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Viagem pelo Brasil de Spix e Martius: Quadros da Na- tureza e Esbocos de uma Civilizagao RESUMO Tomando 0 relato da expedigao cientifica pelo Brasil (1817-1820) dos naturalisias bdvaros Spix e Martius, 0 artigo analisa como os preceitos da Historia Natural se conjugam com a visdo roméntica, permitindo aos autores uma dupla apreensio do mundo natural. Ao tratamento cientifico dos objetos naturais é sobreposto um sentimento pela na- tureza, que matiza as descrigaes “poéticas” das paisagens brasileiras. Ao mesmo tempo em que o ambiente natural dos trépicos € eleito como um espago para digressdes sentimentais e filo- séficas, 0 Brasil torna-se palco para projeyées civilizadoras. Herdeiros da Mustracdo, os autores esbocam us ve- redas para que seu anseia civilizatorio se conclua; a dominagdo da exuberante natureza e a miscigenagdo racial. Re- servando a raga “caucdsica” a “ fectibilidade humana”, justificam a sua superiovidade em relacdo a “etidpica” a “americana”, exctuindo-as, principal- mente a tiltima, da Historia. Karen Macknow Lisboa* ABSTRACT The article is based on the report of the scientific expedition through Bra- zil (1817-1820) by the bavarians natura- lists Spix and Martius. It analyses how the precepts of Natural History join the ro- ‘mantic view, allowing the authors a dou- ble apprehension of the natural world, The scientific approach connects with poetics descriptions of the brasilians landscapes. For the authors, the tropical environment becomes a place for sensi- ‘menial and philosophical digressions. At the same time, Brazil sets the stage for civilizatory projections. Inheritors from ie authors outline the way how their civilizing project would have become reat: the domination of the exuberant nature and the miscegenation. Spix and Martius keep the “human per fectibility” reserved to the “caucasian” race and justifie its superiority over the “ethiopian” and “american” races, ex- cluding them, mainly the last one, of Hi tory. “América, essa nova parte do mundo apenas conhecida de poucos séculos atrds, tem sido, desde a época de seu desco- brimento, objeto de admiragdo e predilegao da Europa. A feliz situagdo, a fertilidade e diversidade do seu solo, atra- em tanto colonos e negociantes, como pesquisadores cienti- ficos.” (Spix & Martius, Viagem pelo Brasil, 1817-1820.) *Mestranda da Universidade de Sao Paulo. O presente artigo é parte integrante de uma pesquisa para dissertagdo de mestrado sobre a Viagent pelo Brasil de Spix ¢ Martius. Esta é uma versio ampliada do texto “A natureza brasileira no olhar de naturalistas alemies”, apresentado no Con- gresso Internacional América 92: Raizes e Trajet6rias (Sto Paulo, agosto de 1992). A literatura de viagem sobre o Brasil toma enorme félego com a abertura dos portos, em 1810, ca conseguinte entrada de muitos estrangei- ros no pais. Impulsionados por diversas raz6cs ~ comerciais, cientfficas, diplomaticas, aventureiras, militares, artfsticas ~ esses forasteiros palmilham vastas regides da desconhecida terra. Respons4veis por um “novo desco- brimento do Brasil”,' muitos deles publicam, na Europa, suas anotagées de viagem. As misses tragadas em nome da ciéncia, algumas delas plane- jadas por academias ¢ sociedades cientificas, bem como por museus de Hist6ria Natural, e financiadas por monarcas, ocupam, no Velho Mundo, relevante papel na produgdo intelectual sobre o Brasil. A expedi¢ao dos naturalistas bavaros Spix e Martius, motivada, a priori, pelos estudos da natureza, se insere nesse contexto. Tal qual outros naturalistas que nesse mesmo perfodo estiveram no pafs - como por exemplo, Langsdorff, Wied Neuwied, E. Pohl, Eschwege, St. Hilaire, entre outros - Spix ¢ Martius deixaram, por meio de suas narrativas de viagem, uma ri a documentagao para a historiografia, Com a preocupagio de se inferir a imagem que Spix e Martius cria- ram sobre o pais que viram, duas questées so