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do, uma pequena selecdo de passagens traduzidas das pré- prias anotacées de Saussure. Essas diltimas podem ajudar 1 o leitor a alcangar um sentido maior de sua forma de pen: sar e da maneira como esse Izgado escrito chegou até nés. As tltimas aulas de Saussure: uma intro- ducao a Linguistica geral Como um primeiro passo para compreender Saussure, va- ‘mos nos aproximar do homem e de suas ideias através de uma representacao criativa do tiltimo curso que ele ministrow na Universidade de Genebra durante o ano académico de 1910- 1911. Saussure tinha 53 anos. Doze alunos participaram do seu curso naguele ano. Um deles, Emile Constantin, fex ano: tagoes precisas de suas aulas em seus cadernos, Hé outros tes temunhos acerca da estrutura e dos contetidos desse curso e da ‘maneira como questées eram abordadas. Marguerite Burdet, por exemplo, publicou, alguns anos depois, suas vfvidas memo- as sobre esse curso. Outro documento confidvel é 0 relat6rio detalhado de uma entrevista de Saussure feito por um de seus alunos, Leopold Gautier, que aconteceu em maio de 1911. Sa- bemos também que Saussure estava lutando contra wma doenca progressiva que o forcaria a deixar a universidade no ano se- guinte, Ele nunca mais retornow e morreu no inverno de 1913. 16 Este capitulo se desenvolve na forma de wm didrio dramati- ado. Cada passagem é iniciada com a data da aula que nela é resumida. As aulas aconteciam duas vezes por semana, do fim de outubro ao comeco de julho, A fim de manter a concisio, apenas indicaremos brevemente o assunto de algumas aulas. A narrativa € apresentada do ponto de vista dos alunos, na esperanca de que essa abordagem fiecional possa recriar para os Leitores 0 momento da experiéncia de aprendisagem no contexto concreto do pequeno anfiteatro da Universidade de Genebra no inicio do século XX. O capitulo reflete com bastante aproximagdo a forma como Saussure, no final de sua carreina, apresentava suas principais ideias acerca da linguagem para seus alunos que, na grande maioria, no eram especialistas em linguistica. Essa forma de ‘faser uma introducdo a Saussure propiciard ao leitor a opor- tunidade de se aproximar da dimensiéo humana dos conteti- dos desafiadores desse processo de ensino. Hé duas vantagens em, primeiramente, ficar familiarizado com seu pensamento dessa forma: a abordagem pedagégica e o estilo oral tornam possével a Saussure expressar, em alguns momentos, sua pré- pria perplexidade diante das perspectivas assustadoras que ele propde, embora ele ndo pudesse esquecer que os alunos teriam que responder questoes na avaliagdo ao final do ano académico. Por essa razdo, conforme ele mesmo confessou a um de seus alunos, ele precisava ser mais preciso em suas aulas do que real nte era. Ele néo queria confundi-los com suas ditvidas referentes a pontos mais espé abor: lo que ensinava ¢ fornecia exemplos lexicais e gran ra dar suporte a suas afirmagoes. 18 Sempre que possivel, exemplos em inglés eram substituidos por exemplos em francés dados por ele. Os recursos utilizados como base para essa reconstrusao dos exemplos esto listados no final do lioro Os leitores que preferirem obter informacées de forma mais direta sobre as ideias tedricas de Saussure acerca da lingua, da linguistica e da semiologia podem pular este primeire capitulo biogréficoe ir para a secdo que comeca com o capitulo S em que encontrardo uma exposigao detalhada e abrangente das nocdes influentes e, as veses, espantosas que ele desenvolveu em suas caulas ¢ em seus escritos. 28 de outubro de 1910 O ano académico se inicia na Universidade de Gene- bra. Ja € outono na Suiga. Na medida em que cs alunos tomam seus lugares no pequeno anfiteatro esperam 0 professor entrar, eles podem ver pelas duas grandes ja- nelas de vidro as folhas amareladas sendo levadas pelo vento, Eles sentem uma mistura de ansiedade e excitacio. © Professor Saussure € muito considerado no campus. Ele tem a reputacao de ser exigente, porém acessivel. E respeitado, mas ndo ¢ intimidador. Alguns dos alunos jé participaram de outros cursos de Linguistica Comparada que ele ministrava regularmente. Esses jé esto acostuma- dos com seu modo preciso de conduzir seus alunos atra- vés das complexidades das Iinguas antigas. Alguas outros alunos apenas ouviram falar dele. © Curso de Linguisti- ca Geral € oferecido por Saussure de dois em dois anos. Os dois cursos anteriores, ministrados por ele em 1906 € 1908, haviam impressionado aqueles que deles participa- 19 ram, Havia sido uma experiéncia excitamte e desafiadora. Os alunos deste ano também ouviram dizer que os dois cursos anteriores foram diferentes um do outro, O Profes- io repetia as mesmas coisas ano apés ano ‘em seus cursos Eles nao tinham certeza do que esperar, incluindo um dos alunos que id havia feito parte da turma do curso dado em 1908, mas que decidiu assistir nova- mente as aulas deste ano. Fi era um costume nas universidades europei po. El 1 de pé quando o professor entrava na sala de aula is daquele tem. les eram apenas doze naquele ano, espalhados pelas carteiras. Ele os cumprimentou ¢ eles se si cadernos abertos ¢ a caneta nas maos enquanto 0 Senhor Saussure espalhava algumas folhas de papel sobre a mesa. primeiro item da aula seria uma reviséo, ponto por ponto, da histéria da linguistica. Porém, ele rapidamen- te passou para 0 que seria o foco principal do curso. Iria trabalhar com a linguistica no sentido préprio da palavra, nao com o estudo das linguas em particular ou discutindo a linguagem em geral como os filésofos costumam fazer Poucos minutos depois, ap6s ter apresentado superficial- mente suas visdes acerca da histéria do estudo da lingua- gem desde os fil6sofos gregos, ele comecou a especificar © que entende por “lingui ica”: “o estudo cientifico das linguas”, uma definigo que ele tomou emprestado do dicionario mais respeitado da época. Ele imediatamente enfatiza que a palavra crucial nessa definigao é a palavra “cientifico”. Ele, entao, elabora que tipo de fatos — que hoje chamariamos de dados - essa ciéncia considerard e que tipo de objetivos buscaré alcancar. 20 A estratégia de Saussure consiste em caracterizar ten tativas passadas de explicar a lingua como interessantes, porém irrelevantes para uma investigagio verdadeira- mente cientifica. Isso implica que essas abordagens equi: vocadas incluem os varios esforgos feitos até mesmo por seus contemporaneos. Eram riscos realmente grandes. Essas observagoes introdutérias significavam a promessa de um tipo de graal intelectual: a verdade sobre a lingua que s6 um método cientifico pode oferecer. E isso era 0 que estava acontecendo naquele momento, ou seja, duran- te os préximos oito meses A voz é entusiasmada ¢ autoconfiante, mas, de certa forma, abafada. Os alunos esto tomando notas. Em um primeiro momento, € relativamente facil porque parece que Saussure organiza sua aula em segdes ordenadas. Ha trés estégios na histéria dos estudos da lingua a serem considerados. Agora ha duas partes distintas na estratégia que ele esté introduzin- desta nova ciéncia da linguistics do, “Primeiro, temos que determinar o problema, 0s fatos que serao 0 objeto da investigagdo. Segundo, precisamos ter uma visao lticida do que queremos alcancar através do exame metodolégico dos fatos.” O professor ja nao 1é o texto formalmente escrito que le seguia no comeco da