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A GARANTIA CONSTITUCIONAL DA NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO,

SUA EXTENSÃO E APLICABILIDADE NO PROCESSO


ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR.
Eduardo Henrique Titão Motta*

Resumo
Trata-se de artigo científico que define a garantia constitucional da não
autoincriminação como vigente no processo penal e suscita sua aplicabilidade no
direito administrativo disciplinar por meio de uma teoria geral da infração
administrativa, que engloba elementos e garantia constitucionais e processuais
penais. Em virtude da dúvida acerca da aplicabilidade da garantia em oposição aos
princípios da administração pública, especialmente a militar, foram apresentados
precedentes históricos, doutrinários e jurisprudenciais para confirmar a tese,
sugerindo uma mudança de paradigmas na administração pública e concedendo
àqueles que a ela se subordinam, a segurança jurídica do garantismo.

Abstract
This is a scientific paper that defines the constitutional guarantee of the privilege
against self-incrimitation as seen in criminal proceedings and proposes its
applicability in administrative disciplinary law through a general theory of
administrative violation that envelops constitutional and criminal procedure elements
and guarantees. Due to the doubt about the applicability of of the guarantee in
opposition to the principles of public administration, especially militaries, some
historical, doctrinal and jurisprudential precedents were presented in order to confirm
the theory, suggesting a change of model in public administration and giving to those
who are legally under its yoke, the legal security of guaranteeism.

Para Tati, que soube de tudo mesmo sem saber.

*
O autor é 1º Tenente da Polícia Militar do Estado do Paraná, Formado Pela Academia Policial-Militar
do Guatupê em 2008 e Especialista em Polícia Judiciária Militar pela mesma instituição. Acadêmico
de Direito na Universidade Federal do Paraná, também é Especialista em Direito Administrativo
Disciplinar pela Universidade Tuiuti do Paraná. Estudioso do Direito Constitucional e sua relação com
o Direito Administrativo Disciplinar e com o Direito Militar, participou em 2010 e 2011 de Grupo de
Estudos em Direito Militar da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Presta serviços na
Corregedoria-Geral da Polícia Militar do Paraná desde 2012 na presidência e análise de processos
administrativos disciplinares. eduardotitao@pm.pr.gov.br http://lattes.cnpq.br/2702086830146618
1

Sumário

1. Introdução e Precedentes Históricos 4

2. A Garantia da Não Autoincriminação e as Constituições 7

3. No Supremo Tribunal Federal 9

4. O Interrogatório, a Plenitude do Exercício da Defesa e as 11


Extensões da Garantia da Não Autoincriminação

5. A Aplicabilidade da Garantia no Direito Administrativo 13


Sancionador e a Mentira do Acusado

6. Conclusão 17

7. Referências 18
2

1. Introdução e Precedentes Históricos

―Você tem o direito de permanecer calado. Tudo o que você disser poderá ser
usado contra você no tribunal‖. Este aviso, comumente visto nos filmes
hollywoodianos e séries policiais estadunidenses, é parte dos direitos conhecidos
como Miranda Warnings (ou Avisos de Miranda). A declaração remete ao caso
Miranda vs. Arizona1, leading case da garantia da não autoincriminação, julgado pela
Suprema Corte dos Estados Unidos em 1966 que, a partir do pressuposto
constitucional estabelecido pela 5ª emenda2, de 1791, estabelece os parâmetros
para sua aplicação nas justiças estaduais e inclusive em interrogatórios pré-
processuais.

Na decisão, o juízo constitucional estabelece os princípios limitadores da


atuação do poder público, subordinando-os à garantia do devido processo legal e
determinando que o Estado deve estabelecer o conjunto probatório processual de
maneira independente, sem ter que necessariamente contar com a confissão ou a
colaboração do acusado.