tratadas no presente artig a partir do seu relato de viagem, procura-se primciramente perfilar a visdo de natureza dos autores, que se traduz nas descrigdes de pai isagens € Nos quadros naturais. A segunda indagagao pretende identificar as bases do “projeto civilizatério” que 0 olhar providente desses curopeus elabora para a jovem nagao, A discussao destes dois t6picos é precedida de uma breve apresentagdo dos autores, do itinerdrio da viagem e da obra. A VIAGEM E O RELATO Em 1815, 0 rei Maximilian Joseph I da Baviera solicitou a Real Academia de Ciéncias de Munique a organizagao de uma viagem cientifi- ca ao interior da América do Sul. Pretendia-se iniciar a expedigdo em Buenos Aires, ¢ de 14, por terra, chegar ao Chile, depois Quito e, via Cara- cas ou México, retornar 4 Europa, Para a realizagdo deste empreendimen- to foram nomeados 0 206logo Johann Baptist von Spix? ¢ o botnico Carl Friedrich Philipp von Martius,* ambos membros da citada Academia. Mas uma série de empecilhos atrasaram a realizagaio dessa expedigao. Em janeiro 1817, com a vinda da Arquiduquesa Leopoldina ao Bra- sil, em fungo de seu casamento com o principe herdeiro D. Pedro I, surgiu ~ gracas a ligagdes familiares do rei da Baviera com o imperador da Aus- 74 tria, Francisco I, de quem era sogro - a oportunidade de integrar Spix e Martius no séquito da noiva. Ao lado de outros naturalistas, que represen- tavam a miss4o austrfaca, organizada pelo diretor do Museu de Histéria Natural de Viena, Spix e Martius zarparam do porto de Trieste, a bordo da fragata Austria, em abril de 1817.4 Em junho, passam pelas Colunas de Hércules, rumo mar aberto, na ansiedade de encontrar novamente “a lenda da afortunada Atlantida (...) na fértil América, (So rica de maravilhas da natureza.’"* Em julho de 1817, a fragata Austria atinge “a grandiosa entrada do porto do Rio de Janeiro”(1, p.43). Uma longa permanéncia de Spix ¢ Martius na capital real facultou os preparativos da empresa exploratéria. Nio s6 aproveitaram os seis meses ali residentes para se aclimatar, mas também para travar contatos com outros naturalistas, que 14 se encontravam, e trocar experiéncias de via- gens. Quando ainda em Viena, Spix e Martius cogitaram realizar a expedi- ¢4o pelo interior do pafs em conjunto com a comitiva austrfaca, Mas o atraso da chegada dos naturalistas na esquadra da Arquiduquesa Leopoldina ao Rio ¢ a solicitagfo a estes de permanecerem por mais tempo na capital, foram a razio pela qual Spix e Martius resolveram iniciar sua expedigao independentemente. Considerando os trajetos seguidos por outros viajantes, eles elabo- raram um itinerdrio que alcancasse regies ainda pouco exploradas. Na- quela altura tinham noticia das expedigdes de John Mawe (Buenos Aires, Sao Paulo, Rio de Janeiro, Distrito Diamantino), Wilhelm Ludwig von Eschwege (Vila Rica, oeste do Rio S, Francisco, Rio Abaeté), Principe Wied von Neuwied, G.W. Freyreiss e Friedrich Sellow (costa do Rio de Janeiro até Bahia), Auguste de Saint-Hilaire (Rio de Janeiro e Minas Gerais) e Georg Heinrich von Langsdorff (Vila Rica, provincia de Minas Gerais e Salgado, no S. Francisco). Tendo o Para como alvo, Spix ¢ Martius previam atingi-lo, cruzando o interior do pais. N&o obstante seus colegas, que conheciam o pais, compararem a trajetoria planejada “ao v6o de Icaro”, nao desanimaram. A partir das experiéncias obtidas em algumas expedigées feitas nas redondezas do Rio de Janeiro, acharam-na exeqiifvel (I, p.106). Em dezembro de 1817, abri- ram 0 caminho da peregrinagao cientffica, resistindo sob chuvas, insetos, seca, sede, febre, calor, noites dormidas ao relento, além do cansago pro- yocado pelo desconforto dos meios de transporte. Auxiliados por tropeiros © guias nativos percorreram mais de 10.000 Km pelo solo brasileiro. Pas- saram por Sao Paulo ¢ de ld deslocaram-se a Minas Gerais, visitando a regidio de Vila Rica ¢ do Distrito Diamantino. Seguiram sentido norte, pe- 75 netrando mais