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Capitulo V ACRITICA PSICANALITICA Aanilise do imaginario, caso nao queira vagar no vazio, encon- tra-se com a psicanilise. Bachelard emprega a palavra para afasté-la de seu sentido e nao se alia, de modo algum, aos fundadores dessa disciplina. Jean-Pierre Richard, apés ter-se recusado a passar das sensag6es a outra coisa que nao seja a consciéncia, utiliza, em Proust eo mundo sensivel e em Microleituras, conceitos psicanaliticos, mas subordinados e sem os integrar num sistema. Finalmente, a mitocri- tica mergulha no patriménio coletivo e, As vezes, intemporal; nao na hist6ria do inconsciente individual. Nao pretendemos refazer, de- pois de outros, a histéria da psicandlise aplicada a literatura (Anne Clancier, Psicaniilise ¢ critica literiria, 1973; Max Milner, Freud e a interpretagao da literatura, 1980; Jean Bellemin-Noél, Psicandlise e lite- ratura, 1978), mas mostrar que meios uma critica literdria, que se vale da psicanilise, utiliza para estudar as obras. 139 FREUD Se evocamos aqui, em primeiro lugar, o nome do criador da psicandlise, é para mostrar como sua analise das obras literrias tevela a critica. Os textos sio, para ele, exemplos, ocasiées para aplicar uma ciéncia a objetos que Ihe pareciam exteriores; para nds, invertendo o método, aplicaremos, de algum modo, a literatura a0 discurso freudiano sobre o romance, 0 conto, a poesia. Em Minha vida e a psicandlise, Freud identifica a obra com seus sonhos comuns * ea considera a satisfagéio imagindria de desejos inconscientes, que | despertam e satisfazem, junto aos outros homens, as mesmas aspi- ! ragdes; um prisma de seducao reside no prazer ligado A percepcio da beleza da forma. S Nio obstante, o estudo dos textos literdrios revela elementos mais precisos, mais complexos e mais sutis em Delirio e sonho ent “Gradiva” de Jensen (1907) e Ensaios de psicandlise aplicada (1906-1923). O humor e suas ligacdes com 0 inconsciente (1905), se ele anuncia a teoria do cdmico, nao se aplica de modo algum aos textos literarios, e ha palavras espirituosas que ele reprime como as reveladas por Kant em A critica do juizo: sé servem para fazer rir, O primeiro trabalho de Freud, com relagao a Gradiva, de Jensen, ¢ isolar um tipo de texto, a narragao do sonho, o sonho “atribuido pelos romancistas a seus personagens imagindrios” e submeté-los a um exame: os romancistas e os poetas “conhecem, entre 0 céu e a terra, muitas coisas que a nossa sabedoria académica nao seria sequer capaz de imaginar”. Abrem-se dois caminhos: ou se trata de um caso particu- lar, “os sonhos imaginados por um romancista dentro de uma de suas obras” (razio da aplicagio, por outros, a Nerval, Proust, Bre- ton), ou, entio, “comparar todos os exemplos” encontrados nas obras de todos os escritores. Freud, nés 0 sabemos, escolheu aqui o primeiro caminho. Ele comega resumindo 0 romance, nao sem tecer, de passagem, alguns comentarios psicolégicos (as recordages re- primidas): nao se pode, é verdade, compreender o detalhe a nao ser por meio do conjunto, e a representagao da vida psiquica por parte do romancista nada mais atrai além da “terminologia técnica de nossa ciéncia”. Em seguida, Freud, por intermédio dos fantasmas e 140 dos delirios do heréi, encontra sua “motivagao erética inconscien- te”, e, ao expor os sonhos do herdi, volta a coloca-los dentro do conjunto da narrativa, apoiando-se sobre a sua Ciéncia dos sonhos, APparece, entdo, a interpretacao: sob 0 contetido manifesto, encontra- mos 0 “pensamento latente do sonho”, que no é “idéia tnica”, mas, sim, um “conjunto de idéias”. O importante é associar a “compreen- 40 dos principais tragos” com a “sua integracdo na trama da narra- tiva”, Muitos criticos se esqueceriio deste principio. Portanto, para se interpretar um sonho é necessario “integra-lo aos destinos psiqui- cos do heréi”, restabelecendo, dentro do fio da narrativa, “o maior numero possivel