O privilege against self-incrimination do direito americano confunde-se Nemo


Tenetur se Detegere, brocardo latino que significa “ninguém é obrigado a acusar a si
mesmo‖ (COUCEIRO, 2004. p. 25) e é tema recorrente nas constituições dos
estados modernos. Estabelecido para limitar a atuação Estatal, ―a origem desse

1
O caso foi predecessor de uma Landmark na Suprema Corte dos Estados Unidos, que adotam o
sistema de Common Law. A corte entendeu que toda declaração feita em resposta a um
interrogatório, tanto à autoridade policial ou judicial, deve ser precedida da informação, ao acusado,
de seu direito de permanecer em silêncio, de consultar um advogado e de não se autoincriminar.
2
Amendment 5. No person shall be held to answer for a capital, or otherwise infamous crime, unless
on a presentment or indictment of a Grand Jury, except in cases arising in the land or naval forces, or
in the Militia, when in actual service in time of War or public danger; nor shall any person be subject
for the same offence to be twice put in jeopardy of life or limb; nor shall be compelled in any criminal
case to be a witness against himself, nor be deprived of life, liberty, or property, without due process
of law; nor shall private property be taken for public use, without just compensation. Indictment by a
grand jury requires the decision of ordinary citizens to place one in danger of conviction. Double
jeopardy means that when one has been convicted or acquitted, the government cannot place that
person on trial again. The self-incrimination clause means that the prosecution must establish guilt by
independent evidence and not by extorting a confession from the suspect, although voluntary
confessions are not precluded. Due process of the law requires the government to observe proper
and traditional methods in depriving one of an important right. Finally, when the government seizes
property to use in the public interest, it must pay the owner fair value. (5ª emenda à Constituição dos
Estados Unidos da América. Disponível em <http://www.senate.gov/civics/constitution_item/
constitution.htm#amdt_5_1791>)
3

princípio está na Inglaterra do final do século XVI, em protesto contra os métodos


inquisitoriais dos tribunais eclesiásticos(...), mas também foi uma reação, ocorrida no
século XVII, contra os brutais mecanismos de interrogatório utilizados por agentes
do Estado na época do reinado de Charles I.‖ (NUCCI, 2009, p.3)

Os mecanismos cruéis de interrogatório e a obtenção da confissão por meio


da tortura são denunciados pelo filósofo Michel Foucault:

Essa dupla ambigüidade da confissão (elemento de prova e


contrapartida da informação; efeito de coação e transação
semivoluntário) explica os dois grandes meios que o direito criminal
clássico utiliza para obtê-la: o juramento que se pede ao acusado
antes do interrogatório (ameaça por conseguinte de ser perjuro
diante da justiça dos homens e diante da de Deus; e ao mesmo
tempo, ato ritual de compromisso); a tortura (violência física para
arrancar uma verdade que, de qualquer maneira, para valer como
prova, tem que ser em seguida repetida, diante dos juízes, a título de
confissão ―espontânea‖). No fim do século XVIII, a tortura será
denunciada como resto das barbáries de uma outra época: marca de
uma selvageria denunciada como ―gótica‖. (FOUCAULT, 2007, p35)

A garantia da não autoincriminação, porém, era repudiada por autores pré-


revolucionários, como Jeremy Bentham e Césare Beccaria. Este último, apesar de
ser um forte crítico do sistema penal da época, sustentava que ―aquele que, durante
o interrogatório, insistir em não responder às perguntas feitas, merece pena fixada
em leis, pena das mais graves entre as cominadas, para que os homens não faltem
à necessidade do exemplo que devem ao público‖ (BECCARIA, 1997, p.122).

Tal visão foi superada, pois não coadunava com os ideais de Igualdade,
Liberdade e Fraternidade e com as garantias do Estado de Direito.

Para Nucci (2008, p.41) ―o Estado é a parte mais forte na persecução penal,
possuindo agentes e instrumentos aptos a buscar e descobrir provas contra o
agente da infração penal, prescindindo, pois, de sua colaboração. Seria a admissão
da falência de seu aparato e fraqueza das autoridades se dependesse do suspeito
para colher elementos suficientes para sustentar a ação penal.‖

