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A ARIAS FACES ESUS Geza VERMES ; iN CIP-Brasil. Catalogagao-na-fonte ‘Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Vermes, Geza, 1924- V622v As varias faces de Jesus / Geza Vermes; tradugdio de Renato Aguiar. - Rio de Janeiro: Record, 2006. Tradugao de: The changing faces of Jesus Inclui bibliografia e cronologia ISBN 85-01-07038-6 1, Jesus Cristo ~ Personalidade ¢ missao. I. Titulo. CDD - 232 05-3378, CDU - 232 Titulo original em inglés: ‘THE CHANGING FACES OF JESUS Copyright © Geza Vermes 2000 Publicado originalmente no Reino Unido por Allen Lane The Penguin Press 2000 Todos os direitos reservados. Proibida a reprodugo, armazenamento ow transmissio de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorizagdo por escrito. Proibida a venda desta edigdo em Portugal e resto da Europa. Direitos exclusivos de publicagiio em Ifngua portuguesa para o Brasil adquiridos pela EDITORARECORDLIDA. Rua Argentina 171 —Rio de Janeiro, RJ — 2092 1-380 — Tel.: 2585-2000 que se reserva a propriedade literdria desta tradugdo Impresso no Brasil ISBN 85-01-07038-6 ore, PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL Caixa Postal 23.052 Va Rio de Janeiro, RJ - 20922-970 pron ATRAADA Sumario Mapa 8 Prélogo: De Cristo a Jesus 9 1 Jodo: o estranho entre os evangelistas 15 2_O Jesus de Joao: figura de Messias ou Estrangeiro do paraiso 33 3 Paulo: o estranho entre os apéstolos 75 4 O Cristo de Paulo: Filho de Deus e Redentor universal da humanidade 95 5 O Jesus dos Atos dos Apostolos: Profeta, Senhor e Cristo 141 6 O Jesus dos Evangelhos Sinépticos: curandeiro e mestre carismAtico e entusiasta escatolégico 177 7 Sob os Evangelhos: o verdadeiro Jesus 263 8 O verdadeiro Jesus no alvorecer do terceiro milénio 311 Epilogo: Um sonho 319 Cronologia 323 Bibliografia selecionada 325 Indice remissivo 327 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. Prélogo: De Cristo a Jesus As varias faces de Jesus combinam os quatro temas favoritos dos meus cingiienta anos de atividade intelectual. Retrospectivamente, creio que minha vida de professor, pesquisador e escritor constitui uma unidade. Minha carreira de publicagées comecou em 1949, com um artigo dedi- cado aos entdo recém-descobertos Manuscritos do Mar Morto. Essa aven- tura iniciante desdobrou-se num caso de amor académico que persistiu por décadas até produzir, em 1977, The Complete Dead Sea Scrolls in English [Manuscritos do Mar Morto completos em inglés]. Oestudo dos escritos de Qumra levou-me a um envolvimento cres- cente com a antiga interpretacao judaica da Biblia; em 1961, apés varios anos de trabalho, ele amadureceu em Scripture and Tradition in Judaism {Escritura e tradicdo no judafsmo], que ja assinalava minha curiosidade crescente pelo estudo do Novo Testamento. A partir de meados da década de 1960, o meu primeiro embate com 0 tratamento pés-biblico e rabinico da Escritura se fez seguir por vinte anos de trabalho no campo da histéria politica, institucional, religiosa e literdria judaica. O contexto foi a tarefa de reeditar e substancialmente Teescrever — em companhia de dois colegas e amigos, Fergus Millar e Martin Goodman — o classico moderno de Emil Schiirer, The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ (Vols. I-III, 1973-87). aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. PROLOGO: DE CRISTO A JESUS Num aspecto, As vdrias faces de Jesus difere dos meus livros anterio- res. Apesar de conter uma bibliografia, raramente faz referéncia a qual- quer literatura secundaria. Naturalmente, eu li um bocado ao longo dos anos e aprendi muito, positiva e negativamente, com outros estudiosos. Assimilei seu conhecimento e compreensao e acumulei tudo em meu coragdo. Nestas piginas, para citar uma frase de Jesus, € com abundan- cia do coragao que a boca fala. Meu propésito nao ¢ instruir os leitores, mas conduzi-los numa viagem de descoberta. Naa é necessdrio que estejam inteiramente familiarizados com o tema, e — para o melhor e o pior — todos os indicios em que se baseia 0 argumento serao oferecidos. As citagdes diretas, que geralmente seguem a Revised Standard Version,* sio acompanhadas pelas referéncias relevantes do Novo Testamento, para que os interessados possam investigar o contexto mais amplo. E tomara que possam desfrutar a jornada. Talvez nao queira dizer nada que ainda noutro aspecto este livro di- virja de caminhos ja trilhados. Estudantes da evolugao da imagem de Jesus nas varias camadas do Novo Testamento geralmente seguem a linha do progresso cronolégico (ver, por exemplo, titulos recentes como From Je- sus to Christ [De Jesus a Cristo], de Paula Fredriksen, 1988, e From Jewish Prophet to Gentile God [Do profeta judeu ao Deus gentio], de Maurice Casey, 1991). Eu decidi comegar com o Cristo divino e depois reverter 0 caminho e buscar o Jesus humano. Assim, num diminuendo teoldgico, irftamos do Everest do Evangelho de Sao Joao e os altos picos das episto- las de Sao Paulo para a figura muito mais deste mundo do Jesus da cris- tandade judaica nas colinas e planicies dos Atos dos Apéstolos e dos Evangelhos Sin6pticos, na esperanca de captar um vislumbre do Jesus teal oculto sob os relatos de Marcos, de Mateus e de Lucas. *A presente tradugao usaré em geral como referéncia a nova edigao revista e ampliada da Biblia de Jerusalém, em razdo das suas caracteristicas doutas amplamente reconhecidas. (N. do T.) 13 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. JOAO: O ESTRANHO ENTRE OS EVANGELISTAS mais anterior dos trés, enquanto tanto Mateus como Lucas os registram, embora cada um ao seu proprio modo. Em contraste, Jodo tem visdo, propésito e estrutura especiais e préprios. A tela teolégica pintada por este evangelista, a sua cronologia, eo estilo doutrindrio e mensagem efe- tiva que ele atribuia Jesus absolutamente nao tém paralelo nos Sinépticos, e as vezes contradizem claramente o testemunho deles. Essa visio dos Evangelhos é tipica de um estudioso, de um historia- dor distanciado, em busca da informa¢do embutida nas fontes sobrevi- ventes. Autoridades religiosas nao gostam de confrontar evidéncias contradit6rias; elas lutam por reconciliagdo e harmonia. A pesquisa moderna do Antigo Testamento distinguiu quatro camadas ou fontes na “Lei de Moisés’, mas a antiga tradicdo judaica tratou de amalgamé-las em apenas um relato unificado, os livros do Pentateuco, os primeiros cinco livros da Biblia Hebraica, tal como os conhecemos. Perturbada pelas diferengas e dissonancias nos quatro registros da vida de Jesus, a igreja crista também fez dois tipos de tentativa de aplainar ou eliminar as dis- crepancias. A primeira imitou instintivamente o antigo judaismo, que convertera as quatro “fontes” preexistentes numa tinica Lei Mosaica. Do mesmo modo, a igreja primitiva tentou substituir os quatro Evangelhos separados por uma narrativa que incorporasse todos os detalhes de Mateus, Marcos, Lucas e Jodo, eliminando conseqiientemente todas as diferencas. Esse esforco finalmente fracassou, mas durante um periodo uma harmonia brilhantemente concebida do Evangelho, conhecida como o Diatessaron, ou o Quatro-em-Um, atribuido ao apologista Taciano, teve sucesso considerdvel nas igrejas da Siria, em que quase logrou eclipsar os Evangelhos individuais. Nao obstante, do século V em diante, 0 Dia- tessaron foi relegado ao quase esquecimento. A segunda linha de defesa teve bom éxito e sobrevive até hoje. Ela apresenta Jodo como o bidégrafo supremo de Jesus, autor do Evangelho espiritual. Familiarizado com a obra dos seus predecessores, diz-se que ele evitou deliberadamente re- petir a maioria das suas histérias, exceto o relato da Paixdo, que se limi- tou a suplementar e enriquecer os seus registros com discursos inteiros 17 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. JOAO: O ESTRANHO ENTRE OS EVANGELISTAS Como mencionei, tudo nesse Evangelho — seu enredo, cronologia e estrutura — é sui generis, Embora Joao e os Sindépticos propusessem narrar a vida e os ensinamentos do mesmo individuo, eles muito pouco tém em comum. Pouquissimo, na verdade: as correspondéncias diretas limitam-se a um Unico capitulo, precisamente com os primeiros vinte e cinco versiculos de Joao, Capitulo 6. Eles apresentam trés episédios con- secutivos: a alimentag4o milagrosa de cinco mil pessoas; Jesus andando sobre o Lago da Galiléia; e o seu ingresso no barco que ia para a outra margem. Esses relatos tem paralelos aproximados em Marcos e Mateus, a principal diferenca consistindo no siléncio de Joao sobre as atividades de cura de Jesus nas terras de Genesaré (cf. Mc 6:32-56; Mt 14:13-36). Algumas das caracteristicas proeminentes do retrato de Jesus nos Sindpticos ou estéo completamente ausentes do Quarto Evangelho ou a sua importancia é grandemente reduzida. Assim, um dos aspectos mais importantes da fungao de Jesus como curandeiro nos Sinépticos, a sa- ber, o exorcismo de deménios responsaveis por todo tipo de doengas, esta completamente ausente em Joao. Tal pratica cheira a religiio popu- lar, sendo a magia, e como tal foi considerada indigna do Jesus joanino. Mesmo o desempenho de curas, talvez 0 aspecto dominante do retrato de Jesus nos Evangelhos anteriores, perdeu a centralidade em Joao. En- tre as muitas curas milagrosas arroladas nos Sindpticos, apenas uma unica sobrevive neste Evangelho, e isto sob uma forma um tanto manipulada. A histéria Sindéptica do criado do centurido romano curado por Joao in absentia é transformada, por Jodo, como mostrarei adiante, na cura do filho de um funciondrio herodiano. O Quarto Evangelista descreve apenas dois episddios terapéuticos adicionais: a cura de um paralitico no tanque de Betesda (5:2-9), ea res- tauracao da visio de um homem que era cego de nascenga (9:1-7). O primeiro recuperou-se mediante apenas uma ordem verbal: “Levanta- te, toma 0 teu leito e anda!” (5:8), mas, para o ultimo, Jesus teve de recor- rer a uma substancia medicinal, um lodo preparado com terra misturada coma suasaliva. O método é reminiscente da cura de uma pessoa surda- 21 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. JOAO: O ESTRANHO ENTRE OS EVANGELISTAS pouco adiante (3:22-30; 4:1-2), contrariamente ao respeito e 4 harmo- nia subentendidos entre Jesus e o Batista, o evangelista alude a relagdes tensas reveladas pela rivalidade e disputa existentes entre seus discipu- los. E também, para diminuir a importancia do parentesco existente en- tre os dois mestres, o que, se claramente afirmado, poderia implicar que estariam em posicdes pelo menos semelhantes, Joao nao faz referéncia ao fato, declarado por Lucas (1:25-56), de que as suas mies, Isabel e Maria, eram parentas. Esta mengao a mie de Jesus ajuda a evocar uma outra diferenga ad- mirdvel entre os Sindpticos e Jodo. Nos Sinépticos, Jesus é retratado mostrando reserva, raiando a hostilidade, em relagao a sua famflia, Ma- ria inclusive. Marcos (3:21) relata rudemente que os parentes acharam que ele estava louco; eles queriam deté-lo e remové-lo da arena publica. Outra passagem conta que a mie e os irm4os esperaram um tratamento preferencial de Jesus, mas nao lograram recebé-lo. Eles acharam que ele interromperia a sua licao quando informado de que tinham chegado. Mas Jesus os rejeitou: “Quem sao minha mie e meus irmaos?’, perguntou. Entéo,apontando para os seus discipulos, declarou metaforicamente que eles eram a sua “mie” e os seus “irmaos” (Mc 3:31-5; Mt 12:46-50; Le 8:19-21). Exceto pelo episddio de Nazaré, em que Jesus, o filho de Maria, € descrito como “o carpinteiro” ou “o filho do carpinteiro’, a historia Sindptica perde de vista a familia de Jesus. E preciso passar aos Atos dos Apéstolos (1:14) para a pr6xima apari¢ao de “Maria, a mae de Jesus e... seus irm&os” em companhia “das mulheres’, e dos apéstolos, em ntime- to de onze apos a defeccao de Judas Iscariotes. Mais adiante nés apren- demos, também através dos Atos dos Apéstolos, que Tiago, “o irmao do Senhor’; tornou-se lider da igreja de Jerusalém. Além disso, presume-se que Judas, outro dos quatro irmaos de Jesus, seja 0 autor de uma das epistolas menores do Novo Testamento. De modo que pelo menos parte da familia se juntou enfim ao grupo de Jesus. Voltando a Maria: a passagem ora citada dos Atos marca um momen- to decisivo, o comeco de uma atitude favoravel em relacao a ela, que cul- 25 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. JOAO: O ESTRANHO ENTRE OS EVANGELISTAS tis a Jesus. De fato, praticamente desde 0 comego da sua carreira, 0 Jesus de Jodo foi alvo de repetidas tramas judaicas de assassinato. Apresenta- se uma dupla razdo para essa profunda animosidade. Nos termos da pri- meira, Jesus incitava a fiiria dos seus co-religiosos por realizar curas no Sab4, profanando desse modo o feriado religioso judeu. A segunda ra- z4o para a afronta dos judeus, segundo Jodo, foi a afirmasao suposta- mente blasfema de Jesus de que Deus era 0 seu Pai. O pretenso antagonismo nao recebeu nenhum apoio nos Evangelhos Sindépticos; nem o historiador Josefo nem a literatura rabinica relatam assassinatos de judeus por outros judeus por questées religiosas, ao con- trario de razGes politicas.* Tal comportamento é totalmente desprovido de fundamento teolégico no pensamento religioso judeu da época. No Novo Testamento, a cura é geralmente realizada através de um comando verbal; ela nfo implicava “trabalho” e, conseqiientemente, nao represen- tava uma quebra real do Saba. Além disso, isoladamente ou em conjun- to, os judeus se véem no direito de chamarem-se filhos de Deus. Podemos certamente descartar como altamente improvavel a histéria de Lucas de uma tentativa de linchamento de Jesus por devotos judeus da sinagoga da sua cidade natal, pois nem mesmo o mais fandtico patriota local de Nazaré teria considerado o assassinato uma resposta proporcional e jus- tificdvel a realizacdo de curas por Jesus na vizinha Cafarnaum. Exceto por um episédio isolado em Lucas 4:29, os trés primeiros evangelistas n&o acusam os judeus como tais, mas antes os seus lideres, os fariseus, escribas e sumo sacerdotes, de conspiracdo homicida. Exceto por um caso discutivel (Mc 3:6; Mt 12:14; Lc 6:11), mesmo eles s6 so acusados nas ‘Assim, 0 sumo sacerdote Ands exercitava seus musculos politicos quando, no interregno entre dois procuradores romanos, condenou & morte Tiago, 0 irmao de Jesus, e outros, sob uma acusacao religiosa forjada. Segundo Josefo, seu ato escandalizou os judeus justos € observantes de Jerusalém. (Jewish Antiquities [Antigiidades judaicas) XX. 200-201). SMaarcos e Mateus falam de um complo bem no come¢o, de fariseus e herodianos ou apenas de fariseus, para “destruir” Jesus. Em Lucas, escribas e fariseus apenas imaginam o que pode- riam fazer com Jesus. Uma passagem paralelaaparentemente mais plausivel menciona fariseus eherodianos procurando umamaneira de“enredé-lo [Jesus] com alguma palavra” (Mc 12:13). 29 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 2 O Jesus de Joao: figura de Messias ou Estrangeiro do paraiso Quanto mais releio Jodo, mais ébvio fica que seu Evangelho consiste em varios retratos de Jesus superpostos, e que trés abordagens distintas sao necessdrias para desenredar essa complexidade. Todos esses retratos, mesmo os que tém as suas contrapartes nos Evangelhos Sinépticos an- teriores, exibem a marca teolégica do Quarto Evangelista, e ao final des- te capitulo o leitor nao terd mais nenhuma divida de que 0 Jesus pintado por Joao projeta-se muito acima da figura de Jesus representada por Marcos, Mateus e Lucas. Para comegar, 0 Quarto Evangelho inclui muitas passagens que tra- zem opinides sobre Jesus ou atitudes para com ele que o evangelista atribui a seus contemporaneos judeus, entre os quais tanto amigos ¢ observadores descomprometidos como oponentes € criticos, As questdes levantadas por eles dizem respeito ao papel de Jesus: era um profeta, 0 Messias, o Filho de Deus? As respostas que dao projetam uma luz pre- ciosa sobre as idéias religiosas correntes no judaismo palestino no primei- ro século d.C. Em seguida, hd os textos, uma massa deles, em que o evangelista faz Jesus falar de si mesmo. Em sua maioria, as palavras proferidas por Jesus so criagdo do préprio Joao. A diferenca entre as idéias do Jesus de Joao edo Jesus dos trés primeiros Evangelhos é particularmente marcante; sao sem duvida irreconcilidveis. 33 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. O JESUS DE JOAO: FIGURA DE MESSIAS OU ESTRANGEIRO DO PARAISO especiais relacionados histéria da crucificagao — nao pode ser aceito como fonte priméria da vida e dos ensinamentos de Jesus. Contudo, como a tela ¢ pintada com a ajuda dos t{tulos dados a Jesus no Quarto Evange- Iho, a maioria dos quais aparece também nos Sinépticos, é razo4vel pre- sumir que estejamos aqui diante de segmentos da tradi¢ao evangélica comum ja existente em forma escrita quando Jodo comegou a compora sua historia, Conhecamos portanto Jesus o Mestre, o Profeta, o Messias, 0 Rei, o Filho de Deus, o Senhor e 0 Cordeiro de Deus. Jesus, o Mestre Para compreender a terminologia de Jodo, temos primeiro de investigar as varias conotacées de “mestre” no judaismo do primeiro século. A pa- lavra podia indicar um instrutor “oficial”, normalmente um sacerdote, um escriba ou um fariseu. O Nicodemos de Joao pertencia 4 camada superior desta categoria. Ele era um “mestre em Israel” (3:10), possivel- mente um membro do Sinédrio, o érgao doutrindrio e judicial supremo em Jerusalém (7:50). Claramente, Jesus nao pertencia a este estrato da sociedade judaica. Tampouco era um “rabi” no sentido técnico, apesar de repetidas vezes assim ser mencionado em Joao (1:38; 3:2; 20:16), pois nao era um especialista na lei tradicional judaica e interpretacao biblica. E até questiondvel seo termo “rabi” no sentido especializado era corren- te nas primeiras décadas do século I d.C. Os grandes mestres judeus que viveram na época de Jesus, Hilel, Semei, Gamaliel sdo todos chamados de “anciaos’, nao de rabis. Que tipo de mestre, portanto, era o Jesus do Quarto Evangelho? A narrativa de Jodo deixa claro que Jesus nao derivava a sua autoridade doutrindria, como os rabis da Mixnd e do Talmude, de anos de estudo aos pés de um mestre reconhecido. O fato de Jesus nado ser um mestre educado € indicado pelo assombro das autoridades diante da sua sabe- doria: “Como entende ele de letras sem ter estudado?” (7:15) O melhor esboco de Jesus como pregador no Quarto Evangelho é formulado nas 37 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. © JESUS DE JOAQ: FIGURA DE MESSIAS OU ESTRANGEIRO DO PARALSO Lc 18:38-9).Na época do Quarto Evangelho, porém, a ideologia davidica esta praticamente emudecida. Quando se alude ao Messias real, a aplica- bilidade da figura a Jesus é principalmente negada pelos de fora. Assim, Joao faz judeus hostis afirmarem que Jesus nao poderia ser 0 Messias Davidico, pois acreditavam que ele era galileu, e nao de Belém, onde, se- gundoa tradi¢ao ancestral, deveria nascer 0 Cristo régio (7:40-42).Outra objesdo ao reconhecimento do status messianico de Jesus decorria da creng¢a na origem secreta do Cristo. Ele devia aparecer subitamente, por assim dizer de lugar nenhum. Aos olhos de muitos judeus, Jesus nao preenchia esse requisito messidnico: “Mas nés sabemos de onde esse é, ao passo que ninguém saberd de onde serd o Cristo, quando ele vier.’ (7:26-27) Contra essas vozes céticas, Jodo dispde toda uma tropa de testemu- nhos positivos que dao a impressdo de que Jesus qua Messias comanda- va um numero substancial de seguidores. Em Jodo, a sua identidade messianica nao é um segredo como nos Evangelhos Sindpticos. Desde 0 primeiro instante da sua manifestacdo publica, os que tinham olhos para ver puderam perceber quem ele era. Comecou com Joao Batista, que soube imediatamente que estava diante do Messias (1:32). Sem prelimi- nares, André, o futuro apéstolo, péde informar confiante ao seu irmao Simao (Pedro) que tinha encontrado “o Messias” (1:41). Este reconheci- mento instantaneo vai de par com uma plena aceitacao da parte do Je- sus de Joao. A alusio da samaritana, “Sei que vem um Messias”, Jesus responde com: “Sou eu, que falo contigo.” (4:25-6) Somente a auséncia de segredo messidnico no Quarto Evangelho pode explicar 0 aborreci- mento de Jesus com os que persistiam a importund-lo com perguntas. Ao ouvir, “Até quando nos manterds na incerteza? Se és 0 Cristo, dize- nos abertamente”, ele respondeu cansadamente: “Ja vo-lo disse, mas nao acreditais.” (10:24-5) Nao s6 os seus amigos estavam convencidos de que Jesus era 0 Cris- to prometido, mas, segundo Joao, também a multidao judaica. Isto se devia principalmente 4 aura miraculosa que envolvia Jesus, Nés somos 41 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. O JESUS DE JOAO: FIGURA DE MESSIAS OU ESTRANGEIRO DO PARAISO Mais ou menos nessa mesma época, a designacao “filho de Deus” passou a aplicar-se também ao esperado Messias real. Do século VI a.C. em diante, os descendentes de Davi nao governavam mais, estando os judeus sob dominio babilénio, persa, grego e finalmente romano. De modo que as promessas anteriores de um rei soberano foram rein- terpretadas, aplicando-se ao tiltimo filho de Davi. Assim, por exemplo, um Manuscrito do Mar Morto esclarece que a garantia divina “Eu serei para ele PAI e ele ser para mim filho’, originalmente enderegada ao su- cessor de Davi, 0 rei Salomao (2Sm 7:14), refere-se ao governante final de Israel: “Ele é a Descendéncia de Davi que se levantard... em Sido [no fim] dos tempos...” (4Q174) Outro texto de Qumra inclui uma passa- gem mal preservada que parece usar a metéfora de Deus “engendrando” oO Messias (1QS@ 2:11-12). Assim, dependendo do contexto, “Filho de Deus” pode indicar qualquer judeu, um judeu pio, um rei hist6rico ou o futuro Messias. Quando consideradas juntas, essas designagdes exibem todas um ele- mento comum: sido todas figuras de linguagem. Nenhum escritor ju- deu biblico ou pés-biblico jamais descreveu um ser humano literalmente como divino, ou tampouco a cultura religiosa judaica aceitou aco- modar as nogées helenisticas de “filho de Deus” ou de “homem divi- no”. Estas designagées, de uso comum na terminologia do culto ao 2Um texto aramaico publicado recentemente por E. Puech (“4Q Apécrifo de Daniel ar”, in DJD XXII, Oxford, 1996, 165-84), conhecido popularmente como o documento “Filho de Deus”, éinterpretado por varios estudiosos como relativo.ao rei Messias, porque contém as frases significativas: “O filho de Deus ele serd proclamado e 0 filho do Mais Alto eles 0 cha- mario.” Na minha opiniao, contudo, é mais provavel que a pessoa que se chama a si pré- pria de “filho de Deus” seja o rei malfazejo do tiltimo império do mundo, modelado no rei greco-sirio Antioco IV Epifanes do Livro de Daniel. © sobrenome “Epifanes’, que aparece em moedas de Antioco, ¢ uma abreviagao de “Theos Epiphanes’, 0 “Deus que revela a si mesmo” Espera-se que este rei iniquo final seja proclamado eadorado como um deus:“Eo rei...exaltaré a si mesmo ese magnificaré acima de todo deus... nao dar4 atensao anenhum outro deus, pois magnificar-se-4 acima de todos.” (Dn 11:36-7) 45 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. O JESUS DE JOAO: FIGURA DE MESSIAS OU ESTRANGEIRO DO PARAISO saico no santuério, até 70 d.C., 0 adorador contava obter perdao divino para suas transgress6es mediante derramar o sangue e queimar 0 corpo de um cordeiro por um sacerdote oficiante. Da mesma forma, acredita- va-se que o sangue do cordeiro da Pascoa possuia o poder de salvacao que tinha protegido 0 povo judeu no Egito na época de Moisés. Assim, ao aplicar a Jesus 0 titulo de “Cordeiro de Deus”, Jodo condensou de for- ma inteligente num unico s{mbolo a futura teologia crista da expiagao dos pecados através da morte sacrificial de Jesus. Para captar o significado da expresso, é importante compreender que exceto por essa eloqiiente manifestacao, Joao é notavelmente reser- vado em relagdo ao tema da redencao dos pecados. Contudo, ao adotar a sua cronologia peculiar da crucificagao (cf. pp. 31-32), Joao transfor- mou Jesus em um redentor cordeiro pascal. Pois 0 Cristo de Joao expi- rou nacruz na tarde do dia precedente 4 Pascoa (19:14, 31), e assim a sua morte coincidiu exatamente com o abate dos cordeiros pascais no patio do Templo de Jerusalém. Para uma melhor compreensao do simbolismo pascal do “Cordeiro de Deus”, devemos nos lembrar de uma antiga interpretagio aramaica em Exodo 1:15, segundo a qual a cruel decisdo do faraé de matar todos os meninos judeus nascidos no Egito foi inspirada por um sonho. Neste sonho, ele viu que um cordeiro, colocado num dos pratos da balanga, era mais pesado do que todo o Egito no outro. Os intérpretes reais de sonhos explicaram ao rei que, chegada a hora, um menino judeu prestes anascer (Moisés) destruiria o Egito e libertaria os israelitas. Conseqiien- temente, o “Cordeiro de Deus” tipifica dois salvadores, Moisés € Jesus. A metdfora do “Cordeiro de Deus” contém um terceiro simbolismo: o sacrificio de Isaac, 0 “cordeiro” de Abraao, narrado em Génesis 22. Na tradi¢ao crista remontdvel até o Novo Testamento e ricamente desenvol- vida nos escritos dos patriarcas da igreja, a assim chamada akedah* de *Termo hebraico que significa 0 ato de Abraao de amarrar seu filho para ser oferecido em sacrificio. (N. da E.) 49 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. O JESUS DE JOAO: FIGURA DE MESSIAS OU ESTRANGEIRO DO PARA[SO seguida, vem uma cena de julgamento divino, com Deus, retratado como um ancido, pronunciando a senten¢a de morte contra a ultima fera e pri- vando as outras trés dos seus respectivos dominios. O climax do sonho, no versfculo 13, contrasta animais com um ser humano, “um como Filho de Homem’, que é levantado da terra pelas nuvens e, por outorga do juiz divino, recebe o reino eterno. No Livro de Daniel, “um como Filho de Homem’” representa “os santos do Alt{ssimo’, vale dizer, o povo judeu (Dn 7:18, 22, 27), e esta interpretagao coletiva parece ser confirmada pelo apécrifo aramaico de Daniel, do primeiro século de Qumri (cf. p. 45, n.2). Da conclusao do Livro de Daniel, na década de 160 a.C., até a €poca da destrui¢ao de Jerusalém em 70 d.C., nao h4 comprova¢ao na literatu- ra judaica sobrevivente do uso de “Filho do Homem” para descrever uma funco religiosa. Contudo, nas décadas seguintes 4 primeira guerra ju- daica contra Roma, que acabou em 70 d.C.,, isto é, durante o perfodo da composicao dos Evangelhos, nés temos indicios literdrios independen- tes em que uma figura humanizada é retratada como o Messias divino (4Esdras 13), ou um juiz final sobrenatural (Parabolas de Enoc, ou 1Enoc 37-71). Um pouco depois, 0 célebre rabi Akiba, que morreu como mar- tir em 135 d.C., também reconheceu em “um como Filho de Homem” o Messias, filho de Davi (bHagigah 14a; bSanhedrin 38b). No que diz respeito a Jodo, ele reflete este significado messianico mais rico de“Filho do Homem’, que em geral combina com 0 uso circunloquial reminiscente dos Evangelhos Sinépticos. Por isso, no Quarto Evangelho nao é Eu (Jesus), mas o Filho do Homem quem da a vida eterna ou sera levantado, isto é, crucificado. Apés essas preliminares necessdrias, podemos agora nos concentrar nos trés t6picos centrais associados com a nogao de “Filho do Homem” no Quarto Evangelho. 1, A primeira dessas nogdes teolégicas é de que a fé no “Filho do Homem” confere a vida eterna ao crente. Nés lemos:“Trabalhai, nao pelo alimento que se perde, mas pelo alimento que permanece até a vida eter- na, que o Filho do Homem vos dar.” (Jo 6:27) 53 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. © JESUS DE JOAO: FIGURA DE MESSIAS OU ESTRANGEIRO DO PARAISO do éxodo morreram apesar de terem consumido o mand, aqueles que agora “comessem” Jesus misticamente, 0 “pao da vida” — isto é, os que digerissem e absorvessem o seu ensinamento — herdariam a vida eter- na. A linha mais importante da alegoria exprime a idéia da morada reci- proca do Filho nos crentes e dos crentes no Filho. A alegoria do pastor e da ovelha é outra imagem da dadiva da vida por Jesus. Esta metdfora biblica denota o relacionamento primeiro entre Deus e Israel, e secundariamente entre o Messias davidico e 0 povo ju- deu (Gn 49:24; S] 23:1; 80:1; Ez 34:23). Segundo Jodo, a meta do bom pastor é prover seguranga e vida abundante ao seu rebanho (10:10). Contudo, o contexto religioso ¢ histérico da imagem nao reflete a época de Jesus, mas aquela do evangelista. A tarefa de Jesus, e dos seus proprios enviados, era cuidar dos judeus errantes, as “ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 10:6; 15:24). A tarefa de trazer ovelhas de fora ao seu redil (Jo 10:16) mostra que a missdo do Jesus de Jodo ja nao era mais restrita aos judeus; ele também tinha de cuidar de ovelhas estrangeiras, os gentios da comunidade de Joao, e tinha de assegurar que “havera um so reba- tho, um s6 pastor” (10:16). A imagem joanina final relativa A concessio da vida eterna pelo Fi- Tho langa mao do conceito tradicional fariseu-judaico de ressurreigaio corporal (cf. pp. 105, 201, 204-216 ): “Sim, esta € a vontade de meu Pai: quem vé o Filho e nele cré tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no ulti- mo dia.” (6:40; cf. 5:24) Esta afirmacdio sobre a missio elementar e final- mente benévola do Filho aparentemente entra em conflito coma fungao judicial a eleatribuida em outras passagens de Jodo, exigindo uma consi- deragdo mais aprofundada. Jodo é inflexivel ao afirmar o papel judicial do Filho: “Porque o Paia ninguém julga, mas confiou ao Filho todo jul- gamento.” (5:22; cf. 5:26-7). Porém, segundo as idéias escatoldgicas fa- miliares do judaismo intertestamental, 0 Arbitro final pode tanto absolver como condenar. Nao ha vestigio de tragos tio sombrios no quadro pintado por Joao da missdo do Filho; ele é inteiramente luz. “Pois Deus nao enviou o seu 57 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. O JESUS DE JOAO: FIGURA DE MESSIAS OU ESTRANGEIRO DO PARAISO entre Deus e o Filho garante que o rebanho permanega indiviso: “Pai santo, guarda-os em teu nome... para que sejam um como nés.” (17:11) Em seu nivel mais baixo, esta unidade é a de uma percep¢ao e um inte- resse comuns ligando varias personalidades distintas. Os crentes devem ser unos, como 0 Paie o Filho estao sempre unidos em pensamento, pro- pésito e acao. Em outras partes, o nivel de comunhao parece ser muito mais alto e a unido, em vez de ser moral e realizada por um propésito comum, é metafisica e penetra toda a profundidade do ser dos envolvi- dos. A prece de Jesus nao se restringe aos seus discipulos atuais, mas abrange as futuras geracées, “a fim de que todos sejam um. Como Tu, Pai, estas em mim e eu em Ti, que eles estejam em nés... Eu lhes dei a gloria que me deste para que sejam um, como nés somos um: Eu neles e Tu em mim, para que sejam perfeitos na unidade” (17:21-3). Seria dificil aperfeicoar esta intuicao mistica. Empregando imagens alegéricas e re- presentando Jesus como a verdadeira videira (15:1), Jodo identifica os crentes como ramos que nao podem viver se cortados da planta: “Eusou a videira e vés os ramos, Aquele que permanece em mim e eu nele pro- duz muito fruto; porque, sem mim, nada podeis fazer” (15:4-5) Este estado de “estar em”, “morar em” ou “permanecer em” alguém implica assimilagao ou absor¢ao e evoca a imagem do comer e digerir a carne e o sangue de Jesus (6:56). Na terminologia religioso-filoséfica moderna, estamos aqui, sendo diante de um mundo panteista, pelo me- nos de um mundo panenteista’ restrito em que Pai, Filho e crentes de todas as eras residem um no outro. A ideologia inteira reflete a cogita- ¢ao onirica de um contemplativo religioso, possivelmente judeu, di do-se a uma confraternidade gentilica criada no misticismo helenista. Aqui penetramos outra vez no nuicleo basico da teologia de Joao: a relacao precisa entre Jesus, o Filho, e Deus, o Pai. Hd duas passagens espe- 70 panenteismo, diferentemente do pantetsmo (= tudo € divino), ensina que tudo existe em Deus. Cf. A. Bullock ¢ ©. Stallybrass (orgs.), The Fontana Dictionary of Modern Thought {Dicionério Fontana do pensamento moderno] (Londres, 1977), 454. 61 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. O JESUS DE JOAO: FIGURA DE MESSIAS OU ESTRANGEIRO DO PARAISO I © VERBO-LOGOS DO PROLOGO DE JOAO Os retratos de Jesus esbocados a partir dos ditos atribufdos aos seus con- tempordneos no Quarto Evangelho, e das reflexdes postas por Jodo nos labios do Filho, sio tao complexos que foi necessdrio prefacid-los com um sumério introdutério sem o qual a compreensdo plena da mensa- gem teria sido quase impossivel. O Prélogo ao Evangelho (1:1-18) é de fato tal sumdrio. Em 252 palavras gregas brilhantemente escolhidas, Joao consegue oferecer um resumo translicido da doutrina laboriosamente enunciada nos discursos de Jesus nas paginas do seu Evangelho. Todos os quatro evangelistas abrem com uma introdugio o seu tra- balho. Entretanto, enquanto Marcos escolhe como ponto de partida his- t6rico da sua narrativa a entrada de Jesus na cena publica na companhia de Joao Batista, e que Mateus e Lucas optam por um relato lendario do nascimento milagroso e da infancia de Jesus, Jodo nos conduz num véo de guia ao mais alto paraiso, para encontrar o eterno Verbo de Deus. Este Verbo-Logos foi o instrumento da criac¢éo muito antes de unir-se misticamente ao corpo do judeu Jesus Cristo. Veio para trazer luz, graga e verdade aos filhos de Deus no mundo. E do conhecimento comum que 0 Prélogo imita deliberadamente a abertura do Livro do Génesis. Ambos comecam com a expressio “No principio”; ambos esbogam uma criagdo que culmina na vida; ambos visualizam uma dicotomia de luz e trevas. O contraste entre luz e trevas é uma parte essencial das imagens men- tais da doutrina do Jesus de Joao (3:19-21; 8:12; 9:5; 12:35-6, 46). Evocao dualismo correspondente encontrado nos Manuscritos do Mar Morto, particularmente na Regra da Comunidade, com a sua Instrugao sobre os Dois Espiritos (1QS 3:13 — 4:26), ena Guerra dos Filhos da Luz contra os Filhos das Trevas. A locucao “filhos da luz” propriamente dita figura uma vez em Joao (12:36) eem dois outros lugares no Novo Testamento (Lc 16:85 ITs 5:5). Entretanto, as semelhangas nao sao importantes o bastante para 65 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. O JESUS DE JOAO: FIGURA DE MESSIAS OU ESTRANGEIRO DO PARAISO lugar do Reino de Deus, este conceito central do Jesus dos Sinépticos e de Paulo que Joao logrou virtualmente obliterar. As grandes controvérsias doutrinais do cristianismo ao longo do primeiro milénio da sua histéria, e nos debates sempre acalorados dos seus concilios ecuménicos desde Nicéia (325) a Calcedénia (451) e Constantinopla (553), giraram principalmente em torno das idéias pela primeira vez suscitadas nas paginas do Quarto Evangelho. As doutrinas ortodoxas relativas a cristologia— a pessoa tunica eas duas naturezas de Jesus Cristo — e a Santissima Trindade ou Deidade trinitaria, através das quais foram refutadas as varias heresias da igreja antiga, do arianismo a controvérsia do Filioque,' emergem todas da teologia do Evangelho es- piritual de Jodo. Nao obstante, nao ha como fazé-lo responsavel pelo cristianismo como um todo, pois ele tem comparativamente pouco a dizer sobre a crenca na redencdo através da morte de Cristo. Como vere- mos, a fonte priméria dos tragos do retrato antropolégico-teoldgico de Jesus sao as cartas de sao Paulo. POS-ESCRITO: A FACE DE JESUS NO RESTANTE DA LITERATURA JOANINA A tradi¢do crista atribuia Joao, autor do Quarto Evangelho, quatro com- posigdes de extensao e significancia desiguais, trés epistolas e o Apocalipse ou Livro da Revelacao. Elas devem ser vistas em ordem para completar- mos satisfatoriamente o retrato