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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Reitor: Ronaldo Tadeu Pena Vice-Reitora: Heloisa Marla Murgel Starling EDITORA UFMG tor. Wander Melo Miranda iee-Disetora: Sivena Céser GONSELNO EDITORIAL Wander Melo Miranda (presidente) 8 AntSnIo Leite Branddo "2 Rocha Guimsrtes, io Gomes Soares ‘das Gragas Santa Décbaca Helena Damasceno ¢ Sliva Megale Sérgio Lacerda Beicio Silvana Céter Puiuipre LeygUNE 0 PACTO AUTOBIOGRAFICO DE ROUSSEAU A INTERNET Jovrra Maria Geriteim Noronna Organizagao Jovira Mazta Gerstein Noronia ‘Marta Inés Comma Guepes Taauste Ging Cmnaliny Belo Horizonte wor Editora UFMG wr 2008 Mas esas organizagées podem assumir outras formas, por exemplo a de um buqué japonés, lentamente composto como uma renda de flores, na qual o espago nao € saturado: Mas, adquire-se um olhar de etemidade misturando-se os tempos, icando-se 08 pontos de vista e casando ou opondo os tons @ nosso gosto? uestio, poderiamos dizer, de arranjo, semelbante 2 maneira japoness de montar pacientemente ~ sem fundi-las na profustio de um buqué ~ um pequeno ntimero de flores, para a alegria = ou paz ~ do olhar, detxando, todavia, visivel algum pano de fundo”” Escrita fragmentaria, montagem, busca de uma verdade que escapa ao poder das narrativas ordindrias, espago generosamente cedido 2 colaboragio do leitor: © que encontramos também em outros poetas da autobiografia, que S40 Claude Mauriac, em Le temps immobile [O tempo imévell, Perec, Roubaud... Como os verdadeiros poetas, eles sio inspiradores, suas obras sio oficinas que nos despertam 0 desejo de trabalhar como eles, de inventar nosso proprio caminho na linguagem. Uma das tiltimas cole- tineas de Leiris se intitula Langage tangage ou Ce que les mots ‘me disent Linguagem arfagem ou O que me dizem as palavras) deixemo-nos levar pela onda das palavras. [Bae texto, publicado inicialmente em La Fauted Rousseats n. 29, fev. 2002, corresponde a0 capitulo "Autoblographie et poésie", de Signes de vie. Le pacte autobiographique 2, Paris: Seull, 2005. p. 45-62) 102 AUTOBIOGRAFIA E FICCAO Ao fim de uma conferéncia, ou de um de a mao... A primeira pergunta 6 sempre ‘Tenho duas categorias de adversarios. Os primeiros so os que nao acreditam na verdade, Eles me olham com piedade. Os outros, os que acreditam na literatura. Eles me olham com indignagao, Fregilentemente stio os mesmos, mas nem sempre. Os primeiros estio convencidos de que © compromisso de dizer a verdade no tem nenhum sentido. Que ¢ um engodo, no plano do conhecimento, e um erro, no plano da arte. Recorrem seja 3 psicologia Crtica da meméri seja & narratologia (toda narrativa pode ainda, no século da psicanilise, acre: seja capaz de dizer a verdade sobre si mesmo? A autobiografia perde em todos os campos: 56 consegue acumular deficiéncias. uma ficgo que se ignora, uma fice ingénua ou que nao tem consciéncia ou nao aceita ser uma ficglo, € que, de outro lado, se sujeita a restrigdes absurcas que a privam dos recursos da criago, Unica possibilidade de se chegar, em outro plano, a alguma forma de verdade. E uma ficcio de segunda categoria, pobre, vergonhosa e paralisada. A propria idéia do acto autobiografico Ihes parece uma quimera, ji que supde a existéncia de uma verdade externa, anterior ao texto, que este poderia “copiar’. losofia de Paul Ricoeur. |A promessa de dizer a verdade, a distinglo entre verdade € mentiza constituem a base de todas as relagbes soctais, Certamente @ impossivel atingir a verdade, em particular a verdade de uma vvida humana, mas 0 desejo de alcancé-la define um campo discur- sivo e atos de