de detalhes sobre a vida exterior e interior de quem sonha”, De nada adiantara desejar interpretar 0 sonho caso nao se conte com esses detalhes. Na realidade, cada parte do contetido do sonho, cada unidade onirica, deriva de “impressdes, lembrangas e associages livres do sonhador”. Uma vez interpretado o sonho, ainda que eventualmente superposto a outros, anteriores, teremos esclarecido a ambigiiidade entre o delirio ea verdade. O romancista e © analista também terfio, tanto um quanto 0 outro, entendido muito bem o inconsciente, declara Freud: basta que 0 artista “concentre sua atengio sobre o inconsciente de sua propria alma, preste atengiio a todas as suas virtuosidades e Ihes dé a expresso artistica, em vez de reprimi-las pela critica consciente. Ele aprende em seu préprio inti- mo aquilo que aprendemos por intermédio dos outros”. Portanto, explicar um sonho é nele encontrar as leis do inconsciente, que o escritor incorporou gracas a “tolerancia de sua inteligéncia”. Cinco anos mais tarde, Freud explicita que a psicandlise procura “conhecer com que extensiio de impressdes e de recordagées pessoais 0 autor construiu sua obra”: isso significa que, do texto, passa-se Abiografia, do personagem, ao autor. Gradiva recoloca a narrativa do sonho dentro da estrutura do livro. Determinados artigos compilados em Ensaios de psicanilise apli- cada \evam-nos a indagar se a critica psicanalitica pode dar conta de outros aspectos do livro. “A criagao literaria e 0 sonho acordado” (1908) coloca a questio da origem dos temas, da emogio que eles suscitam em nds. O mundo postico, afirma Freud, éirreal, o resultado de um jogo. A “técnica artistica” provoca prazer com objetos que nao causariam caso fossem reais, e “muitas emocGes, penosas em si mes- mas, se podem transformar em fonte de alegria para 0 ouvinte ou 0 141 espectador”. Abandonamos aqui a narrativa do sonho no interior da obra, para ampliar a teoria até o conjunto dos fantasmas: basta recor- dar que eles tém historia, porque 0 “desejo sabe explorar a ocasido que Ihe apresente o presente a fim de esbocar uma imagem do futuro, calcada no modelo do passado”. O sonho desperto, portador de fantasmas, encontra-se na criag&o utépica: o heréi invulneravel, os amores que provoca, os ajudantes que encontra, os inimigos que enfrenta séio os “elementos necessarios do sonho diurno”. As obras que mais se distanciam deste modelo a ele as ligaremos, no entanto, “por meio de uma série de transigdes continuas”. Freud prossegue, ent&o, com a anilise técnica do romance psicoldgico, cuja caracteris- tica resulta na cisaio do ego do autor em “egos parciais”; os diversos heréis personificam as diferentes correntes da vida psiquica do ro- mancista e, se, em outros romances, 0 herdi nada mais é do que testemunha, ainda assim nao deixa de estar presente em determina- dos sonhos. Uma vez admitida a assimilacio da criagio literaria no sonho desperto, Freud propée o retorno as relagdes entre a vida ea obra. Esta proposta seria banal, e até falaz, se niio se submetesse a hipoteses Novas, os trés tempos do desejo relacionados com o fantasma: “Um acontecimento intenso e atual desperta no criador a recordacio de outro, mais antigo, com maior freqiiéncia um acontecimento da infan- cia; dessse evento primitivo deriva o desejo que se procura realizar na obra literaria; podemos reconhecer na prépria obra, e muito bem, tanto os elementos da impressio atual como, também, os da recorda- sao antiga”. Isso porque, decididamente, a obra é 0 “substituto da brincadeira infantil de outros tempos”. Umi sonho de crianga — mas isto também pode ser verdadeiro com relagaio ao mito — “desejo de haces inteiras”, “sonhos seculares da humanidade jovem”. Trata-se mais de um programa do que de uma anilise rebuscada (como Gradi- vn). O ultimo ponto do programa é 0 estudo do efeito provocado sobre 08 leitores. Os fantasmas do autor, contrariamente aqueles do neurdti- co, proporcionam