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Numa carta de 1955, ao amigo Theodor ‘Adorno, Walter Benjamin resumia sua impressio dese grande romance do surrealismo:“0 Camponés de Pars, ivro do qual cu no podia ler mais do que diuas ou trés paginas & nofte, na cama, meu coracilo batendo to forte que me favia detxéio de lad Exatamente setenta snos depois da primeira ediglo, O Camponés de Paris Fessurge, hoje, como tum dos romances do nosso tompo. F tm tratado Inesque evel sobre a cidade — a cidade como centro das mitologias modeznas ¢ a cl- dade como imagem da consciéneia, ou inconseiéneia, Bserita e topologia se en- tecruzam nessas passagens parisienses de Aragon (1897-1982), espagos limitre- fes, onde a razio resistee cede, a0 mes ino tempo, to discurso sagrado ou poético, ea imagem se transforma hhuma verdadeira via inicitica da sensi- bilidade, ‘Traduzido pela primeira vez em nossa 1ingua por Flavia Nascimento — autora também de uma esclarecedora Apresen tagio, onde situa o romance no contexto dias obras de Aragon, em particular dos Surveatistas, em geral, contra o pano de fundo conturbado da Europa do entre- guerras — O Camponts de Paris convoca f absorve a literatura ce Latwtréarmont, ‘Apoliinaire ¢ Gérard de Nerval, num estilo exuberante, que é também uma parédia das meditagBes cartesianas. 'A desericio detalhaca de uma galeria ou de um jardim parisiense, aqui, seré também @ histéria de uma consciéncia, exacerbada pelo efémero, pelo frisson, pelas vertigens do comum. “Iuminogées profanas” se stcedom imprevisivelmen- te mum livro sem género definide e que COLECAO LAZULI O Camponés de Paris Louis Aragon O CAMPONES DE PARIS Apresentagiio, tradugio e notas: FLAVIA NASCIMENTO Postécio: JEANNE MARIE GAGNEBIN Imago Coppi © Eins alas 1975 Th ina le gaee de Pte " Reson ts te. anuna gare ee ape se epee or dpi izing, ose ioncice osetia f 1m jeri ese to, ane ‘evn ara AANDRE MASSON (PSs Casbyetenr ons Scie ds Eres Lvs, BL As7ee se. to. E7142 ‘anges ce Pas / Lis pepe, rae aa, fla Naeneow: psi, ere Mae Ggtia Fade wie: eae €, 986. ae (Coto uaa ‘tects dL psn de Pit ‘sau asvaasre7 1 flonoe farts | ase, Ra, Ti, Sie 5160 0-0 av aba 1396 ac oO TDA z aa Sins Rags. 701A Este ‘TU2E0831 a wie AL Tol (01 2831082 _ Fa (21) 1265, logs mB Pine in Ba SUMARIO Apresentagio — Flavia Nascimento Obras de Louis Aragon © CAMPONES DE PARIS Prefaicio para uma Mitologia Moderna APassagem da Opera O Sentimento da Natureza no Parque Buttes Chaw ‘mont © Sonho do Camponés Notas da Tradiugao Posticio Jeanne Marie Gagnebin uw 3 37 45 139 215 251 par APRESENTAGAO Fldvia Nascimento Grande ensaista, poeta e romancista de personali- dade fascinante, Louis Aragon produziv, ao longo de seus 85 anos de vida, uma dessas extensas obras em que © literério e 0 histérico tecem uma trama de tal forma densa que nao se pode pensé1a sem levar-se em consi- deragao todas as grandes reviravoltas pelas quais pas- saram nosso século. Embora no seja o momento, aqui, de abordé-la em toda a sua complexidade, nao poderia- mos apresentar ao leitor brasileiro esta traductio sem Ihe fornecer, antes, alguns poucos elementos biogréti- cos que possibfiitem avaliar a riqueza de uma obra que nao se limita ao perfodo surrealista, ao qual pertence 0 Camponés de Paris. Em seguida, porém, ao que, fare- mos alguns comentarios sobre este livro e sobre algu mas das dificuldades impostas por sua traducao. Sobre o Autor Aragon nasceu em Paris, no dia 3 ée outubro de 1897"Pilho de bastardo, ele jamais foi reconhecido pelo pai, Louis Andrieux, homem casado, pai de trés filhos + e figura de projeciio, tendo sido procurador da Repuabli- ca em Lyon, préfet de police em Paris e embaixador da Franca na Espanha. A mie, Marguerite ToucesMassil- Jon, tampouco