You are on page 1of 31
Revista Critica de Cléncias Sociais n? 18 Fevereiro de 1984 CHRISTOPHER ROLLASON * BOB DYLAN: DO RADICALISMO A REACCAO (especificado no Apéndice) seré analisado ou, pelo menos, referido. Os albuns sero designados no texto pelas abrevia- turas especificadas no Apéndice. A anélise incidira especial mente em irés Albuns de especial relevancia ideologica: The Times They Are A-Changin’ (1963), John Wesley Harding (1988) e Slow Train Coming (1973). Robert Zimmerman nasceu em Duluth, Minnesota, em 1941, filho de uma familia da pequena burguesia, de ascen- déncia judaica, Em 1947, 0 pai mudou-se com a familia para Hibbing, outra cidade do mesmo Estado, onde abriu uma loja de electrodomésticos. O jovem Zimmerman frequentou a Uni- versidade de Minnesota durante um ano, antes de abandonar 9 estudos para se tornar mtisico popular. Foi para Nova York em 1961, passando a usar nessa altura 0 nome de Bob Dylan. No mesmo ano, assinou um contrato com a Columbia Records, langando o seu primeiro album em 1962. ‘A formacio musical de Dylan fol, desde o inicio, bastante complexa, reflectindo assim a diversidade da tradigao popular norte-americana. A sua obra como totalidade pode ser descrita como uma combinagao de folk, blues, country, rock e gospel, com alguns matizes ‘do pop comercial. O joven Dylan assimi- lou influéncias do rock & roll (sobretudo de Elvis Presley), mas também dos blues e do folk branco. Entre as figuras de maior e mais persistente influéneia na obra dylaniana, desta- cam-se, por um lado, Robert Johnson, compositor de blues dos (@_ Pelo termo (Scaduto: 117). Aqui, a Natureza é portadora de uma mensagem de paz, assim validando as aspiragdes humanas: «The answer is blowin’ in the wind». Estas cangées introduzem dois temas que haviam de permanecer constantes ao longo da obra dylaniana (até & conversao): 0 anti-racismo, e o por em questao da autoridade, que é ridicularizada. (®) Para uma anilise da obra de Johnson, veja-se Marcus carn), () $6 vendeu 5.000 exemplares no primeiro ano (Scaduto: 110) (©) Veja-se Seaduto: 127, (©) Para os pormenores, veja-se Rato: 237. 48 Christopher Rollason Contudo, seria falso ver em FW um gesto radical sem equivocos. #, na verdade, um produto fortemente ambivalente; © éxito comercial que teve (') deveu-se, em parte, a certos compromissos com o mercado. Contém nao s6 alguns dos me- Ihores temas de Dylan, mas também alguns dos piores; ha can- Ges triviais com piadas acerca de Brigitte Bardot, ete, Alids, foi lancado em forma censurada; uma faixa, «Tallin’ John Birch Society Blues, onde so satirizados o anti-comunismo e a ex- ‘trema-direita, foi suprimida pela Columbia, para evitar uma eventual acedo judicial ("). # verdade que desde entéo nenhuma outra cangao de Dylan foi censurada (°); no entanto, 0 inci- dente demonstra que a sua liberdade de accéo sempre foi cons- trangida pelos limites de tolerdncia da indistria discografiea capitalista. Album seguinte, The Times They Are A-Changin’ (1963) esté, porém, isento de compromissos com 0 mercado; marcou © apogeu de Dylan como cantor politico, Aqui descortinou, com maior profundidade do que jamais antes ou depois, as contradi- ges do capitalismo dos EUA. Com o tema do titulo, ofereceu mais um chino» ao movimento de protesto, exprimindo a con- viegéo, que alastrava entre a juventude radical da altura, de que se estava a viver uma extraordinaria mudanca cultural. A autoridade dos pais & posta em causa: «Come mothers and fathers throughout the land And don’t criticise what you can't understand — ‘Your sons and your daughters are beyond your commands A transformagio revolucionaria 6 vista como inevitavel; Dylan vira a linguagem biblica contra a classe dominante, de- clarando: «And the first one now will later be last» ("*) Em varios temas deste album a realidade dos EUA em 1963 @ posta em questo. O empenhamento anti-racista ¢ do- minante em «The Lonesome Death of Hattie Carrolly,’ onde Dylan narra o