prazer, suplantam a repulsao, gragas a técnica artis- tica, que emprega dois meios: 0 prazer formal (“primeira seducio”, “prazer preliminar” que liberam “uma alegria superior que emana de camadas psiquicas bem mais profundas”), e os “véus” que escondem 0 egoismo do criador. “Desfrutando nossos fantasmas” sem escrtipu- los, ficamos “aliviados de determinadas tensdes”. Esse artigo propde, 142 portanto, um estuco formal da obra, nas relagdes entre personagens, hha memoria dos herdis, na vida de seus desejos, sua semelhanga com 6 tempo, 0 jogo do estilo. Mas, se quisermos nos indagar a respeito do atitor, encontraremos a fonte de suas obsessdes, suas lembrangas da jnfancia e, por cima de tudo, suas mascaras, soerguidas uma a uma. Contudo, o mais belo nesse artigo é a relagdo que se estabelece entre os dois homens liberados pela mediagio da obra. “Uma recordagao da infancia de Goethe” (1917) constitui um exemplo, um elemento desse sistema, dessa cadeia. Freud isola, em Verdade e ficgiio, de Goethe, 0 tinico episodio da “mais tenra infancia” do autor, aquele em que o menino, de, no maximo, quatro anos, diverte-se, encorajado por seus irmaos e vizinhos, quebrando lougas no chao. Antes da descoberta da psicandlise, teriamos lido esse epis6- dio “sem nele nos deter”. O critico considera, portanto, que toda lembranga da mais tenra infancia é importante, e que, como parece insignificante, faz-se necessario um “trabalho de interpretagao”, isto 6, coloc-la em rel Jagdio com outros acontecimentos importantes, dos quais estas lembrangas nada mais sio do que “telas”, ou, entio, sua substituigdo por outros contetidos. Freud conheceu um doente! que, sentindo citimes pelo nascimento do irmiozinho, cometeu atos agres- sivos, como atirar louga pela janela. Pois muito bem, Goethe teve um irmao trés anos mais moco do que ele que morreui com seis anos. A crianga realizou, portanto, um “ato magico”; Goethe vé seu compor- tamento explicado pelo dos pacientes de Freud. A morte de seu irmaozinho libera o futuro escritor, que ja tinha antes expressado sua clera atirando louga (cujo peso simboliza a mae gravida): era como se Goethe dissesse: “Sou uma crianga de sorte, favorecida pelo des- tino; a sorte me manteve vivo embora eu tivesse vindo at 1o mundo tido como morto. Mas ela afastou o meu irmao, de modo que nao tive que dividir com ele o amor de nossa mae.” Goethe, sendo “o filho predi- leto” da mie, manteve durante toda a vida um “sentimento conquis- tador”, uma “certeza do sucesso”. A biografia de Goethe, historia de suas vitérias, encontra sua origem nessa recordagio fragmentada, O método consiste, portanto, em encontrar o sentido dissimulado de uma passagem enigmatica a custa de futilidade: a critica psicanalitica éuma critica do sentido. 1 Depois um segundo, completado pelas observagies de outro médica. 143 Outro artigo, “O tema dos trés cofrinhos” (1913), mostra muito bem que a leitura se depara com “problemas” que devem ser “solu- cionados”; em relagao 4 andlise de Goethe, 0 elemento novo é a superposicao; trata-se de duas cenas de Shakespeare, “uma alegre, a outra tragica”, A primeira é tomada emprestada ao Mercador de Veneza: os pretendentes devem, para se casar com Portia, escolher entre trés cofres, um dos quais contém o retrato da jovem. Aqui, os trés cofres, como indicam os sonhos, simbolizam trés mulheres. A segunda cena é calcada no Rei Lear e suas trés filhas. A mitologia fornece, por aproximagio, outras cenas (Paris, Cinderela, Psiqué). Por que trés mulheres e por que escolher a tiltima? A linguagem dos sonhos, assim como a dos contos, indica-nos que a terceira irma, a que é muda, representa a morte; tratar-se-ia, portanto, das Parcas, deusas do des- tino. Porém, em O mercador de Veneza, e em O rei Lear, trata-se da mais bonita ou mais culta das filhas! Isto porque, na “vida psiquica, as inconstancias redundam na substituicio de uma coisa pelo seu opos- to”. A mitologia