Segundo Amaral (2009, p.28), ―se o Estado de Direito surge vinculado à


noção de garantias inderrogáveis, vedações intransponíveis (vedação de punir,
prender, perseguir, censurar, etc., sem que estejam presentes as condições
estabelecidas em lei), tais direitos adquirem o status de invioláveis, indisponíveis e
inalienáveis.‖ Para ele, o garantismo está voltado para a ―limitação do princípio
4

democrático no que tange ao estabelecimento de leis que restrinjam princípios de


direitos e garantias individuais em nome da realização de um interesse coletivo.‖
(AMARAL, 2009, p.29)

A limitação do poder estatal e o estabelecimento de regras para sua atuação


são corolários do atual Estado de Direito, sendo que “a boa aplicação dos direitos
fundamentais de caráter processual, principalmente a proteção judicial efetiva,
permite distinguir o Estado de Direito do Estado Policial.”3

A presente pesquisa, baseia-se nas premissas do princípio constitucional da


não auto-incriminação, sua extensão, resistências doutrinária e aplicabilidade no
âmbito do direito administrativo disciplinar.

3
Habeas Corpus nº 91.514, 2ª Turma. Rel. Min. Gilmar Mendes. (DJE de 16-5-2008).
5

2. A Garantia da Não Autoincriminação e as Constituições

Com o advento do Iluminismo e o repúdio às práticas judiciais inquisitórias,


advieram as primeiras constituições modernas e, com elas, o início da extensão dos
direitos dos acusados.

A constituição dos Estados Unidos — também chamada de Carta da


Filadélfia, estabelecida em 1787 — e a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, fruto da Revolução Francesa de 1789, eram baseadas nos preceitos
iluministas de filósofos como Rousseau. Em oposto aos ideais absolutistas
tradicionais dos Estados Monárquicos do Séc. XVII e XVIII foram marco histórico na
garantia de direitos, sendo consideradas as primeiras e mais importantes Cartas
Políticas dos Estados Nacionais modernos.

A primeira Constituição brasileira não carrega a garantia contra a


autoincriminação, mas trouxe importantes mudanças. No campo dos direitos e
garantias individuais, a Constituição de 1824, apesar de assegurar principalmente os
direitos dos nobres, traz, como influência do pensamento vigente na Europa, a
proibição de açoites, torturas e penas cruéis.

Posteriormente, com as Constituições de 1891 e de 1934, incorporou-se ao


ordenamento jurídico pátrio a figura da ampla defesa. As cartas políticas de 1937 e
1946 trazem o instituto do contraditório, garantia mantida nas Constituições de 1967
e 1969. Porém, a garantia da não autoincriminação só é apresentada na Carta
Magna de 1988, após a redemocratização do Estado.

A garantia da não autoincriminação foi prevista em nossa Constituição


Federal no Art. 5º, LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o
de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de
advogado.

Era o início da garantia no ordenamento jurídico nacional.

O princípio da ampla defesa, que já constava no ordenamento jurídico


nacional, era desvirtuado especialmente em relação ao tratamento da confissão e do
6

silêncio do acusado e vítima da falta de normatização em face aos procedimentos


policiais.

Exemplo da desvirtuação desse direito era visto no Art. 186 do Código de


Processo Penal de 1941, que, antes da nova redação estabelecia que ―antes de
iniciar o interrogatório, o juiz observará ao réu que, embora não esteja obrigado a
responder às perguntas que Ihe forem formuladas, o seu silêncio poderá ser
interpretado em prejuízo da própria defesa‖.

Ora, o Silêncio do Acusado importava prejuízo à defesa, o que vai


frontalmente de encontro ao estatuído no Art. 5º, LV, da Constituição Federal.

O disposto pelo Art. 186 do Código de Processo Penal foi amplamente


discutido no âmbito jurídico e no STF durante a década de 90 — década que marcou
a aplicação e discussão das garantias estabelecidas pela constituição, a adequação
das normas anteriores e sua recepção pela Carta Magna — porém, somente no ano
de 2003 a Lei nº 10.792 conformou o texto com a Constituição Federal, conferindo-
lhe a seguinte redação:

Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro


teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o
interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder
perguntas que lhe forem formuladas.
Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não
poderá ser interpretado em prejuízo da defesa.
7

3. No Supremo Tribunal Federal

A interpretação literal do texto constitucional atribui a garantia da não


autoincriminação somente ao preso (seja durante a fase policial o judicial), não
conferindo à norma o alcance devido e tornando-a sem coerência interna no
ordenamento jurídico.