joanino de Jesus. "9 arianismo foi uma heresia proposta pelo diécono alexandrino Arius (c. 250-336), que afirmava que o Filho nao era eterno, tendo sido criado pelo Pai. Foi condenada pelo Concilio de Nicéia em 325. O debate Filioque (“e do Filho”) buscava determinar se o Espirito Santo vinha apenas do Pai ou do Pai ¢ do Filho. Roma advogou a dupla procedéncia, do Pai e do Filho, contra a doutrina oriental ortodoxa da procedéncia linica, apenas do Pai. 69 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. O JESUS DE JOAO: FIGURA DE MESSIAS OU ESTRANGEIRO DO PARAISO Finalmente, e de maneira assaz apropriada a este ano de abertura do terceiro milénio,* 0 Capitulo 20 do Livro da Revelacdo é a fonte do Novo Testamento em que todas as especulagées milenares cristas estiveram baseadas. O milenarismo pressupée que o retorno de Cristo e a primeira ressurrei¢ao, concedida apenas aos cristaos, seriam seguidos por um rei- no de santos de mil anos, durante os quais Satands ficaria preso. Ao final do milénio, Satands seria solto uma vez mais contra as nagées da terra, somente para ser derrotado pela segunda vez pelo exército de Deus. A queda do dominio do mal seria acompanhada por outro julgamento e os considerados culpados sofreriam uma segunda morte no lago de fogo. Esta nocdo de segunda morte — significando uma situacdo de que ne- nhuma ressurrei¢io ulterior poderia libertar — também aparece em tex- tos judeus, mas somente de uma safra posterior, embora possam ter tido existéncia clandestina antes de serem expressos pela primeira vez em pardfrases aramaicas do Deuteronémio, de Isafas e de Jeremias. Nenhuma das peculiaridades da imagem de Jesus produzidas pelo Li- vro da Revelacio deixou marcas profundas no pensamento religioso da igreja, mas elas foram uma fonte duradoura de inspiragdo para imagens do paraiso e do inferno na literatura e na arte cristas ao longo dos séculos. *Este livro foi publicado em inglés no ano 2000. O Autor comete, portanto, um pequeno erro aritmético, pois, como se sabe, 0 terceiro milénio s6 comeca no ano de 2001. (N. do T.) 73 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. AS VARIAS FACES DE JESUS Sua lingua nativa era o grego, mas a acreditarmos em Atos 21:40 podia improvisar discursos “no dialeto hebreu’, em aramaico. Suas cartas fo- ram ditadas em grego, mas as vezes ele juntava pequenos trechos, por exemplo, a saudacdo em 1Corintios 16:21, de proprio punho (cf. tam- bém Gl 6:11; 2Ts 3:17; Fm 19). Sofria de uma doenga que ele préprio chamava de “aguilhdo na carne — um anjo de Satands” (2Cor 12:7), que foi diversamente diagnosticada como epilepsia, malaria, cegueira psico- genética (C. G. Jung) e afins, Nao era uma personalidade impressionan- te. Segundo seus criticos gregos, suas cartas eram “severas e enérgicas, mas ele, uma vez presente, [era] um homem fraco e sua linguagem des- prezfvel” (2Cor 10:10). Ele proprio admitia nao ser um grande orador (2Cor 11:6), Seu sucesso, principalmente entre gregos incultos, sugere um cardter magnético com uma mensagem carismatica: “Estive entre vés cheio de fraqueza, receio e temor; minha palavra e minha pregacao nada tinham da persuasiva linguagem da sabedoria, mas eram uma demons- tragao de Espirito e poder.” (1Cor 2:3-4) Tanto as suas epistolas quanto os Atos dos Apéstolos o descreverm como inicialmente muito hostil a seita de Jesus. As palavras do pré- prio Paulo sdo diretas: “[Eu] persegui a Igreja de Deus.” (1Cor 15:9) Ou ainda mais vigorosamente: “Ouvistes certamente da minha con- duta de outrora no judafsmo, de como perseguia sobremaneira e de- vastava a Igreja de Deus... distinguindo-me no zelo pelas tradi¢des paternas.” (GI 1:13-14) Os Atos dos Apéstolos dao detalhes mais co- loridos, mas As vezes historicamente problematicos. Paulo é apresen- tado como um fanatico, determinado a deter e aprisionar os membros da igreja de Jerusalém que fossem considerados agitadores indubi- taveis pelas autoridades sacerdotais responsdveis pela manutengao da lei eda ordem. Conjeturou-se, embora sem fundamentos sélidos, que Paulo fosse um policial do Templo que em certa ocasiao atuou como enviado oficial do sumo sacerdote para as sinagogas de Damasco, encarregado de limpar a comunidade local dos seguidores de Jesus (At 8:3; 9:1-2). Diz-se que ele tomou parte passivamente — vigiando 78 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. AS VARIAS FACES DE JESUS como a um abortivo. Pois sou o menor [isto é, 0 mais recente] dos apés- tolos” (1Cor 15:8-9). Esta visdo deve referir-se a revelagdo em Damasco, a qual, segundo Gilatas 1:16, envolvia uma ordem para tornar-se apdstolo entre os gentios.’ Como resultado Paulo sentiu-se plenamente autorizado por Jesus, sem precisar da nomeacao, mas apenas do reconhecimento dos apéstolos anteriores. Isto explicaria a sua insisténcia em que sua primei- ta visita a Jerusalém, numa espécie de gesto de cortesia, fosse curta es6 0 pusesse em contato com dois apéstolos. Quando retornou quatorze anos depois com Barnabé, foi para informar os apéstolos do seu evangelho para os gentios, que nao implicava circuncisio compulséria nem sub- missdo a Tord como um todo como precondi¢aéo. Comportou-se como um igual a Pedro: “vendo que a mim fora confiado 0 evangelho dos incircuncisos como a Pedro o dos circuncisos.” (Gl 2:7) Fez saber com firmeza que tinha recebido aprovaco dos “pilares” da igreja, Tiago, Cefas (Pedro) € Joao (Gl. 2:1-9). Como sempre, o conciliatério autor dos Atos dos Apostolos da uma versdo mais suave do conflito, referindo-se a um sinodo apostélico que teria culminado num acordo diplomatico, nao mencionado por Paulo. Os cristaos gentios seriam reconhecidos como membros da igreja desde que observassem as chamadas leis de Noé, que envolviam abstengao das carnes imoladas aos fdolos, das carnes de ani- mais sufocados e de comer sangue, bem como de imoralidades sexuais (At 15:1-29). Paulo nao s6 considerava-se igual a Pedro, mas no famoso incidente de Antioquia — contado na epistola aos galatas, mas convenientemente omitido pelo autor dos Atos —“opés-se a ele abertamente’, repreendendo publicamente o lider dos apéstolos por seu comportamento covarde e >A experiéncia mistica descrita em 2Cor 12:2-3 era de um tipo diferente, consistindo na as- censao de Paulo ao Paraiso, o terceiro dos sete céus do misticismo da Carruagem (Merkabah) da especulagao esotérica judaica do perfodo superior da antigiiidade até a Cabala medieval. Ver Peter Schafer, “New Testament and Hekhalot Literature: The Journey into Heaven in Paul and in Merkavah Mysticism” [Novo Testamento e Literatura Hekhalot: A Viagem ao Paraiso em Paulo e no misticismo Merkavah], Journal of Jewish Studies 35 (1984), 19-35. 82 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. AS VARIAS FACES DE JESUS Ha uma terceira ocorréncia que, embora considerada pertencente a tradigao oral pela maioria dos estudiosos, chama a minha atengao por sua peculiaridade. Relaciona-se ao relato de Paulo sobre o estabelecimento da refeicéo eucaristica. Ele se queixou da divisio entre os membros da igreja de Corinto ao compartilharem da ceia do Senhor. Em vez de par- tilharem uma refei¢io comunal, os ricos e os pobres usavam provisdes préprias, e o resultado era que alguns ficavam com fome enquanto ou- tros se embriagavam (1Cor 11:20-21). Eles deveriam partilhar, ordenava Paulo, o mesmo pio, simbolizando 0 corpo, e a mesma taga, simboli- zando o sangue do Senhor, fazendo-os contemplar a morte do Senhor até o seu retorno. A eucaristia de Paulo é basicamente um lembrete ale- gorico ou mistico do fim violento de Jesus, Todavia, ele nao se estende tio chocantemente quanto Jodo (ver acima, p.32,n.7), e mesmo um pou- co menos do que os Sinépticos (Mt 26:26-9; Mc 14:22-5; Le 22:15-20), na identificagao real do pao e do vinho com o corpo eo sangue a serem, respectivamente, comido e bebido. Paulo tem a sua prépria maneira de relatar o acontecimento tanto em 1Cor 11 quanto em 1Cor 10:16-7. Ele ensina que o propésito da unido ou comunhio mistica com 0 corpo eo sangue de Cristo éaglutinar simbolicamente os muitos membros da igreja num todo tinico. E claro, é concebivel que Paulo tenha reeditado a verso tradicional — embora nem nos Evangelhos Sin6pticos haja dois relatos iguais da instituigao da eucaristia — e que a ultima ceia de Jodo nada tenha a ver com a eucaristia. Mas parece-me que a formula introdutéria de Paulo sugere que ele quisesse dizer algo original, e nao apenas reproduzir a his- toria tio amitide repetida. Ao passar adiante a tradicdo da igreja a ele transmitida por agentes andnimos, como a morte, o sepultamento, a res- surreigo e as aparigdes posteriores de Jesus (1Cor 15:3-5), ele prefaciaa sua declaracdo com “Transmiti-vos... aquilo que eu mesmo recebi” (1Cor 15:3). No caso da eucaristia, entretanto, esta dito que a sua fonte é Jesus, implicando que lhe fora diretamente revelada. “Com efeito, eu mesmo recebi do Senhor o que vos transmiti.” (1Cor 11:23) Se eu estiver certo na 86 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. AS VARIAS FACES DE JESUS pente “como ladrao noturno” (1Ts 5:2). “Pois isto vos declaramos, segun- do a palavra do Senhor: que os vivos, os que ainda estivermos aqui para a Vinda do Senhor...” (1Ts 4:15) A precisdo da linguagem dispensa qual- quer justificativa da iminéncia literal da Parusia. A teologia de Paulo, que serd examinada no préximo capitulo, ea sua ética escatolégica devem ser vistas nesse curto lapso de tempo, que, como era de se esperar, levou a algumas excentricidades passageiras nas igrejas de Corinto e Tessalonica. Alguns fiéis, ansiosos a propésito do destino ultimo dos seus amigos e parentes finados, introduziram o cos- tume de fazerem-se batizar em nome dos mortos (1Cor 15:29). Através dessa ficcdo legal, que Paulo alids nado reprovou, pagios nao batizados adquiririam vicariamente o status de cristios e 0 direito a ressurreicao, na qualidade daqueles “que pertencem ao Cristo” (1Cor 15:23). Ainda mais curiosamente, no come¢o dos anos cingiienta d.C., espa- Iharam-se rumores na igreja de Tessalonica de que Cristo jd havia retornado e de que o evento fora anunciado numa carta de Paulo. Como resultado, alguns cristaos tessalonicenses pararam de trabalhar, na certeza de uma manifestacao imediata do Senhor. Paulo interveio rapidamente na situa- Gao religiosa e socialmente perigosa, negando o reaparecimento efetivo de Cristo, o qual, declarou ele, ndo ocorreria sem uma série de premonigées, eadmoestando com firmeza os tessalonicenses paradosa voltarem ao tra- balho (2Ts 2:1-8; 3:6-12). A fé de Paulo na segunda vinda a aproximar-se rapidamente, tao ébvia nas cartas aos tessalonicenses e 1Corintios, afetou nio somente a sua representagdo de Jesus Cristo, mas também a maneira como instruiu e conduziu o seu rebanho.? Tanto Paulo como Jesus viveram em condi- goes de uma inseguranga exaltada, sem saber 0 que ia acontecer em segui- da, mas eram cercados por seguidores de diferentes origens e experiéncias. SParece que a tinica ocasido em que Paulo, jé preso a espera de processo em que podia ser condenado & morte, considerou a possibilidade de vir a morrer antes do retorno de Cristo esta em Fl 1:21, provavelmente escrita entre 58 e 60 d.C. 90 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. AS VARIAS FACES DE JESUS igreja. Ao longo das suas varias viagens, ele havia conseguido plantar o evangelho nos coragdes dos gentios em muitas partes do mundo medi- terraneo, na Sfria, na Asia Menor e na Grécia; ele esperava rapidamente viajar para a Itdlia e para Roma. Na verdade, 0 total de membros das suas igrejas pode nio ter alcancado mais do que uns poucos milhares, mas constituiu um elemento significativo em toda a metade oriental do Im- pério Romano. Paulo provavelmente sabia que outros missiondrios apos- t6licos estavam ativos no Egito e na Mesopotamia setentrional, e pode ter ouvido os rumores de que o cristianismo havia chegado a pontos tao extremos no Oriente quanto a India. Mas o Ocidente ainda carecia de evangelho; Paulo sentia que lhe cabia levar a boa nova de Antioquia, na margem oriental do Mediterraneo, aos Pilares de Hércules (Gibraltar), onde o sol se punha na extremidade ocidental do universo habitado. Apés a sua planejada visita a Roma, ele correria A Espanha (Rm 15:24), sem duvida esperando ouvir, apés uma missao de pregacio triunfante, a trom- beta assinalando o grande dia do retorno de Cristo, saudado por um coro de aleluia, misto de judeus e gentios. Como ocorre amitide com os belos sonhos, eles acabam antes de o climax ser atingido. Paulo provavelmente nunca chegou a Espanha; ju- deus ¢ cristaos continuam divididos e dois milénios se passaram sem a segunda vinda. Mas 0 cristianismo ainda resiste, e isto se deve em gran- de parte a visdo teolégica de Jesus esbogada pelo estranho entre os apés- tolos, que nunca o viu em carne e osso. 94 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. AS VARIAS FACES DE JESUS Por isso Deus soberanamente o elevou e lhe conferiu o nome que est4 acima de todo nome, a fim de que ao nome de Jesus todo joelho se dobre nos céus, sobre a terra e debaixo da terra, e que toda lingua proclame que o Senhor é Jesus Cristo para a Gléria de Deus Pai. As express6es “na forma de Deus”, “usar seu direito de ser tratado como um deus” e “despojar-se” lembram conceitos mitolégicos familiares ao Evangelho de Jodo e a especulagao gnéstica herética posterior. Se tal for mesmo 0 caso, elas apontam cronologicamente para 0 comego do segundo século d.C., em vez da época de Paulo. O hino faz muito mais sentido se compreendido como uma composi¢o liturgica existente, inserida na carta aos filipenses, nao por Paulo, mas por algum editor ulterior. O fato de este poema poder ser removido sem prejudicar o sig- nificado geral do capitulo favorece fortemente a teoria da sua origem pés-paulina. O segundo exemplo é fornecido por Romanos 9:5. Dependendo da sua pontuagao — e é claro que os manuscritos gregos antigos ndo eram pontuados — este versiculo pode ter dois significados totalmente dife- rentes. O significado gira em torno da identidade do destinatério da bén- do final: dirige-se a Cristo ou a Deus? “Aos quais [israelitas] pertencem os patriarcas, e dos quais descende o Cristo, segundo a carne, que é, aci- ma de tudo, Deus bendito pelos séculos! Amém.” (Rm 9:5) Sea doxologia ou louvor littirgico ligar-se a Cristo, isto é: “dos quais descende Cristo... que é, acima de tudo, Deus bendito pelos séculos! Amém (conforme a Autorized Version), nao ha davida de que Paulo identifica Cristo com Deus. Mas a pontuagio alternativa, preferida pelos tradutores e co- mentadores modernos, coloca um ponto final apés “Cristo”, tratando a doxologia como independente e referindo-se claramente a Deus: “dos quais descende Cristo. Deus acima de tudo bendito pelos séculos. Amém” 98 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. AS VARIAS FACES DE JESUS abaixo, pp. 105-107), Deus chegou ao ponto de realmente sacrificar 0 seu Filho em nome da humanidade, para “nos agraciar em tudo junto com ele” (Ro 8:32). Este “em tudo” é repetidamente definido por Paulo. Na sua percepcio espiritual, os homens e mulheres remidos herdam miste- riosamente o status do “Filho” e, “conformes a imagem do Filho” (Ro 8:29), tornam-se simbolicamente filhos do Pai celestial. Paulo assevera: “vés todos sois filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo.” (Gl 3:26) O Senhor em Paulo O titulo de “Senhor’, tao multifacetado nos Sindpticos e mesmo em Joao, é empregado de maneira menos variavel nas cartas de Paulo. O seu uso mais comum nos Sindpticos, a forma polida de tratamento Sir,* esté aqui completamente ausente: tanto quanto podia, Paulo fechava os olhos para 0 Jesus histérico. Entretanto, ele nao péde evitar a terminologia crista comum ao chamar Tiago e outros parentes de Jesus de irmao ou irmaos do Senhor [Lord] (Gl 1:19; 1Cor 9:5). A indicagao ocasional de que este ou aquele preceito tradicionalmente transmitido vem do Senhor [Lord] também aponta para 0 Jesus pré-gélgota, mas pode-se conceber igual- mente que tenha sido emitido pelos labios do Cristo ressurreto que se revelou a Paulo: “Quanto aqueles que sao casados, ordena nao eu, mas 0 Senhor” (1Cor 7:10) ou “Por isto vos declaramos, segundo a palavra do Senhor [Lord]: que os vivos... nado passaremos a frente dos que morre- ram” (1Ts 4:15). Paulo também herdou da cristandade primitiva a f6rmula confes- sional, geralmente uma proclamacdo de uma sé frase, afirmando a se- nhoria [lordship] de Jesus: “e ninguém pode dizer: ‘Jesus é Senhor [Lord]’ ando ser no Espirito Santo.” (1Cor 12:3) “Nao proclamamos a nés mes- *Nas versoes em lingua portuguesa da Biblia, a forma de tratamento inglesa Sir tem em geral a mesma traducao que Lord, isto é, Senhor, o que anula a variacdo mencionada eim- possibilita o contraste entre as duas designacdes. (N. do T.) 102 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. AS VARIAS FACES DE JESUS segundo os rabinos — que foi informado pelo pai da ordem de Deus. Isaac consentiu com alegria e correu jubiloso para oaltar; pediu a Abraao para amarrar suas maos e pés e estendeu o pescogo para a faca do mata- dor. Assim, 0 sacrificio que Abrado devia oferecer tornou-se também a fortiori a auto-imolagao (inacabada) de Isaac. A tradigao judaica da dois outros detalhes desconhecidos da Biblia, mas de enorme significado. O primeiro diz respeito ao efeito do auto- oferecimento de Isaac. Toda libertacdo futura do povo judeu e sua salva- ¢4o messianica final seriam vistas como decorrente do mérito do evento sacrificial da Akedah. A cada vez que evocava a Akedah de Isaac, Deus estaria mostrando misericérdia para com seus filhos. A idéia expressa numa ora¢ao posterior era certamente familiar entre os judeus do pri- meiro século: “Se os judeus forem culpados e estiverem a ponto de ser mortos, lembrem-se de Isaac seu pai, que estendeu o pesco¢o no altar para ser morto em seu nome. Que a imolagio de Isaac tome o lugar da imolagao dos seus filhos.” (Exodo Rabbah 44:5) Em outras palavras, a disposi¢ao ao sacrificio de Isaac foi transformada, no pensamento reli- gioso judeu, num ato de redencio de validade permanente para todos os seus filhos até a chegada do Messias. O segundo elemento novo, inserido na histéria j4 no século II a.C. (Jubileus 17:15; 18:3), €a data, determinada ao més e ao dia, da Amarra- Gao de Isaac. Ela ocorreu no décimo quinto dia do primeiro més (Nisan), data em que a Lei de Moisés ordenaria subseqiientemente a celebracao da Pdscoa. Como a versao reformulada do sacrificio de Isaac era uma idéia fa- miliar entre os judeus do primeiro século, Paulo péde formular o seu preceito sobre a morte de Jesus na cruz, livremente sofrida, como a rea- lizagiio perfeita da auto-oferta redentora de Isaac. Porém, aos olhos de Paulo, a marca distintiva fundamental do sacrificio de Cristo era o seu efeito universal. Ele afetava toda a espécie humana, e ndo apenas (ou principalmente) os judeus, conforme presumia-se no caso da Amarra- Go de Isaac. 