o reconheceu: o menino foi criado em sua companhia, mas passava por seu irmaozinho, pois u quem assumiu a maternidade perante a sociedade foi a mie de Marguerite. O sobrenome Aragon fot inteire- mente inventado pelo pai, que fazia o papel de seu padrinho: assim, Louis Aragon ganhava as iniciais ci fradas de Louis Andrieux. © jovem Louis, entio estudante de medicina, 36 conheceu o segredo de seu nascimento em 1917, aos vinte anos, as vésperas de sua partida para o front, convocado gue foi enquanto médico-auxiliar. Com mais de 70 anos, Aragon revelou que o pai obrigara sua mfe/irmi a Ihe dizer a verdade para que ele no mor- resse na guerra ignorando o fato de que ele era uma marea de sua virilidade.’ Data desta época sua amizade com André Breton, também mobilizado no mesino hospital como estudante-médico-auxiliar. Deste encontro capital, nascia uma amizade que engendraria 0 movi- mento estético-cultural mais importante da Franca da primeira metade do século xx: 0 Surrealismo. No dia 11 de novembro de 1918, com a declaragéo do anmisticio, findava a primeira grande guerra, deixando atrés de si um saldo de sete milhdes de mortos. Aragon permaneceu mobilizado, por conta da ocupacio francesa Go Sarre (regio sudoeste da Alemanha). Breton, de volta a Paris, encontrou Philippe Soupault, com quem escre- veu e publicou em 1919 Les Champs Magnétique, texto reputado como fundador do movimento surrealista, ¢ fruto das primeiras experiénciascom a escrita automatic. © método da escrita automatica, bem como sua denomi nagio, foram tomados de empréstimo a psicanatise, pela qualos ovens autores se interessavarn, Soupaulte Breton buscavam através da livre associagio, 0 “puro ditado do pensamento”, como diria Breton mais tarde, no primeiro Manifesto surrealista. Seu objetivo era desembaracar 0 ri Matisse, roman (Paris: Gallimard, 1971). a2 espirito de toda e qualquer pressio, critica e dos velhos habitos escolares (es corregdes, por exemplo, eram proi bidas}, a fim de explorar um universo de imagens até entio desconhecido, mergulhando diretamente nas fon tes inesgotéveis do inconsciente. Retornando pouco mais tarde a Paris, Aragon jun: tose a Soupault e Breton e, neste mesmo ano de 1919, os trés jovens criaram e passaram ¢ dirigir a revista Littérature. titulo era evidentemente provocatério, pois o objetivo da revista era a busca de formas de expressiio totalmente novas, sem nenhum compromis- s0 com o bom gosto ¢ a tradigao literdria. Tal busca refletia o estado de animo desses jovens para os quais, ap6s a carnificina da primeira guerra mundial, a poesia se tornara impossivel — pois segundo eles nenhuma forma de arte poderia ter sobrevivido a tamanho hor ror. Seu espfrito de revolta encontrou entéo uma forte ressonéincia nos propésitos violentamente iconoclastas do dadaiste Tristan Tzara, que se transferiu de Zurique para Paris, juntandose aos surrealistas. Aamizade com ‘Tzara inaugurou uma fase profundamente niilista das atividades do grupo, repleta de manifestagdes ptiblicas ruidosas e provocadoras, que iria durar até 1924. Neste ano, aparece 0 segundo texto te6rico surrea- lista, obra de Aragon, que o escreveu entusiasmado com 05 resultados obtidos por seus amigos nos experi- mentos com a escrita automatica ¢ 0 sono hipnético. ‘Tratase de Une vague de réves, publicada no outono de 1924 na revista Commerce, dirigide entre outros por PaulValéry. Esse texto, muitas vezes negligenciaco pelos historiadores do movimento, constitui na verda- dea primeira tentativa de definigéa de um vocabulério da teoria surrealista. Alias, uma primeiraconceituaco, ainda que muito geral, dos substantivos surrealidade e surrealismo aparecia ali pela primeira vez, bem como a preocupacio com o estabelecimento