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Os irredutiveis Teoremas da resisténcia. para o tempo presente 82 ISA-D here mere Teorema 3 ‘A DOMINAGAG IMPERIAL NAO £ SOLUVEL NAS BEATLTUDES DA GLOBALIZAGAO MERCANTIL Corolétio 1. A soberania democratica no é sohivel na Humanidade com H maitisculo .... 6! Corolétio 2. O direito internacional nao é sahivel na ‘moralina” humanitéria 61 Corolario 3. O bem comum da humanidade nic é soltivel na privatizagio do mundo 64 Corolitio 4. A teoca entre a espécie humana ¢ seu ambiente natutal 4 irvedutivel 4 medida miseravel dos mercados financeiros 69 Teorema 4 QUAISQUER QUE SEJAM AS PALAVRAS PARA EXPRESSA-LO, O COMU £ IRREDUTIVEL AS SUAS FALSIFICACOES BUROCRATICAS. cncinec TA Coroldrio. A democracia socialista nao é sohivel no estatismo burecritico 73 Teoreina 5 A DIALETICA DA RAZAQ £ IRREDUTIVEL AO. ESPELHO QUEBRADO DA POS-MODERNIDADE os 81 Corolétio 1. A totalidade € irredutivel a seus fragmentos espatso8 wn. 2 85 Corolério 2, O universal nao é soltivel no patticulat. cos... 92 Corolitio 3. O real nfo ¢ sohivel no virtual, nem a busca da verdade na inconstancia das opiniGes 93 Fermata A CORRENTE INFLAMADA DA INDIGNACAO NAO E SOLUVEL NAS AGUAS MORNAS DA RESIGNAGAO CONSENSUAL vo vssssensuntve 97 Sobre 0 attO! 99 Prefacio a edicao brasileira OS IRREDUTIVEIS SETE ANOS DEPOIS Este livrinho foi publicado inicialmente em francés, em janeiro de 2001, ou seja, antes dos atentados de 11 de Setembro ¢ do inicio da segunda Guerra do Golfo naquele mesmo ano. De certa maneita, ele é resultado de um seminatio de reflexéo realizado em 2000, no qual surgi: também o projeto da revista Contreternps. Partimos de uma constatacio: 0 esgotamento do debate estratégico na esquerda em geral ¢ na esquerda radical em particular. A socialdemocracia aliada a um liberalismo moderado produzia apenas banalidades apologéticas. Os partidos comunistas formados (ou deformados) no cadinho stalinista foram reduzidos & esterilidade tedrica ¢ condenados a uma lenta agonia. Corria-se, entéo, o risco de se contentar com 0 fato de se ter salvo a honra da esquerda ao se permanecer fiel a valores abandonados por essas grandes correntes historicas, © tisco de se instituir guardides conservadores de um remplo deserto ¢ 0 de se submeter & agenda ideolégica ditada pelos dominadores. Convencidos de que a heranca nao é uma coisa inerte ou um capital que se poe no banco, mas que ela existe ¢ € apenas o que dela fazem (e fardo) os herdeiros, inventariamos entéo as grandes questées que deveriam ser submetidas ‘icamente & prova do presente: ~ © que pensar das politicas de emancipagio e de seu futuro na época da mereantilizacéo do mundo, do despotismo do mercado e da sociedade do espetéculo como estagio supremo do fetichismo de dinheiro? —O que pensar da luta de classes, na época do aumento da forga de um individualismo sem individualidade, da desfiliagao social ¢ nacional, de seres soci, s cujas identidades plurais ameagam © que pensar das formas de dominacio e de dependéncia, dos Estados- nagio ¢ da hegemonia imperialista que alguns dizem em via de extingdo no “cspaco plano” do cosmopolitismo mercantil? -— A idéia de um aniquilamento de suas caricaturas burocrdticas e com o en euro comunista da humanidade mot u com o certamento do que alguns historiadores definem como “o custo século XX”? ~O desequilfbrio ecolégico do mundo é controldvel pelas zerapias brandas de uma ecologia ambiental ou, a0 contrario, sua raiz: a desmedida ¢ maus-tratos contra o mundo imputdveis 4 irracionalidade cres nite da légica capitalista? ~ © que pensar, enfim, dos antiiluministas pds-modernos, cujo proceso legitimo da razio instrumental ¢ os acalantos de um progresso histérico de mao nica redundam, as veres, em um novo obscurancismo ¢ em um aniquilamento dos horizontes de esperanga? Os irredutiveis (ou Teorema: da resisténcia para o tempo presenié) constitui a exposigdo sintética desse programa de pesquisa, Sete anos depois, certamente se encontra inacabado (¢ inacabavel, pois a critica de um mundo em movimento acelerado nao se permitiria a menor pausa), mas o compromisso inicial foi mantido, Como testemunho, as questées tratadas nos 22 atimeros da revista Contretemps: sobre as sociologias criticas, as classes sociais e suas metamorfoses, as relacdes de género, os estudos pos-coloniais, a critica da propriedade, as novas guerras santas ¢ a globaliza¢4o armada, o imperialismo ¢ as nagoes, 0 iluminismo € 0 antilluminismo, o estado em que se encontram a esquerda os estudos marxistas, a ecologia social ea questio do decrescimento ete. Muita coisa se passou durante os sete anos decorridos desde a primeira publicacio de Les irnéductibles. Algumas perguntas comegaram a ser tespondid, Algumas dtividas foram levantadas. Os termos de alguns debates evoluiram’. Haviamos partido de uma constatagao. A derrota histérica das grandes esperangas do século KX traduzia-se, na entrada do novo milénio, por um estreitamento dos horizontes de esperanca ¢ uma recragao da temporalidade histdrica em torno de um presente empobrecido. A pane de projesos estratégicos © Eu mesmo tentei uma sintese deles em Eloge de la politique profane (Paris, Albin Michel, 2008). alternativos estava em relacao evidente com esse contexto. Na verdade, como compreendeu muito bem Guy Debord, visio historica ¢ razdo estratégica encontram-se estreitamente associadas. De tal maneira que um movimento que pode mais ser cotta de uin grave déficit de conhecimentos historicos nao conduzido estrategicamente”. Desde 2001, com a invasao do Traque, a dindmica bolivariana na América Lati em curso, Com dificuldade, com toda a certeza lentamente, mas as postas do _ aemergéncia do movimento altermundialista, algama coisa foi recolocada yyama sobre o fim da futuro estio de novo entreabertas. As profecias de Ful histéria nao deram em nada. E a euforia wiunfalista liberal néo durou dez anos [A propdsivo disso, ¢ significativa a confissao de malogro felra por Jrgen Habermas: Desde 11 de Setembro, ndo par de me perguntar se, diante de acontecimencos de tamanha violgncia como essa, toda a minha concepcéo de atividade orientada para 0 consenso, aquela que desenvolvo desde a Theorie des kommunikativen Handelns [Teoria da aco comunicatival, nao std prestes a cair no ridiculo. De fato. Longe de sair apaziguado do aniquilamento do totalitarismo