106 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. AS VARIAS FACES DE JESUS Minha afirmagao nao deve ser mal interpretada; seria tolo concluir que para Paulo a ressurreicao de Jesus tem apenas importancia secundé- tia. Sem ela, 0 seu espléndido edificio doutrinal teria desabado como as muralhas de Jeric6é ao som das trombetas de Josué. Reagindo a dividas correntes entre os corintios sobre a realidade da ressurrei¢o, Paulo ex- pressa veementemente o seu ultraje: “Ora, se se proclama que Cristo res- suscitou dos mortos, como podem alguns dentre v6s dizer que nao ha ressurreicao dos mortos? Se nao ha ressurreigao dos mortos, também Cristo nao ressuscitou. E, se Cristo nao ressuscitou, vazia éa nossa pre- gacdo, vazia também é a nossa fé.” (1Cor 15:12-14) Aos olhos de Paulo, a ressurreicdo € a contrapartida direta da cruz: 0 Senhor Jesus foi condenado a morte pela humanidade e ressuscitou pela humanidade (Rm 4:25). Sua ressuscitagio dos mortos revelou simboli- camente o seu triunfo absoluto sobre a sepultura: “uma vez [Cristo] res- suscitado dentre os mortos, j4 nao morte, a morte ja nado tem mais dominio sobre ele.” (Rm 6:9) Mas além da imagem imparcial da vida conquistando a morte, o Filho ressuscitado de Deus é visto por Paulo como fonte de renascimento para os crentes: em Cristo todos receberao avida (1Cor 15:22). Este renascimento tem um significado duplo: o primeiro é simboli- co ou, no jargio da igreja, sacramental; 0 segundo é escatologicamente real, isto é, espera-se que realmente acontega na segunda vinda. A esse respeito, a imagem de Paulo pressupde uma sepultura (1Cor 15:4) de onde acredita-se que o Cristo morto foi ressuscitado por Deus. Ninguém sabe exatamente o que Paulo pensava que havia acontecido, mas ele des- tacava que 0 corpo ressuscitado de Cristo (ou qualquer corpo ressusci- tado) nao era fisico e terrestre, mas espiritual e celeste (1Cor 15:42-9). Nao obstante, este corpo espiritual é visivel, como foi visto pelos apés- tolos, disc{pulos e finalmente pelo proprio Paulo (1Cor 15:5-8). Ele nao sabe ou explica para onde foi o corpo do Cristo ressuscitado; depois de uma série de aparicdes nos primeiros dias, semanas ou meses aps a res- surrei¢do jé nao se pensava mais que estivesse na terra. Sem diivida, pode- 110 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. AS VARIAS FACES DE JESUS O quadro do fim feito por Paulo em Tessalonicenses nado contém nenhuma cena de julgamento. Aqui, como € freqiiente em seus escritos, Paulo é simplesmente inconseqiiente. Em Romanos 2:16, ele declara que, segundo o seu evangelho, “Deus julgar4, por Cristo Jesus, as agdes ocul- tas dos homens”, sem especificar quando e como. Em outras passagens, ele se refere ao tribunal de Cristo, perante o qual todos devemos compa- recer (2Cor 5:10). Ainda mais explicita e severa é a sua descricdo do “Se- nhor Jesus, vindo do céu, com os anjos do seu poder, no meio de uma chama ardente, para vingar-se daqueles... que ndo obedecem ao Evange- lho de nosso Senhor Jesus. O castigo deles ser4 a rufna eterna” (2Ts 1:7- 9). Por outro lado, pode-se presumir de outras afirmagGes que Paulo tinha a expectativa de uma conversdo universal na ocasido da chegada do Se- nhor. Cristo “pord as claras 0 que esté oculto nas trevas... Entéo cadaum receberd de Deus 0 louvor que lhe for devido” (1Cor 4:5). Parece que Paulo nao se decidiu, e que a sua visdo oscila entre a benevoléncia divina final, uma ressurreicdo reservada apenas aos fi¢is,e uma divisao tradicional do rebanho em cordeiros e bodes, com as suas devidas recompensas e punicoes. Jesus, o ultimo Adio Ainda mais impressionante do que 0 mito de Paulo do Cristo morto e ressurreto € 0 seu drama misterioso e monumental da salvacdo, que co- mega com a criagdo e culmina na glorificagao escatolégica do Senhor Jesus. Ele tem dois atores principais, o primeiro Addo eo ultimo Adao, com varias idéias religiosas quase personificadas (pecado, morte, a Lei etc.) desempenhando papéis coadjuvantes. A tramae o desenlace so de- senvolvidos nas Cartas aos Romanos e |Corintios. Deste drama miste- rioso depende a doutrina do pecado e da absolvicao originais (isto é, como o pecado € substituido pela virtude); € dele que procedem tanto 0 catolicismo na seqiiéncia de Agostinho como 0 protestantismo no mol- de luterano. 14 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. AS VARIAS FACES DE JESUS entre a Lei, que exigia mas nao produzia “obras” automaticamente, ea “fé", que portava os frutos da “retiddo” tanto antes como depois da mor- te eda ressurrei¢ao do ultimo Addo. Ao declarar que a Lei era insuficien- te para realizar a virtude sem a fé, Paulo justificou teoricamente sua luta politica contra o cristianismo judaico de Pedro e de Tiago em favor da liberdade para as suas igrejas crista-gentilicas. Elas foram liberadas dos mandamentos (nao morais) mosaicos, e especialmente da circuncisao, que era para Paulo o resumo da Lei. Qual , entao, a atitude de Paulo em relacao a Lei? E equivoca do come¢o ao fim, na medida em que ele estd dividido entre duas atitudes extremas, uma herdada do judafsmo ancestral e a outra advinda da sua polémica exclusivamente pr6-Cristo, antilegalista e antijudaica (ou ju- daico-crista). Seu subconsciente judeu o induz a declarar a Lei “santa”, “espiritual” e “boa” (Rm 7:12, 14, 16). Contudo, em seu debate sobre a absolvicao, Paulo fala da “maldigao da Lei’, de um “mistério da morte, gravado com letras sobre a pedra’, letras que “matam’, tendo operado “paixGes pecaminosas” e se tornado em “lei do pecado e da morte” (Gl 3:13; 2Cor 3:6-7; Rm 7:5; 8:2). Com excegio da alusdo incidental 4 Lei de Moisés como um “peda- gogo” (escravo greco-romano que acompanhaya a crianga na ida e na volta da escola), isto 6, um guia “até [a chegada de] Cristo” (Gl 3:24), 0 papel da Tord ¢ geralmente representado como essencialmente negativo na grande tela da histéria da salvacao de Paulo. Para comegar, ao dizer ao homem o que est errado, o que ele ndo deve fazer, a Lei ensina a ele o pecado. Ao instrui-lo sobre o que nao deve cobicar, ela planta a semen- te da cobica no seu coracio e assim o induz involuntariamente a pecar (Rm 7:7-11). A preocupagao de Paulo é que ao mesmo tempo que a Lei é clara sobre o que o judeu deve evitar (ou de fato cumprir), ela nio o capacita a nao transgredir (ou a agir retamente). Ele confronta os seus oponentes judeus ou judaico-cristaos com uma série de perguntas: “Tu, pois, que ensinas a outrem, nao te ensinas a ti mesmo? Tu, que pregas que nao se deve furtar, furtas?... Tu que te glorias na Lei, desonrasa Deus 118 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. AS VARIAS FACES DE JESUS geral na Idade Média. Em contraste, Paulo nao tolerava que a mulher nao cobrisse a cabe¢a na igreja; ele considerava que a figura feminina sem 0 véu era semelhante a mulher de cabelos raspados (1Cor 11:6). Além de constituir uma impropriedade na sociedade humana, a plena exposi¢ao do cabelo da mulher era condenada como tentagao potencial para anjos suscetiveis! (1Cor 11:10) Dir-se-ia que o velho mito preservado em Génesis, Capitulo 6, e no Livro de Enoc sobre seres celestiais (“filhos de deus” = anjos) caindo em tentago frente aos encantos de mulheres bo- nitas ainda significava algo para Paulo, que, como ébem sabido, era bas- tante neurético em questées relacionadas a sexo. Ele também proibiu estritamente as mulheres de abrirem a boca na igreja; se precisassem de alguma informagio, podiam perguntar aos seus maridos em casa (1Cor 14:34-5). Nunca lhe ocorreu que 0 espirito santo também pudesse ins- pirar adoradoras. Ele tinha palavras inesperadamente Asperas a dizer sobre 0 compor- tamento da congrega¢ao a mesa comum. Em vez de partilhar uma sé e mesma refei¢do servida a todos, as reuniGes tendiam a formar grupos separados, cada qual com a sua prépria comida e bebida. Assim, o rico ostentava e humilhava o pobre. Alguns até se excediam (“enquanto um passa fome, o outro fica embriagado” 1Cor 11:21). Isto era escandaloso e desrespeitoso retrospectivamente em relacao a morte e perspecti- vamente em relacao a segunda vinda do Senhor. Vale observar que nao descobrimos nessas reunides nenhuma indi- cagio do costume judaico de ler extratos da Sagrada Escritura seguido de um sermao ou homilia, tao comumente atestados em sinagogas (ver Capitulo 5). Regras adicionais de boa conduta revelam outras facetas do culto rendido na igreja primitiva. Além da refeigao comunal ja esbogada, a assembléia de culto descrita por Paulo em ICorintios 12 e 14 € uma espécie de cruzamento, se é que posso usar termos de comparagao con- temporaneos, entre uma ceriménia pentecostal e uma reuniao quacre. Os varios atos de adora¢ao eram carismaticos, consistindo em elocucdes inspiracionais de sabedoria, conhecimento e fé. O dom da discrimina- 122 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. AS VARIAS FACES DE JESUS Assim, a meta da existéncia cotidiana, bem como dos ritos especiais do batismo e da eucaristia, era levar a cabo a unido mistica entre o corpo do fiel e aquele de Cristo em dois niveis. “Nao sabeis que os vossos cor- pos sao membros de Cristo?” (1Cor 6:15) Misteriosamente, os individu- os cristaos eram vistos como unidos na estrutura espiritual do Senhor. Sem davida, para o incrédulo, na antigitidade ou em qualquer época, as palavras de Paulo soavam como ocas, mas 0 “mito” paulino tinha um poder extraordindrio de mover aqueles que eram inspirados pela fé. O tesultado dessa uniao mftica com o Senhor é que os cristaos passaram a ser parte de Jesus Cristo, primeiro alegoricamente como bebés, depois como criangas e finalmente como adultos (Rm 1:6; 1Cor 3:1; 13:11). Eles tinham a mente eo espirito de Cristo e emitiam 0 seu “odor” (1Cor 2:16; Rm 8:9; 2Cor 2:15). Em termos simples, por fazerem parte de Cristo, eles pertenciam a Deus: “Ora, vés sois 0 corpo de Cristo e sois seus mem- bros, cada um porsua parte” (1Cor 12:27); “mas vés sois de Cristo e Cristo € de Deus” (1Cor 3:23). Este € 0 primeiro nivel da uniao mistica. O segundo nivel é 0 corolario do primeiro. Ao tornar-se miticamente parte do corpo de Cristo, os batizados também sao unidos uns aos outros e formam o corpo espiritual da igreja. O relacionamento entre o corpo e seus membros € uma das conhecidas metaforas de Paulo. “Com efeito, 0 corpo é um e, nao obstante, tem muitos membros, mas todos os membros do corpo, apesar de serem muitos, formam um s6 corpo. Assim também acontece com Cristo. Pois fomos batizados num sé Espirito para ser um s6 corpo.” (1Cor 12:12-13) Esta unido dos crentes como membros do corpo de Cristo acaba de uma vez para sempre com distingGes basicas como ju- deu e gentio, homem livre e escravo, homem e mulher. Em termos mais praticos, Paulo deduziu dai uma licao moral, a saber que, independente- mente do seu status na sociedade secular, os cristios tinham importancia igual perante Deus e deviam tratar-se como tal. “Mas Deus dispés 0 corpo de modo a conceder maior honra ao que é menos nobre, a fim de que nao haja divisdo no corpo, mas os membros tenham igual solicitude uns com 0s outros. Se um membro sofre, todos os membros compartilham o seu 126 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. AS VARIAS FACES DE JESUS Ele deve fazé-la contemplar Seus feitos poderosos e narrar para eles os acontecimentos da eternidade [segundo a] sua [ex]planagao. Ele deve amé-los como um pai ama os seus filhos, e deve conduzi-los em todas as suas desventuras como 0 pastor conduz asua ovelha. Ele deve soltar todos os ferros que os prendem, para que nao hajanasua Congregacao nenhum. oprimido ou rebaixado,” (CD xiii. 7-10) £ muito possivel que 0 oficio do bispo paulino tomasse esse lider espiritual essénio como modelo. A figura seguinte na hierarquia eclesidstica é 0 presbitero, cuja fun- do explicita é pregar e ensinar (1Tm 5:17); mas implicitamente ele tam- bém era encarregado do trabalho pastoral da congregagao local (Tt 1:6). Os presbiteros (ou padres) parecem ter sido os ajudantes do bispo. Oterceiro cargo masculino era ocupado pelos didconos. Nao ha uma descri¢ao clara do seu trabalho em 1Timéteo. Segundo os Atos dos Apés- tolos, os didconos eram trabalhadores beneficentes da igreja (At 6:2). A mengio a uma diaconisa, Febe (Rm 16:1), sugeriria que o envol- vimento formal no campo das boas obras também estava aberto as mu- Iheres. Com certeza, é provavel que as vilivas descritas em 1Timéteo representem um grupo especffico de senhoras mais velhas, escolhidas, tudo indica, para cuidarem das necessidades dos membros mais humil- des da comunidade, pois apenas as que se distinguiam em todo tipo de boa aso podiam ser selecionadas para este papel (1Tm 5:10). A diferen- ¢a das vidvas comuns, essas vitivas “da igreja” tinham de se comprome- ter a ndo se casarem de novo, Ninguém era qualificado para posig6es na igreja a menos que pos- suisse certas qualidades morais. Curiosamente, 0 celibato nao estava en- tre essas qualidades, apesar do fato de o proprio Paulo alardear que, & diferenga de Pedro e outros apéstolos, ele havia pregado o evangelho sem. a companhia de uma esposa (1Cor 9:5). Bispo, presbitero e didcono ti- nham de ser “marido[s] de uma s6 esposa’, e a vitiva, “[ex-] esposa de um s6 marido”; como a poligamia estava fora de questao nos circulos cristaos, isto deve significar que eles s6 haviam sido casados uma vez.O fato de terem gerido com sucesso uma familia, criado filhos e mantido- 130 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. AS VARIAS FACES DE JESUS deiros de Paulo excederam em muito o seu mestre, conferindo a Cristo uma preexisténcia a partir da eternidade e associando-o ao trabalho da criagao. Os versiculos de abertura da Epistola aos Hebreus, a qual —a dife- renga das outras cartas de Paulo — dirigia-se claramente a uma au- diéncia judaica helenistica, exprimem-se de maneira tao clara que 0 comentario é quase supérfluo. “Muitas vezes e de modos diversos fa- lou Deus, outrora, aos Pais pelos profetas; agora, nestes dias que sao os ultimos, falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e pelo qual fez os séculos. £ ele o resplendor de sua gloria € a expressiio de sua substancia; sustenta o universo com o poder da sua palavra.” (Hb 1:1-3) O autor da carta aos colossenses, que estava lutando contra tendén- cias gnésticas, esbogou um quadro semelhante, com tons misticos. “Ele nos arrancou do poder das trevas e nos transportou parao Reino do seu Filho amado, no qual temos a redencao — a remissdo dos pecados.” E segue-se uma exaltagao em hino (Cl 1:15-19): Ele €.a Imagem do Deus invistvel, © Primogénito de toda criatura, porque nele foram criadas todas as coisas, nos céus e na terra, as visiveis e as invisiveis: Trono, Soberanias, Principados, Autoridades, tudo foi criado por ele e para ele. Eantes de tudo e tudo nele subsiste... pois nele aprouve Deus fazer habitar toda a Plenitude... £ impossfvel nao reconhecer a semelhanga existente entre essas descri- gGes eo prélogo do Quarto Evangelho. Mas éigualmente impossivel, no estégio atual da pesquisa sobre 0 Novo Testamento, determinar com um 134 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. AS VARIAS FACES DE JESUS demora; 0 que ele estd ¢ usando de paciéncia convosco, porque nao quer que ninguém se perca, mas que todos venham a converter-se.O Dia do Senhor chegar4 como um ladrio...” (2Pd 3:8-10) Esta justificativa é se- melhante ao argumento apresentado pelo autor do Comentério de Habacuc, de Qumr, escrevendo aos sectdrios cansados de esperar 0 dia da chegada do Senhor, também cerca de cem anos ap6s 0 Mestre da Justiga da seita do Mar Morto. Explicando Habacuc 2:3, “se ele [o fim] tardar, espera-o, porque certamente vird, nao falhara’, ele escreveu: “Interpretado, isto diz respeito aos homens fidedignos que mantém a Lei, cujas maos ndo tremerdo no servigo da verdade ao prolongar-se a era final. Pois to- das as eras de Deus chegam ao seu fim designado conforme foi por ele determinado nos mistérios da sua sabedoria.” (1QpHab 7:9-14) A expec- tativa escatolégica intensa nao podia mais sustentar-se, pelo tempo que fosse, numa comunidade religiosa fechada, fosse na seita essénia ou na igreja crista. O fervor apocaliptico deu lugar a certeza institucional ou, se posso citar a observacdo metade chiste metade séria de Alfred Loisy: “Os primeiros cristaos esperaram o retorno de Cristo, mas foi a igreja que chegou no seu lugar.” A Epistola de Tiago deu muita dor de cabega aos intérpretes cristaos desde a época da Reforma até os nossos dias. Tiago, “um servo de Deuse do Senhor Jesus Cristo”, é geralmente tomado por Tiago, “o irmao do Senhor’, o principal apéstolo judeu-cristao segundo o livro dos Atos. Para estudiosos mais criticos, Tiago é um pseudénimo e eles datam a epistola