de certas nocdes 35 que se revelaram posteriormente de grande fecundida- de para o surrealismo, como as nogies de acaso ¢ de fantdstico. Dois meses depois, Breton publicava 0 pri- meiro Manifesto contendo a famosa defini¢ao da pale- vra “surrealismo” em forma de verbete de dicionsrio,” Este texto determinow a ruptura com o grupo dadé, pois nele os surrealistas nomeavam seus antecessores, entre outros, Sade, Swift, Baudelaire, Nerval, Poe, Rim- baud, Mallarmé. Tal atitude equivalia a uma aquiescén- cia em relacdo a literatura, a uma autoinsereao do movimento surrealista na tradic&o literéria, sendo, por- tanto, inaceitavel aos olhos de Tzara. ano seguinte — 1925 — viria marcar 0 inicio de uma guinada no interior do movimento, que jé se expandira, hé tempos, com grande niimero de adesdes, contando com gente como Paul fluard, Jacques Baron, Roger Vitrac, Benjamin Péret, Robert Desnos, René Crevel, Antonin Artaud e muitos outros. Neste ano, a luta pela independéncia do Marrocos, conhecida como ‘guerra do Rif”, colocou os intelectuais franceses, entre 095 quais nossos jovens surrealistas, diante da necessi- 2 O nome surrealismo fora adotado pelo grupo em ho- menagem a Guillaume Apollinaire. Ele empregou 0 adjetivo pela primeira vez em 1917, para reterir-se & sua pega teatral Les Mamelles de Tirésias como um “drama surreatista”. A definigfo de Breton € a se- guinte: “SURREALISMO. S. m. Automatismo psiquico puro, pelo qual se propée expresso verbal, escrita, ou por qualquer outro meio, o funcionamento real do Pensamento. Ditado do pensamento em auséneia de todo e qualquer controle exercido pela razio, e fora de toda e qualquer preocupagio estética ¢ moral”. Ver Manifestes du surréalisme (Paris: Gallimard, 1994), u dade de uma tomada de posi¢ao. Em junho, L’Humanité publicava uma declaracéo intitulada “Apelo aos traba- Thadores intelectuais”. Sim ou nao: vocés condenam a guerra? A discusséo estava lancada e os surrealistas alinharam-se com os comunistas, praticamente os tini- cos a condenarem a guerra colonial, qe contava na verdade com o apoio de grande ntimero de importantes intelectuais franceses, O passo seguinte e inevitével dos surrealistas foi o questionamento sobre a necessidade de se engajar ou nfo na luta do proletariado. Efetiva: mente, no segundo Manifesto Surrealista, publicado por Breton em 1929, o grupo tomou posi¢io favoravel & revolugéo proletiria, acrescentando a necessidade de mudar a vida (expressa no primeiro manifesto de acor- do com a formula de Rimbaud), a urgéncia de “trans- formar o mundo" (segundo a divisa de Marx). A opgéo pelo materialismo dialético tornava'se desta forma cla- ra, impondo a questo seguinte: os surreelistas deve- riam ou nio aderir ao Partido Comunista? ‘Tal questiio provocou mais de um cisma no grupo surrealista. André Breton e Paul £luard aderiram ao PCF em 1927, mas sua permanéneia nele nio durou mais do que algumas poucas semanas. Aragon aderiu na mesma 6poca, mas, ao contrario dos dois amigos, mor reria comunista. Sua adeséo desencadearia a rupture com o grupo. Vejamos a seqiiéncia dos fatos. Em 1928, Louis Aragon encontrou Maiakovski, que estava de passagem por Paris em companhia da cunhada, a jo- vem escritora etradutora russa Elsa Trio.et (irmé de Lili Brill, com quem Aragon logo passow a viver (unio que durou de 1929 até a morte de Elsa, em 1970). Sua primeira viagem & ex-URSS, tendo Elsa como acompa- nhante, data de 1950, Em Karkov, na Ucrania, Aragon participou da If Conferéncia Internacional dos Escritores Revolucionérios e, em seguida, escreveu o poema Front rouge (1951), em louvor & revolugdo de 1917. © poema 15 Ihe valou uma perseguigéo judicial na Franca por “ex- citagio de militares 4 desobediéncia e provocagio