Numa interpretação diversa, sistemática, Conforme a Constituição4, a garantia


deveria ser estendida para qualquer outro indivíduo submetido a processos ou
procedimentos policiais.

Neste sentido, o Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos e a


Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, ambos assinados pelo Brasil, não
utilizam a palavra preso, mas ampliam o direito a “toda pessoa acusada de um
delito”.5

Inaugurando a tratativa da garantia da não autoincriminação no Supremo


Tribunal Federal somente após mais de 03 anos da promulgação da Constituição de
1988, o Ministro Celso de Mello, em voto no Habeas Corpus nº 68.742-3/DF,
postula:

Qualquer indivíduo que figure como objeto de procedimentos


investigativos policiais ou que ostente, em juízo penal, a condição jurídica
de acusado tem, dentre as várias prerrogativas que lhe são
constitucionalmente asseguradas, o ‗direito de permanecer calado‘. [...] E

4
A interpretação conforme a Constituição encontra sua raiz no princípio da supremacia da
Constituição, que visa equilibrar o poder normativo em face da disposição constitucional. Ela
determina os possíveis sentidos de interpretação adequados aos ditames constitucionais. (MOTTA,
2011, p.10)
5
Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos, instituído pelo Decreto nº 592 - de 6 de julho de
1992. Art.14, 3. Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualdade, a, pelo menos,
as seguintes garantias: g) de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se
culpada. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica),
instituída pelo Decreto nº 678 - de 6 de novembro de 1992. Art. 8º - Garantias judiciais: 2. Toda
pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for
legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade,
às seguintes garantias mínimas: g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a
confessar-se culpada; e
8

nesse direito ao silêncio inclui-se, até mesmo por implicitude, a prerrogativa


processual de negar, ainda que falsamente, perante a autoridade policial
ou judiciária, a prática de ilícito penal.6

O pleno do STF já em maio de 1994, ao julgar o RHC nº 71.421-8/RS, fez


constar:
Esta Suprema Corte, fiel aos postulados constitucionais que
delimitam, nitidamente, o círculo de atuação das instituições estatais,
salientou que qualquer indivíduo que figure como objeto de
procedimentos investigativos[...] tem, dentre as várias prerrogativas
que lhe são constitucionalmente asseguradas, o direito de
permanecer calado. Nemo tenetur se detegere. Ninguém pode ser
constrangido a confessar a prática de um ilícito penal. O direito de
permanecer em silêncio insere-se no alcance concreto da cláusula
constitucional do devido processo legal. (RTJ 141/ 512)

O supremo inova, ainda, quando veda a interpretação ou qualquer menção


negativa do juiz quando da invocação, pelo acusado, de seu direito de manter-se
calado.

A autodefesa consubstancia, antes de mais nada, direito natural. O


fato de o acusado não admitir a culpa, ou mesmo atribuí-la a terceiro, não
prejudica a substituição da pena privativa do exercício da liberdade pela
restritiva de direitos, descabendo falar de 'personalidade distorcida'.7

Prisão preventiva: fundamentação inadequada. Não constituem


fundamentos idôneos, por si sós, à prisão preventiva: [...] b) a consideração
de que, interrogado, o acusado não haja demonstrado ‗interesse em
colaborar com a Justiça‘; ao indiciado não cabe o ônus de cooperar de
qualquer modo com a apuração dos fatos que o possam incriminar – que é
todo dos organismos estatais da repressão penal [...].8

Além disso, o Supremo ainda estabelece uma extensão para a garantia da


não autoincriminação como veremos a seguir, especialmente no período entre 1997
e 2001, época em que convocados para serem ouvidos em Comissões
Parlamentares de Inquérito no Congresso Nacional, solicitavam Habeas Corpus a
fim de garantir sua liberdade em face de seus depoimentos ao Legislativo.