aula. Ele agora fala com os alu- nos, direcionando-se a cada um deles como em uma inte- ragio face a face. S mas nao encoraja familiaridade. Ele nao os subestima. a figura amigavel € tranquilizadora, De vez em quando ele dé uma olhada em suas anotacoes, espalha algumas folhas e pequenos pedacos de papel em que, obviamente, rabiscou ideias conforme elas surgiam, 24 talvez a caminho da universidade quando Ihe vinham outros pensamentos sobre o que ele falaria naquele dia. Algumas boas imagens podem ter surgido em sua men- te durante o café da manha. Essas anotagdes eram, algu- mas vezes, dificeis de decifrar porque algumas palavras haviam sido riscadas ou algumas expresses haviam sido reescritas. Outras vezes, suas anotagdes estavam obvia- mente cuidadosamente escritas, mas ele nao as lia. Seus argumentos séo faiceis de acompanhar. Para esclarecer seu ponto de vista, ele agora explica que ha uma diferen- ga entre varias espécies de plantas, sua anatomia particu: lar, reprodugio, ecologia etc. e abordar a questao do que uma planta, ou seja, 0 que € que todas as plantas tem em comum, independentememte de sua fantastica diver- sidade; qual a verdadeira natureza da “planta”. Se sou- bermos isso, entao, facilmente compreenderemos todas as intimeras formas em que podemos observar as plantas na natureza. O mesmo acontece com as linguas. O desafio € descobrir qual a natureza essencial da lingua. Esse 0 objetivo irrevogavel da linguistica enquanto ciéncia. E esse é 0 caminho através do qual Saussure pretende levar seus alunos. “Observe”, ele insiste, “que nessa investi- gagio nao faz diferenca se as linguas que examinaremos possuem prestigio literdrio ou séo obscuras, arcaicas, ou mesmo comuns, populares. A linguistica esta preocupada com as linguas de todos os perfodos e em todos os as- pectos nos quais possam ser observadas. Por necessidade, algumas linguas mortas podem ser estudadas somente em sua forma escrita, mas nio podemos perder de vista que 6 fendémeno que conta para nés so as linguas em suas manifestagdes orais, ¢ textos so relevantes somente na medida em que eles sao testemunho das articulagées ver- bais que eles representam”. 4 de novembro de 1910 Agora os alunos se sentem mais confortiveis. Eles j4 tém uma nogao de qual é 0 objetivo do curso. A preocupa: do deles, contudo, é que, apesar de algum conhecimento de latim e grego, e também de algumas poucas linguas modernas, eles nao sio familiarizados com o sénscrito € com outros idiomas indo-europeus. Seré que Saussure utilizaré muitos exemplos nesse dominio que € a sua es- pecialidade? Mais uma vez, a aula comeca com um roteiro traquilizador do que aconteceré nos meses seguintes. Ou- amos as palavras francesas que o professor usa. As prin- cipais segdes do curso serdo: (1) les langues, (2) la langue, (3) la faculté et Vexercice du langage chez les individus [(1) as linguas, (2) a lingua, (3) a capacidade e 0 uso da lingua- gem nos/pelos individuos). Diante do contetido das aulas da titima semana, os alunos podem supor 0 que Saussure quer dizer. A maioria das palavras é muito clara. Contu- do, considerando que lingua € linguagem so praticamente sinénimos em francés, a distingao entre os itens (1) e (2) into. Essas duas segdes se referem requer um esclarecim 20 que o professor distinguiu em sua primeira aula: de um lado, as muitas Iinguas que devem ser examinadas e, de outro, 0 que todas essas linguas tém em comum, al- zuma coisa que agora ele chama de la langue. Mas ele in- troduz uma terceira parte, o estudo das formas como os individuos usam as linguas para falar e se comunicar. Ele 28 enfatiza a importancia de considerar, separadamente, a capacidade geral que possibilita os seres humanos a falar as linguas especificas que eles adquiriram do ambiente social no qual nasceram, Essa abordagem delineia trés di- ferentes areas para o estudo cientifico da lingua. Saussure explica que o curso primeiro se dedicard a0 tigacio: linguas reais. Em segui- da, prosseguira para o estgio de abstragio que se dedica- objeto concreto da inves ri As generalizagoes. Porém, cle enfatiza que isso é mais fiicil de dizer do que fazer. O objeto principal é extrema- mente complexo. Ele lista varias opgdes: “Iremos estudar as linguas do ponto de vista das articulagdes por meio dos 6rgiios da fala ou como fenémeno actistico? Mas, uma vez que esses aspectos materiais jf tenham sido descritos em todas as suas particularidades, podemos iniciar as gene- ralizacdes? Obviamente que ni o, pois ainda teremos que determinar 0 que € uma palavra, ou seja, a unio de uma produ ‘mos estudar as linguas nos individuos ou nas sociedades? jo aciistica com uma ideia. Mas ainda ha mais: ire- Podemos ver que, seja qual for 0 aspecto desse complexo fenémeno que selecionemos, ele nao nos fornece a chave para um conhecimento cientifico abrangente da lingua/ linguagem. Parece que jamais seremos capazes de esta- belecer diante de nés um objeto homogéneo sobre o qual possamos conduzir uma investigagio verdadeiramente cien- tifica. Parece que estamos condenados a estudar a lingua/ linguagem como um conjunto de fragmentos e pedacos sem jamais sermos capazes de apreender esse objeto em sua integridade. Mas nao devemos nos desesperar. Deixe- ‘me propor uma tentativa de solucio”. Agora o Professor Saussure dé uma pausa. Alguns alu- nos viram a pagina de seus cadernos a fim de que possam anotar toda a solugio sem interrupgio. O professor tosse, limpa a garganta, posiciona-se ¢ inicia sua fala: “A capaci dade de falar, a faculdade da linguagem, esti a disposi¢ao de todos nés quando nascemos em forma de érgios e do que podemos fazer com esses 6rgaos. Porém, isso € ap nas uma possibilidade e no poderiamos fazer nada com isso se nao tivéssemos a lingua que nos é dada pelo mu: do exterior. Ela vem daqueles que falam ao nosso redor & cessa- medida que crescemos. Nesse sentido, a lingua én riamente social. Mas, ao contrério, a capacidade de falar 6 individual, na medida em que cada individuo possui os 6rgios apropriados”. (Os alunos compreendem que nao € suficiente que uma crianga nasca com o perfeito funcionamento dos érgios vocais. Se essa crianca no for exposta e nao interagir com pessoas falantes, ela nunca falar, ou seja, nunca terd uma lingua real, seja 1é 0 que isso for. Agora, Saussure explica que ele chamara de langue o sistema que torna possivel todas as linguas, ou seja, é 0 que todas as linguas par- ticulares possuem em comum no mais abstrato nivel de andlise. Assim, distinguir a langue [sistema da lingua] da faculdade da linguagem implica separar respectivamen- te o que € social do que é individual, e o que € essencial do que é acidental. “Acidental” deve ser aqui entendido no sentido de que, mesmo que um individuo seja priva- do por natureza ou por circunstincia da habilidade de se comunicar verbalmente, ele ainda poderd se comunicar linguisticamente através da lingua de sinais ou através de outro sistema como o Cédigo Morse. “Acidental” € um te mo filos6fico que € 0 oposto de “essencial”. O sistema da langue € 0 que € essencial. Os meios pelos quais esse sistema implementado dependem dos recursos expressi- vos disponiveis para 0 individuo. Por exemplo, uma pes- soa que nao é capaz de articular sons vocais, mas possui a capacidade de fazer gestos, pode se comunicar linguisti- camente na medida em que ela tiver assimilado o sistema de uma lingua, ou