substituiu a deusa da Morte pela deusa do Amor. Do mesmo modo, 0 tema da escolha inverte aquele da necessidade, O poeta voltou ao “mito primitivo”. Freud, numa conclusio admiravel, explica como Cordélia, morta nos bracos de Lear agonizante, personi- fica a Morte e que, se “invertermos a situagao”, 6 a “deusa da Morte que retira do terreno de combate o heréi morto”. As trés irméis encar- nam “a geratriz, a companheira e a destruidora” ou, entio, “as trés formas sob as quais se apresenta, no decorrer da vida, a propria imagem da mae: a prépria mae, a amante que o homem escolhe a imagem desta e, finalmente, a Terra-Mie, que o recebe de novo”. Aqui converge a ligdo dos mitos ea da anilise, de vez que o relacionamento com a mae resulta do encontro dos pacientes; em compensagao, nao ha nenhum esforgo para psicanalisar Lear: a unidade clo texto e seu segredo foram reduzidos por meios externos. Na opiniio de Freud, a critica psicanalitica tem, antes de mais nada, a funcao de interpretar as passagens enigmaticas de uma obra — Nao todo Shakespeare, mas duas cenas de seu teatro, passiveis de serem superpostas — e para demonstrd-lo no existe nada melhor do que o célebre artigo intitulado “A inquietante estranheza” (1919), alegoria da leitura freudiana. Pois um texto nao invocaria a pesquisa Prioritaria do sentido se nao despertasse em nos alguma angtistia; ora, este tipo de texto (diferente do fantastico) é negligenciado pela 144 estética: um estudo léxico, munido de exemplos e citagSes em exces- so, permite definir o que é “1nhe imlich”; exemplos sao procurados nos contos de Hoffmann (“O homem de areia”, bastante resumido), no seu romance Os ¢lixires do diabo, no tema do “duplo” (j4 estudado por Otto Rank). Freud elabora, entdo, a lista dos fatores que “trans- formam o que nao era angustiante em estranheza inquietante”: o animismo, a magia, os encantamentos, a forga total dos pensamen- tos, as relages 4 morte, as repeticdes involuntarias e o complexo de castragao. O préprio sentimento se produz quando a fronteira entre o imaginario ea realidade se apaga, tanto na vida como nos textos; mas, nestes, a estranheza angustiante é bem mais profusa do que na vida real, porque o “dominio da imaginagao” nao possui a “prova da realidade”. Quanto a este sentimento experimentado pelo leitor, “ele surge na vida real quando os complexos infantis reprintidos sao estimulados por alguma impressio exterior ou, entdo, quando pri- mitivas convigdes superadas parecem ser novamente confirmadas”. Ela é tio inquictante na ficgio quanto na vida. Uma angiistia, uma pagina, uma origem, esse é o movimento, nutrido por uma imensa cultura, igualmente literdria, da leitura freudiana. Numerosos psicanalistas seguindo as pegadas do mestre — pessoas que nao eram de modo algum criticos literarios — passarao ase interessar pela literatura. Lacan, por exemplo, tratou de Bataille, Claudel, Goethe, Hugo, Joyce, Moliére, Pascal, Plauto e Moliére, Shakespeare, Wedekind e, nos textos maiores, de Poe, Duras, Gide (consulte a bibliografia de M. Marin, Lacan, Belfond, p. 275-297). CHARLES BAUDOUIN Até 1980, no se contava com nenhum outro trabalho em fran- cés além do estudo de Jacques Riviere sobre Proust e Freud (Alguns avangos no estudo do coragio do home) para aplicar ‘a psicandlise a critica literdria. Contudo, em 1929, Charles Baudouin publica Psi- canilise e da arte. Da vasta obra, citaremos também O simbolo em Verhaeren, ensnio de psicaniilse da arte (1924), Psicandlise de Victor Hugo 145 ” i- (1943) e O triunfo co heréi (1952), Psicanlise da arte? pretencle “pesdi Sar as semelhangas que a arte mantém com os complexos, ae Pessoais, sejam primitivos, tanto junto ao artista criador como j ae 20 apreciador da obra”, e se divide em trés partes: a prim es dedicada a criacio, a Segunda, 4 contemplagio, a terceira, a8 aioe da arte. Baudouin encontra nos motivos do mito os ces de Primitives’, inspirando-se em trabalhos de Freud, de