do final do primeiro século d.C. Sua recusa de atribui-la ao irmao de Jesus se baseia na exceléncia do grego do autor e na auséncia de qualquer men- go a circuncisao compulséria e 4 observancia de rituais judaicos entre cristdos, segundo Paulo e seu circulo as marcas registradas de Tiago e do seu “partido da circunciséo”. Na verdade, o autor da carta enfatiza ape- nas os preceitos morais dos Dez Mandamentos, que descreve como lei da liberdade outorgada pelo Rei divine (Tg 2:8-13). Seja como for, a epistola, que provavelmente foi originada no ultimo ter¢o do primeiro século d.C., pode no maximo ser indiretamente atribuida a Tiago, que 138 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. AS VARIAS FACES DE JESUS Atos fornecem um relato bastante detalhado sobre os progressos do movimento cristao desde cerca de 30 d.C. até o comego dos anos sessen- tana Palestina e na Siria, onde os membros do novo grupo receberam pela primeira vez o nome de Messianistas ou Cristéos (11:26),' e sobrea missao evangelista de Paulo pela Asia Menor e partes da Grécia. A histé- tia acaba com a chegada de Paulo em Roma e seus dois anos a espera do processo no tribunal imperial, mas para abruptamente neste ponto,sem narrar o seu julgamento e execugo, a qual, segundo a tradicao crista, ocorreu nos anos finais do reinado de Nero, que governou o império de 54268d4.C. Tanto o terceiro Evangelho como os Atos sao atribuidos pela igreja a Lucas, mas nenhum dos livros contém qualquer evidéncia direta que sustente a tradicdo. O primeiro testemunho de que um Evangelho e os Atos tinham sido escritos por um médico de nome Lucas vem do as- sim chamado Canon de Muratori, provavelmente o mais antigo cata- logo dos livros do Novo Testamento, de cerca de 180 d.C. Como 0 tinico médico chamado Lucas a ser mencionado no Novo Testamento é um companheiro um tanto obscuro de Paulo (Cl 4:14), ele foi, na auséncia de um candidato mais forte, reconhecido como o escritor do terceiro Evangelho e dos Atos. Existem sérias obje¢Ges a esta atribuicao. As di- ficuldades decorrem, em parte, dos muitos conflitos na histéria, relati- vosa Paulo, entre os Atos ¢ os relatos autobiogréficos nas cartas paulinas (cf. pp. 76-80), e, em parte, da auséncia de qualquer impacto notavel dos ensinamentos de Paulo na teologia de ambos os escritos. Era de se esperar que um companheiro de Paulo fizesse melhor do que isso. Seja 14 como for, no tocante a dataco é ébvio que os Atos dos Apéstolos continuam o Evangelho, que eles chamam de “o primeiro livro”. E como 'Lé-se posteriormente que o rei Agripa II comentou com Paulo com um qué de jo- cosidade: “Ainda um pouco e, por teus raciocinios, fazes de mim um cristao!” (26:28) A tinica vez que o termo foi usado fora dos Atos ocorre em 1Pedro 4:16: “mas, se sofre como cristio...” 142 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. AS VARIAS FACES DE JESUS “Filho de Deus com poder” na terminologia de Paulo (Rm 1:3), é subse- quente a sua ressurreic¢io e exaltagdo. “A este Jesus, Deus 0 ressuscitou... Saiba, portanto, com certeza, toda a casa de Israel: Deus o constituiu Senhor e Cristo...” (2:32-6) Isto implica que ser Cristo e Senhor em sen- tido completo nao estd associado ao Jesus terreno, mas sim ao Jesus glo- rificado sentado junto ao Pai no trono celestial. E do céu que ele vai retornar como o Messias “que vos foi destinado [aos judeus]” na hora determinada por Deus (3:20-21). O autor dos Atos considerava que a carreira de Jesus consistia em duas metades: o estado exaltado desde a ressurrei¢do até a segunda vinda era precedido pela missio histérica do homem de Nazaré, distinguido por “milagres, prodigios e sinais” (2:22) e marcada por um final inglério. A idéia de um Jesus nao régio e nao triunfante vindo antes do Jesus glorificado constituia um enorme obstéculo para os judeus comuns,e o principal impulso da pregagao primitiva dos apéstolos tinha o obje- tivo de explicar ¢ justificar 0 sofrimento, a morte e a ressurrei¢do de Jesus, que nao faziam parte da expectativa messianica judaica comum. Na verdade, 0 autor dos Atos faz tanto Pedro como Paulo afirmarem enfaticamente que o final tragico de Cristo seguido pelo triunfo era parte da heranga profética, mesmo que os judeus parecessem té-lo es- quecido. “Deus realizou 0 que antecipadamente anunciara pela boca dos profetas... que seu Cristo havia de padecer” e “que era preciso que o Cristo sofresse e depois ressurgisse dentre os mortos”. (3:18; 17:3; 26:23). COMO A IGREJA JUDAICA TENTOU PROVAR QUE JESUS ERA O MESSIAS A melhor maneira de captar a imagem que os cristaos primitivos faziam de Jesus é reconstruir os contetidos e 0 estilo da sua pregagéo. Como apresentaram eles o seu evangelho, e como aplicaram-se ao convenci- 146 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. AS VARIAS FACES DE JESUS tios serviram em parte para esclarecer 0 significado e em parte para de- senvolver a mensagem registrada na Escritura.? Um dos varios tipos de exposi¢ao preocupava-se particularmente com a interpretagao de profecias relacionadas a “hora final”. Este género era altamente significativo entre aqueles grupos judeus que esperavam 0 comego de uma era final no seu préprio tempo de vida ou perto disso. Depois da igreja primitiva, a mais conhecida comunidade a preocupar- se com a aplicagdo contempordnea da profecia era a irmandade religiosa dos essénios, que nos legou os Manuscritos do Mar Morto. Contudo, este mesmo tipo de comentario biblico € ocasionalmente encontrado tam- bém na literatura rabinica, O tipo mais notavel de exegese em Qumra é conhecido sob o titulo técnico de pesher. Esta palavra hebraica significa explana¢do, mas é usa- da para designar uma espécie de interpretagao de cumprimento de pro- fecias. Ela pode ser aplicada a passagens individuais ou a um grupo de extratos selecionados de varios livros biblicos, ou mesmo a capitulos e livros inteiros. A importancia de um texto profético, ou presumidamente profético, € determinada através da identificagao de pessoas grosso modo contem- poraneas do comentador como individuos em quem realizaram-se pre- di¢ées antigas. Por exemplo, no Comentario sobre Habacuc, descoberto na Gruta 1 de Qumri e datado de meados do século I a.C., os caldeus ou babilénicos, inimigos finais dos judeus segundo o profeta Habacuc, do século VII a.C., representavam, conforme supunha o autor do pergami- nho, os cetins ou romanos da sua propria época, os quais, no século I ?Ver G. Vermes, “Bible and Midrash” [Biblia e Midrash], in Cambridge History of the Bible (1970), 199-231 (reeditado in Vermes, Post-biblical Jewish Studies [Estudos judaicos pés- biblicos] (1975); G. Vermes, Scripture and Tradition in Judaism |Escritura e tradi¢ao no judaismo] (1961); Bible Interpretation at Qumran” [Interpretacao biblica em Qumral, Eretz-Israel XX (1989), 184*-191*; “Biblical Proof-Texts in Qumran Literature” [Textos comprobatérios biblicos na literatura de Qumran], Journal of Semitic Studies 34 (1989), 493-508. 150 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. AS VARIAS FACES DE JESUS Outra pesher diz respeito a varios atos de Judas, a sua traico a Jesus, a compra de um pedaco de terra chamado “Campo de Sangue” com as trinta moedas de prata que recebeu dos sumos sacerdotes; a sua morte,? a sua substituicao por Matias no colégio dos apéstolos. Esses fatos sio apresentados como cumprimento dos Salmos 69:26 e 109:8: “Que seu acampamento fique deserto, e nao haja morador em suas tendas!”e “Que seus dias fiquem reduzidos e outro tome o seu encargo!” (At 1:16-20). Além disso, a rejeicao da pregacao de Paulo pelos judeus romanos (At 28:24-7) foi predita pela profecia de Isafas: “em vao escutareis, pois nao compreendereis; em vao olhareis, pois nao vereis. £ que 0 coragao deste povo se endureceu: eles taparam os ouvidos e vendaram os olhos...” (Is 6:7-10). Quanto a escolha dos gentios, foi predita por Tiago, o irmao do Senhor, através de uma citacao combinada de Jeremias 12:15, Amés 9:11-12 e Isafas 45:21: “Depois disso voltarei e reedificarei a tenda arrui- nada de Davi, reconstruirei as suas ruinas e a reerguerei. A fim de que 0 resto dos homens procurem o Senhor, assim como todas as nacdes dedicadas ao meu Nome, diz o Senhor que faz estas coisas conhecidas desde sem- pre” (At 15:16-18)* Todos os argumentos pesher citados até aqui sdo casuais, quer di- zer, referem-se a versiculos isolados da Escritura. Uma comprovagdo biblica mais conseqiiente é desenvolvida na forma de um sermao mis- siondrio que apresenta uma versdo condensada da histéria religiosa dos judeus desde Abraiio até Jesus. Dos dois exemplos sobreviventes, um teria sido pronunciado perante o sumo sacerdote e 0 concflio em Jeru- Judas caiu ¢ arrebentou pelo meio, derramando-se as suas entranhas (1:18). Esta descri- 40 da morte do traidor contradiz a de Mateus 27:5, em que Judas teria se enforcado. ‘Este argumento se baseia na versdo grega de Amés. No texto hebreu, as palavras da passa~ gem em itélico tém um significado totalmente diferente: “que eles {os judeus] possam do- minar 0 que resta de Edom, assim como todas as nagbes dedicadas ao meu nome.” Desde que ¢ improvavel que Tiago, lider dos judaizantes, tenha usado a versio septuaginta da Bf- blia em vez da hebraica, deve-se supor que 0 texto em Atos dos Apéstolos seja uma fabrica- Go gentilico-crista posterior. 154 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. AS VARIAS FACES DE JESUS nuou sendo 0 local de ora¢io publica favorito dos adeptos do movimento de Jesus pelo menos até 58 d.C., data da ultima visita de Paulo a Jerusa- lém, e provavelmente até a destruicao do santudrio em 70 d.C. Esta significativa manifestacao de lealdade ao povo de Israel nao quer dizer, contudo, que a fraternidade dos discipulos de Jesus tenha falhado em formar uma comunidade distinta e progressivamente mais e mais reconhecivel no seio da coletividade dos judeus. No come¢o, eles mal se distinguiam. Durante um dos primeiros comparecimentos dos apéstolos perante o Sinédrio, 0 livro dos Atos diz que o famoso profes- sor Gamaliel alude a eles simplesmente como “estes homens” — nao como sectdrios ou hereges — e adota a linha tfpica de um lfder reli- gioso cauteloso de deix4-los em paz, pois a maior parte da novidade mostrava ser fogo de palha (5:38-9). Trés décadas mais tarde, a cris- tandade palestina ainda era percebida de fora como parte do judais- mo, mas identificdvel no seu seio; tinha se tornado uma “seita’, hdiresis em grego, termo sem qualquer nuanga pejorativa (como as seitas dos fariseus, saduceus e essénios, segundo a terminologia de Flavio Josefo). O advogado Tertulo, contratado pelo sumo sacerdote Ananias e pelos anciaos para acusar Paulo perante o procurador romano Félix, referiu- se a ele como “um dos lideres da scita dos nazarenos” (24:5). O suces- sor de Félix, Festo, pés tanto Paulo como seus acusadores no mesmo saco: todos tinham apenas questées “sobre a sua prépria religido” (25:19). Na época em que Paulo chegou a Roma no come¢o dos anos sessenta, os judeus locais tinham sabido que “essa seita” encontrava contradicdo em toda parte (28:22), ainda que os seus membros conti- nuassem a ser considerados correligiondrios rebeldes. “Igreja” é a designacao geral da irmandade de Jesus nos Atos dos Apéstolos. Contudo, contrariamente ao seu uso moderno, que possui uma conotagio crista definida, o grego ekklesia nao tem este significado denominacional. No discurso de Estévao, o termo se refere a“assembléia [dos judeus] no deserto” (7:38). O primeiro titulo especifico escolhido pela comunidade crista foi “o 158 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. AS VARIAS FACES DE JESUS positar [todo 0 valor] aos pés dos apéstolos”, mas na verdade eles retive- ram uma parte do preco. A mentira lhes custou a vida, pois ambos fo- tam punidos com morte stbita por “tentarem o espirito santo”. Dir-se-ia que mesmo sem haver obrigacao estrita, os associados da fraternidade estavam sob pesada pressio moral para seguirem o exemplo dos mem- bros mais generosos, Seja como for, a impressdo geral dada pela irman- dade de Jesus era de que, em termos gerais, o comunismo religioso estava na ordem do dia entre eles. Tal rentincia a propriedade privada era totalmente incomum. Na sociedade judaica intertestamental, s6 é comprovada entre os essénios descritos por Filo, Josefo e Plinio, o Velho, e no ramo asceta celibatério da seita Qumra-essénia, pela Regra da Comunidade nos Manuscritos do Mar Morto. Os membros casados menos extremos do movimento essénio nao rejeitavam a propriedade privada, mas insistiam numa contribui- gdo mensal compulséria para um fundo de caridade, controlado pelo guardiao e pelos juizes, com que os pobres, doentes e oprimidos eram sustentados. E posstvel, e até provavel, que os lfderes da igreja de Jerusa- lém tenham sido influenciados pelo exemplo da pratica essénia ao introduzirem o principio da caixa comum. Entretanto, falar de uma de- pendéncia direta ou menos ainda de uma identidade com 0 essenismo seria totalmente injustificavel, por duas razoes. Primeiro, a propriedade comum era obrigatéria no estrito regime essénio, e nado apenas opcional. Segundo, nao se tratava apenas de uma adesao gradual durante os anos da iniciagdo essénia, mas também continha um elemento ritualistico explicito (as posses de um nio membro eram impuras), elemento este que nao existia no sistema adotado pela igreja de Jerusalém. A adesao do movimento de Jesus ao comunismo religioso é antes atribufvel ao inten- so fervor escatolégico disseminado na comunidade. Num momento em quese acreditava que o reino de Deus era iminente, posses materiais nao apenas tornavam-se menos atraentes, mas constitufam um estorvo para Os que pretendiam trabalhar com o cora¢do totalmente voltado para 0 reino dos céus. Na verdade, o regime adotado pela igreja de Jerusalém 162 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. AS VARIAS FACES DE JESUS te Ceva”. Aparentemente, eles tentaram adicionar a formula de Jesus ao seu repertério conjuratério, dirigindo-se a um deménio: “Eu vos conju- To por Jesus, a quem Paulo proclama!” Nem é preciso dizer, a tentativa foi um fracasso. O homem possuido ficou furioso e os pés em fuga, 0 espirito mau zombando deles com as seguintes palavras: “Jesus, eu 0 conhe¢o; e Paulo, sei quem é. Vés, porém, quem sois?” (19:13-14) Em toda a sua obra, o autor dos Atos reconta os muitos “sinais” rea- lizados pelos apéstolos e discipulos (2:43; 4:16; 5:12; 6:8; 8:6-75 8:13 etc.). Além disso, como os operadores de prodigios em Jerusalém nao eram peritos na arte de curar, ou mégicos profissionais, mas “homens iletrados e sem posi¢do social” (4:13), acreditava-se que seus poderes vinham de cima. Sem dtivida, além das curas milagrosas e do controle de espiritos do mal, muitos outros fenémenos eram associados aos lideres do movi- mento de Jesus. Entre eles, visitas sobrenaturais de anjos (5:19; 10:3; 12:7; 16:9; 27:23), visdes de Jesus (7:56; 9:4-5), e a experiéncia de éxtases du- rante a oracdo (10:10-11; 22:17). Um sem-numero de profetas cristaos homens e mulheres sao mencionados, entre eles quatro filhas solteiras do evangelista Filipe em Cesaréia (21:9) e todo um grupo que viajava de Jerusalém a Antioquia (13:1).Um deles, de nome Agabo, predisse a grande fome que de fato ocorreu durante o reinado do imperador Claudio, e anunciou a captura e priséo romana de Paulo (11:27; 21:10-11).O autor dos Atos vé e faz os seus leitores verem manifestagGes espirituais em toda a parte. Experiéncias e comportamentos extaticos também sao relatados em grupos anteriormente sem ligacéo com 0 movimento de Jesus, e sao apresentados como manifestagSes de uma descida subita do Espirito Santo. Eles so modelados nos exemplos de profecia primitiva do An- tigo Testamento, como a cena de Eldad e Medad e os demais anciaos escolhidos por Moisés (Nm 11:25-6) e a agitacdo exaltada do recém- escolhido primeiro rei de Israel quando encontrou “um grupo de pro- fetas” e “o espirito de Deus veio sobre ele, e ele entrou em transe com eles” (1 Sm 10:10). 166, aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. AS VARIAS FACES DE JESUS Em outras palavras, foram instados a submeterem-se a uma conversdo espiritual segundo o modelo estabelecido por Joao Batista, mas com uma diferenca: tinham de se arrepender e ser batizados pelo perdao dos seus pecados... “em nome de Jesus Cristo” (2:38). Essas palavras de instrugao pronunciadas por Pedro no dia de Pentecostes parecem representar um padrao de exortacao crista primitiva. Crenga e obediéncia faziam-se ime- diatamente seguir pelo batismo e, como vimos, eram acompanhadas imediata ou posteriormente por sinais de éxtase ou, no jargao apostéli- co, pelo recebimento do Espirito Santo (2:38; 8:5-6, 14-17). Dir-se-ia que, no caso dos judeus e até dos samaritanos, a aceitagao da proclamagao (mesmo sucinta) do evangelho bastava para seguir-se 0 batismo. Tendo visto “o Justo” e confessado a sua fé em Jesus, Paulo rece- beu a ordem de Ananias em Damasco: “E agora, que esperas? Recebe 0 batismo e lava-te dos teus pecados invocando o seu nome [de Cristo]” (22:16). A mesma admissio imediata na igreja é registrada no caso do prosélito etiope que pediu que as preliminares fossem abreviadas: “Eis aqui a Agua! Que impede que eu seja batizado? E mandou parar a car- tuagem. Desceram ambos a Agua, Filipe e 0 eunuco. E Filipe o batizou.” (8:36-8). Uma admissao tao expedita na igreja pressupunha, nado uma verda- deira mudanga de religiao, o abandono de uma fé em prol de outra, mas apenas um passo, um passo significativo, no interior do mesmo judafs- mo, ao longo de uma senda tida como providencialmente pré-ordena- da. O verdadeiro problema surgiu quando os primeiros nao judeus comegaram a bater a porta da igreja. Sem considerar 0 caso do prosélito etiope, ja familiarizado com 0 judaismo (ele tinha ido a Jerusalém para 0 culto e estava lendo o Livro de Isafas), o primeiro suposto exemplo de nao judeu tentando entrar é 0 de Cornélio, um oficial do exército romano da corte italiana estaciona- da em Cesaréia. Como ¢ contada, compreende-se melhor a historia como tendo um viés “politico”. Tendo em vista o conflito entre Pedro e Paulo, resultante da sua diferenca de atitude em relacdo aos gentios na igreja 170 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. AS VARIAS FACES DE JESUS Jerusalém. E isto é muito significativo, pois apés a destrui¢ao da cidade em 70 4.C., 0 santudrio demolido passou a simbolizar a rejeicao divina dos judeus e sua substitui¢ao pelos cristdos como povo escolhido de Deus. Exceto pela diatribe do helenista Estévao contra a adora¢ao ritual, ele- mentos de uma ideologia anti- Templo estao completamente ausentes da perspectiva do grupo apostélico. Ora, se 0 Jesus histérico tivesse adota- do uma atitude basicamente hostil para com 0 judaismo e suas institui- g6es, esta retomada instintiva da religiao ancestral pelos discfpulos mais préximos teria sido quase incompreensfvel. Se a imagem da igreja pri- mitiva nos Atos dos Apéstolos contém um grao de verdade, pode-se afir- mar com confianga que € incompativel com a nogao de que Jesus foi o fundador de uma nova religido divorciada do judaismo. A tnica novidade especifica na igreja primitiva dos Atos é a exube- rancia espiritual extraordindria dos seus membros, mas tais sinais ex- ternos de éxtase estao de acordo com o entusiasmo natural de um movimento recém-formado. O poder que a possessao pelo Espirito Santo, despachado do céu por Jesus glorificado, conferia aos crentes era visto por eles como uma prova da continuagio da atividade do Cristo ressus- citado na terra. Nés vimos que Jesus era o Cristo para a igreja primitiva, mas 0 seu carter “messianico” concebido pelos Atos é algo muito especial. Este Jesus é destituido de tracos régios e nao ha em parte alguma a menor sugestdo de que tenha desempenhado um papel politico.’ A elevacao de Jesus aum status sobre-humano nio precede (como em Joao) mas sucede a sua car- Teira terrena. Enquanto estava vivo entre os seus discipulos, ele é retratado como um santo Servo de Deuse porta-voz profético final de Deus, engajado no estabelecimento no mundo judeu de um esperado reino dos céus. O testemunho dos Atos, trazendo as impress6es, crengas e convic- g0es das pessoas que conheceram e ouviram Jesus, é de importancia vi- *Unicamente os criticos judeus de Paulo em Tessalonica acusaram seus seguidores de des- lealdade para com Roma ao afirmar que seu Messias era rival de César (17:7). 174 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. O JESUS DOS EVANGELHOS SINOPTICOS: CURANDEIRO E MESTRE... 13:5, 13; Fm 24:2; 2 Tm 4:11). Por outro lado, 0 autor de 1Pedro (cf. p. 135) faz alusdo a um companheiro seu que ele chama “meu filho Mar- cos” (1Pd 5:13). Papias afirma explicitamente que Marcos nao ouviu ou seguiu Jesus e que, conseqiientemente, nao foi testemunha ocular dos acontecimentos do Evangelho, mas era porta-voz de Pedro. Quanto ao terceiro Evangelho, a primeira atribui¢do a Lucas, que como vimos foi provavelmente um dos companheiros de Paulo, encon- tra-se na lista de escritos do Novo Testamento conhecida como 0 Canon de Muratori, do final do século II, j4 mencionado em relagio a autoria dos Atos dos Apéstolos. Em resumo, nao é possivel afirmar que qual- quer dos evangelistas sinépticos tenha sido companheiro préximo de Jesus, mas todos os trés pertenceram ao periodo apostélico. Os trés primeiros Evangelhos sao chamados Sindpticos porque em geral refletem o mesmo ponto de vista e seguem essencialmente o mes- mo enredo; em conseqiiéncia, os trés poderiam ser dispostos em colu- nas paralelas de uma sinopse do Evangelho. A inter-relagao entre Marcos, Mateus e Lucas, e entre Lucas e Mateus, o assim chamado problema sindptico, foi objeto de debate continuo por mais de dois séculos, sem produzir um resultado inteiramente satisfatério e geralmente concor- de, Para nossos propésitos, nao é necessdrio detalhar os prés e os con- tras das muitas teorias avangadas até aqui. Creio que seria mais util destacar alguns fatos e resumir as hipéteses mais amplamente sus- tentadas. Embora, grosso modo, idénticos em estrutura, os trés Evangelhos di- ferem consideravelmente em extensdo. Marcos € 0 mais curto, com de- zoito paginas na tradugao inglesa da Revised Standard Version,comparado com as vinte e nove paginas de Mateus e as trinta e uma de Lucas. Mateus ésessenta por cento mais extenso do que Lucas e setenta por cento mais do que Marcos. A maior parte da substancia de Marcos pode ser encon- trada nos outros dois Evangelhos, e a maior parte do material suplementar em Mateus e Lucas é aproximadamente o mesmo, embora nao se apre- sente na mesma ordem. O grosso do material adicional comum a Lucas 179 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. AS VARIAS FACES DE JESUS estender 0 significado de irmao e irma para incluir rela;ées menos ime- diatas, como primos. Mas nao € preciso destacar que em nenhum outro contexto, a nao ser 0 do Novo Testamento, ocorreria a alguém questio- nar o significado comum das palavras. Segundo a tradicao do Evangelho, a familia de Jesus era de artesdos galileus. Sua ascendéncia real do lado paterno é um embelezamento teo- légico que serd examinado mais tarde. Seu pai, José, era um carpinteiro (tékton) e o proprio Jesus é descrito como praticante do mesmo oficio: “Nao é ele o filho do carpinteiro?” (Mt 13:55) ou “Nao é este o carpin- teiro...2” (Mc 6:3). Na sociedade judaica do perfodo, a combinagao de educacao religiosa com trabalho manual ou artesanato absolutamente nao era rara. Pedro ealguns dos seus colegas eram pescadores. Sao Paulo era tecelao e fabricante de tendas, e rabinos muito conhecidos foram ape- lidados de “o sapateiro” ou “o ferreiro” e assim por diante. Durante séculos, a tradi¢ao crista acalentou a idéia de Cristo como artesdo humilde que trabalhava com o pai; recentemente, porém, alguns estudiosos mostraram-se intensamente interessados em elevar 0 seu status social: de carpinteiro auténomo a condigao de empreiteiro e construtor. O pano de fundo dessa mudanga foi a “descoberta’, relativa as recentes escavaces arqueoldgicas de Séforis, de que essa importante cidade ju- daico-gentilica situava-se a apenas seis quilémetros e meio de Nazaré. Assim, sea firma José & Jesus procurava negécios, havia muito trabalho na regido grega da capital regional da Galiléia, onde, entre outros proje- tos, um grande anfiteatro estava sendo construido. Mas a mente fértil de certos pesquisadores nao para neste ponto. Eles ainda supdem que Jesus assistiu a pecas no teatro de Séforis. Pois de que outro modo poder-se-ia explicar o repetido uso por Jesus do termo hypokritai (hipécritas), que em grego pode denotar, entre outras coisas, “atores”? Entretanto, mes- mo que admitamos que Jesus tenha realmente pronunciado as passagens que continham a palavra em questao, e que desconsideremos 0 fato de esta teoria pressupor que o grego de Jesus era bom o bastante para per- mitir que apreciasse peas de teatro, e que, contrariamente ao etos do 184 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. O JESUS DOS EVANGELHOS SINOPTICOS: CURANDEIRO E MESTRE... E ele curou muitos que estavam doentes de diversas enfermidades” (Mc 1:32, 34). As margens do Lago da Galiléia, ele escapou num pequeno barco, pois depois de ter curado muita gente, “todos os que sofriam de alguma enfermidade langavam-se sobre ele para tocd-lo.”” (Mc 3:10; Mt 12:15; Le 6:17-19). Sua reputagao era tal que, assim que ouviam que Je- sus estava chegando, as pessoas traziam imediatamente a sua presenga todos aqueles afligidos por doengas (Mc 6:53-5; Mt 14:34-5).O mesmo enredo parece ter se repetido em toda a Galiléia. “Em todos os lugares onde entrava, nos povoados, nas cidades ou nos campos, colocavam os doentes nas pragas, rogando que lhes permitisse ao menos tocar na orla do seu manto. E todos os que 0 tocavam eram salvos.” (Mc 6:56; Mt 14:36) Nos Atos, os apéstolos Pedro e Paulo sao apresentados num papel seme- Ihante (cf. pp. 164-5), mas os relatos relembram o espetdculo moderno de multiddes afluindo a benzedeiros, ou em visita aos rabinos hassidicos (Wunderrebbe) conhecidos por seus poderes milagrosos de cura. A fé da parte do doente é um elemento essencial do processo de cura. Isto € sempre presumido e varias vezes expressamente afirmado, como nos casos do cego Bartimeu (“Vai, tua fé te salvou”, Mc 10:52; Le 18:42), da cura da mulher com fluxo de sangue (“Minha filha, a tua fé te salvou’, Mc 5:34; Mt 9:22; Le 8:48), e do centurido de Cafarnaum, cuja crenga ilimitada no poder curativo de Jesus granjeou a cura instantanea do seu servo (Mt 8:13; Lc 7:9). Num dia de sabé numa sinagoga, Jesus é descrito curando a mio paralitica de um homem apenas por um comando, isto é, sem qualquer aco curativa, para evitar ofender o excesso de sensibili- dade dos judeus, que poderiam (erradamente) objetar que uma eventu- al imposigao de mos fosse “trabalho” (Mc 3:5). Entretanto, em muitas das histérias ou 0 enfermo toca o curandeiro, ou ainda mais freqiien- temente o curandeiro pdea sua mio no doente ou desempenha alguma outra ago terapéutica envolvendo contato corporal. Esse processo é bem ilustrado pelo caso da mulher sofrendo de he- morragia, que estava convencida de que até o contato com a roupa de Jesus restauraria a sua satide (Mc 5:25-8; Mt 9:20-21; Le 8:43-4). Segun- 191 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. AS VARIAS FACES DE JESUS (Mc 3:73 5:21; Mt 4:25; Le 6:19 etc.). Os evangelistas dao a impressaio de que ele foi extraordinariamente bem-sucedido. Logo apés 0 comego do seu ministério, “ja nao podia entrar publicamente numa cidade” (Mc 1:45). Ainda que sua fama alcangasse lugares tao distantes quanto Tiroe Sidénia, na Transjordania, e possivelmente ainda mais longe (Mc 3:7-8; Mt 4:25; Lc 6:17), ele nao tinha uma acolhida calorosa além das frontei- ras da Galiléia. Os habitantes do lugar chamado alternativamente de Gergesa, Gerasa ou Gadara rogaram-lhe polidamente que se afastasse do seu territ6rio. Sem duvida, estavam ressentidos com a perda dos seus suinos, 0s quais, como ratos, arrojaram-se no lago e morreram, depois que — conforme as pessoas pensaram — Jesus permitiu que deménios exorcizados entrassem no rebanho local de porcos (Mc 5:11-17; cf. Mt 8:30-34; Lc 8:32-7). O local mais provavel desse episédio é Gergesa, per- to da margem oriental do lago. Variantes dos Manuscritos identificam a cidade como Gadara (Jerash). Mas se os su{nos tivessem partido de qual- quer um desses lugares, teriam tido de voar em vez de saltarem, se fosse para desembarcarem no Mar da Galiléia. Nenhuma multidao saudou Jesus quando ele se aventurou a visitar 0 distrito de Tiro e Sidénia na Siro-Fenfcia (Mc 7:24; Mt 15:21) ou Cesaréia de Filipe (Mc 8:27; Mt 16:13) na regiao de Panaias-Ituréia. Na Samaria, Jesus, como judeu, foi clara- mente desdenhado: Ele“enviou mensageiros a sua frente. Estes puseram- se acaminho e entraram num povoado de samaritanos. Eles, porém,nao o receberam, pois caminhava para Jerusalém” (Lc 9:52). Nao é de sur- preender que Jesus tenha ordenado aos seus discipulos para evitar a Samaria (Mt 10:5), mas sua ordem parece ter sido esquecida nos anos posteriores. Os evangelistas sinépticos fornecem poucos detalhes sobre a recep- do de Jesus na Judéia, mas como, a diferenga de Jodo, eles s6 o fazem viajar uma vez para Jerusalém, talvez isso devesse ser esperado. Contam- nos de passagem que, como curandeiro, ele atraiu uma multidao em Jericé no seu caminho para a capital (Mc 10:46; Mt 20:29; Lc 18:36). Em Jerusalém, também, ele teve uma grande audiéncia (Mc 11:18; 12:37), mas 198 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. O JESUS DOS EVANGELHOS SINOPTICOS: CURANDEIRO E MESTRE... naram eles as suas tumbas ou viveram para sempre depois? A verdade € que os judeus na época de Jesus nao estavam acostumados a lidar com 0 problema de uma ressurrei¢ao “histérica”. A ressurreic¢ao universal dos mortos antes do julgamento final era um assunto completamente dife- rente e, a partir do Capitulo 12 do Livro de Daniel, ocupou um espago bem estabelecido do pensamento escatolégico judeu, ainda que em pri- meira instancia fosse considerada como privilégio apenas dos justos. No que diz respeito a Jesus, 0 estudo dos Sindpticos mostra que 0 conceito de ressurrei¢ao nao desempenha um papel importante na sua visio da vida depois da morte; ele preferia falar sobre isso mais em ter- mos de vida eterna do que de corpos mortos reanimados. Também de- vernos nos lembrar que nem os autores do Velho Testamento nem os escritores pés-biblicos judeus conclufram que a morte ou tampouco a ressurreicaio do Messias de Israel tenha sido de qualquer modo espera- da. Isso significa que Jesus € os seus discfpulos nao estavam precondicio- nados pela tradi¢ao ou educagao a anteciparem ou esperarem por um Cristo ressuscitado; assim, os primeiros narradores da histéria de Jesus nao tinham nenhum modelo para seguir quando tentaram explicar o que tinha acontecido com o seu mestre morto e enterrado. O que encontramos, entao, nos Evangelhos? Parece claro que os disci- pulos nao alimentavam nenhuma esperanca de ressurreic¢ao iminente, a julgar por seu comportamento apés a prisao de Jesus — todos fugiram — e por sua incredulidade original no dia da Péscoa. Tampouco o faziam as mulheres que foram ao tamulo para untar o corpo de Jesus. Essa auséncia de expectativa entra em conflito, porém, com a afirmagao, repetida nao menos que cinco vezes nos Evangelhos Sinopticos, de que Jesus predissera distintamente nao apenas a sua propria morte, mas também a sua ressur- reigio precisamente no terceiro dia (Mc 8:31; 9:9; 10:33-4; 14:28). Essa profecia altamente significativa de Jesus parece ter ecoado em ouvidos moucos ou ter cafdo direto no esquecimento, sem que sequer um apésto- lo se lembrasse dela durante as horas cruciais entre a sexta-feira e 0 do- mingo, ou mesmo depois, quando a ressurrei¢ao se tornou 0 tépico central 205 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. O JESUS DOS EVANGELHOS SINOPTICOS: CURANDEIRO E MESTRE... Para dirimir tais rumores, o evangelista enfatiza que os executores mili- tares romanos observaram que Jesus tinha morrido antes dos outros dois homens que tinham sido crucificados com ele. Nao obstante, s6 para terem certeza absoluta da morte, um dos soldados enfiou a sua langa no peito de Jesus (Jo 19:33-4). Finalmente, outra suspeita sorrateira tinha de ser debelada. Serd que, por algum acaso, as mulheres, que sem duvida estavam fisica e mental- mente exaustas apds duas noites sem dormir, e que se arrastaram até l4 — ainda no escuro — para ungir Jesus, nao tinham entrado na tumba errada? A énfase colocada pelos trés sinéticos no conhecimento do local do timulo pelas mulheres visava refutar o rumor sobre um possivel erro de identificagao do local de sepultamento de Jesus. Resumindo: ninguém pode mapear exatamente as primeiras etapas da convic¢ao espiritual que levou da desesperanca seguida por uma cren- ga mesclada de duvidas a uma doutrina estabelecida da ressurreigao de Jesus. Na minha opiniao, a evidéncia implicita dos Atos dos Apéstolos pode ser de alguma ajuda. Segundo essa crénica, os apéstolos atribui- ram a eficdcia continuada das suas curas carismaticas e da sua atividade exorcista ao poder do nome de Jesus ressuscitado dos mortos e entro- nizado no paraiso. Dito de outra forma e abordado de um ponto de vis- ta existencial, o genuino milagre de Pascoa pode ser visto na metamorfose dos apéstolos. Nas adequadas palavras de Paul Winter: “Crucificado, morto e enterrado, [Jesus] ainda ressuscitou no coragao dos seus disci- pulos, que o amaram e sentiram que ele estava préximo.” (On the Trial of Jesus [Sobre o julgamento de Jesus], 208). Os titulos de Jesus nos Sinépticos Os titulos conferidos a Jesus nos Evangelhos, por exemplo, Messias ou filho de Deus, representam a formula¢ao condensada de um julgamento teligioso por meio do qual observadores simpatizantes expressaram a sua opiniao sobre ele. Eles trazem um complemento precioso para o retrato 209 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. O JESUS DOS EVANGELHOS SINOPTICOS: CURANDEIRO E MESTRE... A acusacdo de que Jesus tentou tornar-se rei dos judeus ou Messias real aparece pela primeira vez nos Evangelhos no dia da sua crucifica- G40, ou mais precisamente, no momento da transferéncia do seu caso da jurisdic¢do judaica para a romana. Depois disso Pilatos é sempre citado referindo-sea Jesus como 0 rei dos judeus. A acusagao romana ou titulus, escrita na cruz, também dizia “O Rei dos Judeus” (Mc 15:26; Mt 27:37). O indiciamento explicito de deslealdade ao imperador € provavelmente criagao de Lucas: “Encontramos este homem subvertendo nossa na¢ao, impedindo que se paguem os impostos a César e pretendendo ser Cristo Rei.” (Le 23:2) Incidentalmente, a acusagao é refutada pela tinica refe- réncia relevante ao pagamento de impostos preservada nos Evangelhos, em que se registra que Jesus declarou: “Dai, pois, o que é de César a César.” (Mt 22:21). Na verdade, quando sob pressao de Pilatos para especificar a sua acusacao, o chefe dos sacerdotes torna-se bastante vago, mesmo na versao de Lucas: “Ele subleva o povo, ensinando por todaa Judéia, desde aGaliléia, onde comegou, até aqui.” (Lucas 23:5) Feitas as contas, a acu- sagdo politica parece vazia. Devemos perguntar, portanto, via-se Jesus como o Messias, o Messi- as real, davidico? Ou, para formular a quest4o de maneira mais precisa, como os Evangelhos Sinépticos descrevem a sua reagio quando é cha- mado de Messias ou questionado sobre o seu status messianico? Ao ser chamado publicamente de Messias, a resposta de Jesus oscilou entre de- sanimada e negativa. Pessoas possuidas pelo deménio, somos