, entio, cair no extremo oposto, e tornar-se excessivamente cuidadoso. Se j& ndo pode confiar em que a sua inviolabilidade seja devi- damente respeitada, entdo, tudo podera lhe acontecer. Mas, isso nao quer dizer que éle tenha abandonado as suas exigéncias neuréticas; éle, apenas, nao mais quer se expor a novas provas da sua futilidade. Algumas outras atitudes em relagéo 4 vida e ao destino parecem mais sensatas, desde que nao se reconhecam as exi- géncias que se escondem por detrés delas. Muitos pacientes revelam, direta ou indiretamente, um sentimento de injustiga por causa das dificuldades que sofrem. Quando falam dos seus amigos, assinalam que, apesar de também serem neuréticos, alguns sentem-se mais 4 vontade em determinadas situagdes sociais, outros sio mais bem sucedidos com as mulheres, e outros séo mais agressivos ou aproveitam melhor a vida. Ape- sar de fuiteis, essas divagagdes parecem compreensiveis. Afinal de contas, cada um sofre com as suas dificuldades pessoais, e talvez preferisse nao ser afligido exatamente pelos problemas que tem. Entretanto, as reagoes de um désses pacientes peran- te uma dessas pessoas “invejéveis” indicam um processo mais sério. Por exemplo, pode ficar resfriado repentinamente, ou desanimado. Mas, analisando essas reagées, verificamos que as suas origens residem numa rigida exigéncia de uma completa isengao de problemas. O paciente acha que tem o direito de ser mais bem dotado do que qualquer outra pessoa. Mais ainda, julga-se com o direito de ter uma vida completamente livre de problemas pessoais, além de posuir tédas as qualida- des apresentadas pelas pessoas que conhece realmente ou que, apenas, viu nas telas dos cinemas, por exemplo: a humildade e a inteligéncia de Charles Chaplin; a humanidade e a cora- gem de Spencer Tracy; a virilidade triunfante de Clark Gable. 52 Neurose e desenvolvimento humano Mas, a exigéncia “de que eu nao deveria ser eu” é por demais irracional, para manifestar-se sob esta forma nua e crua. Ape- rece, entaéo, sob o disfarce de uma inveja cheia de ressenti- mentos, em relag&o a qualquer pessoa que seja melhor dotada, ou mais afortunada no seu desenvolvimento; também, pode-se manifestar por uma imitagao ou adoragio dessas pessoas ou, ainda, por uma stplica dirigida ao analista, para que éste lhe conceda tédas essas desejAveis, mas por vézes contraditérias, perfeigdes. A exigéncia de possuir ésses atributos supremos implica, muitas vézes, em deformagdes; causa descontentamento e inveja crénicos e abrasadores, além de constituir um entrave para o trabalho analftico. Se considerarmos uma injustica o ato de o paciente apresentar dificuldades neuréticas, muito mais injusto ainda sera esperar que éle seja capaz de resolver os seus problemas. Muito ao contrario: éle julga-se com o direito de ver-se livre das suas dificuldades, sem a obrigagao de passar pelo laborioso processo da mudanga. Este apanhado a respeito das espécies de exigéncias neu- réticas nao é completo. Desde que cada uma das necessidades neuréticas pode-se transformar numa exigéncia, para obtermos um quadro completo dessas exigéncias seria preciso que tra- tAssemos cada uma delas isoladamente. Entretanto, uma r4pida vista d’olhos j4 é suficiente para que possamos dar-nos conta da sua natureza téda especial. ‘Tentaremos, agora, aclarar melhor as suas caracteristicas comuns. Em primeiro lugar, as exigéncias neuréticas sao irreais sob dois aspectos. O neurético arroga-se um direito, que sé existe no seu pensamento, e nio da muita importancia — se é que da alguma — as possibilidades de essas exigéncias virem a ser satisfeitas. Isso é dbvio nas exigéncias fantasticas de nao ficar doente, de nio envelheter, de nado morrer, mas também vale para tédas as outras. A anfitria que se cré com o direito de ver aceitos todos os convites que faz, fica ofendida quando alguém declina 0 convite recebido, sem se importar com as raz6es que