6
Habeas Corpus nº 68.742-3/DF. Plenário. (DJ de 20/04/1993)
7
Habeas Corpus nº 80.616, 1ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio. (DJ de 12/3/2004)
8
Habeas Corpus nº 79.781, 1ª Turma, Rel. Min. Sepúlveda (DJ de 9-6-2000.)
9

4. O Interrogatório, a Plenitude do Exercício da Defesa e as


Extensões da Garantia da Não Autoincriminação

A garantia da não autoincriminação está arraigada à defesa técnica, cabendo


ao advogado o dever de orientar seu cliente acerca da possibilidade de exercer seu
direito ao silêncio e garantindo a amplitude da defesa.

O interrogatório, portanto é o mecanismo processual no qual mais se aplica a


garantia, em razão de sua dupla função (meio de prova e de defesa).

O interrogatório judicial constituía tradicionalmente o mecanismo primordial


para que o juiz extraísse a confissão do acusado.

Após a Constituição Federal de 1988 a confissão, antes considerada como a


rainha das provas, perdeu sua importância, dividindo a doutrina em duas partes, que
a reconhecem como meio de prova ou meio de defesa.

Não se pode negar a importância do interrogatório, pois nele o juiz tem


condições de fazer perguntas ao acusado. No caso de o acusado abrir mão de seu
direito ao silêncio, suas respostas serão importantes para a formação do
convencimento do juiz, constituindo-se meio de prova.

A confissão é um meio de prova, como qualquer outro, admissível


para a demonstração da verdade dos fatos. Contudo, por si só, não
significa, necessariamente, o imediato encerramento da busca da verdade
material; é preciso confrontá-la com as demais provas constantes dos
autos. (CGU 2012, p.223)

Porém a doutrina majoritária atualmente se inclina no sentido de considerar o


interrogatório como meio de defesa. A especial mudança trazida pela Constituição
Federal, garantindo o direito ao silêncio e a não intervenção das partes durante o
interrogatório são elementos que garantem tal entendimento. Neste sentido:

―Em sede de persecução penal, o interrogatório judicial –


notadamente após o advento da Lei 10.792/2003 – qualifica-se como ato
de defesa do réu, que, além de não ser obrigado a responder a qualquer
indagação feita pelo magistrado processante, também não pode sofrer
qualquer restrição em sua esfera jurídica em virtude do exercício, sempre
legítimo, dessa especial prerrogativa. Doutrina. Precedentes. [...] O
desrespeito a essa franquia individual do réu, resultante da arbitrária
recusa em lhe permitir a formulação de reperguntas, qualifica-se como
causa geradora de nulidade processual absoluta, por implicar grave
10

transgressão ao estatuto constitucional do direito de defesa. Doutrina.


9
Precedente do STF.‖

Todavia, o que mais se destaca nas decisões são as extensões do direito de


permanecer calado. Aqui três extensões podem ser enumeradas: 1) além da pessoa
do acusado; 2) além do interrogatório; e 3)além do direito de calar.

Ao ser relator no Habeas Corpus nº 79.244-8/DF já no ano de 2000, o Ministro


Sepúlveda Pertence é categórico ao estender os limites do Nemo Tenetur se
Detegere para além dos acusados no processo, estendendo a garantia a todas as
pessoas que prestem declarações a autoridades policiais e judiciais cujo conteúdo
possa importar imputação de crime ao declarante:

A garantia contra a autoincriminação não tem limites espaciais nem


procedimentais: estende-se a qualquer indagação por autoridade pública
de cuja resposta possam advir subsídios à imputação ao declarante da
prática de crime.

A extensão para além do interrogatório, desobrigando do fornecimento de


elementos de prova pericial, como exame bafométrico, fornecimento de material
genético para confrontação de padrões de DNA e padrões grafotécnicos ou vocais a
fim que sejam periciados.