burocrético, 0 mundo tornou-se mais desigualitirio ¢ mais violento. A excecdo regta misturam-se de maneira inextricavel. E George Bush filho declarou um estado de guerra ao terrorismo ilimitado no tempo € no espago. Poctanto, alguma coisa foi bem encerrada com a queda do muro de Berlim, a desintegracéo da Unido Soviética, os atentados do 11 de Setembro ea nova Guer- rado Iraque. Mas 0 qué? “curta século XX” inaugurado pela Primeira Guerra Mundial e pela Revolugao Russa, sem diivida, Mas, provavelmente, também se exgotou o paradigma da modernidade politica, inaugurada no século XVII pelas vevolugdes inglesa € holandese. Sob 0 choque da globalizasao capitalista, as nogées de nacéo, territério, povo, soberania e cidadania foram abaladas, assim como os parimerros do direito internacional interestatal. Abaladas, mas ndo ultrapassadas. Vivemas essa grande transigdo, esse grande intervalo entre dois extremos, entre 0 “ndo mais’ ¢ 0 “ainda nao”, em que o antigo nao acabou de morrer enquanto o novo pena pata nascer € corte o risco de perecer antes mesmo de ter vivido, Essa situagao de transiggo constitui “um momento utépico”, como foi, de outra forma, 0 perfodo da Restauragio dos anos 1820-1840, que viu fermentar tantos sonhos do futuro ede fantasmagorias sociais, de Fourier a Saint-Simon, pasando por Cabet e Owen. © filésofo Henri Lefebvre definia a usopia como “o senso nao-pritico do possivel”, em outras palavras, como uma possibilidade Prevista, cujo contetido continua indererminado e da qual se ignorar sobretudo os meios de atingi-la Talver, se olharmos pelo retrovisor, esses anos de transi¢ao possam ser Percebidos como um momento semelhante ao dos enconttos apaixonados dos runs sociais, em que fervilham idéias de um outro mundo possivel, que as relacoes de forgas politicas degradadas pelas decrotas acumuladas das lutas de emancipasdo tornam inacessivel atualmente. No entanto, comesa-se a perceber que esse momento de iluséo, de acordo com a qual os movimentos sociais Constituem uma resposta suficiente para a crise da politica, de acordo com a qual as légicas de hegemonia sio soltiveis na experimentacdo local ¢ nos contrapoderes em miniatura, de acordo com a qual se trata, a partir de agora, de“mudar 0 mundo sem tomar 0 poder”, esté esgotado, Mudar o mundo sem tomaro poder, esse titulo-programa do livro de John Holloway, que pretendett teorizar, em 2002, a experiéncia zapatista do México, teve uma indiscutivel Fepercussio nas novas esquerdas, principalmente na América Latina. Mas, diante das questées concreras colocadas pelas dificuldades do processo de transformacéo social na Venezuela, na Bolivia ¢ no Equador, cle néo ajuda muito a procurar @a encontrar respostas, No préprio México, depois das lutas de 2006 contra a fraude eleitoral ea fepressao, apds a Comuna de Oaxaca, os termos do debate evoluiram e a revista Zapatista Rebeldia, em seu niimero do verdo de 2007, abriu uma polémica violenta contra as teses de Holloway. A idéia de que 0 velho movimento operario perdera seu isomorfismo em relac3o a0 aparelho do Estado burgués (por ter reproduzido as mesmas formas de concentragéo © de comar 4o) leva, hoje, & consratacao de que “o novo movimento social” rizomatico ¢ acéfalo € também “isomorfo” co capitalismo liberal, & “sociedade liquida”, 4 Aluidez da irculacdo mercantil ¢ monetéria, Prova de que nao € possivel escapar, por simples decreto da vontade, dos efeitos concretos da subalternidade, ¢ de que néo é possivelescapar, por uma mudenca John Holloway. Mudar o murdo sem tomar o poder 0 significado da revoluga hoje (Sao Paulo, Viramundo, 2003). (N. E.) de vocabulétio, do léxico dos dominantes se a realidade das relagdes de forcas nao for alterada. Em sete anos, algumas controvérsias do fim do sécule passado foram esclarecidas ou se tornaram inoportunas. Alguns autores, como Mary Kaldor, sustentaram entéo que o fim da Guerra Fria marcava 0 advento de um “impedaismo ético ou benevolente". Outros aflemaram que a prépria nosao de imperialismo ¢ as hierarquias da dominacéo foram dissolvidas no cosmo- politismo mercantil de um espaco plano ¢ homogéneo. A campanha a favor do direito de ingeréncia humanitéria contra as soberanias nacionais e contra o di- Ste} reito internacional em vigor foi simplesmente o prolongamento dessa nova do *nomos da terra’. Os bombardcios contra a Sérvia sem declaracao de guerra & depois a nvasio unilaeral do Irague sem nen mandato intnacional foram os trabalhos priticos, Na época da intervencio da Oran nos Balcds, Tony Blair e seus pares colocaram em prética a nova retérica da “guerra ética” ou da “guerra humanitaria’, cuja verdadeira face seria revelada por Guanténamo e Abu Ghraib. Por outro lado, autores decididamente engajados na esquerda sustentaram uma tese semelhante, que via na globalizacio um passo para um mundo sem fronteiras®. Mas foram sobretudo Michael Hardt e Antonio Negri que sistema- tizaram, um ano antes dos atentados de 11 de Sezembro, a tese segundo a qual a organizacio hicrarquizada de um mundo de Estados-nagio sob a hegemonia de um imperialismo estatal dominante (ou de vérios) estava em via de dissolucéo impéci in a nero, que seria simplesmente em um novo império desterritorializado e sem centro, que seria simp! a dominacao direta do capital transnacional sobre as novas plebes ou multidées nomades, A controvérsia ndo era puramente redrica. Teve seus testes priticos, 4o por referendo do Tratado Assim, os autores defenderam, em 2005, a aprov: Constirucional Europeu, embora claramente liberal ¢ imperial, porque um expago continencal, qualques que fosse ele consitsiri necessariamente um progresso em relagao 4 defesa de direitos sociais inscritos em relagoes de forcas nacionais. O mesmo argumento deveria té-los levado logicamente a considerar 0 Morales também que a reivindicag’o dos governos de Hugo Chaver ou 2 Ver Peter Gowan, “The new liberal casmopolitanism’, Contretemps, Patis, Texwuel; por soberania energética e alimentar era rea ‘ionaria. Felizmente, nao foi nada disso. Mais exatamente, Antonio Negri, em Global>, seu livto sobte a América Latina em co-autoria com Giuseppe Cocco, passou para 0 outro lado, colocando no mesmo saco as politicas de Chaver, Morales (talvez, hoje, Correa), Lula e Kirchner. No entanto, a invasio do Traque em 2003, por meio de uma coalizio, deveria provocar uma reflexéo critica