levaram o convidado a agir dessa forma. O cientista que acha que nao deve encontrar dificuldade em coisa alguma, aborrece-se com o esférgo que deve despender para escrever um trabalho ou fazer um experimento, mesmo que ambos se- jam muito necessdrios e mesmo quando compreende que nao Exigéncias neuréticas 53 pode conseguir realizd-los sem um incdmodo trabalho. Da mesma forma, o alcodlatra que se julga com o direito & ajuda de todos num impasse financeiro acha injusto que essa ajuda nao seja pronta, e dada com a melhor boa vontade, nao se importando se os outros estéo ou néo em condigdes de pro- porcioné-la. Esses exemplos indicam implicitamente uma segunda caracteristica das exigéncias neuréticas: 0 seu egocentrismo. Este, muitas vézes, é tao berrante, que parece “ingénuo” ao observador, fazendo-o lembrar-se de atitudes semelhantes em criangas muito mimadas. Estas impressdes tendem a emprestar corpo 4 conclusio tedrica de que tais exigéncias nao passam de tragos “infantis” de cariter em pessoas que (pelo menos neste particular) nao cresceram. Essa conclusio, entretanto, é falaz. E verdade que a crianga pequena é egocéntrica, mas isso se deve apenas ao fato de ela ainda nao ter desenvolvido © seu sentimento de relagdo com o préximo; ela, simplesmente, ainda nao sabe que os outros individuos também tém necessi- dades e limitagdes — por exemplo, que a sua mie precisa dor- mir, ou que nao tem dinheiro para lhe comprar um brinquedo. O egocentrismo do neurético fundamenta-se numa base com- pletamente diversa e muito mais complicada. O neurético mostra-se preocupado consigo proprio por estar sendo espica- gado pelas suas necessidades psiquicas, dilacerado pelos seus conflitos, compelido a ser fiel 4s suas préprias solugdes. Trata- se, pois, de dois fendmenos que séo realmente diversos, apesar de apresentarem tracos semelhantes. Segue dai que nao ha nenhum interésse, do ponto de vista terapéutico, em dizer ao paciente que as suas exigéncias sao infantis. Para éle, essa afirmagio apenas poderia significar que elas sao irracionais (fato ésse, que o analista poderia lhe demonstrar de maneira mais convincente), ¢ 0 mais que isso poderia fazer seria obriga- lo a pensar. Se nao houver um grande trabalho posterior de andlise, essa afirmagao nfio produzira nenhuma mudanga no neur6tico. A distingao entre ésses dois egocentrismos jA foi discutida suficienternente. O egocentrismo das exigéncias neurdticas pode ser resumido em térmos da minha prépria experiéncia revela- dora, que citei mais atrds: sio muito justas as prioridades, em tempo de guerra, mas as minhas préprias necessidades deveriam ter prioridade absoluta. Se o neurético se sente 54 Neurose e desenvolvimento humano doente, ou deseja qualquer coisa, todos devem, imediatamente, abandonar o que estao fazendo, para socorré-lo no mesmo instante. Quando o analista afirma, polidamente, que nio dispde de tempo para uma consulta, muitas vézes, recebe uma resposta furiosa ou insultante ou, entéo, simplesmente, essa afirmagio nao é levada em consideragéo; se o paciente necessita de uma consulta, tem de haver tempo para isso. Quanto mais o neurético se distanciar do mundo que o cerca, menos se dard conta dos outros individuos, e do que possam sentir. E elucidativa a frase dita, uma vez, por um paciente, que demonstrava soberano desprézo pela realidade: “Eu sou um cometa isolado, varando o espago. E isso quer dizer que é real apenas o que necessito — os outros, com as suas neces- sidades respectivas, sdo irreais”. A terceira caracteristica das exigéncias do neurético reside no fato de que éle espera obter as coisas, sem fazer esforcos para conquistd-las. Quando esta s6, nio admite que precise chamar alguém para lhe fazer companhia; ésse alguém é que tem a obrigagao de procurd-lo. O simples fato de saber que, para emagrecer, é preciso comer menos encontra tal oposigao interior, que o neurético continua a se