O privilégio contra a autoincriminação,garantia constitucional, permite


ao paciente o exercício do direito de silêncio, não estando, por essa razão,
obrigado a fornecer os padrões vocais necessários a subsidiar prova
pericial que entende lhe ser desfavorável. 10

Por fim, a garantia ainda confere ao acusado a prerrogativa de negar a prática


da infração penal, estendendo seu direito de calar a um indistinto direito de mentir:

Dispenso-me da custosa demonstração do óbvio de que ao indiciado


não cabe o ônus de colaborar de qualquer modo com a apuração dos fatos
que o possam incriminar – que é todo dos organismos estatais de
repressão – e que, ao contrário, o que lhe assegura a Constituição é o
direito ao silêncio, quando não à própria mentira. (HC 75257, 1ªT., Moreira,
17/06/1997, DJ 29/08/1997; HC 68929, 1ªT. Celso, 22/11/1991, RTJ
149/494).11

Exemplos da concreta aplicação do garantismo penal no âmbito da Suprema


Corte nacional, ainda que a doutrina esteja dividida, especialmente na aplicação de
princípios constitucionais e processuais penais ao processo administrativo
disciplinar, como adiante veremos.

9
Habeas Corpus nº 94.016, 2ª Turma Rel. Min. Celso de Mello. (DJE de 27/02/2009.)
10
Habeas Corpus nº 83.096, 2ª Turma, Rel. Min. Ellen Gracie. (DJ de 12-12-2003.)
11
Habeas Corpus nº 79.781-4/SP, 1ª Turma. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. (DJ de 09/06/2000)
11

5. A Aplicabilidade da Garantia no Direito Administrativo


Sancionador e a Mentira do Acusado

A fim de evitar abusos de poder disciplinar, especialmente em virtude da


errônea aplicação do princípio da atipicidade no direito administrativo disciplinar
proposta por Di Pietro por diversos administradores, necessário se faz estudar a
aplicabilidade de instrumentos processuais penais e princípios constitucionais na
formação do direito administrativo em sua modalidade sancionadora.

O moderno doutrinador, fazendo um paralelo entre o Direito Penal e o Direito


Administrativo, propõe uma Teoria Geral da Infração Administrativa, aproximando-se
da Teoria Geral do Delito e tomando por empréstimo princípios processuais e
garantias constitucionais a serem aplicados no âmbito da administração.

Sustentamos que adotar esse novo pressuposto é necessário, sob pena de o


Direito Administrativo Disciplinar, ou Sancionador – como propõe o ilustre professor
Daniel Ferreira – ―mal ter nascido e já figurar caduco‖(FERREIRA, 2009, p.73)

Não há que se diferir e afastar a infração administrativa do ilícito penal, pois


são originários do mesmo tronco na árvore do direito – a Constituição – apesar de
protegerem interesses distintos:

A sanção administrativa é aplicada para salvaguardar os interesses


exclusivamente funcionais da administração pública, enquanto a sanção
criminal destina-se à proteção da coletividade. Consoante o entendimento
desta corte, a independência entre as instâncias penal, civil e
administrativa, consagrada na doutrina e na jurisprudência, permite à
administração impor punição disciplinar ao servidor faltoso à revelia de
anterior julgamento no âmbito criminal, ou em sede de ação civil, mesmo
que a conduta imputada configure crime em tese.12

A doutrina explica tal aproximação pela origem e finalidade em comum, mas


distingue os dois ramos pelos critérios de aplicabilidade e pela autoridade
sancionadora.

O fator de discriminação entre os ilícitos penal e administrativo está


no específico regime jurídico a que se subordina a sanção correspondente.
Sendo essa uma penal, configurará um delito a conduta efetivamente

12
TRF 1ª Região; AC 2000.42.00.002195-2/RR
12

praticada; ao contrário, sendo sanção administrativa, uma anterior infração


ter-lhe-á dedo ensejo. (FERREIRA, 2001, p.59)

Não há, pois, que se cogitar de qualquer distinção substancial entre


infrações e sanções administrativas e infrações e sanções penais. O que
as aparta é única e exclusivamente a autoridade competente para impor a
sanção[..](MELLO, 2004, p.743)

Em virtude de tal aproximação, e, para garantia da segurança jurídica do


acusado, aproximam-se princípios processuais penais do processo administrativo.
Ressalte-se que tais garantias foram, a duras penas, conseguidas e desenvolvidas
no processo penal ao longo dos tempos. O direito administrativo, por seu critério
eminentemente interno da administração e por ser ramo moderno e ainda pouco
estudado do direito, pode – e deve – aproveitar de tais benesses, sob pena de uma
tiranização administrativa de maneira antagônica ao garantismo penal vigente.