seja, a langue, Os alunos se concentram. O significado que Saussu- re atribui a estas palavras comuns langue e language sio, de alguma forma, diferente de como eles as usam no seu modo cotidiano de fal ; no qual nao fazem tal distingdo. professor percebe tal fato, Ele fornece uma imagem a fim de esclarecer s u pensamento: “Isso é compardvel a tocar um trecho de uma mtisica clissica no piano, Muitas pessoas adquiriram a capacidade de tocar uma partitura musical. Mas o trecho musical em si é totalmente inde- pendente da performance de individuos. Nossos ér- aiios vocais so como um instrumento que somos capazes de tocar, mas precisamos de uma partitura (uma lingua) para que possamos tocar alguma coisa. Entdo, a préxima pergunta que surge é€ Qual a natureza da partitura no caso da lingufstica? Em outras palavras, 0 que é uma lan- ‘gue, ou seja, que tipo de sistema pode tornar uma partitu- ra linguistica possivel?” Uma nova onda de atengdo ocorre entre os alunos. O le percebe que al- guns tentam anotar tudo o que ele diz. Ele diminui um professor dé uma pausa novamente. pouco o ritmo neste momento, pois apresentard algo que considera importante: “a conexdo entre a imagem actis- tica, ou seja, a palavra falada, e as ideias é o que essen- cialmente constitui a langue. Uma ‘imagem actistica’ é qualquer som de vibragao vocal que corresponda a uma ideia, um conceito, em uma lingua especifica. Tomemos 0 conceito de uma agao como ‘pular’, um objeto como uma ‘xicara’, uma emogao como ‘felicidade’, uma marca de fu turo como ‘ra’ em, por exemplo, ‘chegard’, ou uma relagio como ‘de’ ou ‘porque’. Ora, mas o que as pessoas realmen. te pronunciam quando usam palavras para se co- ae: municarem umas com as outras nunca é absolutamente idéntico. A articulagdo de sons distintos varia através do tempo e do espaco. As repetigdes imprecisas que ocorrem quando se domina uma lingua sao variagdes fonéticas que permanecem transformando o quadro de geragdo em ge. ragio e através de diferentes éreas geogréficas. Porém, as relagdes se mantém consistentes no interior da langue (0 sistema da lingua especifica que falamos) e, a qualquer momento, a ‘partitura’ pode ser usada para comunicar eficientemente. Nesse sentido, a langue € um ‘produto so- cial’ porque suas formas reais dependem de uma multi- plicidade de acidentes que ocorrem quando as pessoas se comunicam, Esse ‘produto’ se encontra virtualmente em cada cérebro individual de uma comunidade linguistica em particular. O objeto que deve ser cientificamente estu- dado pela linguistica é esse ‘tesouro’ que esta depositado no cérebro de cada um de nés. Evidentemente, essa iangue virtual nao esta completa em cada um de nés. H4, sim: plesmente, uma justaposiggo em uma comunidade que fala uma determinada lingua. Porém, é importante per- ceber que essa langue nao esta sob 0 nosso controle. Ela escapa da criacdo individual. E um fenémeno social, impensdvel independentemente de um processo coletivo. nto, o Professor Saussure contempla o efei- Neste mom nciamentos em seus alunos. E, de fato, to de seus pron contraintuitivo afirmar que os seres humanos tém pouco controle, sendo n hum, sobre sua lingua. Tendemos a nos identificar tanto com o que dizemos ¢ com a forma como dizemos. Temos a impressio de que nossa lingua € uma superficie estavel para a nossa existéncia. Nao pode- ‘mos imaginar 0 mundo sem ela. A ideia de que os cére- bros humanos sio habitados por linguas fantasmagéricas que Ihes foram impostas ¢ que se transformam perma- nentemente sem que isso seja notado € ainda mais cho- cante na medida em que tudo isso resulta de ‘acidentes’ fonéticos des coordenados que ocorrem continuamente na ‘massa composta pelos seus falantes. Essa perspectiva esta totalmente em desacordo com a explicacgao biblica que os alunos conheceram em seus anos iniciais, ou seja, que a capacidade da linguagem nos foi dada por Deus ¢ que a diversidade das linguas foi uma consequéncia de uma pu- nico divina de acordo com a histéria de Babel. Mudar tio drasticamente essa perspectiva réquer um enorme es forco mental. professor quer asseguré-los de que ele nao € 0 tinico a defender essa visio. Ele cita o trabalho de um influen- te linguista americano, Dwight Whitney, que, hé mais ou menos trinta anos, defendeu convincentemente que a lingua € uma instituigo social, e nfo um fenémeno na- tural. Whitney mostrou que o uso dos sons da laringe € puramente incidental, ou acidental, pois a lingua pode ser implementada por qualquer meio que possa manipular formas distintas como os sinais visuais ou sons nao vo- cais. Contudo, Saussure explica que discorda um pouco da teoria de Whitney. “A lingua nio € uma instituicio absolutamente idéntica as outras instituicdes sociais que conhecemos. Nenhuma outra instituigdo é, na mesma medida que é a lingua, 0 resultado de acdes continuas rea- lizadas negligentemente por uma multiplicidade de agen- cs. Mais que isso, as instituicdes geralmente podem ser ntencionalmente modificadas, corrigidas por decisoes organizacionais ou acordos coletivos. Mas esse nao é 0 aso das Iinguas. Mesmo as academias e as regras que ela as vezes edita so impotentes no que diz respeito a impe- dir ou modificar o curso de uma evolugao linguistica. No maximo, podem descrever as mudangas que ocorrem.” Alguns alunos pensam no fracasso que foram as tentati- as de criar novas linguas universais como o volapiik que © professor mencionou em outras ocasides Saussure respira, consulta suas anotagdes e olha seu relogio. $6 ha mais alguns minutos antes que termine a aula, Os alunos mudam de posicao. Essas duas horas de aula testaram a capacidade de atencao deles. Esté nublado © escuro do lado de fora. © professor retoma a aula com a energia recuperada. Antes de seguir adiante, ele quer fazer uma observacao importante que os alunos deverio man ter em mente durante o decorrer do curso nos préximos meses. “Praticamente todas as instituigdes so baseadas em signos. Mas esses signos nao se referem diretamente is coisas. Varios sistemas de signo evocam diretamente a ideia que se quer apontar. Essa é uma verdade proeminen- te das linguas. Porém, ha muitos outros sistemas que ndo envolvem linguagem articulada. Pensem, por exemplo, no cédigo internacional de sinais da marinha ou os toques de corneta do exército e, naturalmente, a forma como os surdos se comunicam por meio da lingua de sinais. Esses sistemas nao so naturais. Eles sao essencialmente sociais € tendem a seguir os mesmos padroes de mudanga que as linguas seguem. O caso mais dbvio € o da escrita. Todos esses sistemas de sinais visuais esto sujeitos a alteragdes comparaveis com as mudancas fonéticas.” professor fala agora em ritmo mais rapido. Ele quer anunciar o t6pico da préxima aula que seré dedicado a in- finita diversidade de linguas. Por que esses produtos so- ciais apresentam tantas diferengas no tempo € no espaco? Entio, ele Ihes faz lembrar que a segunda parte do curso, mais para o fim do ano, abordara a questéo da natureza da langue, 0 tipo de sistema abstrato que subtende toda essa diversidade. Por fim, jé no final do curso, ele focard em como os individuos realmente falam para se expres- sarem € se comuni farem uns com os outros, pois, afinal de contas, € a soma total das ages individuais que cria os fendmenos gerais. 