empanturrar, apesar de continuar achando que é uma injustiga que éle nao seja tao elegante quanto os outros individuos. Outro pode querer que The oferegam um trabalho honrado, um emprégo melhor, ou um aumento de salario, sem que nada tenha feito por mere- cé-lo, e, o que é, ainda, pior, sem que o pega. Nem mesmo precisaria ter uma idéia clara daquilo que deseja; deveria estar em condigées de aceitar ou recusar qualquer coisa. Freqiientemente, um individuo pode expressar, em pala- vras adequadas e tocantes, o quanto deseja ser feliz, mas a sua familia e os seus amigos, depois de algum tempo, verificam o quanto é dificil fazé-lo feliz. Pode, entéo, acontecer de dize- rem-lhe que ha néle alguma coisa que o impede de ser feliz, e isso pode leva-lo a procurar um analista. O analista considerara o desejo de felicidade apresentado pelo paciente como um bom motivo para procurar ajuda, mas perguntard a si proprio por que nao é éle feliz, apesar de todos os seus desejos de felicidade. Ele dispde de muitas coisas, que a maioria das pessoas apreciariam: um lar agraddvel, uma boa espésa, uma posigdo financeira estavel. Entretanto, nada disso importa muito, nem éle se interessa bastante por nada. Exigéncias neuroticas 55 O quadro demonstra existir muita passividade e auto-indulgén- cia, J4 na primeira sessio, o analista observa que ésse indi- viduo nao fala das suas dificuldades, mas desfia um rosario de desejos, de um modo algo petulante; e a segunda sesso confirma as primeiras impressdes. A inércia apresentada pelo paciente aparece como o primeiro entrave do trabalho anali- tico e, entao, o quadro torna-se claro. Estamos em presenga de alguém, que esta atado de pés e mios, alguém que é inca- paz de canalizar os seus préprios recursos e que est4 cheio de exigéncias, no sentido de que lhe é devido, na vida, tudo © que existe de bom, inclusive a paz de espirito. Eis um outro exemplo da exigéncia neurética de auxilio sem 0 correspondente esf6rgo préprio, capaz de aclarar melhor a natureza dessas exigéncias. Um paciente, que foi obrigado a interromper durante uma semana o trabalho de anilise, estava perturbado com um problema qualquer, que surgira durante a Ultima sessio. Nessa ocasido havia expressado o desejo, alias, perfeitamente natural, de resolver a dificuldade antes de sair. Esforcei-me, entio, tanto quanto possivel, para chegar 4 origem désse especial problema, mas, dentro em pouco, convenci-me de que o paciente quase nao cooperava. Parecia que eu preci- sava arrasté-lo. A medida que 0 tempo passava, comecei a sentir que o paciente se irritava cada vez mais. E, de fato, responden afirmativamente a uma pergunta direta que lhe fiz: é claro que estava irritado, pois nao queria carregar durante téda uma semana aquéle problema e eu ainda nada dissera que o pudesse aliviar. Respondi-lhe que o seu desejo era absoluta- mente justificado, mas que parecia ter-se transformado numa exigéncia neurética, 0 que ja nao seria sensato, e acrescentei: o encontro de uma possivel solugdo para o problema dependerd da sua acessibilidade no momento, e da produtividade que apresentarmos, mas que deveria haver qualquer coisa que o impedia de se esforgar, no sentido do objetivo desejado. Depois de muito vaivém, que nao € necessdrio relatar aqui, 0 pa- ciente foi obrigado a reconhecer a verdade do que eu dissera. A irritagao desapareceu, da mesma forma que a exigéncia irra- cional e a impressio de urgéncia. Revelou-me, entéo, um fator importante: parecera-Ihe que féra eu a causa do problema e, portanto, que caberia a mim resolvé-lo. No seu entendi- mento, como seria eu responsavel ? Fle nao queria dizer que eu cometera um érro; convencera-se, apenas, na sessio ante- 56 Neurose e desenvolvimento humano rior, de que ainda nao conseguira desfazer-se do seu senti- mento de vinganga, do qual, alias, apenas comegara a se dar conta. Na verdade, nessa ocasiao, nfo queria se desfazer désse