levados a crer, e o proprio Satands na lenda da Tentagao (Mt 4:3; Le 4:3), foram regularmente silenciadas por Jesus quando o chamaram de Messias ou de filho de Deus (Le 4:41; Mc 1:34). Mais significativamente, a confissao de Pedro em Cesaréia de Filipe de que Jesus era 0 Cristo também encon- trou, naquela que parece ser a versdo original da histéria, uma ordem estrita de calar (Mc 8:30; Mt 16:20; Lc 9:21). Essa proibigio nao é neces- sariamente igual a uma negacado da messianidade, mas a referéncia sub- seqiiente ao futuro sofrimento e morte de Jesus era uma rejei¢ao tacita do seu papel como Cristo triunfante, a unica espécie de Messias que os 217 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. AS VARIAS FACES DE JESUS culto imperial de Roma, em que o imperador era tratado de “Senhor” (Kurios) ou “nosso Senhor e Deus” (Dominus et Deus noster). Para que o perplexo leitor possa compreender o pleno significado da expressao nos Evangelhos Sinépticos e formar o seu proprio julgamento, discutirei esse titulo crucial 4 luz dos seus antecedentes lingitisticos semiticos e gregos. Tanto os judeus hebreus/aramaicos como os judeus falantes de gre- go da época intertestamental estavam familiarizados com 0 termo “se- nhor” (adon, mar(e) ou kiirios) em varios sentidos, mas a nuanga precisa da palavra depende inteiramente do contexto em que ela aparece. Um esbogo do fenémeno lingiifstico sera suficiente para qualificar 0 nao- fildlogo a apreciar o uso no Evangelho. No contexto humano, o titulo “senhor” é regularmente empregado em todas as linguas faladas por judeus (hebreu/aramaico e grego) do pe- rfodo intertestamental, assim como na literatura rabinica posterior. No campo nao religioso, denota pessoas em posigao de autoridade. Come- gando pela familia, no Génesis Apécrifo aramaico de Qumra, Matusalém se dirige a Enoc com “Oh meu pai, oh meu senhor’, e Lamec é tratado pela esposa com solenidade semelhante, “Oh meu irmao, oh meu senhor” (1QapGen 2:9, 24). Da mesma forma, numa inscri¢ao funerdria grega no cemitério judeu de Bet Shearim, dois filhos descrevem seus pais como “senhor meu pai” e “senhora minha mae”. Isto também esté na literatura rabinica quando ela estipula que, apés a morte, um pai deve ser tratado como “meu pai, meu senhor” ou “meu pai, meu mestre” (abba mari). Indo para a posigdo mais alta no campo secular, encontramos o rei evocado como “Senhor”. No Génesis Apécrifo de Qumra, 0 faraé do Egito éassim tratado por um dos seus principes, eo rei de Sodoma, por Abraao. Igualmente na literatura rabinica, o patriarca Juda, o Principe, satida 0 imperador romano com “Nosso Senhor, o Rei” (Gen Rabba 75:5). No campo religioso, o aramaico mar/mari no sentido de “mestre” refere-se normalmente a um professor, como € 0 caso do hebreu rabe rabbi, assim como rabbun/rabbuni. Nao obstante, como entre judeus tanto palestinos como mesopotamicos os professores exerciam poder admi- 222 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. AS VARIAS FACES DE JESUS Depois do seu uso no contexto do milagroso, 0 titulo “senhor” apa- tece principalmente como equivalente de “mestre”. Na verdade, Lucas ten- dea confundir os dois (cf. 8:24; 9:49; 17:13). Em Marcos, também, 0 cego Bartimeu de Jericé, buscando a recuperagao da visao, dirige-se a Jesus com a palavra aramaica rabbuni ou “meu mestre” (Mc 10:51) endo com “Senhor’, como em Mateus (20:33) e Lucas (18:41). Nao obstante, esse titulo aparentemente impréprio pode nao ser assim tao inadequado, se tivermos em mente que rab tem um significado muito mais amplo do que “mestre’, designando freqiientemente um chefe, isto é, uma pessoa em posicao de autoridade, perto de “senhor” ou “mestre”. O titulo de “Profeta” As varias categorias de profeta com que os judeus do primeiro século d.C. estavam familiarizados, mestre, profeta escatolégico e operador de mi- lagres, j4 foram esbogadas e discutidas em capitulos anteriores (ver aci- ma, pp. 36-40 e p. 143-144). Contudo, tanto os Atos dos Apéstolos como Jodo representam um estégio jé desenvolvido da reflexao do Novo Tes- tamento sobre a idéia profética. Para eles, Jesus era o profeta, 0 ultimoe decisivo porta-voz de Deus. Os Evangelhos Sinépticos, revelando um retrato anterior, apresentam aos seus leitores uma figura profética mais sintonizada com a ideologia dos judeus do primeiro século em geral. PROFECIA NO JUDAISMO “Ap6s a morte dos profetas Ageu, Zacarias e Malaquias, o espfrito santo afastou-se de Israel” (tSotah 13:2) & um conhecido dito rabinico, signifi- cando que a profecia israelita chegara ao fim no final do século VI a.C., pouco depois da reconstrucao do Templo de Jerusalém pelos judeus que tinham retornado do cativeiro na Babilénia. A partir daquele ponto, a revelacdo divina era transmitida, segundo a crenga dos rabinos, pela bat 226 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. O JESUS DOS EVANGELHOS SINOPTICOS: CURANDEIRO E MESTRE.., Tal conduta estd em perfeita harmonia com o ensinamento de Jesus sobre a validade permanente da Tord, que foi preservado em duas ver- ses. A primeira est4 em Mateus: “Porque em verdade vos digo, até que passem o céu e a terra, nao seré omitido nenhum i, uma s6 virgula da Lei” (Mt 5:18), e o segundo, quase idéntico, em Lucas: “E mais facil pas- sar o céu ea terra do que uma s6 virgula cair da lei.” (Le 16:17) Mais uma vez, a melhor garantia da autenticidade dessa afirmagao € a sua propria sobrevivéncia no Novo Testamento face ao profundo embaraco por ela causado na igreja antinomiana dos gentios, o que deu aos Evangelhos de Mateus e Lucas um lugar permanente. Admitidamente, foram feitas tentativas, tanto na igreja primitiva como no cristianismo posterior, de eviscerar a afirmagao de Cristo da permanéncia da Tord, e de insinuar que a bifurcacdo dos caminhos entre 0 judafsmo centrado na Lei e a nova religiao espiritual cristd teria sido iniciada pelo préprio Jesus. Afirma-se que, para demonstrar a sua supe- rioridade em relacao a religiao do Velho Testamento, ele desdenhou duas das obrigacgées mais fundamentais impostas pela Lei, a observancia do sabé e das regras dietéticas da Biblia, e que se considerou maior do que Moisés, cujos preceitos sentiu-se livre para abolir e substituir. Nenhuma dessas acusagGes é capaz de resistir a um exame objetivo. Em nossa discussao sobre Jesus como curandeiro e exorcista, j encon- tramos a critica de que, ao curar doentes no sabé, Jesus quebrou a Lei. A questo de curar no dia de descanso é levantada explicitamente pelos pré- prios Evangelhos (Mc 3:4; Mt 12:10; Lc 6:9), bem como nos debates de rabinos fora do Novo Testamento. Os evangelistas fazem Jesus respondé- la afirmativamente através da sua a¢ao, e isto esté em conformidade coma opiniao dos rabinos, para os quais salvar uma vida suplanta os preceitos do saba. Em todo caso, a forma de curar através de palavras ditas ou pelo toque, que Jesus adotou, na verdade nao contava como “trabalho” proibi- do no saba. Sabemos pelos evangelistas que a tinica questdo que realmen- te preocupou as pessoas escrupulosas no seu ambiente galileu foio grau de severidade de uma doenca que pudesse justificar o “trabalho” tera- 233 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. O JESUS DOS EVANGELHOS SINOPTICOS: CURANDEIRO E MESTRE... falta em Lucas.‘ No que diz respeito a substancia da questdo, ambas parecem refletir a disposicao de espirito de Jesus. O Pai-Nosso é admi- ravelmente conciso, correspondendo a recomendagdo de nao ser loquaz ao dirigir-se a Deus, porque “vosso Pai sabe do que tendes necessidade antes de lho pedirdes” (Mt 6:7). As passagens principais dizem respeito a santificagdo do nome de Deus em harmonia com 0 “Santo, santo, santo” do coro angelical; uma suplica pelo pao de hoje, nao pelo ali- mento de amanhi ou do dia posterior, e pela remissdo divina das nos- sas dividas, pressupondo arrependimento e perdao recfproco entre os membros do grupo. Todos esses aspectos so tipicos do pensamento de Jesus. Na verdade, a peticao “venha o teu Reino” éa melhor garantia para remontar 0 Pai-Nosso ao préprio Jesus, pois a comunidade crista primitiva teria expressado a sua esperanga escatolégica numa prece pelo retorno de Cristo, Marana tha, em vez de pelo advento do Reino. Jesus e o Reino de Deus O desenvolvimento do pensamento cristo primitivo sobre o Reino de Deus reconhecfvel nos Atos dos Apéstolos e em Paulo ¢ a virtual extingao da idéia no Quarto Evangelho ja foram tratados anteriormente (cf. acima, pp. 163, 89, 27-28). Precisamos examinar agora, na perspec- tiva religiosa de Jesus, o significado deste poderoso conceito, que figu- ra mais de uma centena de vezes nos Sinépticos. Como nao foi uma criagdo de Jesus, mas ao contrario permeava todo o pensamento pa- ‘HA dois argumentos especificos em favor da versdo de Mateus. Ambos os registros contém ametéfora semitica de “divida” por ‘pecado”, porém, enquanto Mateus é coerente: “E per- doa-nos as nossas dividas como também nés perdoamos aos nossos devedores” (Mt 6:12), Lucas, menos familiarizado comas coisas judaicas, estraga a imagem colocando “pecados” no lugar de “dividas”: “Perdoa-nos os nossos pecados, pois também nos perdoamos aos nossos devedores.” (Le 11:4) Além disso, como a oragao € concebida para grupos (“nds’, “nos”),“Pai nosso que estés nos céus”, de Mateus, é mais apropriado do que“Pai”, de Lucas, que encontramos em todas as oragdes individuais de Jesus nos Sindpticos. 239 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. AS VARIAS FACES DE JESUS e, livre do controle da tradigao cultural do judaismo biblico, se transfor- mado num poderoso instrumento na criagdo de uma cristologia livre- mente especulativa. Finalmente, estando a contribuicao da doutrina prépria de Jesus so- brea religido judaica, Deus o Paie seu Reino quase presente, assimiladas e corrigidas as distor¢des cristas posteriormente impostas as suas mensagens, 0 quadro esbocado com a ajuda das historias e titulos do Evangelho pode ser enriquecido. Jesus é ali revelado como um observador respeitoso da Tord e um expositor perspicaz da sua mensagem ética duradoura. Ele se manifesta como um adorador devoto do Pai celeste, na senda do arrepen- dimento, da confianga e da imitagao dos caminhos de Deus. Desnecessdrio dizer, a imagem da deidade amorosa e solicita nao re- flete verdadeiramente a experiéncia humana de um mundo 4spero e cruel. Também Jesus testemunhou as avezinhas a cafrem do ninho, os pe- queninos perecerem, os inocentes sofrerem. Contudo, seria um erro ima- ginar que ele se permitiria deixar-se iludir pelo que dir-se-ia ser uma imagem sentimentalmente antropomérfica do Pai. O que o motivava e estava no coracao da sua intui¢do era o sentimento de certeza de que o Criador eterno, transcendente e tremendo também era, e para ele acima de tudo, um Deus préximo e acessivel. Talvez o aspecto mais impressionante do retrato de Jesus no Evange- lho seja seu colorido esmagadoramente escatolégico. Desde o momento da sua proclamacio da iminéncia do Reino de Deus, ele se mostrou—e exortou seus seguidores a serem obstinados — absoluto e decisivo, con- centrado nos aspectos intimos e acentuando as causas na raiz de toda acao religiosa. O melhor resumo do programa adotado por Jesus, que também apresenta a quintesséncia da sua persona religiosa, é a determi- nacio resoluta de fazer tudo o que for exigido para a realizacao da spli- ca, “venha o teu Reino”, Ea auséncia de um cumprimento literal da sua crenga nao se desvia de maneira nenhuma da verdade fundamental de que nenhuma atitude religiosa é real sem uma penetrante urgéncia que converta idéias em a¢do imediata. 248 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. AS VARIAS FACES DE JESUS hebreu bethulah). Uma jovem engravidando nao é a mesma coisa que uma concep¢ao virginal. A interpretacdo ardilosa de ‘almah como par- thénos (“virgem’, “donzela”) foi corrigida nas traducGes gregas posterio- tes (primeiro ou segundo século d.C.) de Isafas; todas trocaram a “jovem menina” (nednis) pela “virgem” (parthénos) da versdo septuaginta. Em linguagem clara, a genealogia e a narrativa do nascimento por Mateus tefletem uma imagem de Jesus nascido de uma virgem que foi criada ex- clusivamente e s6 tinha sentido para a igreja helenista. O relato de Lucas é inteiramente diferente e teologicamente mais avangado. O aniincio do nascimento milagroso ¢ precedido pelo nasci- mento quase milagroso de Jodo Batista, filho da idosa Isabel, parente de Maria. Um anjo disse a Maria que, apesar de nao ser casada, ela concebe- tia do Espirito Santo e daria a luz o “Filho do Altissimo” que sentar-se-ia no “trono de Davi” (Lc 1:31-2), e que tal concepc4o milagrosa nao seria menos imagindvel do que a de sua prima Isabel, h4 muito infértil e ja bem passada da idade de procriar (Le 1:36-7). Para ver a historia da concepgao de Jesus num contexto mais amplo, € necessdrio contrast4-la com outras lendas de nascimento correntes no judafsmo intertestamental. Os autores do Velho Testamento acreditavam quea esterilidade de uma mulher era causada por Deus, que lhe fechava 0 titero, mas ele podia igualmente reabri-lo e assim tornd-la fértil. Mui- tos dos herdis biblicos, inclusive os patriarcas Isaac, Jacé e José, assim como o profeta Samuel, nasceram de mulheres consideradas infecundas — eno caso de Sara,a mulher de noventa anos de Abrao, depois de toda uma vida de esterilidade. Na antiga sociedade e cultura judaicas, esses nascimentos foram considerados milagrosos. Em seguida, nao devemos deixar de observar em nossa avaliacao dos evangelhos da infancia que o termo “virgem” era suscetivel de varias in- terpretagdes entre os judeus. E claro, a auséncia de experiéncia sexual era uma delas, mas o grego parthénos também podia significar que a moga era jovem e/ou nao casada. Na verdade, na traducao septuaginta do Ve- lho Testamento, parthénos foi usado para traduzir trés palavras hebraicas 252 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. O JESUS DOS EVANGELHOS SINOPTICOS: CURANDEIRO E MESTRE... eno na Biblia hebraica, poe lenha na fogueira dos que véem em Mateus um judeu falante de grego. Ao apresentar diatribes polémicas entre Jesus, 0 moralista, e seus oponentes — os “escribas” em Marcos (12:38), “escribas” e“doutores da lei” em Lucas (20:46; 11:52) —, Mateus o apresenta regularmente em con- flito com “escribas e fariseus”, embora nao haja nenhuma prova de uma influéncia estabelecida dos fariseus na Galiléia na época de Jesus (cf. pp. 200 e271). O primeiro evangelista também dé mais destaque ao interes- se de Jesus por sutilezas legais, otamanho do filactério (tefilim) e das fran- jas (tzitzit), detalhes de formula que podem invalidar um juramento, ou as regras relativas a limpeza de copos e pratos (23:5, 16:22, 25-6), do que normalmente encontramos nos ditos e pardbolas em geral reconhecidos como auténticos. Tanto 0 argumento pesher como os debates legalistas espelham controvérsias com os fariseus, nas quais os judeus cristdos de Jerusalém ¢ os cristios paulinos na diaspora estavam envolvidos na se- gunda metade do primeiro século d.C. Elas séo anacronicamente ante- datadas por Mateus na vida de Jesus, e contribufram substancialmente para o descrédito do nome dos fariseus. A “esquizofrenia” de Mateus se mostra de muitas maneiras. Ele é mais pro-judeu do que Marcos, e muito mais do que o gentio Lucas. Ele re- trata um Jesus que s6 estava preocupado com os judeus — “Eu nao fui enviado sendo as ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 15:24) — e que de fato proibiu os seus discipulos de se interessarem por nao judeus: “Nao tomeis o caminho dos gentios, nem entreis na cidade dos samaritanos. Dirigi-vos, antes, as ovelhas perdidas da casa de Israel.” (10:6). Contudo, numa mudanga completa de atitude em relagado ao chauvinismo expres- So Nas passagens precedentes, Mateus enfatiza, mais pesadamente do que qualquer outro evangelista, a missao cristd em todas as nag6es, ea igreja substituindo-se a Israel. J4 nao mais preocupado com as ovelhas perdi- das judias, o seu Jesus proclama com firmeza: “Mas eu vos digo que vi- ro muitos do oriente e do ocidente e se assentarao a mesa no Reino dos Céus, com Abraio, Isaac e Jacé, enquanto os filhos do Reino serao pos- 257 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 7 Sob os Evangelhos: 0 verdadeiro Jesus Os tracos mais notaveis do retrato de Jesus nos Sindpticos, o de um cu- randeiro e exorcista carismatico, mestre e campedo do Reino de Deus, so essencialmente dependentes da figura hist6rica que outros autores do Novo Testamento progressivamente mascararam. O fato de Jesus ser admirado, ou suspeito, como Messias potencial desencadeou um pro- cesso complexo de especulacio teoldgica que, ao longo de trés séculos, culminou com a elevacao do carpinteiro de Nazaré a condicdo de segunda pessoa da divindade trina, a Santissima Trindade. Em outras palavras, é de se temer que nem o mais critico tratamento das evidéncias do Novo Testamento possa capacitar o mais habil historiador a reconverter 0 Cristo dos Evangelhos — mesmo 0 Jesus de Marcos, que é 0 menos oculto — na pessoa real, tangivel e de carne e osso que percorria os caminhos ro- chosos e poeirentos da Galiléia rural do primeiro século. Estaré assim a plena recuperagao da personalidade de Jesus de Nazaré além do alcance de todos? No rastro de geracdes de estudiosos criteriosos, tenho lamentado a auséncia de indicios diretos, um genuino Evangelho de Jesus escrito por Jesus, ou apenas uma sinopse das suas idéias prepa- rada por ele mesmo. Infelizmente, a carta que Jesus teria enviado a Abgar, um rei de Edessa na Mesopotamia do primeiro século, que de qualquer modo é desprovida de contetdo doutrinal, é patentemente espuria e apécrifa, e nenhum outro documento sobrevive a que possamos atrelar nossas esperangas. A tinica possibilidade de transformar Jesus num per- 263 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. SOB OS EVANGELHOS: 0 VERDADEIRO JESUS A Galiléia teve suas cidades, mas elas nao desempenham nenhum papel na vida de Jesus. A cidade mais importante, Séforis, nio aparece nenhuma vez nos Evangelhos; nem tampouco outras localidades impor- tantes, como Gabara, Tarichaeae ou Gichala. Os Sinépticos, a diferenca de Joao (Jo 6:1, 23; 21:1), nao mencionama nova cidade construfda por Herodes Antipas entre 17 ¢ 20 d.C.em homenagem ao imperador Tibério, batizada Tiberfades. A vida urbana nao interessava a Jesus. Se por um lado a natureza pode ter predisposto os galileus a desfru- tarem uma existéncia pacffica, por outro, o afastamento do centro e as montanhas escarpadas da Alta Galiléia parecem ter feito da drea um abri- go ideal para revoluciondrios. Josefo, comandante-em-chefe das forgas revoluciondrias de ambas as Galiléias no comego da primeira guerra contra Roma, elogiou a bravura dos habitantes, que desdea infancia eram treinados para a guerra (Guerra iii. 42). A provincia foi sede de agitacao desde meados do primeiro século a.C. até a grande rebelido de 66-73/4 d.C., e juntamente com a vizinha Golan produziu os mais not6rios lide- tes revoluciondrios da uta contra Roma. A lista se abre com Ezequias, 0 chefe bandoleiro ou revolucionario, ativo na Galiléia setentrional, que foi capturado e sumariamente executado pelo jovem Herodes em 47 a.C. (Guerra i. 204). Seu exemplo foi imitado por seu filho Judas, que apés a morte de Herodes atacou o arsenal real na capital meio grega meio ju- daica de Séforis, vizinha a Nazaré, e criou 0 caos na area, motivado pela “ambigao de dignidade real” (Antigilidades judaicas xvii. 271-2). A in- quietacaio generalizada que também se estendeu para a Judéia foi sub- jugada por Publio Quintilio Varo, governador romano da Siria (7/6-4 a.C.), que pds um fim no levante crucificando dois mil lideres rebeldes. A temida cruz nao era uma vista incomum na Palestina romana. Na ocasiao do recenseamento fiscal ordenado por Publio Sulpicio Quirino, outro governador da Siria, em 6 d.C. — o censo que o Evange- lho de Lucas associa erroneamente ao nascimento de Jesus — Judas, “o galileu’, sem duivida idéntico a Judas filho de Ezequias, fundou, junto com um fariseu chamado Sadoque ou Zadoque, a associagio dos zelotas, que 267 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. SOB OS EVANGELHOS: O VERDADEIRO JESUS tico divino, que os possibilita falar e agir em nome de uma deidade. Pro- fetas e videntes pertencem a esta categoria, mas o campo de agao dos “homens de Deus” se estendia muito além da comunicagao verbal. Eles eram reverenciados, especialmente os profetas Elias e Eliseu, como milagreiros.