ee = Rank e de Jung: “A mitologia 6 0 conteddo manifesto de ines sonho, do qual os complexos Primitivos seriam o contetido la! ee O autor, apés ter exposto as teorias de Freud, detém-se no or Jose de Edipo na arte: encont "2-0 no motivo do pai-tirano (Don ‘schile Guilherme Tell, de Schiller), dos irmaos inimigos Ge amor ler, 6 claro, nao tinha irmao, mas nutria fixagdo pela irma: “O a hos- por sua mae deslocou-se para sua irma, e, paralelamente, a agi- Ulidade contra o pai deslocou-se, em deternsinadas obras de ae Nagao, para um irmao imaginario.” Baudouin também Cee Hamlet e Eipo, de Jones (do qual ja falamos a propésito de Star 5 dos ski): esse livro permitiu que se completassem as ee A intlistas de Shakespeare, lenclo em sia poca 0 oes A figura paterna nela se decompée, como em varios mitos, em ica (© paieo tirano) ou tiés (ce af acrescentarmos Polonius, 0 oe uf Seu assassinato por Hamlet). Sabemos, enfim, que Hanilet esta Pr oth S.A mesma anélise € vélida para Machel! - Unindo-se também a Otto Rank, eee apresenta Don Juan (do qual Leporello nao passa de um see dominado pelo tema da culpabilidade, que tem raizes edipia' = confirmadas pela vinganga do Comendador. Contudo, o dae exprime “6 menos Edipo em si mesmo do que certas oe derivadas do Edipo e Muito pessoas”; caso nfio tomemos em oa deragao esse fato, as explicagdes logo se tornam monétonas ¢ tet? a ‘ ns A 10, # naremos dizendo que “milhares de obras exprimem, no fund mesma coisa (0 Edipo)”, Em seguida, Baudouin trat, mo”), que engloba a volta dizia W. Schlegel, e se co; Tolstoi o mostra: suas pr 'a do narcisismo (que chama ee 80 seio materno, “Todo poeta é Narci le mpraz No amor a si mesmo. O exemple imeitas lembrangas, nas quais descobre 2 Dedicadoa Freud, Preciso ressaltar, 146 ad Corpo e se opde ao mundo exterior com seus gritos, “resumem toda uma personalidade”. © narcisismo de Tolstoi é “ambivalente”, por- que ele se ama e se detesta alternadamente; hesita entre o “eu” eo ideal do eu”. Varios personagens de Tolstoi tém estes tracos, absor- Vidos do autor e que, sobretudo, separam o amor entre a sensualidade eatemura — que é ternura por si mesmo: “Disso resulta que os herdis de Tolstoi — e especialmente aqueles nos quais se projetou com maior intensidade — nao podem analisar seus sentimentos amorosos sem Concluir que ali s6 existe o ardil do eu. Que se sonhe com a impressio- nante Sonata para Kreutzer.” Até a crenca no poder incontestavel do Pensamento, que se manifesta na ideologia dos romances, na “aco Causal das idéias”, 6 de origem narcisista; sua agressividade volta-se Contra © romancista, que se autotortura, razio “de tragicas crises Morais e das sublimagées apaixonadas”. A andlise de Baudouin nos faculta, Portanto, compreender a psicologia e 0 comportamento dos herdis de Tolstoi, mas também {apés Rank) as incontaveis obras que tratam do tema do duplo (Musset, Andersen, Hoffmann, Jean-Paul, lilde, Maupassant, Poe, Dostoievski); ele estd associado aos temas Clssicos do narcisismo, como 0 espelho, ou medo de envelhecer, e 0 her6i Perseguido por, seu duplo: os escritores que escolheram este tema Softeram, Na sua vida, de alucinagées, de desdobramento da persona- lidade, de Neurose, As vezes, de deméncia. Isso porque o “componente hostit” do narcisismo “projeta-se no duplo¢ lhe da “este carater angus- tiante e terrivel”. Como aconteceu com Freud, a psicandlise permite que Baudouin ¢ Rank compreendam e reduzam certas dificuldades ~© sentido dos textos. Mas 0 narcisismo, no artista, une-se a introver- ‘N10, © a outros “componentes passivos” que formam um “complexo ce Tetragio”. A arte pode, assim, assemelhar-se, a0 mesmo tempo, a Braves regressdos neuropaticas” e “As aspiragSes mais saudaveis da manidade”:a situagio estética constitui “equilibrioeminentemente Precioso, eminentemente instavel”. O narcisismo une-se ao gosto pela exibigao, ao “complexo espe- ‘cular’: Tolstoi, novamente, ou Rousseau. O