sentimento, mas, apenas, de certos aborrecimentos que 0 acom- panhavam. E, como eu nao fora capaz de satisfazé-lo nas suas exigéncias de libertagao imediata, julgou-se com o direito de, em retribuig’o, ter exigéncias vingativas. Com essa explicacao ficaram perfeitamente claras as raizes da sua queixa: a recusa interior de assumir a responsabilidade de si mesmo, e a ausén- cia de um auto-interésse construtivo. Isso o paralisava, impe- dia-o de fazer qualquer coisa em seu proprio beneficio e dava origem & necessidade de que alguém — neste caso o ana- lista — arcasse com téda a responsabilidade e arranjasse tudo para éle. E também essa necessidade transformou-se numa exigéncia neurdtica. Este exemplo mostra a quarta caracteristica das exigéncias neuréticas, isto é, 0 seu carater vingativo. O individuo pode se sentir prejudicado, e experimentou uma necessidade de retri- buigéo. H4 muito tempo que ésse fato é conhecido; é, clara- mente, 0 que acontece nas neuroses traumaticas e em certos estados parandicos, Também a literatura apresenta muitos exemplos désse processo: Shylock insistindo em receber a libra de carne e Hedda Gabler exigindo extravagancias supérfluas, no préprio instante em que sabe que o seu marido, provavel- mente, nao ia conseguir a cdtedra que almejavam. O problema que pretendo levantar aqui é 0 de saber se o contetido vingativo é um elemento freqiiente, se nao constante, das exigéncias neuréticas. & natural que varie, de individuo para individuo, o grau de consciéncia com que ésse contetido se apresenta. No caso de Shylock, por exemplo, o elemento em causa era plenamente consciente; no caso do aborrecimento demonstrado pelo meu paciente éle estava no limiar da cons- ciéncia; mas, na maioria dos casos, éle é inteiramente incons- ciente. A minha experiéncia pessoal faz com que eu duvide da ocorréncia obrigatéria do elemento vingativo nas exigéncias neurdticas, mas éle é encontrado tantas vézes que estabeleci como regra de rotina a sua pesquisa. Conforme j4 tive ocasiao de mencionar, na estrutura da necessidade de um triunfo vin- gativo existe um montante relativamente grande de ocultos sentimentos de vinganga, sentimentos ésses, alids, que sao encontrados em quase tédas as neuroses. Sempre que se faz Exigéncias neuréticas 57 exigéncias relativas a frustrag6des e sofrimentos passados, sem- pre que’ essas exigéncias assumem tom belicoso, e sempre que a satisfagio dessas exigéncias é recebida como um triunfo, e a sua frustragio, como uma derrota, podemos estar seguros de elementos vingativos estarem operando. Qual é 0 grau de consciéncia que os diversos individuos tém das suas exigéncias ? Quanto mais fortemente a opiniao que um individuo tem a respeito de si mesmo e do mundo exterior f6r determinada pela sua imaginagio, mais de acdrdo com as suas necessidades serao a sua vida e éle préprio. Entao, éle n&o conseguira perceber que abriga na sua mente necessi- dades ou exigéncias neuréticas, e a simples mengiio dessa possi- bilidade é recebida como uma ofensa. Os outros individuos, simplesmente, ndo o deixam, nunca, 4 espera. Da mesma forma, éle, simplesmente, ndo sofre acidentes, nem envelhece; 0 tem- po, naturalmente, estd bom, quando éle vai fazer uma excursio; acontecem-lhe coisas boas, e éle consegue tudo. Mas, ha outros neuréticos que parecem dar-se conta das suas exigéncias, porque exigem especiais privilégios, aberta- mente e sem nenhum constrangimento, Entretanto, aquilo que é dbvio para o observador pode nao ser para a propria pessoa. Aquilo que o observador vé e aquilo que o observado sente sio duas coisas completamente diferentes, Assim, uma pessoa, que faz exigéncias de um modo agressivo, pode, quando muito, dar-se conta de certas expressdes ou implicagées dessas exigén- cias, tais como a impaciéncia e a incapacidade de aceitar algo em contrario. Pode, perfeitamente, reconhecer que nao gosta de pedir coisas, ou de dizer muito