caso auténtico de uma empregada negra, morta sem motivo por um jovem «planters de Baltimore. O réu foi condenado a apenas seis meses de cadeia; 0 caso é apresentado (2) Vendeu 100.000 exemplares nos primeiros seis meses (Sea~ duto: 153) ©)" Vejacse Scaduto: 199-41. (®) Embora_a BBC proibisse o single em 1972 devido ao verso conservador, Byron Beckwith (). Dylan tenta explicar por que 6 que um «poor- -white> como Beckwith é racista; 0 racismo visto como meio de controle social, estratégia empregue pela classe dominante sulista para cindir o proletariado entre brancos ¢ negros, distrair os epoor-whites» das realidades da sua prépria opressao, © «poorwhiteo aprende na escola: That the laws aze with him ‘To protect his white skin ‘To keep up his hate So he never thinks straight "Bout the shape that he's ins Em iiltima instineia, quem matou Evers foi a classe do- minante branca; «the one that fired the gun» foi (racismo e vio~ éneia) que the oferece a classe dominante, «though he warn't no more quality than a mud-cat, himself (Twain, Huckleberry Finn, capi- tulo 18). (9) Vejacse Reto: 228. 50 Christopher Rotlason «So now as I'm leavin’ Tm weary as hell ‘The confusion I'm feelin’ Ain't no tongue can tell The words Lil my head ‘And fall to the floor ‘That if God's on our side He'll stop the next ware Saliente-se aqui a subtileza que Dylan emprega na pré- tica da forma do monélogo dramatico. O narrador, por um Indo, inerimina-se inconscientemente, ao revelar a sua igno- rancia e cegueira; por outro, revela-se no fim como sendo capaz de mudar ¢ evoluir. Poder, portanto, ser justificada a afir- magio de Gray de que a pratica de Dylan nesta forma pode ser comparada com a de Robert Browning, mestre da forma na tradigao literdria britanica ("*). Em mais dois temas Dylan apresenta vitimas da explo- ragio de classe: «Ballad of Hollis Brown» e «North Country Blues». Estas cang6es, no seu realismo, nas suas semelhancas ‘com as baladas tradicionais, e na ideia que comunicam da dignidade da gente comum, poderiam ser situadas na tradigao das Lyrical Ballads (1798) de Wordsworth, muitas das quais sio, igualmente, narrativas de pessoas simples em situacdes de crise (). Na primeira, Dylan conta a historia de um pequeno agricultor do South Dakota, que tinha cinco filhos, Ja nao pode subsistir da terra; também nao consegue arranjar emprego. Se- gue-se a gradual desintegracio da sua mente, até que final- mente, desesperado, puxa pelo gatilho para matar a familia e se suicidar. «North Country Blues» 6 0 monélogo dramatico da mulher de um mineiro duma pequena comunidade do Norte, que per- deu 0 pai e 0 irmao em acidentes nas minas—os factos, s6 por si, apontam para a recusa do capitalismo em fornecer uma se~ guranga adequada aos produtores. Mais tarde, a empresa mi- (©) Not monélogos draméticas de Browning, a porsonagem, tipieamente, cai na armadilha das suas contradigoes’ideol6gicas, ex- pondo assim a sua cegueita (p. ex. Johannes Agricola in Meditations, Ye4s). A conclusao de «With God On Our Side>, por outro Indo, pode ser eomparada com a de +Karshish> (1855), onde o narrador parece estar no limiar de uma re-avaliaede dos seus valores (ef. Gray, 1973: 56-108). G4) eHfollis Brown» pode ser comparada com «The Last of the Flock». (1798) de Wordsworth, na qual um pastor, reduzido & misé~ ta pelas més colheltas, chega a odiar os filhos e sofre a desintogracao da sua personalidade; «North Country Blues» ‘tem_semelhangas com e de qualquer organi zagio politica para se identificar com (182). Se, por um lado, a obra de Dylan foi produto de um determinado movimento social, também, por outro, contribuiu para a defi- nigio da forma daquele movimento, e até para a evolucio do set discurso especifico. © quinto Album, Bringing It All Back Home, apareceu em 1965. Marcou uma ruptura radical em termos musicais, j& que 7 das 11 faixas tinham arranjos eléctricos. Dylan aqui en- trou plenamente no rock —mas com textos mais (e ndo