tema da nudez — ou do adereco suntuoso — assim se explica, a segunda traduzindo a repres- So, mas também o desejo de atrair a atencio. Motivo dos castigos ipo, Orion, e 0 tema da visio proibida: Euridice, Psiqué). Mostrar Se esconder esto relacionados, pela repressao, como ver e saber (Da Anci, analisado por Freud), Baudouin, a fim de facilitar ainda mais a 8 e 47 RR compreensio desse “complexo espetacular”, analisa “a consciéncia” de Victor Hugo (A lenda dos séculos). O estudo desse poema particular esta calcado sobre aquele dos simbolos, por meio do conjunto das obras de Hugo — que o autor publicou mais tarde —, porque “a obra de um artista deve ser olhada pelo analista como um organismo vivo, no qual cada parte é fungao do conjunto e sé por seu intermédio se torna inteligivel. Analisar a fundo um poema s6 é possivel analisan- do-se a obra completa do poeta”. O método consiste em analisar as “constelagées de idéias”, Se o tema central do poema é 0 fratricidio, ele corresponde a um “complexo importante de Hugo”, em clima de rivalidade com seus irmaos e irmas nos primeiros anos de sua vida. Essa rivalidade, reprimida em seguida, deixou “tracos inconscientes Pprofundos”; os monstros hugoanos (Han da Islandia, Quasimodo) tefletem a crianga disforme que acreditava ser; 0 citime com relacéo a0s irmaos é encontrado em nurnerosos poemas, razao do sentimento de culpa que se revela em A consciéncin, unido a dois temas impor- tantes, a “perseguicio” e 0 “olho”. O tema da perseguicao, “carregadissimmo de potencial afeti- vo” 6 encontrado em varios poemas (“L/aigle du casque”, “Le petit toi de Galice”, “Le parricide” em A lenda dos séculos); esta ligado ao complexo, ao mesmo tempo fraternal e paternal, sem ditvida ambi- valente (donde a necessidade da antitese), e, As vezes, transferido para Napoledio. O “componente negativo” do sentimento sera fixa- do sobre Napoledio III: Hugo em fuga encontra a felicidade e repete o modelo de Chateaubriand. A fuga de Caim exprime a “fuga diante do pai” ea “autopunigao inconsciente”. Quanto ao simbolo do olho, conhecemos a importancia do tema da visao para Hugo; suas pri- meiras recordagées estiio ligadas ao olhar, a exibicao; elas produzem um “sistema de idéias acompanhadas, com regularidade, pela cul- pabilidade e pela angtistia”: “o componente passivo sublima-se no teatro e no lirismo subjetivo’; 0 “componente ativo sublima-se de um lado como imaginagao visual, por outro, como inquietagao me- tafisica”. A sede de poder, que compensa as “inferioridades primiti- vas”, mescla-se ao “instinto visual, ligado a sexualidade infantil e 4 curiosidade proibidas”, ao saber. “Poder” e “saber” sio as duas caracteristicas do olho, cuja presenca é percebida por Baudouin em numerosas citagSes, marcadas nos dois casos pelo sentimento de culpa e pelo castigo (0 olho esta ligado a Talifio). A técnica de andlise 148 do poema consistiu, portanto, em “religar entre eles os principais temas do poema” e traduzi-los, encontrar os complexos originais sob a objetividade inconsciente do poeta, cuja culpa nao corres- ponde a uma “falta real”: aos olhos do superego, os “instintos reprimidos sao culpaveis do mesmo modo que o seriam os atos deles resultantes caso nao tivessem sido reprimidos. Sabemos que o superego € tanto mais severo quanto mais forte a repressio (...). Por isto mesmo € que o remorso é mais intenso nos nervosos com obsessao escrupulosa do que nos verdadeiros culpaveis”. A subli- macio artistica permitiu que Hugo escapasse da neurose obsessiva. A psicanilise da arte se revelaria, portanto, capaz de recons- tituir a “génese da obra” nao por meio dos manuscritos (que sio 0 objeto de outro método), mas pela biografia: uma impressiio recente faz “vibrar numerosos elementos tirados do passado, mesmo dis- tante, e do inconsciente, mesmo profundo”. Em torno desses es- timulos, ligado aos complexos, é que se forma 0 organismo da obra. A interpretagio psicanalitica