sobre a dindmica real da globalizacao mercantil ¢ 0 aumento da forca de um liberalismo autoricério em que os Estados tertitoriais, longe de desaparecerem, véem suas fungdes militares © penais crescerem @ medida que sua funcio social se deteriora. Robert Cooper, conselheiro de Tony Blair para a “guerra ética” e, em seguida, de Javier Solana na direcéo da Otan, tornou-se, alids, 0 defensor sem complexos de um “nove imperialismo liberal”, apoiado em um “Estado pds-moderno”, e também de um “imperialismo de vizinhos” que vela pelas petiferias do mundo (Bdleds, Chechénia), impée seus protetorados e instala seus procénsules e outros sétrapas locais em todos 08 continentes. A nova fase de acurnulagio do capital globalizado, na verdade, implica uma teorganizacio dos espacos ¢ tertitérios, um deslocamento de fronteiras ¢ a construgio de novas muralhas de seguranca (contra os palestinos ou na fronteira mexicana), mais do que sua abolicéo em beneficio de um mercado tinico “sem fronteiras”. A tragédia dos migrantes é a prova disso. E isso de acordo com a lei, sempre em vigor, do “desenvolvimento desigual” cada ver mais mal combinado com a acumulagao capitalista. Como escreveu muito bem David Harvey, tonio Negri ¢ Giuseppe Cocco, Glob(AL) ~ biopoder e luta em wma América Latina globalizada (Rio de Janeiro, Record, 2005). Vétios autores, entre eles Joaquim Hirsch, Atilio Boron, Michael Lawy, Claudio Katz, Alex Callinicos, passaram as teses de Jmperio (Rio de Janeiro, Record, 2001) pelo d edicéo em espanhol (Clases, Plebes, Multisudes, Santiago do Chile, Palinodia, 2006: © Caracas, El Perro y la Rana combs crivo da critica marxista. Por minha vez, diquei-lhes uma série de artigos na revista Contretemps, alguns retomados numa 2006). Muiras veaes foram os mesmos autores que ram as teses de Holloway. Embora existar Negri ¢ Holloway se diferencas notdrias entre eles, ram de fato em um aparato coneeitual de Deleuze e de Foucault, vulgarizado e empobrecido, Ver John Holloway e outros, Couena y m: alla a cole de! Capital (Buenos Aires, Herramienta, 2006), que apresenta ea das iP ane ape principais eriticas dirigidas ao livro de Holloway ¢ sua resposta. he 1acao, mo é impossivel compreender a coeréneia dos conceitos de globalizaséo, neoliberalis no se levat em conta as mudangas ocorridas nos diltimos crinta ¢ imperialismo, se ~ as relativas 20 espago € a0 tempo, determinadas pela din: anos nas dindmic: sulacio do capital. © duplo imperative de reduzir seu eempo de roragio ¢ act , i 6 6 is que sligninar suas barreiras espaciais envolve inovagbes tecnol6gicas ¢ institucionais q vam como efcito modificar 0 contexvo espacial no qual se exercem os poderes cerritoriais. Essa dindmica é profundamente desigualitiria, como testemunham, ano apés Jatérios do Pnud [Programa das Nacoes Unidas para o Desen- volvimento], Os Estados Unidos, a Unite Buropéia ¢0 Japao agambarcam 90% «. Os Estados Unidos cobrem sozinhos 60% das despesas mundiais mas a Inglaterra, a Franca e Israel mantém uma boa colocacdo ano, os fel das patente com armamento, na nessa cortida da industria do massacre. O mecanismo da divida continua a transferir riquezas do Sul para o Norte e a servir de correia de transmissio para suijeitaras classes dominantes locais aos interesses imperialistas supremos. A nova divisio internacional do trabatho reproduz novas formas de dependéncia econdmica, tecnolégica ¢ cultural em relagéo aos centros da acumulacao. Em contrapartida, os sete anos decorridos confirmaram 0 que inabilmente se denomina a “volta do religioso”, como se tratasse de uma volta a fone de arcaismos reprimidos. Sustentou-se que os monoteismos haviam nascido do desetto, As novas misticas reagem as formas modernas de desolacao social € moral do mundo, assim como as incertezas sobre a maneira de habicar politicamense um mundo em convulsao. Nao sao, como se ouve muito freqtien- temente, “vellios deménios” que voltam, mas demSnios perfeitamente ntre contemporaneos, nossos demdnios inéditos, nascidos das niipcias brbar o mercado ea técnica. Quando 2 politica estd em baixa, os deuses esto em alta. Quando o profano rasta, a Eternidade se recua, o sagrado tem sua revanche. Quando a histér levanta voo, Quando nao se querem mais povos € classes, restam tribos, etnias, volta da massas e maltas anémicas. No entanto, seria erténeo acreditar que ess ois livros publicados em 2003: © de David Harvey, New Press) [ed. bras.: O nore imperialisrie, Sao imperialism (Oxford, Oxford University Paulo, Loyola, 2004! e o de Ellen Wood. Empire of capital (Londres, Verso} chama religiosa seria particularidade dos barbaros acampados sob as muralhas do Império. O discurso dos dominantes no ¢ menos tcolégico, como mostra © revival de seitas de todos 0s géneros nos proprios Estados Unidos. Quando George Bush, no dia seguinte ao 11 de Setembro, falou de “cruzada” contra 0 terrorismo, nao se tratava de um lapso infeliz. Quando se pretende conduzir nao mais uma guerra de interesses contra um iniraigo com o qual serd preciso acabar negociando, mas uma guerra do Bem absoluto contra o Mal absoluto (com 0 qual se diz que néo se pode negociar), trata-se de uma guerra santa, de religiao ou de “civilizagao”. E quando o adversario ¢ apresentado como uma encarnacéo de Sata, nao é de espantar que ele seja desumanizado ¢ bestializado, como em Guantanamo ou em Abu Ghraib. Nao ¢ de espantar também que a excecdo ¢ a regra estejam entio inextrica- velmente misturadas. Que se conceba assumir abertamente a “tortura preven- tiva” (coroldtio Iégico da “guerra preventiva’); que se vejam banalizar-se as extraordinavies renditions (“rendigdes extraordinarias”) ¢ os lugares de detengao desterritorializados; que se possamn assumir as “execugdes extrajudiciais”, como jé fazem muito tempo alguns dirigentes israelenses em relagdo ao assassinato de palestinos. A retorica religiosa penetra também um discurso judicial no qual as disposig6es antiterroristas apelam cada vez mais para as nogdes de arrepen- dimento, peniténcia, abjuragdo, outrora em vigor nos processos de acusacio de feitigaria ou nos processos da Inquisicéo. Af estio os indicios de uma crise de hegemonia de importdncia historica. A privatizagéo generalizada do mundo (nao s6 da produgéo ¢ dos servigos, mas também do espaco, da informagéo, do direito, da moeda, da violencia, dos conhecimentos ¢ do