15 de novembro de 1910 Hoje, 0 t6pico € a diversidade geogréfica da lingua 4 questéo é quais podem ser as causas de tal fragm enta- cao cadtica. Nas duas aulas anteriores, nos dias 8 € 11 de novembro, foi apresentada aos alunos a estrutura concei- tual com base na qual algumas das préximas aulas serdo organizadas. Apds essas informacoes gerais, o professor, entio, segue os itens listados em suas anotagies. Esses htens sao alguns estudos de caso que ele gostaria de discu- tir com os alunos, mas, 4 medida que fala, outros exem- plos Ihe vém & mente, ¢ eles sdo interessantes demais para serem ignorados. “Tomemos o w do inglés como exem- plo. A forma como ele é pronunciado na palavra wind 6 a mesma como era pronunciada ha séculos atrés quando os anglos € os saxdes desembarcaram na ilha e a coloniza- ram, Porém, os que ficaram no continente ~ a Alemanha tual ~ hoje a pronunciam como v. © que provocou essa diferenga que faz, entre tantas outras coisas de natureza similar, com que o inglés ¢ o alemio se tornassem duas linguas diferentes? Evidentemente, temos que ignorar a ortografia, que é a mesma. Os sistemas ortogrificos sio muito conservadores e a ortografia do alemao preservou 0 antigo w. O objeto da ciéncia da lingua nao é a sua forma escrita, mas sua existéncia e evolugao oral.” Saussure se levanta e escreve no quadro: wife e weib. Na medida em que tomam notas, alguns alunos que sao familiarizados com o inglés e com o aleméo pensam em outras palavras como White e Weiss e adicionam seus préprios exemplos is suas anotagoes. Saussure, entéo, passa a dar mais exemplos para de- monstrar como as linguas esto sujeitas as mudangas cons- antes provocadas por uma multiplicidade de fatores di versos. Os alunos fazem o possivel para anotar todas as palavras que sio dificeis de serem reconhecidas depois de muitas centenas de anos de hist6ria tumultuada e cons- tantes mudangas fonéticas. Mas alguns alunos se perdem quando ¢ pedido que percebam diferengas entre linguas desconhecidas por eles como 0 antigo eslavonico, oe: lavo, 0 iraniano arcaico ¢ 9 sanscrito, mesmo quando as, palavras eram cuidadosamente escritas pelo professor no quadro, usando 0 alfabeto fonético. Apesar disso, os pa- drs s emergiam para eles por meio da exposicao detalha- da dos t6picos que eram a especialidade de seu reconhe- ido professor. Semana apés semana, o semestre de inverno progre- dia em direcdo a sua conclusdo. A maior parte dele foi dedicada as linguas indo-europeias e a como os diversos ramos dessa familia linguistica se relacionam uns com os outros. Nao é um curso fécil. Ha muitos detalhes técnicos erem memorizados a respeito das mudangas linguis- ticas em numerosas linguas que se mantém envolvidas em paralelos e que, eventualmente, divergem. E preciso acompanhar a forma como o som é considerado de acordo com 0s varios alfabetos ou convengdes fonéticas. Os alu- nos nao tém diivida de que algumas questées que terao que responder em seus exames dizem respeito aos contetidos dessas aulas, 25 de abril de 1911 O semestre de verdo jé hevia comecado desde 8 de abril €0 Professor Saussure ainda tinha que concluir uma série de aulas sobre as familias lingufsticas que tinham sido contetido do curso durante o inverno. Foram quase duas semanas inteiras. Ao concluir esse ciclo, ele lamentou nao ter tempo suficiente para expandir completamente sua pesquisa sobre as linguas indo-europeias. Ele abordou 32 apenas superficialmente o caso da familia uralo-altaica como o turco, o finlandés, o htingaro e mencionow as lin. fpuas semiticas, dando algumas informagdes sobre seus istemas de escrita, Ele teve que pular todas as aulas 4 situagdo Linguistica atual na Europa. sobre Hoje, finalmente, comecaré a segunda parte do curso de acordo com o programa que ele apresentou no outono. La langue sera o foco da primeira aula deste novo ciclo. E isso 0 que os alunos mais queriam ouvir quando se ma- tricularam no curso. As duas primeiras aulas do ano aca- démico, em outubro tiltimo, despertaram-lhes o apetite intelectual, Eles ouviram que, em conversa com Albert Riedlinger que participou do seu Curso de Linguistica Geral em 1909, 0 professor havia expressado sua intencdo de se dedi ar amplamente a sua “filosofia da linguagem”, a0 que ele acredita ser a verdadeira natureza da linguagem, durante 0 curso que ele estava planejando para oferecer dois anos depois. Mas os alunos tiveram que passar pela longa etapa dedicada a linguistica historica que era, afinal de contas, um componente do Curso de Linguistica Geral, assunto sobre o qual seus conhecimen- tos seriam testados em seus exames finais, E um lindo dia de primavera, ensolarado e com brisa suave. As janelas estio completamente abertas. Senhor Saussure esta alguns minutos atrasado. Ele prefere que as janelas fiquem fechadas. Parece cansado, um pouco sem flego. Ele tosse. Parece estar resfriado. Ele deve ter ema- grecido alguns quilos nos iltimos meses. Faz-se um breve siléncio. O professor retoma sua postu- ra. Ble olha suas anotagdes demoradamente, fica carrancu- 33 do como se estivesse tentando decifrar alguma coisa. Mas rapidamente ele relaxa e fecha seu caderno de anotacées, Hoje ele nao vai s -guir um planejamento preconcebido. Ficard logo claro que seu objetivo é, primeiro, focar no que ele chama de langue, e, entdo, falar da nogio de signo. Ele nao pre mesmo de uma lista enumerada de itens. Esses so t6pi- cos que ele € capaz de discutir de improviso. Os alunos aproveitam esses momentos em que seu professor se abre, ‘a de um texto escrito para guid-lo e nem fala o que pensa com paixio, nao Ihes ensina as sutilezas do mistério da fonética hist6rica. Porém, nessas ocasides, d preocupado com o fato de que seus alunos estéo anotando tende a falar mais répido, como se nao estivesse tao exatamente o que ele diz. Ele sé quer que eles captem a esséncia do que diz. Ele vai seguindo em frente através de uma série de afirmagoes que apenas esbogam uma abor- dagem geral, ao inv técnica bem argumentada. Acredita que suas intuigdes de desenvolver uma demonstragao sero compreendidas por seus alunos, uma vez que ele abriu suas mentes para algumas das principais verdades que, para eles, parecem absolutamente claras, embora um pouco evasivas. ‘A aula comeca como um eco da introdugao do curso que o professor apresentou no comego do outono, quando ele esbogou a nocao de langue. Ele agora falara mais de- talhadamente sobre esse importante principio: “langue € ‘um objeto de investigagdo que nao inclui todos os aspec- tos da linguagem, mas é uma parte essencial, pois todos ‘08 outros aspectos dependem dela. Sem a langue, que € luos nfo seriam capazes de dada pela sociedade, os indivi 34 filar, apesar de terem sido dotados pela natureza de to- los os drgios necessirios que sio a base da faculdade da Jinguagem. A linguagem como um todo nao pode ser 0 objeto de uma investigagio cientifica. Ela € muito diver- sa, muito heterogénea. Ela nao pode ser classificada sem equivocos. Mas a langue pode ser considerada separada- mente desse todo complexo. Ela é como um organismo em si mesma, Forma uma unidade com a qual a mente pode lidar. Na verdade, ela pode até mesmo ser coniemplada independentemente dos outros aspectos como a articula- glo dos sons, 0 sistema auditivo que nos permite ouvir © compreender 0 que esta sendo dito. Dwight Whitney, que foi mencionado anteriormente no curso, até mesmo Afirmou que a razao pela qual usamos 0 meio vocal para nos comunicar € puramente uma questio