deve ser elaborada em torno desse estimulo. A obra nao é apenas uma “expressiio dos complexos”, ela reage a uma situagiio presente ou recente, que se “esforga para assimilar”, estabelece “entre ela e os complexos existentes relagées harmoniosas e imprevistas”. A andlise de Baudouin, que neste caso conduz a um poema e a um poeta (que ele “psicanalisou”), é parti- cularmente feliz, pois escapa, como a propria obra de arte, ao lugar comum da regressio. A segunda parte desse importante trabalho é dedicada a “con- templacio”, isto é, A reagao “subconsciente” do leitor, até aqui negli- genciada pela critica. O método é o da associagao de idéias, revela- dora do inconsciente, desde que se conhega a pessoa que associa, isto 6, desde que se_possa analisé-la: 0 paciente “associa em torno de uma obra de arte em vez de um sonho”. Uma série de obser: vagées, de casos colocados diante de obras, conduz a alguns “resul- tados”: “A obra parece construida por simbolos escolhidos pelo préprio observador; ela exprime para ele seus proprios complexos; poder-se-ia pensar que o autor é ele, ou entéo que a sonhou.” Os leitores realizam por meio da obra suas tendéncias inconscientes, projetam nela seus conflitos e sua solugao (donde a impressio de alegria). O problema capital é 0 da comunicagio eritre o autor e o leitor “no plano inconsciente”: esta se produz, sobretudo, quando a 149 obra contém “imagens tipicas dos complexos primitivos”, logo, “comuns a todos”; mas o “observador” também projeta na obra complexos e conflitos pessoais, que nada tém a ver com os do artista. Portanto, este estudo salienta a afinidade da arte com 0 sonho: a obra “faz sonhar”, ou seja, associa as imagens e as idéias, porém nao a ponto de perder de vista sua origem, ela “dae toma sem cessar”, pois delimita “uma 4rea de consciéncia restrita”; 0 leitor é convidado a uma mistura de repouso e atencao, resultante da “sugestao” (0 ritmo 6 um dos procedimentos mais evidentes dessa espécie de hipnotis- mo). As imagens artisticas obedecem, como no sonho, “ds duas leis fundamentais da condensagio e do deslocamento, isto é, por um lado condensam em visao tinica varias realidades formando um complexo e, por outro, nessa sintese, alcangam elementos importantes ao se dissimular sob elementos secundarios, que recebem a énfase em seu lugar, sob o efeito da repressio”. A psicandlise encontra, em seguida, a idéia aristotélica de catarse, purificagao, sublimagio; e estuda, no homem e na obra, as “acumulacées” e as “descargas” do potencial afetivo. Ao contrario do sonho, a arte projeta no real o imagindrio, ela se comunica com outrem e “faz-nos sair de nés mesmos”; meio de expressio, ela sublima, mas comunica. Esse desvio feito pela estética gera a critica: “A obra de arte comunica e ensina uma linguagem.” Das imagens? Sim, porém as do autor e as do leitor nao coincidem, de vez que a comunica jamais é total; essa comunicagao nao se processa de subconsciente para subconsciente, ocorre na regido do “ primitivo, do inconsciente coletivo”, que se exprime nos simbolos e nos mitos, permanece na regiao do consciente, que a psicandlise poderia tender a negligen- ciar. O surrealismo quis contentar-se com o primeiro nivel, for- necendo “lindo material” cuja tradugao teria que ser feita. Recorrer ao mito também nao é solucao perfeita: é preciso “revivé-lo e recria- lo” apés té-lo descoberto nao na sua cultura, mas, sim, no seu inconsciente, de modo que “a seiva das profundezas da sua vida a propria abstracaio”. Baudouin resume, entio, o itinerdrio do artista: “Apés um periodo em que o criador esteve bem distante da expres- sao fiel de seus sentimentos mais intimos, encontra resisténcia ines- perada, que conduz a uma espécie de impasse, do qual ele nao pode sair a no ser encontrando a formula de uma arte mais objetiva e universal: essa objetivacdo aparece, entdo, como verdadeiro parto.” 150

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