organismo vivo pela corrida ao registro de patentes) a cada dia que passa gera mais miséria, desigualdades e brutalidades. A alternativa “socialismo ou barbarie” é ainda bem mais premente do que era no inicio de um século XX destinado a se tornar o dos “extremos”. A légica da concorréncia de todos (e todas) contra todos (e todas). cuja forma final a guerra global, deve se opor uma légica da solidariedade, do servigo ptiblico, do bem comum da humanidade. Em outras palavras, a questéo da propriedade, como os pioneiros do socialismo do comunismo a compreendiam desde meados do século XIX, estd mais do que nunca no cerne da questio social, Nos anos 1830 ¢ 1840, 0 fim das formas “hibridas ¢ incertas" de propriedade, o desapossamento dos pobres de seus direitos habituais foi a condicio de seu Tangamento sem defesa No entanto, hoje, a mercado impiedoso do trabalho urbano em formasao*. res relativos aos servigos, ao conhecimento ou a0 organismo no nova onda de enclosw vivo tem, por corolirio, uma ofensiva planetésia do capital contra todas as formas de garantias ¢ de protegao social, em maréria de saldrio, emprego, habitagdo, aposentadoria, educagao ¢ satide publica. £ em torno dessas questdes que surge um nove divisor de 4guas entre uma exquerda alinhada ou resignada ao acompanhamento do liberalismo ¢ uma no- va esquerda decidida a enfrentar os desafios de um novo século, no qual o que esti em jogo € nada mais nada menos do que saber que planeta queremos habitar e que humanidade queremos nos tornar. Paris, dezembro de 2007 5 Ver Daniel Bensaid, Les dépossédés (Paris, La Fabrique, 2007) Intradugae TEMPERATURA INSTAVEL nfissao de um filho do século. dun enfant du siecle (C o vago € flutuante” que marca a passagem entre dois mundos, Musset evoc ais destruido e um f entre um pasado jam uro incerto, © tempo histérico m torno de am presente redurido ao instante que parece entdo se estreitar passa, Uma geracao desencantada atravessa a época “encolhida sob o manto de andes promessas andes ambicées: nesse “mar egoistas”. Nada de gi cinismo dos medonho da ago sem objetivo peranga, as virtudes. Vivia mentava 0 po vencedores, de prazeres mitidos e d has € Foi um rempo de reacio e de restauracio. apenas de mig: ada”, Confrontados a desttocos. “O ecletismo é que nos nados novas reagdes e a Novas restauragées, nds, por nossa vez, fomos cond esas mi ea esses destrogos? Fomos reduzidos ao minimalismo miniatura 0 e fraco, aos pra sem objetivo’ educao € a como s€ 0 ¢ préximo F aos globalizados Na era da industrializagdo em massa, da organizacao taylorista do trabalho edo reino da fada eletricidade, 0 modernismo teria expressado uma resisténcia a extensio da domina¢io mercantil as producées culcurais, Nao uma hostilidade a técnica ¢ 8s maquinas como tais (celebradas tanto pelos futuristas quanto por alguns cubistas), mas um protesto contra a despersonalizagio do laco social, a reificagio generalizada e a era dos loucos soliedtios, Hustrada pela pintura ndo figurativa, pelo expressionismo, pela nova poesia lirica ou pelo cinema de autor do perfodo entre as duas grandes guerras, a revolucéo modernista constituiria entéo uma reacao cultural 4 modernizacao capitalista. Portanto, o modernismo acreditou poder opor uma tiltima resistencia a0 triunfo absoluto da mercadoria, A Arte com A maitisculo parecia oferecer um liltimo refligio & gratuidade antiuriliréria © a0 desejo de eternidade. No enranto, ela constituia a sombra projetada do fetichismo da mercadoria ¢ 0 tiltimo suspiro contra © consumo padronizado. A pés-modernidade aparece, assim, como 0 triunfo absoluto da mercadoria na prdpria esfera cultural € artistica “O modernismo foi a experiéncia ¢ © resultado de uma modernizacio incompleta’, resume Fredric Jameson. O pés-modernismo surge “quando 0 processo de modernizagao nao tem mais de se desembaragar das caracteristicas arcaicas, no tem mais obstéculos dianre dele, ¢ faz sua propria légica reinar triunfalmente”!, Nés estarfamos no limiar de uma nova época caracterizada pela reprodugao técnica da obra de arte, pelo desenvolvimento de uma arte propria- mente midiatica, pela emergéncia de uma nova ordem comunicacional e pelo nascimento de uma nova linguagem digital. Essas tentativas de periodizacao privilegiam mais um crivério estérico do que econdmico, social ou politico, Mesmo que Fredric Jameson ou De id Harvey se distingam por seu esforco para estabelecer uma atticulacio coerente entre esses campos, 0 fluxo e a onda dos conceitos esto relacionados a essa abordagem cultural. A inoportuna utilizagéo do “pés” reforga 0 equivoco cronolégico. Fiedric Jameson, Postmode 1991), p. 366, [Ed. bras.: Pés-madernisma: a lagica culiwral do capitalismo tardio, 2. ed., Séo Paulo, Atica, 1997,] Ver também Francisco Louga, A maldigéo de Midas. a cultura do capitalisma tardio (Lisboa, Cotovia, 1994) am, 9 The cultural logic oflate capitalism (Londres, Verso, Para nao corter 0 risco de utilizar essas noges imprecisas, melhor seria concebé-las como tendéncias complementares e contraditorias, 0 avesso ¢ 0 dircito da légica culeural do capitalismo, seja cle juvenil ow senil, precoce ou “tardio”, Dessa mancira, percebemos melhor a recorréncia de uma tematica pés- moderna ~ como “o gosto pelo ecletismo” revelado por Musset — nas fases de derrota doentia ¢ de depressio politica, assim como a ambivaléncia de um autor como Marx, em cuja obra as duas tendéncias coexistem de maneira notivel. Em uma atmosfera impregnada de um sentimento de dissolucao generalizada (tudo se esvail), de depressdo do futuro e de anemia histérica, a questio agora € saber que parte cabe a uma nova revolugéo tecnolégica ¢ cultural, ¢ que parte cabe ao efeito propriamente politico das derrotas infernalmente repetidas, cuja amargura assombrava as noites de Musset durante a Restauragio, encontrava-se na melancolia de Baudelaire apés 1848 ¢ povoava o pesadelo de Blanqui e de sua “ccemnidade pelos astros” apos o aniquilamento da Comuna de Paris. Alguma coisa foi bem encerrada com 0 século. Mas 0 qué? O “curto século” de que falam os historiadores, iniciado com a Primeira Guerra Mundial ¢ finalizado com a queda do Muro de Berlim? O perfodo aberto pela Segunda Guerra Mundial, pela bipolaridade da Guerra Fria e pela acumulagao fordista nas metrdpoles industriais? Ou ainda um grande ciclo da histéria do capitalismo, inaugurado pela