menos) complexos e dificeis» do que os anteriores. Entrou no rock, portanto, sob condigées por ele impostas, conseguindo até mu- dar a linguagem do préprio rock. Sob a sua influéncia, 0 rock dos finais de 60 tornou-se mais cerebral, mais «série» do que antes. Por outro lado, 0 momento de cisio definitiva entre Dylan € 0 seu antigo piiblico folk veio a dar-se no Festival de Folk de Newport, em Julho de 1965, quando foi assobiado ao apa- reeer em palco com uma banda rock. Alguns dos seus ve- thos admiradores permaneceram-Ihe fiéis, havendo quem tivesse baptizado 0 seu novo estilo como «folk-rock»; outros coneluirem que «jd se vendera» ("). B verdade que agora Dylan tencio- nava dirigir a sua miisica a um piblico mais amplo, mas tal facto nfo implica forgosamente que a sua mensagem ficasse viciada. Ble queria, antes, ao adaptar a sua mtisica & nova tecno- logia eléetrica, modernizar o meio da mensagem. ‘A principal fase rock dylaniana é composta por Albuns: BBH, Highway 61 Revisited (1965) e Blonde on Blonde (1966) (G9) Voja-se Scaduto: 212-5; 217. Bob Dylan 53 Esta fase coincidiu com o sou perfodo de maior éxito comercial, tanto nos EUA como na Gra-Bretanha (**); contudo, deve sa- ientar-se que é apenas wma fase inserida numa longa carreira. ‘Aqui 6 sera possivel fazer um resumo muito breve da mensagem da obra dylaniana deste periodo. Um factor cons- tante é 0 conceito da integridade de cada individuo face ao «sistema» —aquilo a que Herman Melville chamara a irredu- tivel edignidade democritica» de cada um (""). Assim, no tema «Maggie's Farm» (BBH), 0 narrador recusa-se a continuar como assalariado numa pequena quinta, onde o ambiente é opressivo @ alienante. Afirma o direito do individuo 4 auto-definigao: «Well, I try my best to be just like Tam But everybody wants you to be just like thems ‘A quinta, com o seu lema «Sing while you slaves, pode ser lida como metonimia do capitalismo (*); 0 narrador rejeita os valores estereotipados, os conceitos de «iMan and God and Laws que sao apregoados pela familia do seu chefe. ‘A autoridade, sob as suas diversas formas, ¢ também repe- tidas vezes questionada e ridicularizada, No tema «It’s All Right, Ma (I'm Only Bleeding)» (BBH) Dylan comunica o seu des: prezo tanto pelos «masters [that] make the rules» como pelos seus agentes, «them that obey authority/That they do not re pect in any degrees. As figuras da autoridade sao ridiculari zadas, desde as velhotas puritanas—«old lady judges [who] push fake morals» (‘*) —até ao prdprio Presidente: «Even the President of the United States/Sometimes must have to stand naked» (®), Também no tema cHighway 61 Revisiteds (H61) 0 préprio Deus do Velho Testamento é satirizado, numa cAustica versio da histéria do sacrificio de Isaac. Apesar de Dylan ster abandonado a politicay, 0 mundo fragmentado onde habitam as suas personagens é, obviamente, © do capitalismo dos EUA. No tema «Desolation Row» (H61), essa sociedade vista como um espaco de frustracio, aliena- (Em 10 Dylan teve dois singles nos evinte mais dos EUA: «Like A Rolling Stone» ehogou ao 2° lugar. Na Gré-Bretanhs, hho mesmo ano, feve d singles nos evinte maise © dois albuns que che- garan aon." I (veja-so as fontes especifieadas no Apéndice) 2)" Melville, Moby-Dicke (1851), cap, 28, (Para Scaduto, a quinta de Maggie é ea sociedade> (Sca- duto: 213). (3) «Push» signifiea evender droga» em ealéo. (2) Bete verso ganhou uma nova sctuslidade com 0 caso Wa- tergate, provocando aplausos torrenciais na digressao que Dylan fez nos EGA’ em 1974, 54 Christopher Rollason ‘go e exploracio, Os presos politicos sio internados numa fa- rica onde «the heart-attack machine/Is strapped across their shoulders»; esta imagem poderd ser derivada da «maquina de alimentary dos Tempos Modernos de Chaplin, um filme expli- citamente anti-capitalista. Dylan sugere, alids, que a sociedade s6 pode ser compreendida do ponto de’ vista dos oprimidos e marginais, da propria . O método de construgio