conheciment de relagdes humanas que nada tem dk do conhecimento histérico (desejo de saber compreender) € no ‘campo da ago (promessa de oferecer essa verclade aos outros), fstica. E um ato que tem mostear em uma série de oblogrifico se inscreve 508 que siio estigmatizados. Ha 1e so temidos € punidos. H4 verdades dcaea cestudos que analisavam como 0 malvados e indiscretos que ferem. © fato de a identidade individual, na escrita como na vida, passar pela narrativa no significa de modo algum que ela luma ficgo. Ao me colocar por escrito, apenas prolongo aquele trabalho de criagio de "identidade narrativa’, como diz Paul Ricoeur, em que consiste qualquer vida." claro que, ao tentar me "uo me criando, passo a limpo os rascunhos de esse movimento vai provisoriamente estilizé- brinco de me inventar. Ao seguir ‘io, sou fiel 2 minha verdade: todos (os homens que andam na rus sto homens-narrativas, € pot isso que conseguem parar em pé. Se a identidade € um imaginério, a sbiografia que corresponde 2 esse imaginario esté do lado da verdade. Nenhuma relugao com 0 jogo deliberado da ficgao. Meus argumentos serio convincentes? Qu parecerio sofismas? Mas seri que se trata de fato de convencer? Isso é uma 10 ou um conflite? Alguma vez ji se viu alguém mudar de opi respeito desse problema? Esse conflito nao seria na verdade interior e estaria em cada um de nds? A dificuldade do Giilogo nao se deveria 20 fato de que © conceito de “verdade” € tomado em sentidos muito diferentes? Desde que co-fundei, ema 1992, 2 Association pourl’Autobiographie, que niio é um grupo académico, mas um lugar de encontro ¢ troca de idéias para pessoas que gostam de escrever ou ler 104 autobiografias, enviaram-me muitos depoimentos. Transcrevo aqui parte de uma carta que recebi recentemente, A citagdo € intencionalmente longa por me parecer bastante representativa dessa atitude lzante” e de sua argumentagao: Tendo comecado a escrever 0s oito anos uma obra caleada em minhas leiruras da época ~ Sans famille e David Copperfield =, a sempre escrevi hist6rias a partir de minha vida, mas “mo cadas"; no era a verdade tal qual, mas, antes, uma verdade a pona me Cats das mos, como oe da, Por outa lado, vivo esrevendo Cine autcbiogra“senhadn, que penso ser mais exata, mals verdadce pavologicmente Abs ofo anos, ee We Som ez ce Sms omile screvl eno‘ ist de om freee tronine que rao erarem Rem nem eu propio, tas nose0 mao fgomes,Cheguel far desee problema com angolsNaurae © Fenn Bosca. Bose lstres essrtores delararam ter encontiado as mesinas difeidades que eu e reforgaram minha convicrlo Guanto a fto de que certos estore 66 coasegiem escever Mobiogafins uansigradan ais verdadois” que © mode. Ponvo que ests autoblografa “essencia do tormo) € tn exat, Pens tabem que alhela as contin- Esse aspecto la vez, em sua contesido anedético, mas em sua “essencialidade Esse depoimento (estritamente autobiogrifico!) confirma a existéncia de duas sensibilidades diferentes, « mesmo antag6- nicas/antindmicas, pois, quanto a mim, s6 de pensar em escrever uma tnica linha de ficgao, a pena me cai das mitos, pelo menos quando se trata de falar de mim mesmo, Existem duas atirucies diametralmente opostas em relagao a meméria. Sabe-se que ela uma consirugao imaginaria, ainda que seja pelas escolhas que 105 faz, sem falar de tudo o que inventa, Alguns optam por observar ‘essa construgio (fixar seus tracos com precisto, refletir sobre sua hist6ria, confronté-la a outras fontes...). Outros decidem continud-la. Alguns fretam, outros aceleram, e todos vislumbram, como resultado desse gesto o fantasma da verdade. E, conse- qlentemente, ambos estio