obrigado. Mas, ter cons- ciéncia disso é muito diferente de dar-se conta de que se julga com 0 direito de exigir que os outros fagam exatamente aquilo que deseja. Pode ter consciéncia de que, as vézes, é afoito, mas, geralmente, adorna essa afoiteza com atributos de auto- confianga ou coragem; por exemplo pode abandonar um bom emprégo sem ter nenhum outro em perspectiva, e considerar isso como uma prova de autoconfianga. E claro que ésse proce- dimento pode, mesmo, ser uma prova de autoconfianga, mas, também, pode ser uma demonstragio da existéncia de uma afoiteza, resultante da crenga de ser um protegido do destino. Pode acontecer de ter consciéncia de que, em algum secreto escaninho da sua mente, abriga a idéia de que nao morrer4 58 Neurose e desenvolvimento humano nunca, mas isso nfo significa que tenha consciéncia de que se julga com o direito de estar acima das limitagées bioldgicas. Em outros casos, a existéncia de exigéncias neuréticas néo é percebida nem pela pessoa que as abriga, nem pelo observa- dor destreinado, Entao, éste aceitara as razdes apresentadas para justificar as exigéncias feitas, quaisquer que sejam essas razées, e isso, em geral, é devido mais a tendéncias neuréticas do proprio observador do que a uma falta de conhecimentos psicolégicos. Por exemplo, por vézes, poder4 achar incémodas as exigéncias que a sua espdsa, ou a sua amante, faz a respeito da sua companhia, mas, por outro lado, a sua vaidade fica muito satisfeita, por julgar-se indispensavel. Da mesma forma, uma mulher pode fazer exigéncias demasiadas, alegando inca- pacidade ou doenga. Ela mesma perceber4, apenas, as neces- sidades. Conscientemente, poder4, mesmo, tomar cuidados especiais para nao aborrecer os outros. Mas, ésses outros, entre- tanto, podem apreciar o papel de protetor ou de auxiliar, ou ent&o, em virtude das suas normas secretas, sentirem-se “culpa- dos” se nao corresponderem ao que se espera déles, no caso. Entretanto, é preciso notar que, mesmo que certa pessoa dé-se conta de que abriga certas exigéncias, ela nunca percebe o seu cardter irracional ou justificdvel. Alids, qualquer divida quanto a validade dessas exigéncias ja seria um primeiro passo para a sua eliminacgao. Portanto, enquanto essas exigéncias forem importantes para éle, 0 neurdtico precisa forjar provas irrefutaveis a respeito da sua legitimidade; precisa estar abso- lutamente convencido da sua justiga. Assim, o neurdtico, que se submete 4 andlise, néo mede esforgos para provar que nio espera nada além do que lhe est4 acontecendo. Reciproca- mente, em beneficio terapéutica, 6 sempre conveniente reconhecer-se a existéncia de uma exigéncia especial, e a natu- reza das justificativas apresentadas em sua defesa, E, como as exigéncias mantém-se e se esboroam em fungao das suas bases, estas convertem-se numa posigio estratégica, Por exem- plo, quando um individuo, alegando os seus méritos pessoais, julga-se com direito a gozar de certas deferéncias especiais, ésse individuo tende, inconscientemente, a exagerar as suas qualidades, para poder sentir-se justamente ofendido, quando essas deferéncias lhe forem negadas. Muitas vézes, motivos culturais sio alegados como justi- ficativas para as exigéncias feitas: porque sou mulher, porque sou Homem, porque sou mae, porque sou oO seu patrao... Ula como nenhuma dessas alegacdes é plausivel ou justificdvel nem pode servir, realmente, de base as exigéncias feitas, < sua importancia deve, necessariamente, ser aumentada. Poi exemplo, nao existe nos E.U.A. nenhum cédigo cultural rigidc que considere o lavar pratos como ofensivo a dignidade mas. culina, Conseqiientemente, quando algum homem pretende estar isento da obrigagaio de fazer trabalhos dessa espécie, ¢ preciso que éle engrandecga a dignidade masculina ou o fatc de ser o esteio econdmico do lar. : A justificativa sempre alegada é a superioridade. A forma geral tipica dessa alegac’o é a