tipicamente utilizado por Dylan neste periodo € 0 seguinte: sao apresentadas ao ouvinte uma série de imagens ou situagdes que se seguem rapida e arbitrariamente, sem qualquer ligagao aparente entre elas. A realidade social 6, portanto, apercebida como fragmentaria, desorganizada, irra- cional. © realismo social de um tema como «North Country Blues» & abandonado a favor de um discurso quase onitieo onde a imagem se torna «auténoman, & evidente que a ruptura dos limites estreitos do realismo traz muitas vantagens, mas tam- bém se perde alguma coisa—isto 6, 0 sentido das conexdes existentes na sociedade, que era tio’ mareado em TTC. De qualquer maneira, a obra dylaniana deste periodo for- neceu toda uma artilharia ideolégica e linguistica 4 contra-cul- tura. Uma organizagio de extrema esquerda, 0s «Weathermen», tirou o seu nome de um verso de «Subterranean Homesick Blues» (BBH) (Scaduto: 242). Também, como aponta Gray (1973: 164), a imprensa cunderground» da altura estava satu- rada de citagdes de Dylan; a conhecida revista Rolling Stone até deriva o seu nome do tema «Like A Rolling Stone> (H61). Porém, Dylan, no fim de contas, nfo queria fazer o papel de heréi contra-cultural, da mesma maneira que j4 abdicara do papel de herdi de protesto. Em 1965 declarou: «Nao sou res- ponsével por aquela malta» (citado por Scaduto: 189); ja estava pronto para se distanciar edaquele Underground para cuja for- maco tanto contribuiray (Gray, 1973: 283) A obra seguinte, The Basement Tapes (sravada em 1967, mas langada apenas em 1975), foi um trabalho conjunto com The Band. Aqui, apesar de manter o estilo rock, Dylan reen- controu-se com tradicdes musicais especificamente norte-ame- ricanas; para Greil Mareus, esta obra é «uma descoberta de re- cordacies e de raizes... evoca sea chantoys (cangées tradicio- nais de marinheiros), cangdes de bebedeiras, tall tales (=) e os (21) cTall talese: contos, propositadamente exagerados © im- possiveis, que eram tipicos da fronteira norie-americana, Bob Dylan 55 primeiros anos do rock & roll» (Mareus, 1975). Dylan redes- cobria, portanto, aquele sentido de tradiedo que caracterizara © primeiro album, e que havia de dominar a obra a seguir, John Wesley Harding (1968) 4, 1988A LUTA CONTRA A AUTORIDADE, Com JWH, Dylan voltou a surpreender 0 seu piiblico. Como diz Gray, esie «nfo 6 um album rock —nao se insere em nenhuma categoria> (Gray, 1978: 40). Podera ser classi- ficado, talvez, como um album de folls com elementos de coun- ‘try. Sem ter aparéncia obviamente comercial, atingiu um éxito extraordinirio, tanto na critica como nas tabelas de vendas (ve~ ja-se 0 Apéndice). No plano ideolégico, é, contudo, um élbum extremamente ambivalente; Dylan parece’ aqui estar numa au- téntica encruzilhada politica ‘Até 1967, mantivera, com grande consténcia, a tendéncia para desafiar e ridicularizar a Autoridade ¢ a Lel, Com JWH, porém, 0 panorama comega a mudar. Aqui Dylan fala, nao como elemento da contra-cultura, mas como um cidadao dos EUA — ci- dadio que est@ a travar uma Iuta acérrima com a Autoridade, tanto dentro de si proprio como no exterior. O album levanta, portanto, um dos problemas centrais da cultura dos EUA (*) ‘0 tema do titulo € uma celebracao de um fora-da-lei his- térico do Oeste (*), convertido por Dylan num heréi da re- belido, um Robin dos Bosques do séeulo XIX—a «friend to the poor, who «was never known to hurt an honest man», No en- tanto, a figura de Harding também pode ser Iida como uma mascara assumida pelo proprio Dylan. & célebre mas incon- trolavel; ninguém consegue capturé-lo ou controlé-lo: And there was no man around Who could track or chain him down — He was never known to make a foolish mover Este poderia ser 0 retrato de Dylan, o Artista-Foragido heréico, que esta sempre um passo & frente do seu piiblico, frustrando 0 seu desejo de o cacorrentar> a uma identidade () Pode comparar-se a apresentagio. desta questfo com a feita na obra de Nathaniel Hawthorne —no conto «My Kinsman, Major ‘Molineux (1882), por exemplo, como em + Dreamed I Saw St Au- gustines, 0 lema central € a revolia contra 9 Pai simbolieo, 3)” Dylan acrescenta um eg» ao apelido do Hardin’ histérico, 96 Christopher Rotlason musical fixa (*). Se, por um lado, a cancio contesta a autori- dade estabelecida, por outro erige uma nova autoridade na fi- gura do Artista. Noutros temas deste Album, Dylan aponta ao coracao do capitalismo dos EUA. Em «I Pity The Poor Immigrant», por exemplo, & desvendado 0 fracasso do Sonho Americano, sendo assim posta em questio a cautoridader dos valores capitalis- tas. O epoor immigrants ("), sem diivida chegado da Europa no século XIX, efalls in love with wealth itself», enriquece, mas fica alienado dos outros ¢ de si proprio. No fim, o imigrante- ~capitalista deixa de acreditar nos seus proprios valores: «Whose visions in their final end/Must shatter like the glass Contudo, noutros momentos presencia-se o triunfo da Au- toridade—como em «I Dreamed I Saw St Augustines. Este tema deriva a sua melodia, assim como o primeiro verso, da velha cancao de protesto «I Dreamed I Saw Joe Hills (de Earl Robinson e Alfred Hayes), A politica da cancao de Dylan é porém, bem diferente. «Joe Hill» 6 uma cancao da resisténcia operaria aos ou (citado por Scaduto: 268). ‘Na realidade, SP no marcou a conversio de Dylan num cantor comercial; ele nao tornaria a interpretar textos de ou- tros (*). O Album indicou, contudo, uma declaragao de inde- pendéncia, tanto da critica’ como da contra-cultura; Dylan pro- duzira, de’ propésito, uma obra que nao seria do agrado de ne- nhuma daquelas entidades. Isto € evidente em «Take Me As I ‘Ams, tema que nao é seu mas que apropriou para os seus préprios fins (*): You're trying to re-shape me in a mould, love, Take me as I'am ot let me go» Esté aqui implicita uma certa ideologia do artista; Dylan auto-constréi-se como criador auténomo, que s6 tem responsa- bilidade para consigo proprio. De qualquer maneira, SP revelou um Dylan bem mais conservador do que antes; com o proximo album, New Mor- ning (1970), deu mais um passo no sentido da reaccio. Esta obra, na qual s6 apareceram temas da sua autoria, foi aparen- temente um regresso aos velhos moldes; Rolling Stone decla- rou: «Dylan voltou ao nosso bando!» (citado por Scaduto: 270). No entanto, NM pode ser considerado como o pior dos seus Albuns anteriores a conversio. Aqui Dylan celebra a felicidade campestre de um homem casado. Desta vez, nio se trata de mas- caras; o album é transparentemente autobiografico. Dylan o Ar- tista revela ser vitima da noedo de que a sua vida privada 6 ine- rentemente de interesse pitblico. Para além de cancGes. . A sua ideologia é raivosamente anti-mulher, «pré: milias, pré-censura, anti-comunista, etc, Existe uma multidao de seitas, unidas pelo conservadorismo. Em 1979, Dylan lancou Slow Train Coming, album que marcou a sua estreia como eantor evangélico. Desde entéo, tem-se dedicado a uma miisica quase exclusivamente religiosa: nos concertos, apenas inelui alguns temas anteriores & conver- sio para evitar o fracasso comercial. Sabe-se que Dylan util zara frequentemente imagens ¢ frases religiosas a partir do primeiro Album. Contudo, nas primeiras obras, como foi refe- ido acima, convertera a referéncia biblica numa arma contra a classe dominante, se bem que, em varias cangdes dos anos 70, tivesse caido numa religiosidade conservadora. Agora, adopta © cristianismo sob a sua forma mais autoritéria. O Dylan que desafiara e ridicularizara a Autoridade nas primeiras obras, que travara uma luta heréica com as suas proprias tendéncias autoritérias em JWH, vern a declarar, em STC: «There’s only one authority, that’s the authority on highs (*). Isto é, recomen- daa entrega total A Lei de Deus Pai. Pode resumir-se a ideologia de STC nos seguintes ter- mos: Dylan pretende rejeitar todo e qualquer discurso politico, aparentando um distanciamento simultaneo tanto da esquerda como da direita, Assim, declara aos nio-crentes: ¢Korl Marx has got you by the throat And Henry Kissinger's got you tied up into knots» Ha algumas afirmacdes que poderiam parecer radicais, como as referéncias a «gangsters in power e «innocent men in jail», Contudo, a grande maioria dos comentirios sociais que Dylan aqui faz é de indole claramente reaccionaria. Até cai (@) Para STC, abandonarei a prética de identificar as cangses donde as citagdes sto’ tiradas, j4 que 0 album € ideologicamente ho- ‘mogéneo. 