de convenién- cia, ndo de necessidade. Sistemas visuais podem ser to cficazes quanto a lingua falada. A langue é uma capacida de mais geral. Isso é reforgado pela descoberta do médi co Paul Broca que demonstrou que traumas que afetam a lerceira circunvolugio frontal do hemisfério esquerdo do cérebro humano prejudicam tanto a fala quanto a escrita Isso confirma que a Jangue esté relacionada com uma facul- dade mental mais ampla, cuja funcao é lidar com sinais, independente de serem vocais ou de outra natureza”. professor se levanta e desenha um esquema no qua- dro: dois rostos de perfil voltados um para 0 outro com duas linhas indo de suas bocas para os seus ouvidos. Essa € a trajet6ria externa da fala, porém isso nao é o mais im- portante. Ele traca outro diagrama: dois pequenos circu- los sdo posicionados em oposi¢o um ao outro em uma grande circunferéncia. Ele nomeia esses pequenos circu- los de “centros associativos” e seus didmetros horizontais, separam 0 “conceito verbal” na parte superior e a “ima- gem verbal” na inferior. Eles representam duas mentes que se comunicam uma com a outra. Ele escreve em cada lado do grande circulo de ordem inversa: “fonacao” ¢ “au- dicao”, com setas indo de um circulo para 0 outro. Esse € o circuito da comunicacao. O que diz respeito & langue sao os centros assoc ticas so associadas aos conceitos mentais. Ele insiste que iativos nos quais as representacoes acts: as representacées aciisticas ado podem ser equiparadas com as qualidades fisicas dos sons reais. Elas so tio men. tais quanto os conceitos com os quais so associadas. Essa intima associacao forma um signo. No cérebro humano, a “esfera da linguagem” con:ém milhares de associagies como essas. Para que a repetida referéncia ao cérebro ¢ a descoberta de Broca nao levem a uma visio puramente fisiol6gica, 0 professor afirma que tudo isso diz respei- to A mente. “Tudo isso € totalmente psicolégico, mental.” Saussure se senta e dé uma olhada em suas anotagdes. Al- guns alunos se perguntam que tipo de distincdo cle faz entre cérebro e mente, Outros ndo compreendem como 0 que ele acabou de dizer pode ser coerente com seus pro- nunciamentos anteriores de que tudo € social na langue Agora, jd tendo focado a atengéo dos alunos nos cen- tros associativos do cérebro dos individuos que parece ser onde a langue reside, o professor percebe que ele precisa vendo & tona a natureza social da completar 0 quadro tr Jangue, um aspecto que ele enfatizou anteriormente. “A Jangue de uma populagio s6 pode estar localizada no cére- 36 @) anne (. ronasok x Be) >} Kausioto wh 4 “9 nto By ronardo / = Uma representagio do esquema que o aluno Emile Constan: tin desenthou em seu caderno que supostamente reproduz o que Saussure hogou no quadeo para ilustrar a observagio que ele estava fazendo em us aula de25 de abril de 1911. Ele apresenta duas pessoas se comunicen: lo verbalmente e pretende mostrar os virios aspectos da linguagem que Jodem ser estudados separadamente em tais atos individuais (par ssencial: os “centros associativos” memtais nos wuais “imagens verbais" e “conceitos verbais” sto associados no cérebro ura formar o sistema da lingua especifica que esses individuos falam ue) sem a qual a comunicagao verbal no poderia existir no mo mento em que ocorre (Arte de Enam Hugue). bro dos individuos que formam essa populacdo. A ordem «cial € 0 fato social nao podem ser encontrados fora dos Individuos, mas resulta da soma de todos os individuos que compéem uma sociedade. Se a langue € comparivel a lim tesouro que esté depositado em cada membro de uma determinada populagao, podemos supor que esse depdsito € mais ou menos idéntico em todos eles. Contudo, é im- ante considerar que nao é somente a parte fisica que é assim depositada. Se ouvimos alguém falando uma lingua que ndo conhecemos, percebemos os sons, mas nao esta- mos inseridos em sua esfera social. Por outro lado, nem {odas as partes mentais se tornam sociais. Como indivi- duos, mantemo-nos no controle de alguns aspectos par: 37 ticulares da langue. Mais que isso, s4o sempre individuos fata definiré 0 dominio da parole (fala, , a langue como ela é usada que falam, Es enunciados, discurso}, ou sei em uma comunicagio real Ao virarem a pgina de seus cadernos os alunos se sen- tem ali tes fundamentais. Essa aula foi um bom comeco, mas fo dito no inicio do curso. Eles perceberam que ele também iados, pois Saussure agora ira abordar essas ques- , em grande parte, uma reformulacao do que ele havia havia mencionado a tere ira parte do curso de acordo com 0 programa que ele havia apresentado em outubro passa- do. Mas algo os intrigou: durante a aula 0 professor ca- racterizou duas vezes a langue como um organismo. Eles consideraram como um modo de falar, uma imagem que sugeriu que a langue era, nessa perspectiva, uma entidade auténoma organizada. Talvez ele explique mais tarde o que quis dizer. Eles agora estavam esperando avidamente pela proxima aula. 28 de abril de 1911 Hoje o Senhor Saussure esta com pressa. Antes que es- fs. Ele mas deveria queca, ele quer corrigir algo que disse trés dias atr acha que falou do “instinto da linguagem’ ter colocado isso de forma diferente. Ele diz que deveria ter levantado a questo sobre a possibilidade de existén- em. Nao hé nada cia de uma funcao natural da lingua decisivo que indique se a langue € natural ou nao. Isso contribui para compreendermos que a langue é uma ferra- menta nec dria para operar a faculdade da linguagem. Sem ela 0s 6rgaos que nos permitem falar néo poderiam 38 ser usados para esse propésito. Outra evidéncia de que 4 langue nao pode ser absolutamente identificada com a fila advém do fato de que uma pessoa pode se comuni- car linguisticamente por outros meios como a escrita ou sinalizando, mesmo que essa pessoa seja desprovida da capacidade psicolégica de articular sons apropriados ou ‘tenha perdido. Por outro lado, a fala (que ele chama de parole) & 0 que manifesta a langue em uso. Contudo, esse € um processo aberto ¢ infinito que requer uma abor- dagem especifica. Ao contrério, a langue, como sistema de linguagem, é uma entidade homogénea que pode ser objeto de uma cigncia. Novamente ele insiste que a lin guagem como um todo nao é uma entidade homogénea por envolver muitos aspectos diversos que nio pertencem exclusivamente a ela. A langue € feita de signos cujas duas partes, a imagem actistica e 0 conceito a ela corresponden le, so igualmente mentais. Para ele, essas defini es nao sito simples questoes de diferencas entre as palavras, mas dizem respeito as diferengas que se encontram nos pré- le se pergunta, porém, se essas distincdes er expressas usando palavras de outras linguas prios objetos. poderiam que nao o francés, Saussure retorna, entdo, para o status social da langue cujos signos sio ratificados pela sociedade, mas ele obser- va que, evidentemente, a fala deve ser a origem da langue, jd que nés a aprendemos através do que ouvimos outras pessoas dizerem. O professor no parece seguir um planejamento rigo- roso na aula de hoje. © tom é apaixonado e comprome- tido, mas o discurso é, de alguma maneira, desconexo. 