expansio imperuosa da segunda metade do século XIX, pelas conquistas coloniais e pela emergéncia do imperialismo moderno, pela formacao de um movimento operitio de massa com a criagio da I e da Il Internacional? Os grandes debates estratégicos sobre a emancipagao social datam, em grande medida, do periodo anterior 2 Primeira Guerra Mundial. Quer se trate da anélise do imperialismo (com as contribuigdes de Hilferding, Bauer, Rosa Luxemburgo Lenin, Parvus, Trotski, Bukharin); da quest4o nacional (com as teses mais uma vex de Rosa Luxemburgo, Lenin, Bauer, Ber Borokhov, Pannekoek, Strasser); das relagdes entre partidas e sindicatos ¢ do parlamentarismo (com os textos de Rosa Luxemburgo, Georges Sorel, Jaurés, Domela Nieuwenhuis ¢ Lenin); ou ” (com as polémicas entre Bernstei ainda dos “caminhos do poder + Kautskys Rosa Luxemburgo, Lenin, Trorski). Essas controvérsias sso constitutivas da historia contemporinea da mesma maneira que aquelas sobre a dindmica conflituosa entre revolugao contra- tevolucao no periodo entre as duas grandes guerras: guerra de posisao e guerra de movimento, frente unica, aliangas politicas, andlises do fascismo, dinamica da revolugio colonial, questéo nacional e internacionalismo. Para além das dife- rencas e das opasicées freqiientemente implacdveis, o movimento operdrio dequela época tinha ainda uma cultura ¢ uma linguagem comuns. Hoje, ttata- se de saber 0 que permanece dessa heranca sem dono nem manual. Petry Anderson considera que, desde a Reforma desLutero, jamais o mundo ficou tao sem alternativas a ordem dominante’, A situacao atual caracteriza-se sobretudo pelo desaparecimento de um movimento operério internacional independence. Eis que embarcamos em uma transi¢éo incerta, em que o velho agoniza sem ser abolido, o novo pena para eclodir, entre um passado nao ultrapassado € a descoberta balbuciante de um novo mundo em gestacao. Nessa passagem dificil, a tentacdo de se apegar a poucas conquistas de eficdcia comprovadamente polémica seria téo estéril quanto aquela da tibula rasa, que pretenderia (re)comegar tudo a partir do nada. E.com o antigo que realmente se faz.0 novo. Mas sempre se esté sujeito a parceiros e adversirios. Ora, 0 debate estratégico atinge hoje seu grau zero, como se o futuro tivesse de se reduzir a uma repeticao infernal da ordem existente e a histéria, de se imobilizar em uma eternidade mercant Ne Franca, a retérica da esquerda pluralista, cuja ambicao se limita desde jA& gestéo prosaica de um presente sem futuro, reflete-se na propria apatia dos discursos de resisténcia, no gosto evasivo pelo eufemismo e pela periftase. Sem diivida, tém-se os interlocutores que se merecem, Fomos designados entao a uma dupla responsabilidade, de transmissio de uma tradicSo ameagada de conformismo e de invengao audaciosa de um futuro incerto. De acordo com o senso comum mididtico, € sempre melhor ser aberto do que fechado. leve do que pesado, flexivel do que rigido. No entanto, em toda teoria, a desconfianca em relacao aos entusiasmos voliiveis e aos efeitos de moda exige sérias refutacdes antes de se por em questao um paradigma fecundo, Nao se craia de conservar piedosamente um capital doutrindrio, mas de entiquecer ¢ transformar uma visio do mundo 2 prova de priticas renovadas. O movimento operdrio internacional constituiu-se na segunda metade do século XIX com uma dupla relagdo — de continuidade € de ruptura — no que diz respeito a heranca do Tluminismo ¢ da Revolucao Francesa, A contra-reforma * Perry Anderson, “Renewals”, New Left Review, n. 1, jan, 2000. liberal atual nao mira somente a questio basica da Revolugao ¢ a idéia snista, Servindo-se do argumento das desilusdes do progresso, das aporias ¢ da ctise da universalidade, ela ataca as fontes intelectuais, com da rando pura racionalistas € tepublicanas da modernidade. Essa ofensiva alia, de mancira diversa, a redugio da realidade a “ficgGes verbais’, uma critica imprecisa do smo e uma redugio niinimalista ao “pensamento fraco”. cientifici Em um mundo mercantil, onde tudo vale ¢ se equivale, essa “crise de yeracidade” (até a rentincla & propria idéia de verdade) € propicia ao cinismo ¢ & indiferenga. As retéricas negacionistas constituem a manifestacao extrema ¢ escandalosa dessa “perda do carter teal” da histéria e dessa “destruicio da razio". © “potencial devastador” da crise da cultura abala efetivamente as convicgées herdadas do Século das Luzes. E, diz Paul Ricoeur, “2 autocompreensio de toda uma poca que est em jogo por ocasiao do debate em torno da verdade na histéria’. Haveria “no projeto de curto-circuitar 0 trabalho critico da histéria” uma intimacio exagerada ao “dever de meméria’. Na verdade, sofremos a ameaca de uma patologia da memoria, atravancada como um velho antiquatio, uma idolatria mortifera da lembranca ruminada até o ressentimento, entre impossiveis arrependimentos e imperdosveis omissbes. Ricocur prope também, substituir esse dever pelo “trabalho de memiéria”. Ele enfatiza, como outrora Walcer Benjami. titwigao, mais do que a “estdtica da lembranca” a dinamica da “evocacio”, da “rememoracao” ou da recons- Diante das loucuras nas quais o século XX foi prédigo, nio se trata de se recolher & Linha Maginot do racionalismo classico ¢ ao seu ideal de verdade, mas de encarar 0 desafio da pés-modernidade admitindo sua parte pertinente. As iversalic categorias razio, progresso, historia ou u ade rém tudo a ganhar ao aceitar a prova da catéstrofe e do desastre, Essa é a proposta destes teoremas da resisténcia para 0 tempo presente, cujo enunciado insiste deliberadamente no mom o necessiirio do negativo: a politica é irvedutivel a ética ¢ & estética; a luta de classes € irredutivel as identidades comunitarias: 4 dominagao nao é solitvel nas beatitudles da globalizagdo mercantil, Quadisquer que sejam as palavras para expressd-lo, 0 comunismo € irredutivel as steas fa fticas; ificagées buroe 4 dialética da razao & irreduttuel ao espelho quebrado da pés-modernidade Diferentemente de postulados indemonstriveis, que supdem 0 consen- timento do interlocutor, ou de axiomas que apelam para a forca da evidéncia, trata-se de proposicées demonstraveis. Com seus corolatios ¢ seus escélios, esses “itredutiveis” e “insoliiveis” constituem uma critica do caldeiréo de culrura pés- moderna ¢ dos novos idolos de cinzas*, Agradeco a Christophe Aguiton, Sébastien