ainda no interior do pafs. Chegaram a transpor as margens do Rio Sao Francisco, aleangado 0 Vio do Paran4, na fronteira da provin- cia de Goids. Voltaram ao litoral, cruzando a provincia baiana. Visitaram em novembro de 1818 a cidade de Salvador. Por mar, viajaram a Ilhéus, pesquisando seus arredores. Apés.o retorno a Salvador, iniciaram nova etapa da viagem. Indo no sentido noroeste, conclufram, apés quatro meses, a travessia do sertdo das provincias de Pernambuco, Piauf e Maranhao. Assolados por febres e enfraquecidos, recuperaram-se em Sao Luis. No més de julho de 1819, navegaram a Belém, langando-se na extensa viagem pela Bacia do Ama- Zonas. Durante oito meses investigaram, em parte separadamente, as ime- diagdes dos rios Amazonas, Solimées, Negro ¢ Japurd, tocando a frontei da atual Colombia. Retornaram em abril de 1820 a Belém, de onde parti- ram para a Europa, levando uma enorme colegao de objetos zoobotiinicos, etnograficos ¢ mincrais que engrandeceram seus gabinetes naturais. De volta 4 Alemanha, em dezembro de 1820, Spix e Martius dedi- cam-se ao relato, ampliando ¢ organizando as anotagdes de viagem. Final- mente, no ano de 1823 é editado, em Munique, o primeiro volume da Reise in Brasilien (Viagem pelo Brasil). No entanto, o falecimento de Spix, em 1826, comprometeu a redagao da obra a quatro maos. Do segun- do volume, de 1828, somente os primeiros dois capitulos do quinto livro foram elaborados por ambos. O restante ¢ redigido por Martius, embora Spix seja considerado co-autor. No terceiro tomo, de 1831, Martius inse- tiu os apontamentos de Spix relativos as expedi¢des que fizeram indepen- dentemente. Este dltimo volume vem acompanhado de um atlas com litografias, retratando paisagens urbanas ¢ campestres, objetos colhidos, plantas, animais, tipos humanos ¢ cenas da vida cotidiana, acrescido de um compéndio de cangdes populares ¢ melodias indfgenas.* No Brasil, a tradugdo completa da obra foi promovida pelo Instituto Histérico e Geo- grafico Brasileiro, tendo sua primeira edig&o em 1938.7 POR UMA TAXONOMIA DA NATUREZA Ao leitor da Viagem pelo Brasil 6 explicitado, j4 no infcio da obra, a organizagio da expediga0 e os objetivos almejados. A incipiente espe- cializagao das disciplinas permite aos académicos Spix e Martius abragar um amplo campo tematico. Spix, experiente na pesquisa da zoologia, in- cluiria neste dominio, 76 “tudo que diz respeito ao homem, tanto ind{genas como imi- grados: as diversidades, conforme os climas; 0 seu estado fisico e espiritual, etc.; a morfologia ¢ a anatomia de todas as espécies de animais, (...) os seus hdbitos e instintos, a sua distribuigdo geogrdfica e migragées” (1, 26). Martius era um jovem botAnico, cuja carreira de naturalista estava para comegar. Ao sair da Alemanha, ainda era assistente do diretor da Real Academia de Ciéncias. Como tarefa principal foi-lhe incumbido pesquisar a flora brasileira em toda a sua extensdo, verificando a provavel origem das familias por meio de comparagdes, considerando-se fatores climaticos e geolégicos. Outrossim, deveria coletar dados a respeito do cultivo de plantas nativas, bem como das introduzidas, das que se prestam para “as artes c indistria” ¢ dos medicamentos vegetais (I, p.26). Também havia solicitagées de outros “ramos das ciéncias naturais”, oriundos da mineralogia, geologiae fisica. Ao lado desses campos mais especfficos, os “descobrimentos” feitos na viagem tinham como objetivo estender 0 “cir- culo da ciéncia humana”. Ao zodlogo e ao botanico também caberia “es- clarecer 0 estado de civilizagiio e histéria, tanto dos aborigenes como dos outros habitantes do Brasil” (1, p.27). Neste sentido, sentiam-se prepara- dos gragas as cadeiras de filosofia, histéria e filologia oferecidas na Real Academia. Neste amplo leque tematico, sao admitidos assuntos da hist6ria, da politica, da economia, da administragao piblica, da agricultura, da pecud- tia, do extrativismo, da hist6ria dos “costumes”, do