39 Nao ¢ facil fazer anotacées. Cada uma de suas afirmagoes parece despertar nele a possibilidade de um equivoco ou mesmo de objecdo que ele tenta corrigir ou responder in loco. Conforme um de seus alunos recordar no futuro, a impressao era de estarem sendo testemunhas da constru- ao de um pensamento, professor percebe que a sugestao de uma supremacia da parole entra em conflito com a supremacia da langue que ele defendeu por diversas vezes desde o inicio do curso, Ele nao quer levantar a questo da origem da ling agem. ‘Nao importa se os seres humanos comecaram produzindo sons ou, desde 0 comeco, associavam sons ¢ ideias. “O que conta é 0 que temos agora diante de nés. Esse é 0 objeto de nossa investigacio.” Apesar disso, ele experimentara ‘uma imagem para esclarecer a relacao problematica entre a langue ¢ a parole: a primeira é um tipo de “secrecao” da Gltima. Porém, essa sectegdo € perfeitamente distinta Entio, ele pergunta: “Nao é abusivo afirmar que a langue € a parte essencial, primordial, da linguagem?” Isso nao soa como uma pergunta re6rica. O professor obviamen: te expressa sua propria diivida. Porém, ele retorna para a metafora musical que Ihe parece absolutamente convin: cente: “ que € essencial é a partitura; ndo importa em que instrumento ela sera tocada, nem como ela é execu- tada. Da mesma forma, a transmissio de uma mensagem em Cédigo Morse pode ser feita através de diversos meios diferentes. Do mesmo modo, aquilo que € feito através da fala (parole) com o que € oferecido pela langue nao é essen cial, na medida em que pode ser feito por outros meios”. Ele, entio, reflete sobre tpicos de fonacao e fonética 40 Apés um momento de siléncio, o professor observa que % realmente ousado considerar a langue independente- mente de suas realizagdes fonéticas. Mas nao ha escolha. Vemos que separar as duas ¢ considerar a lingua, direta mente através do ponto de vista da langue, como um sis- tema abstrato.” Porém, mais uma vez, 0 professor recua: ‘essa afirmacao precisa ser qualificada porque, na medi- da em que levamos a sintaxe em consideracao, hé uma fronteira confusa entre os elementos social e individual. Associagées ¢ execucdes fixas esto, de alguma maneira, entremeadas. Isso acontece em todas as linguas”. Ao deixarem a sala de aula, os alunos se perguntam que tipo de forma poderia ter esta langue, que é diferente das muitas lin juas que existem e que jé existiram, mas,ao mes- mo tempo, é comum a todas el Tudo isso é muito mais intrigante do que parecia ser nos tiltimos comentirios do professor de que a distingao nao é realmente absoluta. 2.de maio de 1911 A aula de hoje comeca com uma observagao menos complicada. Saussure espalha algumas folhas de papel sobre 4 mesa. Ele dé inicio ao plano que elaborou para sua aula, Ele apresentaré os dois princfpios fundamentais acerca da natureza dos signos linguisticos. Porém, primeiro ele quer revisitar a nogdo de signo linguistico que mencionow no inicio do curso. “Vamos lembrar que tanto a imagem aciistica quanto 0 conceito sio associados no sujeito. Ambos so mentais. A imagem acdstica ndo é um som fisico, mas sim sua impressio psi- col6gi por assim dizer. Temos que nos afastar da visio ingénua de que objetos € nomes sio justapostos, em que os objetos se situam fora do sujeito e os nomes situados tanto fora do sujeito como sons fisicos, como no interior do su- jeito como fendmenos mentais. Por esse ponto de vista, a situago nao é clara, Se abordarmos o problema racional- mente, fica evidente que os dois termos, ou seja, a imagem aciistica € 0 conceito, estio localizados no sujeito. Isso fica claro quando pensamos em nossa fala interior quando 0 som das palavras se mantém em nossa cabeca.” O professor desenha uma elipse no quadro, a divide ho- rizontalmente em duas partes ¢ escreve “conceito érvore” em cima e “imagem aciistica arbor” embaixo. Nesse exem- plo, ele usa a palavra em latim para “érvore”. Esse é 0 todo que ele chama de signo, e faz um grande gesto circular em direcio ao quadro. Porém, imediatamente ele apresenta uma divida: “deveriamos, talvez, chamar de ‘signo’ so- ‘mente a imagem actistica, ou seja, a parte mais material Por outro lado, isso 86 poderia ser um signo na medida em que possuisse um conceito”. Ele ndo esté seguro. “Isso deve gerar uma séria confusio. De qualquer forma, essa é uma questio terminol6gica a ser resolvida mais tarde.” Professor Saussure volta para sua cadeira. Ao sentar- se, ele dé uma olhada em suas anotagies. Agora iré fa- lar sobre dois prinefpios fundamentais a respeito do sig- no linguistico. “Primeiro principio: o signo linguistico € arbitrério. Esse € 0 principio supremo. Muitas outras caracteristicas derivam desse fato. Tome como exemplo a palavra ‘irma’, Nao ha nada que impega que 0 concei- to correspondent seja relacionado a esse som. Isso fica ainda mais dbvio quando pensamos que outras linguas 42 @xpressam 0 mesmo conceito com sons completamente diferentes.” Ele dé outros exemplos. Porém, mais uma Ver, ele qualifica sua alirmacdo. “Arbitrério nao deve ser eompreendido como dependente da livre vontade do fi lunte, Essa arbitrariedade linguistica é herdada do passa- do.” Entao, ele pensa nos contraexemplos vindos da ono- matopeia ~ aquelas palavras que tendem a imitar os sons haturais produzidos pelos objetos que ele recusa tal objecdo. Tais palavras slo raras. Até mesmo Jas designam. Mas us interjeigdes nao sao as mesmas em todas as linguas. Ele alguns exemplos que Ihe vém & mente. Quando com dor, o francés diz Aie!, mas o inglés diz Ouch! “O segundo principio € que os signos linguisticos se manifestam em uma ‘nica dimensdo. Eles so lineares no sentido de que eles vém um apés 0 outro ao longo do eixo do tempo. E por isso que podemos cortar cada som na medida em que eles sao pronunciados em uma sequéncia, Muitas outras caracteristicas vao derivar desse aspecto determinante” O tempo esta se esgotando. A aula chegou ao fim. Mas, 4 medida que recolhe seus papéis, 0 professor se depara com uma anotagio que ele obviamente escreveu como um lembrete assim que encerrou a Gitima aula. E uma refl xio tardia: “os alunos devem adicionar as suas anotagdes da aula anterior sobre a nogio de langue que, apesar de que 0s tinicos fatos que podemos experimentar sejam lin- guas particulares, podemos abstrair as condicdes de suas possibilidades. Uma tiltima palavra: Como justificar 0 uso da langue -m uma forma singular? “A langue é uma generalizagio, 43 algo que é comprovadamente verdadeiro para todas as lin- guas.” Rapidamente, os alunos tomam nota dessa tltima observagao. 