de assassinato com objetivo de propaganda anerquista”. Os surrealistas, liderados por Breton, tomaram adefesa de Aragon apesar de jé nfo compartilharem inteire- mente de suas posigies politicas.” Assim é que Breton escreveu Misire de la poésie (1952), solidarizando-se com o poeta de Front rouge. Mas sua solidariedade se afirmava af através de um deslocamento da importén- ia do plano politico do poema para o plano da liberda- de eserita © da poesia enquanto atividade auténoma, Além do que, Breton inclui em seu panfleto o relato dos propésitos trocados numa reunigo partidéria entre os Girigentes do pcr ¢ os quatro surrealistas comunistas: Aragon, Georges Sadoul, Pierre Unik e Maxime Alexan- dre." Foi este o fator determinante da ruptura definiti va, pois, para Aragon, a revelago publica de uma ses- sio do Partido era inadmissivel. Com o desencadear de todos esses fatos: 0 encontro de Bsa, a viagem & ex-URSs, a publicagto de Front rouge, chega ao fim a pré-histéria de Aragon, como diz Pierre Daix em sua recente biografia do escritor, abrindose 3 Lemibremos que Breton continuou a favor da adesio 20s principios do materialismo dialético, mesmo apés a ‘sua répida passagem pelo PCF, em 1927. Todavia, era contra sua politica partidéria. 4 Tal revelacio era concermente ao affaire Dulita, Dulita @ heroina de onze anos de um texto de Salvador Dali, Publicado pela revista Le Surréalisme au Service de la Ré- vohution. Os surrealistas foram acusados, na referida reunifio, de “freudismo ¢ pornografia” por causa deste texto. Breton quis tomar péblica estas “indigéncias do pensamento” (Misére de la poésie) no interior do Parti- do, o que fez explodir a ruptura com Aragon. 16 para o escritor uma passagem ao real.” Chega ao fim também o periodo do maravilhoso, do surrealismo, a0 qual pertence O Camponés de Paris. Mas o mundo de entio passava por transformagées desagradavelmente surpreendentes: apés a quebre da bolsa de Nova York, na famosa quinta-feira negra de outubro de 1929, uma crise econémica sem precedentes ganhou o mundo ocidental. A inflag&o atingiu indices vertiginosos por toda a parte, sobretudo na Alemania, que abriria as portas do poder a Hitler, que em 1932 triunfou como chanceler alemio, O fascismo tornara-se uma realidade mais do que tangivel. Em 1934, Aragon partiu nove: mente com Elsa rumo @ uRss, onde deveria assistir a0 1° Congreso da Unido dos Escritores Sovieticos, que con- tava com a participagio de diversos outros convidados de prestigio, entre eles André Malraux, Era o tempo da divisa de [danov, segundo a qual o eseritor revolucio nério deveria se converter em “engenheiro de almas”. Ociima era de euforia eo realismo socialista tornouse entiio a profissio de {6 de escritores progressistas do mundo inteiro. O comunismo ganhava em foreas, apa- recendo para muitos como alternativa tinica frente ao impasse criad6 pelo fascismo e pela crise econdmica.’ Sabese como os acontecimentos se precipitaram depois, acelerando o curso da histéria: em 1935 Musso: Uni atacou a Eti6pia; em 1936, manifestagdes de extre- 5” Aragon, une vie @ changer (Paris: Flammarion, 1994). 6 Sabe-se hoje que este congresso encobrie, na verdad, a intstauracio de uma policia politica para o controle da produgio literarie, Mas os convidados, em sua maioria, ignoravam o fato, Pierre Daix (obra citada acima) afir ma que Aragon viveu até os anos sessenta com a ilustio de que nesta ocasitio realmente ocorrera a uniio geral e livre dos escritores do regime soviético. ay ma direita sacudiram a Franca, onde uma coligagio de forcas de esquerda (a Frente Popular) acabou por obter a vit6ria nas eleigdes do mesmo ano, enquanto na vizinha Espaniha eclodia a guerra civil, na qual o poeta Federico Garcia Lorea perderia a vida. Enfim, em 1939 recomecava 0 pesadelo de uma Segunda Guerra Mun- dial, Aragon ganharia novamente as trincheiras em 1940, para ser desmobilizado no ano seguinte, quando passou a viver na clandestinidade, integrando a Resis tencia. Durante a guerra, Aragon vislumbrou na poesia uma fecunda estratégia de resisténcia: resgatando a concepeiio do trobar clus do poeta provencal Arnaut Danfel, passou a fazer a defesa de uma arte poética secreta, de contrabando, como forma de luta contra 0 nazismo.’ Um fortalecimento da ligagdo entre o politico 0 escrito é evidente na produgio de Aragon posterior a 1945. Mas a relagio do escritor eo politico torna- va-se pouco a pouco contraditéria. Prova disso sio os documentos revelados pelos arquivos do escritor so- viético Constantin Simonoy, que elucidaram certas posigdes de Aragon e Bisa em face do Pc: pressionados a se exprimir c abstrata francesas, mais precisa mente contra Picasso € Matisse, entio criticados pelo Pravda (), ambos recuse- ram-se peremptoriamente. E em 1955, com a morte de Stélin, a contradigao tornowse mais Sbvia: Aragon pu- bblicou na revista Lettres Frangaises o retrato do dirigen- mitra a pintura impressionista e a arte 7 “‘Reagon desenvolveu esta concepgao no ensaio “La Le- gon de Ribérac ou l'Europe Frangaise”, publicado pela revista Fontaine (Argel, 1941). Para maores pre- elsdes, ver o livro de Valére Stareselski, Aragon, la tat son délibéré (Paris: L'Harmattan, 1995). 18 ‘te soviético feito por Picasso, como homenagem péstu- ma. ‘Mas aceleremos ainda o curso do tempo, a fim de ‘conhecermos tm pouco de um outro Aragon. O iiltimo Aragon, 0 que completa o circulo —e 0 ciclo — de toda uma vida, unindo uma ponta a outra, a maturidade e finalmente a velhice, & juventude, o realismo ao surrea- lismo, através de um impressionante trabalho tecido @ partir da rememorizacdo e da reflexio. Este jé se insinua ‘em 1956, com 0 volume de poemas Le Roman. inachevé, que ele mesmo qualificou como “a tinica autobiografia” que escreveu.” A partir dai, 0 posta e romancista passou a se distanciar paulatinamente da utopia stalinista. Em seu tiltimo romance, Théatre/Roman (1974), ele afirmava: “Minha vida é escrever. Nao parao teatro, isto é, um lugar que existia fora de mim. Mas sim para um teatro que é meu e esté em mim, Onde eu sou tudo, « autor, 0 ator, 0 paleo, onde no vendo nada a ninguém e sou meu pro: prio e tnico interlocutor. Seria necessério reler tudo (0 que escrevs) deste ponto de vista”.® Louis Aragon morreu num dia de outono de 1982. Grande parte de sua obra posterior ao periodo surrea. lista (com exeegio da produgo poétiea em geral e, sobretudo, a do periodo de Resisténcia) ¢ pouco conhe cida, mesmo na Frange, sem dtivida em raziio de um Preconceito que justifica a catalogagio de Aragon como I” Gitado por V. Staraselak, A autora cita também os ver 08 seguintes, que traduzo livremente e nos quais se vé tima referéncia explicita aos companheiros surreclistas da juventude: “Apesar de tudo 0 que velo nos sepa rar/O meus amigos de entio, vocés é que revejo/ E em tinha meméria témula/ Vooes guardam seus othos de outrora” (em Le Roman inachevé). 9 Citado por V. Staraslsk 19 ‘mero escritor oficial do Fc. O que é no minimo muito simplista, como de resto todas as catalogacdes. Anexas, ‘esta tradugao 0 leitor encontraré algumas sugestbes ibliogréficas sobre o autor do Camponés, bem como ‘uma lista de obras de Aragon, e mesmno uma indicacéo discogrética. Mas, por ora, voltemos ao tenipo em que era uma vez o surrealismo, para dizer algumas palavras, sobre O Camponés de Paris. O Camponés de Paris 0 Camponés de Paris, uma das realizagées mais origi- nais da prosa surrealista — ao lado de Nadja (1928), de Breton ede Les derniéres