convencidos de que os outros esto enganados. Assim, a meu ver, meu correspondente descreve a fungio constante da literatura € do mito: propor formas “gerais” que ajudem os leitores a estruturar sua identiclade. Mas isso nlio quer dizer que uma autobiografia “auténtica” deva forgosamente se reduzir 2 anedota € & contingéncia, e nao possa, mesmo estando escrupulosamente preocupada com a verdade, atingir também essa generalidade. Nem que, inversamente, uma fice expresse sempre, melhor do que uma autobiografia, a verdade individual profunda de seu autor: essa afirmacio é, de fato, ou improvavel gar, em relaco a qué?) ou insignificante (se isso jplesmente que tudo 0 que produzo vern de mim © se parece comigo). Oqueé a autobiografia como val (recusada). Por que seria, allis, interessante ou necessario que uma ficso expressasse 0 eu profundo do autor? Essa afirmaca0 nao seria uma espécie de ilusio de recepeo, cujo mecanismo € bem ilustrado pela atitude de meu correspondente? O que é recebido pelo leitor com intensidade € utilizado por ele para a iva parece-lhe no poder vie tenso parece “verdadeiro”, € 0 verdadeito s6 pode ser autobiogratic: ‘Uma das conseqiiéncias dessa dissociacao € deixar as vezes 9 definidor que sou em posicdo embaragosa. Uma anedota: a0 fim de uma conferéncia, uma senhora vern me pedir para ler sua autobiografia, um manuscrito fininho. Por que recusar? Chegando ‘em casa, abro 0 caderno e me deparo com uma espécie de conto ‘maravilhoso, muito bem narrado: a hist6ria de uma pequena fonte que se transforma em riai sm problemas com as arvores 'as, vai aprendendo pouco a pouco e acaba realizando seu ideal, tudo isso ilustrado por uma série de fotos de bosques. Nenhuma explicagao. Evidentemente, trata-se de uma alegoria, foi o que decuzi clo contexto. Mas essa 106 forma geral para mim é vazia: a vida de minha interlocutora se vé reduzida & dlgebra de um conto inicidtico. Pergunta ao clefinidor: © contrato autobiografico (nesse caso, oral) seria suficiente para dar o estatuto de autobiografia a qualquer coisa? Eo mesmo problema do auto-retrato contemporaneo em artes pl fotografia. Nada impede de intitular “auto-retrato" as mai representagbes. Seria preciso distinguir a autobiogra aquela que até meu correspondente chama de “auténti autobiografia “figurada Falei da posigo embaracosa do definidor. Este nao € forcosamente um puro teérico. A definigdo tem consequéncias priticas quando se trata de constituir um corpus de arquivos ou de organizar um concurso, Os concursos de comuns na Europa. Descobri essa pritica na Ital Stefano, onde existe, desde 1984, um concurso anual ¢ nacional de textos autobiogréficos inéditos (difrios, autobiografias, memé- rias, correspondéncias). Gracas a esse concurso, um corpus de mais de 3.000 textos autobiogréficos, devidamente arquivados € indexados, foi constitufdo ¢ posto & disposicao do puiblico e dos pesquisadores. O artigo 11 do regulamento do concurso exclut em terceira pessoa ¢, em geral, todas as obras de imaginagio ou sem carster autobiogréfico”. Precisio ttl para que a escoiha seja feita entre textos compariveis ¢ para se construir um corpus cozrente, Lembro-me, entretanto, que a idéia de excluir "os textos ‘em terceira pessoa" me chocou: essa figura de enunciagao pode ser compativel com um compromisso avtobiogréfico explicit, garantido pelo emprego do nome proprio auténtico. Houve discussdes a esse respeito entte 0 Archivio italiano e a Associa~ tion pour 'Autobographie. N6s nfo promovemos concursos, mas optamos por chamadas na midia, empregando formulas gerais e vagas: relatos de vida, autobiografias, didrios... Mas quando