cotidiano, da cultura e educagao, das relagdes de trabalho, da religiao, além da botinica, da geo- logia, da zoologia e da etnografia dos {ndios. A narrativa constréi-se a partir do deslocamento geogrdfico, que sugere a constante mudanga de assuntos. O olhar errante dos naturalistas procura focalizar as arestas mais reclusas da realidade do pats. No entanto, nesta abrangéncia de temas abor- dados, a natureza se revela como um dos principais focos de observacao. De “estranha” - tal qual a adjetivaram - ¢ por isso mesmo sedutora, capaz de motivar uma excursfo tao longa tragada em nome da ciéncia, é ela a grande anfitrid desses visitantes. Afinal, foi enxergando os fendmenos deste mundo natural que os autores, ao contemplarem a beleza celestial do Rio de Janeiro, garantiram: “No gozo de tais noites encantadoras ¢ pacfficas, lembra-se 0 europeu recém-chegado, com saudade, da sua pétria até a7 que a rica natureza tropical se vai tornando para ele uma segunda patria” (I, p.60). A maneira de perceber ¢ observar o mundo natural mediava-se por sua formagao cultural e seu preparo propiciado pelos estudos académicos, Nao resta diivida de que, para eles, a natureza dos trépicos era um objeto de obstinada pesquisa cientifica, que deveria ser dissecado sistematica- mente pelo olhar da Histéria Natural." Ao naturalista cabia “pousar (...) um olhar minucioso sobre as coisas e de transcrever, em seguida, o que ele recolhe em palavras lisas, neutralizadas e figis”. As esteiras teGricas de Lineu ditavam-lhes que “toda natureza pode entrar numa taxonomia” ? Portanto, para Spix ¢ Martius, era necessério coletar os “documen- tos” em fungdo da posterior escrita da histria: herbérios, coleges e ob- servagdes in locum com transposigdo iconogrifica. Os critérios do siste- ma lineano instrumentalizam-nos para descrever e classificar os seres da natureza, excluindo qualquer diivida sobre a identificagao dos mesmos." A natureza do Novo Mundo é nomeada e paulatinamente catalogada, per- dendo a sua estranheza ao ser transcrita nos compéndios da flora e da fauna universal. E assim comentam Spix e Martius, quando de suas pri- meiras expedigSes pelos arredores do Rio: “Numa dessas ilhas situadas na entrada da barra e que se chama Iiha Rasa, foi que Sir Joseph Banks [da comitiva de James Cook], descabriu a belaMoraea northiana (lirio-roxo), que, desde entao, é ornamento de jardins europeus. Também @ incansdvel Commerson [da comitiva de Bougainville] fez cotheitas botanicas nessas ithas e na terra firme (...), pisd- vamos entdo um solo cldssico. O viajante gosta de identifi- car as sensagdes com as de seus predecessores; assim fo- mos surpreendidos de modo muito agraddvel, quando acha- mos nessas ilhas (.,.) a Moraea, ¢ quando (...) avistamos os arbustos da Bougainville brasiliensis de floragao vermelha deslumbrante (...)” (1, p.89). Ora intercalada, ora anexada como nota de rodapé ou no final do capitulo, a nomenclatura lineana, na qual constam género ¢ espécie vege- tal ou animal, ordena um mundo que & primeira vista manifesta-se desorganizadamente: no “mato virgem”, diante de um “paincl da maxima opuléncia”, onde “a vegetagdo eternamente noya impele as arvores para TB altura majestosa” ¢ “a natureza enfeita cada tronco com uma nova cria- ¢40", nfo basta citar o nome popular das plantas e dos animais. Por exem- plo, o jacarandé € 0 ipé, cujas “flores cor amarelo-ouro (...) resplandecem luminosas no meio da folhagem verde-escura”, aparecem na nota como Jacaranda brasiliensis Juss ¢ Bignomia chrysantha Jacq, respectivamente. Oreino dos animais é tao extraordinério quanto o das plantas. “O natura- lista para af transportado pela primeira vez nfo sabe o que mais admirar, se as formas, os coloridos ou as vozes dos animais.” Mas a classificagao nao tarda: responsdvel, por exemplo, pelos urros matinais € 0 Mycetes fuscus, nob., vulgo bugio. Pererecas, sapos, cigartas, gafanhotos, formi- gas, cupins, hespérides, escaravelhos, lagartos, cobras, esquilos, macacos, passaros, jacarés ¢ tantos outros animais sao diferenciados pelos seus no- mes cientificos (I, p. 93-5). A NATURBZA: UMA DIMENSAO ANIMICA. Por outro Jado, a relagio dos autores com a natureza nao se encerra na concepgiio da taxonomia iluminista e 0 vido colecionismo, A observa- gio do ambiente natural é vertido em sentimentos, evocando-lhes sensa- ges que transitam do puro deleite paradisfaco até pavores infernais. Di- gressdes intimistas traduzem diferentes “estados de dnimo”"' dos autores, provocados pelo contato com a natureza, emprestando as descrigdes da Viagem pelo Brasil uma conotagio literdria, Se os pressupostos lineanos so um ponto de partida para a compreensdo inequivoca de um mundo natural universalmente classificdvel ¢ assim identificével, a relagéo dos estados de Gnimo com o ambiente natural possibilita uma particulariza- gio da descrigio dos fendmenos observados, diluindo-se com o idedrio romantico, proprio do inicio do século XIX.?? Nesse sentido, a forma de tratar a natureza brasileira lembra 0 que Alexander von Humboldt - estrela guia dos viajantes do perfodo e que intimeras vezes é mencionado na Viagem pelo Brasil - propusera numa carta dirigida a Goethe: “A natureza deve ser sentida; quem somente vé e abstrai, numa vida no turbilhdio do pulsar dos trépicos ardentes, pode dissecar plantas e animais, acreditando estar descrevendo a natureza, permanecendo, no entanto, eternamente alienado dela.” 9 No proprio relato, Martius insere uma passagem de seu didrio, um registro de uma digressdo mais intimista, revelando o que sentia naquele momento. Préximo da proposta humboldtiana, atesta a relago anfmica com anatureza: “Como me sinto feliz aqui [no Pard|\...) Parece-me compre- ender melhor 0 que é 0 historiador da natureza, Diariamen- te lango-me na meditagdo do grande e indizivel quadro da natureza e, embora seja fora do meu alcance compreender sua finalidade divina, ele me enche de deliciosas emogées” (UH, p.18). Além da forte presenga da obra de Humboldt, Spix e Martius tam- bém seguiram os passos de Goethe, Baseando-se na concep¢ao organicista da natureza, inaugurada por Herder, Goethe considerava o mundo natural como um “grande animal vivo, um organismo que jamais poderia ser tra- duzido matematicamente”, opondo-se desta maneira a qualquer “tendén- cia mecanicista”,'’ Igualmente a Naturphilosophie de Schelling parece encontrar ressonancia no pensamento destes naturalistas. Na sua concep- ¢40, tout court, 0 objetivo fundamental das cigncias € a interpretagao da natureza como um todo unificado, vendo no conceito de forga o fator que poderia conduzir a unificagao, Todos fendmenos naturais seriam manifes- tages de uma mesma forga, definida como atividade pura, “A natureza seria, assim, uma infinita auto-atividade jamais exaurida”.!6 Numa carta destinada a Goethe, datada de 1825, Martius confirma que, indo ao Brasil, pdde reiterar sua visio de reconhecer a “harmonia” no tom, nas cores ¢ na forma que se manifestam na magnificéncia da nature- za. Depositando confianga no seu sentimento, Martius considera-se susce- tivel ao desafio que 0 espirito do mundo natural provoca na alma humana Sendo assim, a natureza como objeto da ciéncia, tomada na “totalidade” de suas relagdes, torna-se semelhante a uma obra de arte."? Nesse sentido, pode-se inferir que a descri¢io do mundo natural passa por uma estetizago construfda pelo olhar sensivel do explorador. Seguindo a concepgao de Goethe, para o qual “a interpretagiio da natureza deveria obedecer ao consércio da ciéncia com a poesia”, o naturalista mune-se de uma linguagem poética, e em alguns momentos até iconogréfica, com 0 fito de traduzir a totalidade do seu objeto. O “tratamento estético dos objetos naturalistas”” do qual Humboldt jd falava na sua obra de 1807 se desdobra na definigaio do Naturgemiilde, isto é, 0 quadro da natureza. 80

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