62 Christopher Rollason em sentimentos cegamente nacionalistas e racistas: da_pena de quem escrevera «Oxford Town» e «With God on Our Side», agora emanam enxurradas reaganistas como esta: All that foreign oi Controlling American soil [..] ‘Sheiks walking around like’ kings Wearing fancy jewels and nose-rings Deciding America’s futures A politica sexual do . Aliés, Dylan afasta-se de qual- quer modelo social que se baseie no conceito de classe, a favor de uma divisio simplista entre crentes e ndo-crentes: sEither you got faith or you got unbelief And there ain't no neutral grounds Trata-se de uma visio maniqueista do mundo, onde o universo se converte no campo da eterna batalha entre Satands e Deus; na sociedade humana, todos estéo alinhados de um lado ou do outro, e esta é a iinica divisio que conta: You may be 2 construction worker working on a home, You may live in a mansion, you may live ina dome, But you gotta serve somebody... Well, it may be the Devil, or it may be the Lord, But you're still gonna have to serve somebody» ‘Ao coneluir STC, Dylan encara 0 Segundo Advento de Cristo como a panaceia para todos os problemas. Até entio, parece que todas as desigualdades humanas terao de ser acei- tes com passividade: ¢ «Dylanologists, que se tém dedicado & coleegiio de discos piratas ¢ & andlise dos seus textos. Onde, portanto, se deve situar Dylan em termos da divi- sio alta cultura/cultura de massas?» & preciso frisar, & par- tida, que ele tem raizes, por um lado, na velha cultura folk, €, por outro, nos meios da moderna cultura de massas (0 rock & roll, 0 pop). Os seus textos contém referéncias a figuras e imagens do ambito da cultura de massas, sobretudo do eine- ma. Assim, «Motorpsycho Nitemares (AS) é uma re-escrita c6- mica da intriga de Psycho de Hitchcock; também «Desolation Row» esta cheio de «citagdes> de filmes (Bette Davis, o Fan- tasma da Opera). de referir, alias, que Dylan compés, em 1973, a banda sonora do filme de Sam Peckinpah, Pat Garrett and Billy the Kid, Por outro lado, Dylan vé-se, ¢ & também visto por muita gente, como um poeta —categoria essa que pertence principal- mente a calta cultura». Scaduto afirma que, desde 0 inicio, «cle se concebeu como um poeta [...] que eserevia poesia para um piblico amplo, a gente da rua» (Scaduto: 135). Consia a este respeito que Dylan mudou 0 seu apelido em honra de Dylan ‘Thomas (ibid: 24); também, om 1963, apareceu em casa do poeta Carl Sandburg, declarando: «Sou Bob Dylan. Também sou poe- tay (citado por Scaduto: 166). Alids, parece ter-se visto como @) © termo seasy-listening> corresponde aproximadamente Aguilo que em portugues ¢ chamado 0 eeangonetismos, Bob Dylon 65 o herdeiro de Rimbaud, cuja poesia jé lera em 1961 (Scaduto: 82), Nas suas notas de capa para «Desires, descreve-se como sseguindo as pisadas de Rimbaud», e numa faixa de BOT com- para as suas relacdes sexuais com «as de Verlaine e Rimbauds. E de salientar, também, a sua duradoura amizade com Allen Ginsberg, com’ quem fex algumas gravagées (ainda nao edita- das) em 1972 (Scaduto: 298). 