seguinte: como eu sou algo de extraordinario, tenho o direito de... E claro que esta forma incisiva da alegagdo de superioridade é, geralmente, inconsci- ente; 0 comum é o individuo emprestar muita importancia ao seu tempo, ao seu trabalho, aos seus planos, e ao fato de estar sempre certo. Aquéles que acham que o “amor” tudo resolve, que o “amor” Thes da direito a tudo, tendem a exagerar a profun- didade ou a importancia désse sentimento — ndo fingindo sentir mais amor do que realmente sentem, mas experimentando, real- mente, mais amor do que o que existe na realidade. Muitas vézes, a necessidade de exagerar tem repercuss6es que podem contribuir para a formagio de um circulo vicioso. Isso é espe- cialmente verdadeiro para aquelas exigéncias que se baseiam na incapacidade e no sofrimento. Por exemplo, muitas pessoas sentem-se intimidadas quando devem fazer perguntas por tele- fone. Ent&éo, quando pedem que alguém lhes faga ésse favor, sentem uma inibi¢fo maior do que a que realmente existe, apenas para tornd-la mais valida. Da mesma forma, se uma mulher sentir-se demasiado deprimida ou incapacitada para tomar conta dos seus afazeres domésticos, sentir-se-4) mais deprimida ou incapacitada do que realmente esta e, natural- mente, sofrera, entéo, ainda mais com isso. Nao devemos, contudo, concluir apressadamente, que é bom fazermos ouvidos moucos as exigéncias neuréticas. Tanto o fato de aceder como o de recusar pode piorar a situacao, isto é, em ambos os casos as exigéncias podem-se tornar mais enfaticas. Em geral, a recusa sd é benéfica se o neurético ja tiver comegado, ou estiver comegando, a assumir a resnnnany 60 Neurose e desenvolvimento humano Talvez seja a alegagaio de “justiga” a base mais sugestiva para as exigéncias neurdticas. Eu sempre acreditei em Deus, sempre trabalhei, sempre fui um bom cidadio; em conseqiién- cia, é perfeitamente justo que nada de mau me acontega e que tudo se faga de acdrdo com as minhas necessidades. Da mesma forma, os beneficios materiais nio passam de uma conseqiién- cia légica do fato de ser-se bom e piedoso, e desprezamos, assim, a evidéncia em contririo, de que a recompensa nao segue obrigatdriamente a virtude. Se revelarmos a existéncia dessa tendéncia a um paciente, éle, em geral, retorquira que © seu senso de justiga também envolve os outros individuos, ¢ que sentira a mesma indignagio, se a injustiga for cometida contra outrem. Essa afirmagio é verdadeira até certo ponto; em todo caso ela apenas revela que a necessidade que experi- menta de apoiar as suas exigéncias na nogio de justiga foi generalizada, transformando-se numa “filosofia”. Essa tendéncia apresenta, ainda, outra caracteristica: a de responsabilizar os outros por tédas as desgragas que lhes suce- dam — éles as mereceram. Mas, o fato de o individuo aplicar, também, a si préprio essa explicagio, vai depender do grau da sua retidio moral. Se for rigida, julgara todas as adversi- dades como injustigas, pelo menos conscientemente. Ser-lhe-a, contudo, mais facil aplicar a lei da “justiga retribuidora” aos outros individuos; talvez a pessoa que esta desempregada nio tenha, “realmente”, vontade de trabalhar; é possivel que os judeus sejam, de algum modo, responsaveis pelas perseguigdes que sofrem. Tratando-se de casos mais pessoais, o individuo sentir-se-4 com o direito de receber exatamente 0 equivalente do que deu, Isso seria perfeitamente razodvel, se nio fdssem dois fatéres que passam despercebidos para éle; os seus proprios valdres positivos assumem proporgdes exageradas na sua mente (con- tando-se, entre éles, as suas boas intengdes, por exemplo), ao passo que ignora as dificuldades que introduziu em determi- nada relagio. Alem disso, muitas vézes, os valéres postos em comparagio sio incongruentes, Por exemplo, um individuo, que esta sendo analisado, pode considerar a seu favor a inten- gao que tem de colaborar, 0 seu desejo de livrar-se de