Budgen, Alex Callinicos, Philippe Corcuff, Samuel Joshua, Eustache Kouv u Jakis, Michael Lowy, Francisco Louga, Stavros Tombazos, Slavoj Zizek, assim como a Alfred de Musser ¢ Auguste Blanqui, pela contribuicdo que deram, por meio de seus escritos ou de sua conversa, para este pequeno ensaio. Teorema | A POLITICA £ IRREDUTIVEL A ETICA E A ESTETICA Hannah Arendt temia que a politica viesse a “desaparecer compleramente do mundo” nao so pela aboligao toralitdtia da pluralidade, mas também por sua issolugio nas aguas glaciais do célculo egoista, A tendéncia & despolitizacdo do presente confirma esse medo. © espayo piiblico est laminado entre as pressGes do horror econdmico ¢ as lamentacées de um moralismo abstrato. Esse depauperamento da politica e de seus atributos (0 projeto, a vontade, a acao coletiva) impregna 0 jargio da pés-modernidade. Para além dos efeitos da conjuntura, a partir do momento em que as metamorfoses do trabalho ¢ 2 inquietacio ecoldgica evidenciam os maus-tratos contra o mundo, trate-se exatamente de um malestar ¢ de uma crise na civilizacao. O culto moderno do progresso bascou-se mais em uma cultura do tempo € do futuro do que do espaco. Reduzido a um papel secundério, 0 espaco era sindnimo de morte ¢ imobilidade. Opunha-se & capacidade criadora do tempo vivo, O sentimenco estimulante da rapidez, que vai além do desempenho das técnicas, tem seu segredo. As roragbes demoniacas do capital revolucionam sem cessar as condigdes de sua valorizagao. Essa vertigem da aceleragdo comprime o tempo no momento e apaga os lugares na dilatagdo dos espacos A estetizacao da politica consticui uma resposta recorrente as crises da democracia. © entusiasmo pelo local ¢ pelas proximidades, a busca das origens, © actimulo ornamental ¢ o simulacro da autenticidade revelam, de fato, a angistia contemporinea diante da incerteza da agéo politica. Desde a cidade gtega, a politica envolvia uma escela determinada de ¢ ago ¢ de tempo, simbolizados pelo perimetro da cidade ¢ pelo rirmo dos mandatos eletivos. Hoje, evoca-se com cada ver. mais freqiiéncia a cidadania, porque a cidade € 0 cidadio sio maltrarados pela desorganizacao geral das escalas ¢ dos ritmos, O moralismo bem-pensante esforga-se, assim, para recuperar rapidamente © que uma politica desmoralizada deixa escapar. Essa secrecdo intensa de suores éticos é caracteristica dos perfodos de medo e imporéncia, em que a ago busca suas justificativas ora aquém Bra além da politica, Contra essas efusdes, Freud observou sobriamente que uma mudanca de atitude dos homens em relagao & propriedade seria mais eficaz do que qualquer preceito ético, que nada mais rem a nos oferecer além da satisfagdo narcisista de podermos nos considera: melhor do que os outros. No entanto, continuamos a viver “num perfodo em que existem cidades ¢ em que se coloca © problema da politica porque pertencemos a esse perfodo <ésmico no qual o mundo foi abandonado a sua sorte”’. Portanto, ndo estamos livres da politica enquanto arte profana do tempo e do espaso, enquanto esforeo obstinado para rectiar os limites do possivel em um mundo sem deuses, Corolécio 1 \ histéria nao é soldvel no tempo pulvetizado, nem 0 projeto no instante sem futuro A tejeicao pés-moderna das “grandes narrativas”, aquelas do [uminismo, assim como as da epopéia proletiria, ndo significa somente uma critica legitima das ilusées do progress associadas a0 despotismo da razéo instrumental, Fla indica também uma desconstrugio da historicidade, uma cocrida ao culto do imediato, do efémero, do descartavel. Nesses tempos desabusados, de ilusdes sem {lusio ¢ de politicas apoliticas, nesses tempos de “crueldade melancélica”, sm que nao se desenvolvem mais projetos € programas, a grande desilusao nio é mais liber adora, mas destrutiva dos préprios fundamentos da culture’, Na combine 20 dos tempos sociais, a eemporalidade politica deve continuar aquela Cornelius Castoriadis, Le politique de Piaton (Paris, Seuil, 1999) * Ver Jacques Hassoun, Actualité dun malaise (Toulouse, Erés, 1999), do mefo-termo, entre o instante fugidio ¢ a eternidade inacessivel. Ela exige, a lo . partir de encéo, uma escala move do tempo e da decisao. Escolio — Como vai o mundo, senhor? = Ripido, senor Tao sipido que a politica ea hisrria sauna la acompanié-lo Blas foram subitamentsafecads pel rapier! Considerar 0 efeito como causa € caracteristica desses comportamentos mgicos do mundo. Em tum vzosecent, Jean-Marc Salmon extasase —- ate prodigios de um Monde @ grande vitese (Um mando em alta veloidade. ms exe pensadorsg’ aacelragio ndo tem de se explicada, ma vez que se exp is pela rapide, asin como. sono & expicado pels virtues sonra da camomila ou do dpio! A internet ctia globalizacto. A rapiderctia a riqueza «para completar, a felicdade! Internet, a globalizagio. A tecnologia rege a orquesira. O artigo do Libération que explica essa descoberta surpreendente lembrou 6 percurso do autor, “um homem de esquerda que nao se incomoda com nostalgias”: Ex-maoista de maio de 1968, cx-participante do movimento SOS Racismo e da Marche des Beuts, ex-participante do movimento contra o desemprego AC!, ex- membro da associaco Droit au Logement [Dircito & moradia], ex-militante do Partido Socialista ¢ de sua corrente Esquerda Socialista, ex-assessor de Daniel Cohn- Bendit na épaca das eleicbes européias...” Essas mudancas sucessivas mereceriam um camaleio de ouro € uma entrada triunfal no Dictionnaire des girouettes [Diciondrio dos cata-ventos], concebido por Prosny d'Eppe em 1831. * Jean-Marc Salmon, Un monde a grande vitesse (Patis, Seuil, 2000). Ver Libération, 10/11/2000. " Sigla de rain & grande vives: trem de alta velocidade. (N.T.) Marche des Beurs: marcha contra o racismo ¢ pelo reconhecimento ¢ integragio sos filhos de imigrantes do Magreb nascidos na Franga, realizada em 1983, de Marselha a Paris, por milhares de pessoas, Daniel Cokn-Bendit: politico francés, hoje deputado curopeu, Foi lider do movimento estudantil de Maio de 1968. (N. E. Sea velocidade faz a riqueza, ao homem que gira mais rapido que sua sombra est destinada uma bela fortuna. Mas isso jamais explica que milagre leva a circulado mercantil a wansformar o nada em ouro ¢ o virar a casaca em atividade produtiva. O ex mais rdpido do reinado ultrapassou a barreira do som. Ele nao vai demorar muito a atingir sua velocidade