“Se eu sou um homem de Deus, que des¢a fogo do céu.” (2Rs 1:9-10). Ele podia fazer ferro flutuar sobre a 4gua (2Rs 6:6). Nos tempos da fome, ele trouxe o retorno do alimento abundante. A pobre esposa de um membro da irmandade dos profetas foi salva dos seus credores pelo 6leo manante (2Rs 4:1-7). Uma pequena quantidade de graos bastou para alimentar, e alimentar generosamente, uma centena de homens (2Rs 4:42- 4). O“homem de Deus” tornou comida envenenada em comestfvel (2Rs 4:38-41). Assim, também, Eliseu nao apenas curou o grande Naama da lepra, como salvou da morte um menino (2Rs 5:8- 14; 4:32-7). E foi quan- do Eliseu ressuscitou seu filho que a vitiva de Zarefate soube que ele era um “homem de Deus” (J. B. Segal, “Popular Religion in Ancient Israel” [Religido popular na antiga Israel], Journal of Jewish Studies 27 (1976), 8-9). Segal inclui Jesus na mesma categoria. “Deve-se observar que, as- sim como Elias e Eliseu, o “homem de Deus” par excellence, Jesus, veio do nordeste da Palestina... Temos milagres — da comida que nao acaba, e especialmente a cura de doentes... Jesus, como os “homens de Deus’, nao se deixava intimidar por medo de impureza ritual oriunda do con- tato com os mortos e os doentes... Como os “homens de Deus” do Velho Testamento, Jesus permaneceu fora da ordem estabelecida (ibid., 20-21). No caso de Jesus, como sabemos, a cura de doentes e a expulsao de espi- ritos maus dominaram a cena. Para compreendé-lo em sua verdadeira realidade, temos de examinar mais de perto as trés nogdes conexas no judaismo intertestamental: doenca, o deménio e 0 pecado. Todas as mies judias que se referem orgulhosamente a “meu filho, 0 médico” ficariam muito surpresas se lhes dissessem que a profissio de médico mal é mencionada na Israel biblica. £ claro, a medicina existia no Oriente Préximo antigo. Era uma voca¢io lucrativa mas também perigosa. Segundo 0 cédigo de leis babilénio de Hamurabi (século XVIII 273 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. AS VARIAS FACES DE JESUS MODELOS DE HOMENS SANTOS CARISMATICOS NA EPOCA DE JESUS J4 examinamos 0 papel do homem santo conforme desempenho dos pro- fetas, em particular por Elias e Eliseu. De um modo peculiar, Davi pode se somara eles, pois suas habilidades musicais acalmavam o rei Saul:“To- das as vezes que o espirito de Deus o invadia, Davi tomava a lira e toca- va: éntao Saul se acalmava, sentia-se melhor e o mau espirito o deixava.” (1Sm 16:23). A literatura intertestamerital introduziu novos curandei- Tos ou exorcistas entre os heréis biblicos. A lista comega com Abrafo, que, como homem santo, foi evocado no Génesis Apécrifo de Qumra para teparar 0 dano que sua falta de honestidade causou ao rei do Egito. 0 fara6 pensou que Sara estava livre para ser sua esposa — “Ela é minha irma”, dissera-lhe o patriarca enganosamente — mas ele foi impedido de ferir a pureza de Sara com uma praga causada por um espirito do mal. Na verdade, tanto o rei como todos os membros homens da sua corte ficaram doentes (e impotentes) por dois anos, sem que nenhum profis- sional da medicina pudesse assisti-los. “Ele [o faraé] convocou todos os sdbios do Egito, todos os mdgicos, assim como todos os curandeiros do Egito, para que eles pudessem curé-lo ea toda a sua casa daquele flagelo. Mas nenhum curandeiro, sébio ou magico péde ficar para curé-lo, pois 0 espirito os flagelou a todos e eles fugiram.” (1QapGen. 20. 18-21) No final, quando o inocente faraé descobriu a razdo dos seus sofrimentos, ele chamou 0 préprio Abrado e rogou que fizesse a coisa honesta, a qual ele fez. “E entao eu rezei por ele... e lhe impus minhas mdos sobrea cabe- ¢a3e 0 flagelo o deixou, o espirito mau foi expulso dele e ele viveu.’ (ibid., 20:28-9), O tratamento por imposicao de maos também fazia parte da pratica de cura e de exorcismo dos apéstolos (cf. At 28:8). Depois de Abraao vem Moisés. O historiador helenista judeu Arta- pano, do século Il a.C.,0 descreveu como o restaurador da satide do fara6 depois que ele caiu sem vida (Eusebius, Praeparatio evangelica ix. 29, 24- 5). Quanto a Davi, uma lista da sua produc4o poética encontrada em 280 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. SOB OS EVANGELHOS: O VERDADEIRO JESUS Nossos mestres ensinaram: Ocorreu que havia numa localidade uma serpente que estava ferindo as pessoas. Eles foram ¢ contaram aR. Hanina ben Dosa. Ele lhes disse: “Mostrem-me a sua toca.” Ele cobriu com o cal- canhar a entrada da toca, e a serpente o mordeu e morreu. Ele a pds so- bre o ombro e a levou até a escola. Ele disse as criangas: “Vejam, meus filhos, nao é a serpente que mata, mas o pecado.” Nessa hora eles conce- beram o ditado: “Triste do homem que dé com uma serpente, mas triste da serpente que d4 com R. Hanina ben Dosa.” (tBerakhot 33a) Com respeito a esta narrativa, é relevante observar que, conforme 0 cos- tume hassidiano generalizado de concentrar-se mais em religiao emora- lidade do que em ritual, Hanina nao teve qualquer escripulo em tocar na serpente morta e assim ficar impuro o resto do dia (cf. Lv 11:29-31; bHullin 127a). Escritos rabinicos trazem outros exemplos da falta de entusiasmo hassidiano com as regras sobre pureza. Um hasside fala li- geiramente sobre um assunto relativo a impureza; outro aparentemente ignorava a lei biblica nesse dominio (yTerumot 45c; Abot de-R. Nathan B, 27). Um destacado especialista talmtidico escreve que a instrugao le- gal (halakd) dos Hassidim “era altamente individual e as vezes... oposta Aquela em geral prevalecente”, e que especificamente nao apresentava qualquer traco de austeridade no campo da pureza ritual.4 Quanto as outras duas histérias, a primeira diz respeito 4 transforma- do sobrenatural de vinagre em dleo — semelhante a transformagao da gua em vinho por Jesus. A filha de Hanina abasteceu por equivoco a lam- pada do sabé com vinagre e s6 0 percebeu quando era tarde demais para reparar o erro. Seu pai lhe disse para acendé-la ea lampada seguiu quei- mando durante todo o dia (bTaanit 25a). A segunda hist6ria lida com a producdo miraculosa de pao, e ilustra incidentalmente a pobreza de Hanina ea crenga disseminada de que milagres eram comuns em torno dele. ‘CE. S. Safrai, “Teaching of Priests in Mishnaic Literature” [Instrugao de sacerdotes na lite- ratura mixnaica], Journal of Jewish Studies 16 (1965), 19-20, 33. 289 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. AS VARIAS FACES DE JESUS do carismatico galileu do primeiro século d.C., coroado por um halo brilhante. Contudo, lado a lado com a aclamago, encontramos comen- tarios inspirados pela inveja mesquinha de rabinos de mente estreita, esposas de rabinos ou aprendizes incomodados com o comportamento pouco convencional do homem de Deus. Quando Hanina lhes disse que a crianga doente havia sido curada, em vez de expressarem encanto e gratidio, os mensageiros despachados por Gamaliel retorquiram com sarcasmo, “Es tu um profeta?” (bBerakhot 34b). De modo semelhante, ao ouvir as palavras de humilhagdo de Yochanan ben Zacai, confessando a sua propria incapacidade de salvar 0 seu filho, mesmo espremendo a cabega entre os joelhos “o dia inteiro”,a sua esposa, irritada, explodiu: “Entao Hanina é maior do que tu?” Recu- perando-se da sua perda momentanea de dignidade, Yochanan ben Zacai teafirmou a ordem hierdrquica prépria: “Nao; ele é como um criado mas eu sou um principe perante o Rei” (ibid.). Num outro relato, a prote¢ao milagrosa por Hanina da vida da filha de Nehunyah, o escavador de valas (0 funciondrio encarregado do su- primento de 4gua para os peregrinos do Templo) foi explicada por al- guns como devida, em vez disso,ao mérito do sacrificio de Abraao (bBaba Kamma 50a). E, ainda, a histéria lenddria dos bodes de Hanina que trou- xeram ursos para casa em seus chifres provocou comentdrios duplamente depreciativos. “Se Hanina é tao pobre, como podia possuir bodes?” E ain- da pior, se possufa bodes, ele transgrediu a lei rabinica:“Nao disseram os sibios que nenhum gado de pequeno porte podia ser criado na terra de Israel? (bTaanit 25a). Trata-se de bagatelas e minudéncias que nao dimi- nuem a veneracao genuina com que Hanina, Honi e outros Hassidim antigos eram considerados pelos judeus da era intertestamental e rabinica. Que luz, portanto, projetam esses textos sobre o Jesus do Novo Testa- mento quando visto dentro do contexto do mundo judeu palestino do periodo final da antigitidade? 294 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. SOB OS EVANGELHOS: O VERDADEIRO JESUS Contudo, ha um aspecto da vida em que Jesus parece ter sido com- pletamente diferente dos homens de Deus da sua época. Os Hassidim eram todos casados, tinham filhos e netos; com Jesus, pelo menos du- rante a fase publica da sua vida, tudo aponta para uma existéncia celiba- taria (cf. acima, p. 183). Como sabe-se bem, a diferenga da abstinéncia sexual temporéria, 0 celibato duradouro nio era parte do modo de vida judeu, sendo na verdade positivamente desaprovado pelos rabinos. Eles diziam que a rentincia permanente ao casamento contrariava 0 primei- ro mandamento de Deus a Adio e Eva, “Sede fecundos, multiplicai-vos” (Gn 1:28). Reconhecidamente, a abstinéncia sexual por um periodo era uma parte integral da religido judaica nos tempos biblicos e inter- testamentais; por exemplo, soldados em campanha, e sacerdotes e leigos antes de participarem da adoracdo no Templo, eram proibidos de ter relacdes sexuais. Durante seus periodos pés-parto, as mulheres eram tabu para os seus maridos, Porém, celibato ligado a condi¢io de solteiro s6 é conhecido entre os essénios descritos por Filo, Josefo e Plinio, 0 Velho, e — ou assim pareceria — entre os sectdrios de Qumra, cuja vida era re- gulada pela Regra da Comunidade. A preferéncia dos essénios pela vida de solteiro é atribufda por Filo e por Josefo & misoginia decorrente da “devassidao” das mulheres, mas a literatura do Mar Morto sugeriria que a motiva¢ao seria essencialmente ritual, e nao social. Durante o periodo precedente a restaura¢ao do servico do Templo segundo as suas regras, os integrantes da ascética comunidade de Qumra consideravam asi pr6- prios como Templos espirituais, sendo-lhes exigido permanecerem em continuo estado de pureza ritual para estarem aptos a adorar a Deus 0 tempo todo. Jesus certamente nao era miségino; tampouco levava a sua vida se- is de conduta. Ento, se escolheu guindo principalmentelinhas cerimoni: o estado de nao casado ao pregar o Reino de Deus — Jodo Batista parece ter feito o mesmo — deve ter sido por alguma outra razio. O unico modelo adequado decorre da explicagdo oferecida por Filo, contempo- raneo mais velho de Jesus, dos passos dados por Moisés ao preparar-se 301 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. SOB OS EVANGELHOS: O VERDADEIRO JESUS mente positivas, “homem sdbio” e“realizador de obras extraordindrias’, Josefo logrou formular um julgamento distanciado sobre ele. Seu esbo- go, embora frio, coincide fundamentalmente com o retrato, pintado em cores mais quentes, de Jesus que descobrimos oculto sob os Evangelhos Sinépticos. Isto nos traz ao segundo ponto sobre o qual Josefo poderé nos assis- tir, o enigma da execugao de Jesus. Tenho sido freqiientemente confron- tado por ouvintes e leitores perplexos com a pergunta: Se, como o senhor alega, Jesus era um judeu pio sem culpa de nada que pudesse acarretara senten¢a de morte com base em religido, e se nao era um agitador anti- romano ou pretendente ao trono de Messias real, por que foi crucifica- do? A resposta a esta legitima questao é que, nas circunstancias politicas ¢ religiosas incertas da Palestina intertestamental, era facil alguém per- dera vida sem ter realmente cometido nenhum ato culpado contra a Lei judaica ou o Estado romano. Josefo da trés exemplos além do Tes- timonium Flavianum. Na verdade, devido a sua falta de precisao, 0 Testi- monium é pouquissimo revelador deste ponto de vista. Josefo parece indicar que a sentenca de morte pronunciada por Pilatos foi um erro judicial, visto que, segundo o texto do paragrafo seguinte das Antigilida- des, teria sido seguida por outra deinon, isto é, afronta, calamidade, in- justica (xviii. 65), mas ele nao revela por que a sentenga de morte de Jesus teria sido uma afronta. Tampouco podemos usar a histéria da sentenga de morte de “Tiago, o irmao de Jesus, que era chamado 0 Cristo” pelo sumo sacerdote Ananias, pois outra vez Josefo nao especifica a acusacao contra ele além de uma vaga transgressdo da Lei. Em todo caso, ele qua- lificou o conjunto do procedimento de ilegal (Ant. xx. 200-201). O primeiro dos trés paralelos € 0 de Honi, 0 tinico outro hasside mencionado em Antigilidades (cf. pp. 283-4). Esse homem de Deus foi apedrejado até a morte por se recusar a empregar o seu poder de oracao em favor de um partido judeu contra outro no contexto de uma disputa civil. Aqui Josefo nao hesita em botar a culpa do assassinato do justo Onias em judeus vildes. 307 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. © VERDADEIRO JESUS NO ALVORECER DO TERCEIRO MILENIO cio do mundo gentflico. Essa questdo, chamada de inculturagao, € hoje objeto de um vivo debate no continente europeu. Essa interfertilizacao é quase uma parte necessdria de qualquer evo- lugao cultural, mas s6 é valida e aceitavel se nao levar a uma distorsdo substantiva. Se o processo de adaptacdo, digamos, do preceito de Jesus estiver nas maos de representantes da cultura nativa (0 judafsmo), que 0 adaptam competentemente com a ajuda de elementos tomados de empréstimo da cultura estrangeira (o helenismo), o resultado tornar- se-4 mais facilmente acessivel para os gregos. O manuseio adequado do intercambio cultural pode ser ilustrado pelo judaismo biblico e pés- biblico. Os autores do Velho Testamento lograram usar as imagens da cosmogonia politeista dos babilénios ao apresentar um quadro varie- gado da criacdo biblica sem afetar 0 monoteismo judeu. Igualmente, os intérpretes rabinicos lancaram engenhosamente mio do conceito platénico do andrégino, a mistura de um homem e uma mulher, para explicar a afirmagao de que o primeiro ser humano foi criado por Deus “homem e mulher” (Gn 1:27), sem transformar o judafsmo em plato- nismo indiscriminado. No caso do cristianismo, contudo, desde o pri- meiro século o processo de inculturagao foi guiado por gentios que sé estavam superficialmente familiarizados com a religido judaica de Je- sus. Como era de se esperar, num periodo relativamente curto nenhum judeu era mais capaz de considerar aceitdvel o novo legado doutrinal inculturado de Jesus. Na verdade, creio que ele préprio nao o teria re- conhecido como seu. O cristianismo trabalhou com uma séria desvantagem para com- preender e comentar o Velho Testamento. A metade oriental de lingua grega da igreja estava um grau distanciada do texto lido por Jesus, mas a igreja ocidental, em que o texto grego teve de ser traduzido para o latim, ja estava longe dois graus tanto do Evangelho como das Escrituras hebraicas. Quando o seu maior luminar, Santo Agostinho (354-430), que nao sabia nem grego nem hebraico, sem falar em aramaico, precisava de informagées sobre o original hebraico de alguma passagem obscura do 313

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