sintomas perturbadores, 0 seu comparecimento regular as sessdes, e 0 pronto pagamento do analista; e, a favor déste, conta-se a obri- gagao de cura-lo. E claro, que, désse modo, infelizmente, nao Exigéncias neuroticas 61 podera haver equilibrio entre os dois pratos da balanga. O paciente sé lograra curar-se se estiver disposto, e apto, a tra- balhar em si proprio, e a transformar-se, Portanto, se as boas intengdes do paciente nao forem acompanhadas por esforgos reais, nada acontecer&. As perturbagées experimentadas repe- tir-se-40 sempre, e 0 paciente, com uma irritagéo crescente, sentir-se-4 enganado; expressara o seu ressentimento por meio de recriminagdes ou de queixas, e achara perfeitamente justi- ficada a crescente desconfianga, que sente pelo analista. O excesso de importancia emprestado ao conceito de jus- tiga pode constituir um disfarce para o sentimento de vinganga, mas nao o € necessariamente. Quando a razao principal das queixas repousa num “negécio” com a vida, 0 neurético, em geral, exagera os seus proprios méritos. Quanto mais vinga- tivas forem as exigéncias, mais enfatica tornar-se-A a ofensa. Aqui, também, a ofensa recebida tem de ser exagerada de tal forma, e 0 seu sentimento cultivado a tal ponto, que a “vitima” sinta-se com o direito a exigir qualquer sacrificio, ou‘a infli- gir qualquer punigio. Como as exigéncias sio absolutamente essenciais para a manutengio de uma neurose, é natural que seja muito impor- tante afirmd-las. & claro que isso sé pode ser feito em relagio a individuos, porque — é desnecessdrio dizé-lo — 0 destino e a vida tém o habito de menosprezar qualquer exigéncia que se Thes fagam. Voltaremos a éste ponto muitas vézes ainda. Por ora, basta dizer que, de um modo geral, a maneira pela qual 0 neurético tenta compelir os outros a satisfazer as suas exigén- cias esta intimamente ligada 4 base sébre que assentam essas exigéncias. Resumindo: pode tentar impressionar os outros ape- nas com a sua importancia; pode agradar, encantar, prometer; pode fazer com que os outros fiquem lhe devendo favores, e tentar cobrar a divida apelando para o seu senso de justiga ou de culpa; exagerando o seu sofrimento, pode apelar para a piedade e para os sentimentos de culpa alheios; exagerando © seu amor ao préximo, pode apelar para o desejo de amor, ou para a vaidade dos outros; pode intimidar pela irritabilidade e pela carranca. O individuo vingativo, capaz de arruinar os seus semelhantes por meio de exigéncias insacidveis, tenta, atra- vés de pesadas acusagoes, conseguir o apoio de que necessita, Considerando-se o grande dispéndio de energias, que a justificagdo e a manutengdo dessas exigéncias implica, s6 pode- 62 Neurose e desenvolvimento humano mos esperar que o individuo apresente intensas reagdes ds suas frustragées. Existem correntes ocultas de médo, mas as res- s que prevalecem sao as reagées de aborrecimento ou, »smo, de raiva, Esse aborrecimento é de uma qualidade téda especial, Como as exigéncias sio subjetivamente percebidas como justas e razodveis, as frustragdes experimentadas serio, naturalmente, injustas e irrazodveis; entéo, o aborrecimento resultante apareceré como uma indignagao perfeitamente jus- tificavel. Em outras palavras: o individuo sente-se, nao somente, zangado, mas com o direito de zangar-se, sentimento ésse que é calorosamente defendido na anilise. Antes de tratar mais profundamente as varias expressdes desta indignagiio, desejo fazer uma pequena incursio no campo teérico, discutindo, em particular, a teoria proposta por John Dollard e outros, que afirma reagirmos hostilmente a qualquer frustragdo; ou seja: na verdade, a hostilidade é, essencial- mente, uma reagio a uma frustragio(*). No entanto, observa- goes muito simples demonstram que essa afirmagéo nao é valida. Muito ao contrario: é realmente espantosa a quanti- dade de frustragdes que o ser humano é capaz de agiientar, sem manifestar