de escape. Corolario 2 O lugar e 0 local nao sao soltiveis no silencio assustador dos espacos infinitos A contradigéo entre a mobilidade geogréfica do capital (como moeda ¢ mercadoria) e a imobilidade relativa do trabalho aparece, na época do impe- Halismo absoluro, como a forma de desenvolvimento desigual e combinado dos espagos ¢ dos tempos sociais. A organizacdo hierarquizada dos territérios ¢ a importancia crescente do controle dos fluxos (comerciais e monetarios, de informagdes ou de matérias-primas) delineiam uma “nova ordem mundial” forte que reina sobre uma colcha de retalhos de Estados fracos, Ora, a agio politica tem seus lugares e seus ritmos prdprios. Os acontecimentos ganham nomes de cidades (Comuna de Paris, Petrogrado, Turim, Hambuzgo, Barcelona), de campos de batalha e de datas em que se deram (14 de Julho, 17 de Outubro, 26 de Julho). Enquanto a mercantilizaggéo do mundo ¢ o fetichismo da abstragio monetdria uniformizam os espacos, somente a lura de classes, sustentava Henri Lefebvre, ainda pode produzir diferencas espaciais irredutiveis & légica econémica tinica. Corolério 3 A conti géncia estratégica é irredutivel @ necessidade econdmica A arte da decisio, do momento propicio, da bifurca cio aberta para a esperanga € uma arte estratégica do possivel. Nao 0 sonho de uma possibilidade abstrata, em que tudo que nao ¢ impossivel seria possivel, mas a arte de uma possibilidade dererminada pela situagdo concreta: sendo cada situacéo singular, © momento da decisao ¢ sempre relativo a essa situacao, adaptado ao objetivo a ser atingido, Indo além das antinomias formais do sujeito ¢ do objeto, da estrutura ¢ do acontecimenco, do material ¢ do simbélico, do previsivel e do imprevisivel, a ruzio estratégica é a arte da resposta apropriada. Fla nao domina ituacio. Nao a sobrevoa, Nao a sobrepuja. Enraiza-se nela para novamente a siruagao. por em questio as sepras as normas estabelecidas Corolario 4 / O objetivo nao é sohivel no movimento, nem 0 acontecimento no processo O discusso da pés-modernidade concilia o gosto pelo acontecimento sem hiscia, simples happening em passado nem futuro, com 0 gosto pele Nudes sem crise, pela continuidade sem ruptura, pelo movimento sem objetivo. Em gua retorica da resignagéo, a destruicao do futuro atinge o grau zero da csttatgia: viver © momento, sem no entanto desfrusé-lo sem eneraves! Os arautos do futuro que desencanta contentam-se em pregar um “comunismo do 5, concebido como “um movimento gradual, permanente, sempre inacabado que inclui momentos de choques e rupturas™. Eles prop6em “um nove conccito 0, uma evolugéo revolu- de revolucao”, “um revolucionamento sem revolt ciondtia’, ou ainda uma “ultcapassagem sem demora”, em uma imediaticidade fora do tempo’, Para eles, “a revolugao nao € mais 0 que era, uma vez que nao hé mais momento tinico em que as evolucées se cristalizam’, “nao hd mais grande salto, grande dia da revolucdo social, nem limiar decisivo"*, mas um longo rio tranqiiilo de reformas gerenciais. A luz do social-liberalismo a0 molho financeiro da esquerda plural. “esse comunismo do ja’ tem um aspecto bem inexpressivo. Se nao hd momento revoluciondtio tinico, de epifania milagrosa ¢ de os decisivos ¢ limiares criticos a partir histéria, hd, no entanto, muitos momx dos quais se desencadeia uma légica do acontecimento. O desaparecimento da tuptura na continuidade corresponde & ilusio de um poder estatal soltivel na desalienagio i ndividual: “A formagdo progressiva de uma hegemonia leva mais +p : . sdiat (Paris, Plon, 1999) Piette Zarka, Lin communisme a swage immédiat (Paris, Plon, 199 * Lucien § ve, Commencer par les fins (Paris, La Dispute, 1999) * Roger Martelli, Le communisme, autrement (Paris, Syllepse, 1998) Pa cedo ou mais tarde ao poder nas condigées de uma anuéncia majoritéria”, garante Lucien Séve A austa de se dar tempo ao tempo, esse “mais cedo ou mais tarde” — versio modesta das “leis mecénicas da historia” — justifica uma politica fora do tempo, Ele afirma ignorar o circulo vicioso da reificagdo ¢ a reproducéo das servidoes involuntirias. A luz de um século em que osnomes proprios do desastre (Italia, Alemanha, Espanha, Chile, Indonésia) se seguem como as estacdes de um calvario, essa beatitude histérica parece bem imprudente. Coroldrio 5 A crise nao € solavel na eternidade majestosa das escruturas O passado de uma ilusdo, de Francois Furet, termina com um veredicto desesperadamente melancélico: “O individuo democrético vé tremer em suas bases, nesse fim de século, a divindade historia”, A ameaca de incerteza, junta- se 0 escandalo de um futuro fechado: “Eis-nos condenados a viver no mundo em que vivemos”. O capitalismo teria se tornado, entao, o fim da histéri 10 horizonte intransponivel de todos os tempos, Nao haveria mais depois, nem outro lugar. Estarfamos, a partir de entao, condenados a girar em cfrculos numa repeticao infernal das estruturas iméveis, como no pétio de um presidio, No entanto, ainda hé conflito contradiséo. Ha mais do que nunca um mal-estar na cultura e na civilizagio, Do mal-estar & crise, é apenas um passo, A crise € muito diferente de uma “guinada histérica’, que é, dizia Péguy, uma pobre “metéfora de um catrossel”, Ela sobrevém & intersecdo das presses da situagao e da contingéncia da aggo, Abre uma brecha no citculo vicioso das repetigdes, Faz seu buraco na o sta endurecida das dominacées, Semeia a desordem na rotina bem organizada dos trabalhos e dos dias. Nesses “pontos de crise” ¢ de “teviravolta”, a parte determinada liga-se a parte nao fatal do futuro, a Idgica histérica & irrupeao dos acontecimentos, A ctise ainda nao é 0 acontecimento, mas jd € seu antincio, uma porta entreaberta pela qual podem surgir a qualquer instante essas possibilidades téo distantes que a propria espera pareceria entorpecida, As horas entao se transformam, de repente, em minutos, € os anos em dias. Corokirio 6 , Auta politica ¢ irredutivel ao movimento soci a luta social ¢ a luta politica, nao ha nem Muralha da China nem re a . ancias 3 racéo absolura. A politica surge € inventa-se no soc al, nas resisténcias 2 separagao abs' hut 0 6 opresséo, no enunciado de novos direitos que transformam as vitimas em re ativos. Como instituigao sep: ; oe como encarnz¢a0 iluséria do interesse geral e garantia, apesa dee espago publico irredutivel 20 aperce privado, o Estado