nuits de Paris (1928), deSoupault herdeiro desses textos que se inserem na tradicio do mito literéirio de Paris, segundo a qual a capital francesa 6 representada mais como uma personage extraordina- ria, dotada de corpo e alma, do que propriamente como um cenério. A génese deste mito remonta ao final do século xvilt, que produziu obras como Les nutts de Paris, de Restif de la Bretonne e Tableau de Paris, de Sébastien Mercier. O século xrx, por sua vez, sé fez enriquecer esta tradigo, sobretudo com Baudelaire, cuja obra se engen- drou a partir do profundo traumatismo sofrido pela cidade e seus habitantes com as transformagées urbants- ticas de embelezamento e saneamento impostas pelo bardo Haussmann, administrador da regidoparisiensede 1855 a 1870. Este, que se auto qualificava como “artista demolidor”, substituiu a fisionomia ainda medieval de Paris, repleta de ruelas sombrias e fétidas, pelo que ela é hoje, dotando-a de grandes eixos de ligagio (os boulevards) teste-oeste e norte-sul, No século xx, os surreelistas cultus- riam a grande cidade como espaco privilegiado para a experiéncia de um certo tipo de “iiuminacao” resultante da observagio de seus intimeros aspectos cambiantes, de 20 4 seu cariter efémero e mesmo da precariedade de todas as suas intimeras formas de vida. Afinal, Baudelaire jé constatara, antes deles, que a forma de uma cidade muda mais rapidamente que o cora¢do de um mortal, o que faz com que tudo se transmude incessantemente em amon- toados de ruinas, em alegorias.’° ‘Os quatro capitulos que compdem 9 Camponés de Paris foram reunidos em livro em 1926. Os capitulos “A Pascagem da Opera” e “O Sentimento da Natureza no Parque Buttes-Chaumont” jéchaviam sido publicados em fothetim pela Revue Buropéenne (em 1924 © 1925, respectivamente), dirigida entio por Philippe Sou- pault. A narrativa se estrutura em torno de dois movi- mentos. Do primeiro resultam o preficio e o tltimo capitulo, que abrem e fechem o texto com um mesmo tom manifestario muito ao gosto das vanguardas do infeio do século. Trate-se de um discurso propondo ‘uma pragmitica, uma ret6rica ou postica, que se carac- teriza por uma logica binéria, pots, ao irtroduzir novas e ideais proposi¢des, nege a validade dos procedimen- ‘tos anteriormente empregacios. Funciona assim como, uum embaixador das novas que pretende instaurar a partir da ruptura que anuncia (o que explica 8 razio pela qual as projetos e manifestos das vanguardas fre- qiientemente antecedem a propria obra). No caso do “Prefiicio” de Aragon, trata-se de denunciar as mazelas 10 Refiro‘me ao poema “Le Cygne”, de Baudelaire: “Le viewx Paris n'est plus (la forme d'une vitle / Change plus alte, hélas! que te coeur d'un mortel)”. E mais adiante o poema diz: “Paris change! mais rien dans ma melanco- lie / N'a bougé! palais new/s, échafaudages, blocs, / View: faubourgs, tout pour moi devient allégorie, / Et mes chars souvenirs sont plus lourds que des rocs” (Tableaux Parisiens, em Les Fleurs du Mal). 21 do “tolo racionalismo humano”, apontado como he- ranga nociva do cartesianismo que fundamenta hé sé- culos os esquemas légicos do pensemento ocidental, ‘contra a qual tanto se bateu 0 surrealismo, sobretudo nos anos vinte, Esta dentmcia se acompanha da inten- ‘eGo de preservar “o sentimento do maravilhoso cotidia- no", condic&o basica para a pragmética surrealista sob a 6tica de Aragon. O iiltimo capitulo, “O Sonho do Camponés", funciona como fecho de reforco neste sen- tido. Ble se inicia com um tom de ensaio filoséfico, que 0s poucos vai se diluindo até assumir completamente a forma do manifesto, com frases curtas disparadas & queimaroupa. O texto se fecha assim declarando a instauragio de ura tempo da vida poética, j6 que é para “a poesia que tende o homem”. © outro movimento da narrativa se tece a partir da deambulacio pela cidade, com os capitulos "A Passa- gem da Opera” e “O Sentimento da Natureza no Par que Buttes Chaumont”. Ambos 08 espacos, como vere- mos, sio uma reférencia a este periodo de decadéncia gue foi o final do Segundo Império, do qual o baréo Haussmann é a figura emblemética por exceléncia, Alguns de seus projets de desventramento de Paris néo foram realizados durante a sua gesto, como foi 0 caso mesmo da demoligio desta passagem parisiense, posta abaixo pelas picaretas da haussmanizaco em 1924, para que mais uma grande artéria, o boulevard Haussmann, pudesse ser aberta. Suas duas galerias (do Bardmetroe do Term6metro) haviam sido Inauguradas em 1821 e ganharam este nome poraue, tendo sido coneebidas como parte integrante da Academia Real de Misica, (nome provisério do teatro da Opera de Paris), serviem de passagem a atrizes e freqiientadores. Em 1878, prédio da Academia foi destrufdo por um incén- dio, 0 que motivo a construgdo do atual teatro da Opera projetado por Garnier e inaugurado em 1878. A 22 passagem sobreviveu ao fogo, mas seu intenso movi- mento comercial fol pouco a pouco diminuindo, até que o lugar se tornasse completamente decadente. Em 1880, o célebre anarquista Auguste Blanqui instalou ali a sede de seu jornal, pelo que se fez expulso, em raziio de todas as idas e vindas dos partidérios da revolucdo. Na década de 20, dadaistas e surrealistas fizeram tam- bém do bar Certa, situado no interior da passagem, a sede de suas turbulentas reunides. Som falar de todas as celebridades que freqiientavam 0 saléo do barbeiro GéisGaubert, responsével pelas cabeleiras de nada mais, nada menos que Balzac e Breton, entre outros. Aragon conheceu a passagem, portanto, no auge de sua decadéneia, quando ela jé era uma espécie de rina do que fora outrora, tendo se transformado assim num lugar insélito, num “‘santuério do culto do efémero”, numa “paisagem fantasmética dos prazeres e das pro fissGes malditas” tornados obsoletos com o avango ine- xordvel do tempo e as mudangas econdmicas e sociais que ele impde, € condenados a se eclipsarem para sempre, soterrados como novas Pompéies. Jé dissemos que este capitulo foi publicado em 1924, mesmo ano em que a passagem da Opera foi demolida. Ele 6, destarte, uma espécie de escrita-obituéria pela qual a morte da propria passagem entra em cena, legando-nos uma deseri¢ao testamentaria minuciosa do lugar, um inventério metédico das lojas, seus objetos, dos fatos que af se passavam e dos hébitos da estranba fauna humana que o animava ainda, em via de desaparicao. Paravisto, langa m&o da colagem, empregando abun- dantemente a reproducao de placas de comércio e ins- crigdes de todo tipo. Mas tal artificio nao visa a propi- ciar uma intromisséo do real na prosa; ao contrévio, Aragon serve-se dele como de um trampctim que passa levar & subversio do sentido ordinario de cenas e obje- tos aparentemente corriqueiros, a fim de Ihes atribuix 28 ‘uma fungio poética e, desta forma, desencadear o aces- so ao “maravilhoso cotidiano”. A colagem cria aqui uma espécie de fenda na leitura, eonduzindo a passa- gem que transportara o leitor do real ao onfrico, do banal ao magico, da reslidade A poesia. Como diz, 0 proprio narrador: da passagem da Opera a passagem da Opera onfrica, O titulo da narrativa cria uma ambi- guidade reveladora: 0 camponés de Paris no vé a cidade como 0 citadino ou o burgués — estes sim seus habitantes nativos — e por esta razio seu olhar é reve lador do insélito: ele entretém com o grande corpo urbano uma ligagio tio visceral quanto a do rastico camponés com a terra, mas este vineulo é acrescido de um estranhamento permanente, do qual dé