hostilidade, esta sé aparece quando a frustragao é injusta, ou quando fér assim considerada, por causa da pre- senga de exigéncias neurdticas. E, nesse caso, apresentaré a caracter{stica especial da indignagao ou a sensagao de ter sido enganado. A desgraga ou a ofensa em causa assumem, entio, proporgées fantdsticas. Quando alguém se sente logrado por outro individuo, essa ultima pessoa é, imediatamente, trans- formada num ser cruel, desprezivel e indigno de confianga; em outras palavras: a indignagéo experimentada influi enorme- mente no julgamento que fazemos dos outros. Temos, aqui, uma das fontes das suspeitas neuréticas, e, também, uma importante razio para as pessoas neurdticas serem tao inse- guras no seu julgamento a respeito dos outros, passando, facil- mente, de uma atitude amistosa para outra de condenagio total. Se me fér permitido fazer uma simplificagio exagerada, direi que a reagio aguda de aborrecimento ou, mesmo, de raiva pode tomar trés caminhos diferentes. Pode, por exemplo, (3). © postulado baseia-se na teoria dos instintos de Freud ¢ implica a idéia de que tdda hostilidade 6 uma reacio a frustragdes de necessidade instintivas, ou dos seus derivados, Para os psicanalistas que aceitam a teoria freudiana do instinto de morte, além disso, as reagGes hostis obtém a sua energia de uma necessidade instintiva' de destruir, Exigéncias neuréticas 63 ser suprimida por uma razio qualquer e, ent&o, tal como acontece com qualquer hostilidade recalcada, evidenciar-se através de sintomas psicossomaticos: fadiga, cefaléia, enjéos etc. Também pode acontecer de ésse aborrecimento ser expres- so livremente ou, pelo menos, de ser éle sentido de um modo completo; neste caso, quanto menos importante fér o motivo real para a raiva, mais tera o neurético de exagerar o mal que lhe foi causado, chegando, mesmo, a criar, inadvertida- mente, um caso perfeitamente légico contra o suposto ofensor. Quanto mais abertamente vingativo for o neurético, tanto mais fortemente se entregara ao luxo de ‘uma vinganga, qualquer que seja o motivo alegado; quanto mais abertamente arrogante for éle, mais seguro estara, de que essa vinganga nao passa de um ato de justiga. O terceiro caminho possivel seria entre- gar-se ao desespéro e a autocomiseraga’o. O neurético sentir- se-A extremamente ofendido ou logrado e, nesse caso, podera se tornar desalentado. “Como puderam agir assim comigo |”, pensa, e, neste caso, 0 sofrimento transforma-se num modo de exprimir queixas. E muito mais facil observar essas reagdes nos outros do que em si mesmo, pela prdépria razao de que v sentimento de estar sempre certo inibe o auto-exame, Entretanto, é do nosso préprio interésse examinarmos as nossas préprias reagdes, sempre que estejamos preocupados com algum mal que nos tenham feito, sempre que comegamos a pensar nos odiosos atri- butos de alguém, ou sempre que nos sentimos tentados a vin- gar-nos. Devemos verificar, cuidadosamente, se a nossa reagio esta sendo proporcional ao mal que nos foi causado. Se, a um exame honesto, for evidenciada qualquer desproporgao, deve- mos procurar descobrir quais sio as exigéncias ocultas, que nos esto impulsionando. Desde que estejamos dispostos a abandonar algumas das nossas necessidades de gozar de prer- rogativas especiais e sejamos capazes disso e, mais ainda, desde que estejamos familiarizados com as formas particulares que a hostilidade recaleada pode assumir, nao ser4 muito dificil reconhecer uma reagaio aguda a uma frustragéo individual, e reconhecer qual é a exigéncia particular, que se oculta por detrés dela. Entretanto, € bom notar que o fato de térmos conseguido descobrir algumas vézes a exigéncia em causa nio significa que estejamos livres de tédas elas. Em geral, sobre- pujamos apenas as que sio mais evidentes e absurdas. O pro- cesso assemelha-se 4 expulsao de uma ténia, quando sio expe-

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