Os princípios e institutos de direito penal, secularmente estudados e


desenvolvidos, são plenamente aplicáveis ao direito administrativo
disciplinar, mormente quando direitos e garantias fundamentais
constitucionalmente qualificados são objetos de relação jurídica, formal e
material, formada entre Estado-Administração, no exercício do poder
disciplinar, e o servidor público acusado, em instrumento apuratório e
punitivo, de cometimento de falta grave ou média (DEZAN, 2005)

Alexy(1993), em sua obra mais importante, sustenta que princípios13 são


padrões que devem ser observados porque são requisitos da justiça, igualdade ou
da moralidade e, portanto devem ser aplicados após se estabelecer um juízo de
valor. No caso da colisão entre princípios deve ser feito um sopesamento para
determinar o grau de aplicabilidade de cada um.

A administração militar, por exemplo, baseia-se no princípio constitucional da


publicidade. No caso de um pedido de sigilo na aplicação de uma punição a um

13
A menudo, no se contraponen regla y principio sino norma y principio o norma y máxima . Aquí las
reglas y los principios serán resumidos bajo el concepto de norma. Tanto las reglas como los
principios son normas porque ambos dicen lo que debe ser. Ambos pueden ser formulados con la
ayuda de las expresiones deónticas básicas del mandato, la permisión y la prohibición. Los
principios, al igual que reglas, son razones para juicios concretos de deber ser, aun cuando
sean razones de un tipo muy diferente. La distinción entre reglas y principios es pues una distinción
entre dos tipos de normas. El punto decisivo para la distinción entre reglas y principios es que los
principios son normas que ordenan que algo sea generalizado en la mayor medida posible dentro de
las posibilidades jurídicas reales existentes. Por lo tanto, los principios son mandatos de
optimización que están caracterizados por el hecho de que pueden ser cumplidos en diferente
grado y que la medida debida de su cumplimiento no sólo depende de las posibilidades reales
sino también de las jurídicas. El ámbito de las posibilidades jurídicas es determinado por los
principios y reglas opuestos (ALEXY, 1993, p.83-86, grifei)
13

servidor em virtude de seu cargo ou de seu posto na organização, o administrador


ciente de suas obrigações constitucionais, deve decidir se orienta sua conduta pelo
princípio da moralidade (que orienta a punição como exemplar e moralizadora) ou da
legalidade (em virtude de prescrição legal que afirma que tais publicações devem
ser reservadas).

A valoração, entretanto, não cabe quando princípios são oriundos de fontes


hierarquicamente diversas. Entre um princípio constitucional e um processual penal,
por exemplo, não há conflito, pois o primeiro sempre será superior, por seu caráter
difuso e universal.

Observe-se a visão de MIKALOVSKI (2009, p.77) que, observando os


princípios da hierarquia e disciplina, tipicamente incrustados no regulamentos
disciplinares, e, em face do tema da mentira por parte do acusado em processo
administrativo disciplinar, afirma:

Quanto à possibilidade de o acusado faltar à verdade, o assunto


suscita posições controversas, todavia, o entendimento que deve
prevalecer, considerando a peculiaridade das obrigações militares, é a de
que o miliciano não pode mentir, sob pena de responder
disciplinarmente pela falta à verdade, como fato distinto daquele
apurado [ ...]

No mesmo sentido, autores de direito penal restringem o direito de mentir do


acusado. Tourinho Filho(2007, p.547) obsta a auto-acusação falsa: ―[...]o réu tem
inteira liberdade de dizer o que quiser e bem entender. Mas nem por isso poderá
fazer uma auto-acusação falsa, pois, nesse caso, estaria, com sua conduta, criando
obstáculo para que se puna o verdadeiro culpado.‖ Nucci (2007, p.986) opõe-se à
falsa identificação, pois ―o direito de silenciar ou de mentir não envolve essa fase do
interrogatório.‖

Ora, de que maneira pode um princípio organizacional sobrepor-se a um


preceito constitucional? É certo que não há norma positivada disciplinando
especificamente o tema, todavia, deve-se buscar garantir a aplicabilidade da norma
constitucional, sob pena de o texto da Carta Magna tornar-se apenas mera figurante
no processo disciplinar.