nos chegam pelo correio romances em que 0 narrador ou o herdi tem um nome diferente do nome do autor, poemas ou contos alegéricos, defrontamo-nos com 0 mesmo problema, Justamente meu simpatico correspondente propunha o envio de seus textos autobiogrificos “transpostos". O que vamos dizer a ele? Uma exclusio corre 0 risco de ser mal vivenciada petas pessoas que quiseram “se expressar’: elas nto vao entender a 107 sutileza de nossas nuances. Além disso, como a expresso figurada ou indireta esti freqiientemente ligada a uma ambigio literria, corremos 0 risco de ferir o amor préprio do autor. Imaginemos 4 situaglo desesperante de um “autoficcionista” recusado pelos € pelos arquivos autobiogréficos, seu tiltimo recurso, por fazer ficgao... Essa discussao apaixonante embaragosa esti atualmente em pauta na associagio. Definir significa excluir, quando as distingdes estic ligadas a uum ato de escolha que, mesmo que afirmemos o contrario, implica uma hierarquia de valores. O nome Associagio pela autobiografia autobiogrifico deve ser interpretado numa ‘genciado. Mas pocleria parecer, e até mesmo tomnar-se, ofensivo, ssociago, por sua vez, devido a seu sucesso, se investisse ituagao elissica do perseguido- Estamos muito longe disso! Mas, quando comecei inocentemente a estudar ¢ defender meu género preferido, fiquei impressionado cle ver pouco a pouco na qual minha ago gostar dos dois ¢ ha lugar para todos! Mas © ato de definir a autobiografia, e consequentemente de levit-la a sério, de respeitd- la, de valorizé-la, de reconhecer nel: rio de escrita, iza instantaneamente aqueles que de fora do campo sagrado da criacto, ao lado das serviddes desin- teressantes da vicla quotidiana, como pagar impostos ou escovar 0 dentes. ~ Hé, ca, tanta hostilidade is da autobiografia “aut acampam, se posso dizer assim, ‘ilegalmente” em seu terri Eles mobilizam, dizendo claramente fazé-lo, a experiencia pessoal, as vezes 0 proprio nome, brincando assim com a curiosidade tor, mas bat mance” textos nos quais ender com a verdade, tratando-a como a" & muito frequentada, muito viva © |, Como todos os locas cle mesticagem, muito propicia, A criaclo, Usufruir dos beneficios do pacto autobiografico sem pagar nenhum prego por isso pode ser uma conduta facil, mas também propiciar exercicios irdnicos plenos de virtuosismo ou 108 abrir caminho para pesquisas das quais a poderi tirar proveito, Mas os escritores q justamente porque esto sempre esbarrando na autobiografit, S20 ‘05 que mais violentamente a depreciam e a renegam: sobretudo que ninguém pense que eles a praticam! Eles estdo inteiramente no campo da arte! ~ A violéncia chega ao paroxismo quando texto é totalmente autobiogrifico, como em Linceste [O incestol, de Christine Angot, que recusa que seu texto seja consicerado uma “merda de depoimento” * Na triade © Belo, o Bem, o Verdadeiro, 36 o primeiro termo diz respeito a0 escritor atual que pensa nao ter obrigacio de ser, em sua obra, nem moral, nem "verfdico", ou antes, ser tudo isso auromaticamente pelo simples fato de ser belo. Ora, a autobiografia levanta fatalmente problemas éticos; e na medida em que é literiria, visa ao mesmo tempo o Belo € 0 Vercladeiro. Pode-se ver, nessa dupla restrigo, no uma alianca contranatura que aviltaria a arte, mas uma alta exigéncia que a levaria a um de seus apices ~ € desse ponto de vista que a autobiografia foi considerada e praticada, por exemplo, por Michel Leiris [Este temo comesponde 20 capitulo “Autobiographie et fiction", de Signes de vie, Le pacte autobiographique 2, Paris: Seull, 2005. p. 37-441] 109

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