5 de maio de 1911 Ja € quase verdo. A caminho da aula os alunos conver- sam e imaginam qual seré o t6pico da aula de hoje. Desde que comecou a tratar da langue, o professor dividiu suas aulas em capitulos. Ele primeiro falou da langue de for- ma geral ¢ a segunda aul: ele intitulou de capitulo 2: “A Ele agora anuncia o titulo do capitulo 3 que é em forma de pergunta: “Quais sio as natureza do signo linguistico entidades concretas que compreendem a langue?” Isso é exatamente 0 que os alunos tém alguma dificuldade de entender desde que Ihes foi dito que o objeto da linguisti- a geral nao € o estudo de linguas particulares. Saussure primeiro quer esclarecer 0 que ele considera “entidade”. Isso € de que essencialmente consiste um ser. Essa é a definicdo que pode ser encontrada nos diciond- rios. Na maior parte dos dominios da ciéncia encontra- remos objetos de estudo concretos e organizados. Porém, para uma ciéncia como a linguistica, 0s “objetos” nao imediatamente observiveis. Eles nfo sio seres organizados ‘ou coisas materiais como os insetos para a entomologia ou as pedras para a geologia. Perceber as entidades reais da lingua exige esforgo porque a langue € interior e fundamen- talmente complexa. Exigira algum esforco e atencio extra para distinguir entidades na massa que constitui a langue, “Quando estamos lidando com a lingua, muitas sio as unidades constituintes possiveis que nos vém a mente 44 Podemos pensar nas silabas, por exemplo. Mas essas sio Unidades da fala, nao unidades da langue, exceto, eviden- lemente, no caso de palavras monossilabicas como ‘tu’ ou ‘yer’. Entidades linguisticas sdo exclusivamente aquelas que associam uma imagem actistica a um conceito. Ne- nhuma dessas duas partes pode ser tomada separadamen- le. Se fizermos isso teremos abstragdes, nao unidades linguisticas. Nas entidades da langue 0 conceito se torna lima qualidade da substancia actistica, assim como a so- noridade se torna uma qualidade da substancia concei- tual. De alguma forma, € como uma pessoa que é feita de corpo € alma, ou um composto quimico como a agua (H,O), que é composta de hidrogénio ¢ oxigénio. Uma vez que tenhamos compreendido o que é uma entidade lin- guistica, podemos, facilmente, identificar unidades, pois medi- a lingua é linear e é possivel separar unidades da em que elas vém uma apés a outra. Nao precisamos procurar padrdes em um espaco bidimensional. Podemos aplicar esse método analitico & fala (parole), mas somen- te se percebermos que o status da fala é meramente ser uma parte representativa que evidencia a langue. Temos que usar uma abordagem indireta, pois ndo temos acesso direto a0 modo como a langue & organizada dentro do cé. rebro. E através da comparagao das sequéncias da fala que podemos identificar as unidades da langue.” Os alunos pensam imediatamente em palavras € se questionam se nao seria mais fécil dizer que as palavras no dicionério sao as unidades da Kingua. Mas o professor antecipa essa interpretacio errénea do que ele acabou de dizer. “Temos que lembrar que nao estamos discutindo 45, a respeito da lingua escrita, que € uma invencao relati- vamente recente, pois temos que levar em consideracio apenas a lingua falada quando abordamos a questo da natureza da langue.” Ele escreve varias frases ¢ sentencas em simbolos fonéticos que possuem dois significados pos- siveis dependendo de como elas sio segmentadas quando so enunciadas. Nao é vidvel determinar seu significado real se as unidades linguisticas nao forem identificadas a partir da associagdo indissocidvel de uma imagem actisti- cae um conceito. Esta aula fez com que pessos & frente fossem dados. Os alunos so capazes de compreender alguns principios que parecem mais evidentes, embora 0 quadro como um todo jinda permanega vago e confuso. De certa forma, eles se sentem frustrados. Ja se passaram seis meses € o grande objetivo prometido quando 0 curso comecou em outubro parece cada vez mais distante, na medida em que o profes- sor ainda est tratando de vérias generalidades e técnicas historicas a respeito de linguas particulares. Restam ape- nas pouco mais de dois meses para a época dos exames. ‘A turma é pequena. Os alunos compartilham suas preo- cupacdes. Apés cada aula, os alunos esto acostumados a checar as dividas sobre o que anotaram em seus cadernos pedindo uns aos outros para ajudar a esclarecer alguns pontos obscuros. Eles nao sao igualmente familiarizados com as linguas antigas das quais o professor, algumas ve- zes, toma emprestado seus exemplos. O que ele rabisca no quadro nem sempre é perfeitamente decifrvel. Mas 0 Se soalmente seus alunos. Essa é parte de sua funcao ¢, além hhor Saussure est sempre disponivel para atender pes- 46 isso, ele gosta desses poucos alunos que esto obviamen- te compromissados com as questes que ele apresenta. Quando a aula termina, um deles, Leopold Gautier, mora-se um pouco mais, descendo lentamente os de- d graus do corredor do anfiteatro enquanto o professor junta suas anotagdes que esto espalhadas em sua mesa. Quando esti saindo do recinto, 0 aluno se aproxima dele com deferéncia € pergunta se poderiam marcar um en- contro para os préximos dias “Certamente, Senhor Gautier. Amanha a tarde ficaria bom para vocé? ~ Seria perfeito, senhor. - Bem, vejo voce amanha, entéo.” 6 de maio de 1911 E um dia ensolarado. As janelas estao completamen- te abertas ¢ uma brisa fresca vinda dos Alpes dispersa 0 cheiro de fumaga de charuto, livros velhos e papéis em desordem no escritério do Professor Saussure. ~ Por fi vor, sente-se, Senhor Gautier. Ficarei feliz em responder suas perguntas... se eu puder. Devo confessar que estou muito preocupado com o Curso de Linguistica Geral. - Obrigado, senhor. A razio da minha visita € o seguinte: meus colegas e eu estamos ansiosos para apreader mais sobre sua prépria teoria, pelo menos alguns elementos dela, Estamos preocupados, pois depois do recesso tere- mos pouco tempo antes dos exames. — Bem, nio tenho certe za se posso atender as suas expectativas. Tudo isso nio esta suficientemente elaborado em minha mente. E porque esses problemas so novos para vocé desde que ‘oc assumiu 0 curso depois da aposentadoria do Pro- 47 fessor Wertheimer? — Absolutamente, ao contrario. Nao tenho feito muito desde entéo. Aproximadamente desde 1900 que tenho refletido sobre essas questoes. Até agora tenho falado sobre varios problemas que sao exteriores & lingua. Comecei com esse tipo de assunto neste inverno. Mas agora percebo que isso ¢ insuficiente. Veja voce, estou me confrontando com um dilema: ou me dedico a abordar aque plica compartilhar com vocés todas as minhas diividas, ¢ io da lingua em toda a sua complexidade, o que im- isso néo € apropriado em um curso que exige um exame final, ou ministro um curso simplificado que estaré mais adaptado para estudantes que nao sao linguistas. Nos dois, casos, fico limitado pelos meus escripulos. Oferecer um curso melhor requer de minha parte meses de reflexio ara que eu possa focar exclusivamente nesses problemas. Por enquanto, eu considero a linguistica geral um sistema como a geometria. Nés temos teoremas que precisam demonstrados. Mas, a medida que prosseguimos, percebe- mos que 0 teorema niimero 12, por exemplo, é idéntico a0 23 sob uma outra forma. Hé, contudo, algumas verdades evidentes: a langue € diferente da parole, Mas essa é apenas uma questo de eliminar da lingua qualquer coisa que seja fisiol6gica. O que sobra é puramente psicolégico. Podemos chegar a essa conclusio por varios Angulos opostos. Profes ra para o diilogo. Ele soa sincero, porém perplexo. Leopold ‘or Saussure agora fala com emogao. Ele se prepa- Gautier nota como ele parece cansado e ansioso, apesar de cu comprometimento Sbvio com essa questo. Ele env Iheceu desde 0 comeco do ano académico, Hé um rumor na universidade de que talvez ele esteja seriamente doente. 