Ainda, por meio da proposta criação de uma teoria geral da infração


administrativa, observando princípios garantidos ao processo penal, sustenta-se a
necessidade da efetivação da garantia da não autoincriminação em toda sua
14

extensão no processo administrativo: que seja ela aplicada a todo aquele que, com
seu depoimento possa sofrer dano, não só ao acusado; que seja estendida não só
ao interrogatório, mas a não obrigatoriedade de fornecimentos de meio de prova,
como padrões gráficos, dactiloscópicos ou material genético; e, por fim, que seja
garantida em toda sua amplitude para garantir uma defesa plena no depoimento do
acusado.

De maneira obediente ao preceito constitucional e que se conforma com a


posição aqui defendida, Maluly (2006, p.57- 60, grifei) observa:

Pode ocorrer que o verdadeiro autor do crime, quando interrogado


por uma autoridade, impute a outro a prática ilícita e, por consequência, dê
causa a uma investigação policial ou ação penal contra essa pessoa. De
igual modo, a testemunha, em seu depoimento, pode indicar terceiro como
responsável do crime, sabendo da falsidade desta imputação. Nestes
casos, não há na doutrina consenso sobre o reconhecimento ou não da
denunciação caluniosa. [...] Alguns julgados a consideram atípica, mas
também podemos encontrar algumas decisões tipificando o fato como
crime de calúnia (Art. 318 do CP). A meu ver, quando é o interrogado
que imputa falsamente a outrem a prática criminosa, não há que se
falar em denunciação caluniosa porque, ainda que tenha agido
voluntariamente, não o faz com o ânimo de causar a instauração de
uma investigação policial ou uma ação penal contra um inocente, mas
apenas para defender-se, repelir uma acusação existente contra si. [...]
Por este fato o réu não irá responder pelo crime contra a administração da
justiça, em razão de sua tipicidade.
15

6. Conclusão
Numa nova abordagem do direito administrativo sancionador, princípios e
garantias constitucionais e processuais penais podem – e devem – ser utilizados
para suprir as lacunas do texto legal e garantir a estabilidade e segurança jurídicas
aos sujeitos à potestade sancionadora dos Estado.

Entre esses mecanismos, o direito a não autoincriminação, integrante do


princípio da ampla defesa, surge no Brasil a partir da promulgação da Constituição
de 1988, em oposição ao ordenamento então vigente, que ignorava garantias
individuais conquistadas desde a Revolução Francesa.

Apesar de, em tese, atentar contra as instituições, o silêncio e a mentira


(repudiada por filósofos como Kant, porém defendida por reacionários como
Nietzsche14) constituem direito – e, no processo, extensão da garantia constitucional
de não autoincriminação – que deve ser a todos assegurado.

Em vista disso e para evitar que a tão difundida discricionariedade do


administrador no direito administrativo sancionador torne-se um mecanismo
promotor de ilegalidade e abusos, deve-se manter a boa orientação do texto
constitucional, garantindo direitos fundamentais e processuais inclusive no processo
administrativo disciplinar. Apesar de não codificado, e, como defendem alguns,
atípico, não pode dar espaços à arbitrariedade. Só assim se pode garantir uma
administração pública justa e eficiente e que consiga, por meio de seus integrantes,
alcançar os objetivos do Estado.

14
Kant (apud Loparic, 2006) abomina a mentira, incompatibilizando-a com o direito e com a ideia do
contrato social, enquanto Nietzsche (1873) a considera útil. O ardil, o engodo, a enganação seriam as
armas do intelecto para garantir a sobrevivência do homem.
16

7. Referências

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jurídicos. 4ª Ed. 3ª Tiragem. São Paulo, Malheiros, 2005.
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17

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