estrurura um ca politien especfio, ume relagio de forgas particular, uma inguager propria i conflito, Os antagonismios sociais manifestam-se af num jogo de mudangas e de dealiangase de oposigées. A luta de classes toma, assim, 2 forma arada que paira acima da “sociedade civil”, su condensagées, mediada de uma luta politica de partidos a ‘udo ¢ politico? Em certa medida e até certo ponto, Em “tltima instanci: se quisermos, € de diversas maneinas. se Entre partidos ¢ movimentos sociais, mais do que uma simples trabalho, ha uma seciprocidade ¢ uma complementaridade, Enquanco subordinacéo dos movimentos sociais aos partidos politicos seals i estatizacio do social, a dissolucio dos partidos no movimento social signi es ait ba ail lones um inquietante enfiaquecimento da politica, Reduzida a um prolong imitari: by cs ivo. A soma de interesses direto do social, ela se limitaria ao /obby corporati : particulates sem vontade geral acabariz delegando 2 uma burocracia todo- poderosa 2 representacao do universal. . A dialética da emancipagio néo € uma marcha inevitével ramo a um fim garantidot as aspiracbes ¢ as expectativas populases sio variadas, contraditozias, i ere ur én i de e uma demanda de freqitentemente divididas entre uma exigéncia de liberda ¢ em articulé-las ¢ conjugé-las seguranca. A fungio especifica da politica co por meio de um furaro histérico cujo fim continua incerto. Escdlio 6.1 Comentando ecimenro das opgées politicas auténticas € consi 01 © desapareci ‘© das op 0 tand a interferénc! cernati © so trai s, em alguns lo que a interferéncia das alternativas de classe so traduzidas, en i ns incoerentes € paises, por plataformas “arco-itis", concebidas como colagens incoerente slogans abrangentes indexados pelas pesquisas de opiniao, Zygmunt Bauman se pergunta sobre a capacidade que tém os “novos movimentos sociais” de fornecer uma resposta para a crise das politicas. Eles nio escapam dos tracos caracteristicos da pés-modernidade: um tempo de vida curto; uma continuidade fraca; a formaco de agregados tempordtios de individuos reunidos pela contingéncia de um tnico dano ¢ dispersadgs logo que o litigio € resolvido. Nao é uma questao, especifica Bauman, de falta de programas ou de dirigentes: em tempos de desacordo, essa inconsténcia € essa intermiténcia tefletem sobretudo 0 caréter ndo cumulativo dos softimentos ¢ das queixas. Portanto, esses movimentos de ambicées modestas nao sao muito capazes de cxigir grandes transformages em grandes questées. Sua fragmentagéo é 0 reflexo fiel da perda de soberania de Estado nacional, ele mesmo reduzido as fungées de vigia de seguranga e de repressdo penal no ambiente permissivo do laisser-fuire mercantil’. Richard Rorty suspeita de uma ligacao estreita entre pés-moderaismo € derrotismo politico’. Slavoj Zitek vé na disperséo dos novos movimentos sociais, na proliferacao de novas subjetividades, na volta aos “estados”, aos “status” € aos “corpos” a conseqiiéncia do obscurecimento da consciéncia de classe ¢ da resignagdo as decroras sofridas, A isso ele opde uma recusa radical do recalque do social ¢ do formalismo politico em voga nas “filosofias politicas” da tiltima década. O gesto que pretende tragar a fronteira entre politico ¢ nao-politico, para tirar da politica algumas areas (a comecar pela da economia), é, na verdade, de seu ponto de vista, “um gesto politico por exceléncia”. Escélio 6.2 Segundo Ernesto Laclau, a emancipaio seria indefinida e fatalmente contaminada pelo poder. Sua completa realizacao significatia 2 extingao cotalitéria ” Carta de Zygmunt Bauman a Dennis Smith, em Dennis Smith, Zygynunt Baseman, prophet of post-modernity (Cambridge, Polity Press, 1999) * Richard Rorey, Philosophy and social hope (Londres, Penguin Books, 1999). S 2 Yes, please!” em Judith Butler, Ernesto Laclau ¢ Slavoj Zizek, Contingency hegemony. universality (Londres, Verso, 2000), p. 95. oj Zick, “Class struggle or post-modernii daliberdade, A crise da esquerda seria o resultado de um duple aniquilamento do a faturo: a faléncia do comunismo burocratico e a bancarroca do reformismo juturot keynesiano. Se vo imaginério social”. Uma ver que Laclau renuncia, de cara, a qualque: nov 1 1s improvével renascimento passaria pela “reconstrucéo de um alternativa radical, 2 férmula é deliberadamente vag. Diante da nova domesticidade de cencro-esquerda e de suas causées rizek insiste, ao contrario, na necessidade de “manter aberto intelectuais, Slavoj ‘ 0 espaco ut6pico de uma alternativa global mesmo que ese espago sae “ permanecer yazio a espera de seu conteuido”. Na verdade, a oa ‘ exquerda” deve escolher entre a resignayio ¢ a recusa da chantagem liber segundo a qual toda tentativa de mudanca radical levaria necessariamente« um novo desastre totalitario. O proprio Laclau nao abandona nenhum objetivo de unificacéo. Mas a dispersio dos movimentos The parece insuperivel. Acéfalos, reticulares, rizomaticos, estariam condenados & inceriorizagao subalterna do discurso dominante, No entanto, podem também anunclar a teorganizacio das resisténcias nas diferentes esferas da reproducéo social e uma multiplicasao dos campos de luta. Seriam entéo portadores de especanea, desde que ultrapassassem sua atomizagio € pensassem sua articulacao. Sem isso, nao terlam outro futuro possivel a nao ser o papel de grupo de pressio de ambicao limitada; sua unificagdo autoritaria por meio da palavra de um chefe ou de uma vanguarda cientifica (um novo avatar do “socialismo cientifico” de sinistra meméria), ou a subordinagéo a uma vanguarda “ética” ¢ ao imperativo categérico da razao pura. Entio, esses movimentos nao conseguiriam mais se juntar na extensio do dominio da luta. Nos discursos da resisténcia, essa dificuldade é freqiientemente revelada, mas nao resolvida, pelas expresses “autonomia relativa”, “articulagéo” ou “homo- logia”. A “autonomia relativa” opde-se auconomia absoluta, mas relativa a qué? © que é que constitui a “homologia” entre os diferentes campos? O que torna sua “articulacéo” pensével po’ Os campos néo séo todos equivalentes. “Nas sociedades contemporaneas, 0 campo econdmico nao é realmente distinto dos outros universos”, escreve Bemard Lahire. Mesmo quando se cultiva a autonomia do campo no mais alto Sfau, acaba-se sempre por encontrar, em um ou outro momento, “a légica

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