48 professor continua: “Evidentemente, é também es fenicial a questo das unidades constitutivas. A langue Aecessariamente comparavel a uma linha cujos elementos podem ser separados em pedagos como uma fita [.] mas ‘erves elementos, quais sao eles?” A medida que 0 Professor Saussure expressa as difi- @uldades que encontra ao tentar enfrentar essas comple- Aas questées, 0 aluno, que pretende depois escrever cada tletalhe da conversa, sente-se incapaz de acompanhar e memorizar exatamente aquilo que ouve. “Desculpe-me, senhor. Posso perguntar-lhe se ja escre- veu tudo isso em algum lugar? — Sim, eu tenho muitas ano. ages. Mas elas esto perdidas em pilhas e pilhas de outros escritos e documentos. Eu nao tenho como recuperé-las fa- cilmente..” O gesto ea vor sinalizam um sentimento pro- fundo de frustracéo ¢ desencorajamento, Leopold Gautier fica comovido pelo desamparo confesso do professor. “Seria muito util se vocé pudesse escrever e publicar algo sobre esses problemas. ~ Seria um absurdo comecar uma nova pesquisa quando tenho aqui tantos trabalhos ainda nao publicados.” Saussure faz um movimento cir- cular com as maos ao redor de si em direcao as prateleiras e folhas de papel amarelados que representam todas as camadas de livros ¢ arquivos, pilhas de volumes, cadernos de sedimentos de sua vida como aquelas encontradas em mapas de geologia. 9 de maio de 1911 “A mesma palavra pode representar duas unidades lin- guisticas distintas. Vamos pensar em pound ou will em 19 inglés, por exemplo.” O Professor Saussure obviamente segue as anotagdes que preparou para a aula anterior. Ele retomou sua fala exatamente do ponto em que parou ha quatro dias. Contudo, ele nao parece bem. Seu resfriado prolongado nao parece ter terminado com os dias mais quentes. Ele agora reflete sobre a questo da identidade. “Duas imagens actisticas idénticas nao séo, necessaria- mente, entidades linguisticas idénticas. Um dado som pode ser associado com dois conceitos diferentes.” Varios exem- plos em francés séo discutidos. Apenas alguns alunos anotam esses exemplos, jé que eles so bastante dbvios. Ele rapidamente conclui que levantar a questéo de iden- tidades nao é diferente ée levantar questo de entidades. Jo, anuncia um novo capitulo. O capitulo O professor, ent sera pequeno, mas abordaré um problema que ele acha pessoalmente dificil de resolver: as entidades abstratas da langue. Sua observagio € que hé na langue tanto entidades concretas quanto abstratas. As primeiras so o que antes chamou de “signos”, que associa uma imagem actistica com um conceito. Elas séo mais ou menos equivalentes as palavras. As tiltimas sdo valores gramaticais que podem ser indicados por signos zero, pela ordem das palavras ou por desinéncias em caso de linguas que usam palavras fi- nais especificas para designar as relacdes entre elas. Ele expressa alguma divida sobre tal distinga0, mas, compa radas as palavras, esses instrumentos gramaticais, que so uma consequéncia da linearidade da lingua, nao podem ser considerados concretos, jé que algumas vezes é exata- mente a sua auséncia que transmite significados especifi- 50 WF Contudo, ele reafirma a preeminéncia das unidades Hoerets da langue que sio a base necesséria da ordem di plavras © das desinéncias. Porém, ele reconhece que # tio do termo “abstrato” permanece, de alguma manei- #4, problematico. E por isso que ele reformula seu pen: Menlo: “o termo ‘concreto’ € reservado para os casos em Wie ws ideias sao diretamente sustentadas pelas unidades the som. © termo ‘abstrato’ se aplica aos casos em que as Weias sio sustentadas indiretamente por uma operagio desempenhada pelos falantes”, professor enunciou esta Giltima distingao em um rit- ino mais lento. Os alunos a anotaram obviamente porque fesse € um dos momentos em que Saussure redefine as pa- Juvras comuns que ele usa a fim de expor sua teoria. Ele agora passa rapidamente para o capitulo 5, no qual, le revisitara o principio da arbitrariedade do signo lin- guistico. Ele quer qualificar o que disse algumas semanas tris. “Talvez ‘arbitrério’ nao seja a melhor palavra para o que quero dizer. No lugar dela, vamos usar ‘no motivado’. Mas essa caracteristica essencial do signo lingufstico nao absoluta. Essa mudanga terminol6gica deixa espaco para considerarmos varios niveis de motivagao. A maioria dos signos linguisticos sao definitivamente nao motivados, no sentido de que nao hd nenhuma razao Sbvia para chamar- mos algumas frutas de ‘peras’ e outras de ‘mags’. Contudo, ‘inte e trés’ € mais ‘motivado’ de que ‘dez’ e ‘dois’? 19 de maio de 1911 Durante as duas iltimas semanas, o professor apro- fundou as observagdes que fez anteriormente a respeito ot dos niveis de arbitrariedade nas palavras. Ele apresentou numerosos exemplos emprestados do latim, do grego, do francés, do alemao ¢ do inglés. Entéo, ele mostrou que, conforme as linguas evoluem, niveis relativos de motiva- do podem se perder. “Tomem como exemplo a palavra do latim para ‘amigo’, amicus. O conceito oposto foi feito com a adicéo do n- ou in- na frente: in-imicus. Era claro Para os romanos que, nesse processo, 0 a- de amicus era enfraquecido e se tornava um som mais curto, -e- (escrito i- quando ocorria entre duas consoantes). Essa transpa- réncia desapareceu no francés enemi [inimigo] que, assim, tornou-se nao motivado do ponto de vista dos falantes do francés moderno para os quais ami amigo] e ennemi [inimigo] soam tao arbitrérios quanto seus equivalentes em inglés, respectivamente, friend e enemy”. Essas obser- vages pretendiam concluir 0 t6pico sobre arbitrariedade motivacio. Hoje, Saussure anuncia uma nova tratégia, Ele iré reconsiderar cada um dos cinco capitulos que apresentou até agora e adicionaré outras reflexdes a cada um deles. Nao ha nada para ser adicionado ao primeiro capitulo no qual foi introduzida a distingao entre langue e parole, ex- ceto algumas observacdes que deveriam ser inseridas no final: “Primeiro, nao ha nada na langue (sistema da Iin- gua) que nao tenha sido introduzido pela parole (enuncia- io, fala, discurso), ou seja, através da soma total de todas as palavras que sio faladas e ouvidas. Reciprocamente, dos sao possiveis porque existe um sistema da lingua (langue) que capacita os falantes individuais a se comunicarem. Todo o processo é elaborado coletivamen- te na medida em que qualquer mudanga produzida por falantes individuais deve ser reproduzida pelos outros membros da comunidade linguistica para que se torne uma parte do sistema da lingua. Muitas mudangas tém vida curta porque nao sio integradas ao sistema pela co- munidade. Porém, a comunidade em si nao é a fonte das mudancas que s6 podem se originar nos individuos fa- antes. Portanto, langue e parole pressupdem uma a outra. Contudo, as duas sio to diferentes em suas naturezas que nao podem ser explicadas por uma mesma teoria. As duas juntas nao formam um objeto homogéneo. Elas devem ser estudadas separadamente, por abstraco”. Os alunos percebem com mais clareza por que Saussu- re focou exclusivamente na compreensio do aspecto sis témico da lingua durante os dois tiltimos meses e planeja discutir posteriormente o que ele chama de la parole, E quanto ao capitulo 2? Saussure propde dar a esse capitulo um novo titulo: “A Lingua como um sistema de signos”. “Seus dois pontos principais sao, primeiro, que © signo linguistico € arbitrério e, segundo, que o signo linguistico € linear: os sons e as palavras que eles formam, vém um apés 0 outro formando uma sequéncie linear. A fala se dé apenas em uma dimensao. A respeito dos dois lados do signo linguistico, a ‘imagem aciistica’ e o ‘con- ceito’, devemos chamé-los, respectivamente, de signifiant Significante) e signifié (significado). Isso seria um avan 60, pois essas designagdes evocariam maior proximidade entre 0s dois do que as primeiras designacdes. Porém, nem isso é totalmente satisfat6rio, pois ainda permanece certa confuséo quando usamos o termo ‘signo’ para fazer 33

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