0s criticos também tém aceite esta imagem de Dylan como poeta; para Gray, Dylan é um «artista sério que trabalha num meio populare (Gray, 1973: 67), um poeta que ereintroduziu a dindmica da cultura folk na arte sofisticada> (ibid: 69). O pré- prio Ginsberg compara-o com Villon e com Whitman: «Agora solta os seus yowls e yawps de vogais longas por cima dos telha- dos ¢ das antenas das pequenas cidades (**) [...] revelando tanto da sua pessoa como que para fazer chorar toda a nacido de Whitman» (Ginsberg, 1975). A analogia com Rimbaud é confir- mada por Seaduto, que afirma: é, portanto, ambivalente: por um lado, as imagens que dela de~ rivam contribuem para validar a sua’ imagem de Artista; por outro, 08 herdis e artefactos em questi fazem parte daquele universo da Autoridade que ele pretende ridicularizar. Dylan tem, por conseguinte, um pé dentro da da sua obra, que contém elementos derivados das culturas folk, reconhe- cido, tem algo para dizer e que 0 consegue fazer com habili dade. O livro de Gray inclui um capitulo intitulado «Dylan e a tradicGo literaria inglesa (sic)», no qual se elaboram analo- gias, em grande medida justificaveis, com Donne, Blake, Eliot © outros ("*). De qualquer maneira, Dylan consegue manejar varias téenicas literétias—o realismo, 0 mondlogo dramatico, as imagens sinestéticas, a justaposicao de metéforas, a narra- tiva onirica—de modo a justificar a ideia de que é poeta (ou, pelo menos, de que o era até 1968, e esporadicamente depois dessa data). Deve ter-se em mente, no entanto, que os textos sempre deveriam ser no contexto da musica, e que, como frisa Gray, Dylan 6 um poeta que trabalha dentro de um meio popular. (#) Vela-se Gray, 1979: cap. 3; falta, porém, estudar a relacdo de Dylan coma tradigao poetiea dos EUA (Whitman, Frost, Ginsberg). Bob Dylan 67 9, A IDEOLOGIA DO ARTISTA Pode pér-se agora a questo: porqué a viragem politica? Seria demasiado redutor ver Dylan como simples evitima do sistema discogréfico», como sugere Rato (Rato: 45). A sua obra modificou os termos da indastria da musica popular, «demons- trando a outros mtisicos ¢ compositores que a miisica popular no tinha forgosamente que ser uma papada sem sentido» (Sca- duto: 225). As suas frequentes mudaneas de imagem indicam que nunca foi um produto estereotipado do negécio da musica, Parece ter sido capaz de manipular 0 negécio da miisica, em vex, de ser manipulado por ele (& exeepcao do episédio de cen- sura, acima_referido) problema estaria, talvez, mais na questio de compro- misso. Dylan foi primeiramente porta-voz do movimento de de Baudelaire (*). Dylan, com a sua dupla orientaedo para ambas as culturas, tem cultivado a sua dupla imagem de artista e vedeta. Daf as entrevistas em que nao revela nada, oferecendo s6 comentarios cripticos, ambiguos ou até enganadores. Daf a sua recusa em lancar muitas das suas melhores composig6es nos Albuns oficiais, embora circulem em caras_gravagdes piratas, gue adquirem ‘um grande valor de culto (Dylan assim trans- forma-se em mereadoria cara ¢ inacessivel). Dai, também, que se possa dizer que a continua mudanga de imagem se torna uma faca de dois gumes. Por um lado, Dylan mantém deste modo a sua autonomia frente & industria discogréfica; por outro, afasta-se igualmente do seu ptiblico, mantendo-se sempre «um passo & frente>, constituindo-se como Artista Auténomo, (8) Byron, Childe Harold's Pilgrimage, Canto I (1818). (5) Shelley, eAdonaiss (1821) (0) Baudelaire, (Rato: 66). Agora, Williams justifica o Dylan evan- gélico em termos semelhantes: «Para mim continua a ser um her6i, porque as suas mudancas mais recentes reflectem 0 mes- mo tipo de coragem e integridade profundas, 0 mesmo empenho no crescimento pessoal e artistico que tenho admirado nele desde 0 inicio» (Williams: 120). A mesma linha é seguida pelo critico portugués Anténio Candeias: «Um poeta que se recusa 9 voltar atrés, que continua a ter coisas para dizer, diferentes das que jé disse, coisas que talvez ninguém ouga, ‘mas que 0 poeta nao se coibe de dizer» (Candeias, 1981: 28) Em conclusio, pode pér-se a hipétese de que o sentido da desastrosa odisseia politica de Dylan foi determinado, em parte, por um falso conceito do artista—como individuo he- yoico, que nfo tem obrigagées perante nenhum movimento () Cf a anélise da eangdo «John Wesley Harding».

You might also like