conta a posigio entre 0s vocsbulos Camponés e Paris. A deambulagio solitéria pela passagem sucede- ré a expedicio a trés (Aragon, Breton e Marcel Noll) rumo ao parque Buttes-Chaumont, Quanto a este, monumental construgio com rochedos artificiais, situado ao leste da cidade, foi obra realizada por Haussmann em vida, que dotou assim a capital de um. de seus pulindes verdes (0 terreno, antigamente pt- trido, servia de depésito de 1ixo). Assim, 0 desloca- mento do narrador pela cidade também apresenta uma estrutura bindria que opde dois espacos diame- tralmente opostos: primeiramente, como vimos, @ pas- sagem da Opera, lugar fechado, quase poderfamos dizer subterréneo, que se localizava num bairro cen- tral da cidade; e depois o grande jardim, devassado, alto, de periferia, Este lugar aninha, segundo Aragon, “g inconsciente da cidade” ¢ assume na narrativa os ares de labirinto inicidtico dos surrealistas. A descrigao minuciosa de todos os aspectos geotopograficos do jardim, feita através de perfodos extremamente longos, chega a saturar a leitura. A intenciio ndo é nada ino- cente e, cxiando uma espécie de desnorteamento, 26 i vem reforcar a idéia do labirinto. Errar pelo jardim em plena noite funciona como técnica alucinégena, cujo objetivo 6 fazer aflorar o que ha de mais primi- tivo no homem; e percorrer esta topogratia eauivale a percorrer 03 caminhos sinuosos do inconsciente. Assim, a minicia deseritiva que pareceria num pri- meiro momento convidar o leitor a verificar a auten- ticidade da narrative, revelase mais uma vez como um trampolim do imaginario: a precisio excessiva de detalhe acaba por criar um efeito de contornos vagos. ‘Aragon limita a cidade a dois lugares: passagem ¢ Jardim, Mas cada um deles é um ponto de encontro de varios outros, de forma que o espago, n’ 0 Camponés de Paris, desdobra-se em intimeras dimensbes, como se pode ver pela quantidade de mfcrocosmos evocados ‘por Aragon através desses dois lugares eleitos e no- meados. Sua cidade 6, portanto, a projegio de um universo postico que se traduz pela mais intensa Ins- tabilidade. Podemos nos servir aqui das palavras de Marie Claire Bancquart, que observou que a Paris dos surrealistas 6 uma cidade ndo-sociol6gica, sem densi- dade humana, que se volta inteiramente para a busca de uma intersecedo entre o real e o imaginério, uma Paris que é transferéncia e projeciio.'’ Sem diivida esta dimensiio da narrativa de Aragon 6 irreiutavel. Se nos perguntarmos, porém, que charme irresistivel ema- nou destas paginas para Walter Benjamin — que en- controu nelas a inspiracdo para sua obra inacabada Paris, capital do século XIX"* (aliés, livro conhecido 11 Em Le Paris des surréalistes (Paris: Seghers, 1972). 12 Numa carta famosa a Adorno, Benjamin dizia: “No comego (do projeto da referida obra) hé Aragon, O Camponés de Paris, livro do qual eu nao podie ler mais do que duas ou trés paginas noite, na cama, 25 como “Trabalho das Passagens”) — poderemos com. preender que o interesse da Paris surrealista de Aragon. vai além da esfera da interseceiio entre real e imagina. rio, sem entretanto negé-la. Para Benjamin, as passagens parasienses, primeira realizagio da arguitetura em ferro que atingiu seu apo- geu durante o Segundo Império, eram um dos elementos que compunbam 0 “universo das fantasmagorias” dos século XIX, do quel ele esboca um denso quadro na obra que citamos. Quanto a Haussmann, seria “o campedo da fantasmagoria da prépria civilizacio”. Nao caberia no Ambito desta Apresentagéo uma discuss aprofundada sobre a nogio benjeminiana de “fantasmagoria”. Que o leitor nos perdioe, mas vamos reduzila a um de seus aspectos essenciais, que consiste neste caréter “

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