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~ Teoria da Literatura. *s o,@. eum “oe ENSAIOS DE SEMIOTICA PORTICA A. J. Greimas (org.) Este volume recolhe um. conjunto de estudos acerca da teoria do discurso poético, alguns dos quais centrados na anilise de textos de poetas e prosadores franceses como Apol- linaire, Bataille, Baudelaire, Hugo, Jarry, Mallarmé, Mi- chaux, Nerval, Rimbaud e Roubaud. Sem temor de exagero, pode-se dizer que Ensatos ve Semirica Poética assinala um dos pontos mais avancados ‘até agora atingidos no campo dessa disciplina ainda nova, estreitamente vinculada & Lin- giilstica e A Teoria da Literatura. Sem renegar o conceito- marco de Jackobson da funcio poética da linguagem como “projecdo do principio de equivaléncia do eixo de selecio so- bre © eixo de combinacao", procuram antes os autores dos es- tudos aqui enfeixados levar avante essa linha de perquirigio, que tio fecunda se tem demonstrado no campo dos estudos lingiiistico-literarios, pelo que este é um livro cuja leitura se impée a quantos queiram atualizar-se em tais estudos, nota- damente professores ¢ estudantes de Semiética, Lingiifstica e Michel Arrivé | laude Coquet _ ‘aul Dumont ques Geninasca | Nicole Gueunier 3 Jean-Louis Houdebine © Julia Kristeva ; Frangois Rastier Teun A. Van Dijk Claude Zilberberg —/ EDITORA CULTRIX EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SAO PAULO Outras obras de interesse: LINGDISTICA E COMUNICAGAO* — Roman Jackobson ESTRUTURAS LINGOISTICAS EM POESIA* — Semuel R. Levin ESTRUTURA DA LINGUAGEM POETICA* — Jean Coben LINGOISTICA E PORTICA* — Delas ¢ Filliolet ESTRUTURALISMO E POETICA — Tzvetan Todorov ABC DA LITERATURA — Ezra Pound © PORTA EM TODOS Nos — A. D. Ven Nostrand TEORIA DA FORMA LITERARIA* — Kenneth Burke J. Dubois e outros DIGIONARIO DE TERMOS LITERARIOS SS Mattand Moisés (continua na outra dobra) Se a a aa ° ” * ; ‘ . ‘ et . . , . = 3 3 ENSAIOS DE ' ¢ SEMIOTICA POETICA “ “ . i ° * * : . : —_ FICHA CATALOGRAFICA, (Prepared pal Cntr, de, Carlonctene Fone, Cimara Brasileira do Livro, SP) Enstios de semistica poética, com estudos sobre Apollinaire, Bataille, Baudelaire, Hugo, Jarry, Mallarmé, ' Michaux, Nerval, Rimbaud, “Rou- baud; onganizador: A. J. Greimas: tradugio de ‘de Lima Danias. ‘Sto Paulo, Cultrix, Ed. da Universidade de Sio Paulo, 1975. Bibliografia. 1, Poesia francesa — Histéria e crftica 2. Poé Wea 3, Semisica T. Grelmas, Algedas Jolien, 1917- cDD-808.1 410 “841,09 Indice para catilogo sistemitico: Literatara franceas = Hira ¢ exten 841,09 + Literatura 808.1 Cunha (nstituto de Biociéncias, Prof. Dr. Carlos da Silva Lacaz (Faculdade de Medicinal, Prof. Dr. Pérsio de Souza Santos (Escola Politécnica) e Prof. Dr. Roque ‘Spencer Maciel de Barros (Faculdade de Educacio) en a A. J. GREIMAS (organizador) EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SAO PAULO. Tiulo do original: ESSAIS DE SEMIOTIQUE POETIQUE Copyright © 1972, Librairie Larousse MCMLXXVI Diteitos de tradugio para a Ungua portuguesa adquiridos com exclusividade pela EDITORA CULTRIX LTDA. Rua Conselheito Furtado, 648, fone 278-4811, S. Paulo, que se reserva a propriedade literitia desta tradugio. Impresso no Brasil Printed in Brazil SUMARIO Preficio da edicio brasileira POR UMA TEORIA DO DISCURSO POETICO por A.J. Greimas PROBLEMAS DA EXPRESSKO Poética € lingistics, por Jean-Claude Coquet Divisio eonvencional e signficagio, por Jacques Geninasca —_PROBLEMAS DO CONTEDDO Estruturagio © destrugio do signo em alguns textos de Jarry, Michel Arrivé ee ~pSistemitica das isotopias, por Frangois Rastier © Impossivel de Georges Basil, tentativa de descrgio estratural, por Nicole Gueunier onseT0s PoETICOS Literalmente ¢ em todos 05 sentidos, tentativa de andlise estrutural de um quarteto de Rimbaud, por Jean-Paul Dumont Uma tentativa de leitura de Rimbaud: Bonne pensée du matin por Bras de leitara reflexiva de wm texto de Michaux em seus diferentes rnlvels de enunciacto, por Jean-Louis Houdebine SFORCOS TEORICOS Haposoe one pea. wes do texto poético, por Teun A. Van Semanilise produgio de sentido. Alguns problemas de semidtica literdria a propésito de um texto de Mallarmé: Un coup de dés, por Julia Kristeva BIBLIOGRAFIA 10 2B 35 6 126 147 149 164 8 8 238 269 PREFACIO A tradugio de Essais de Sémiotique Poétique vem propo 20 estudante brasileiro (ndo pensamos aqui numa minoria, cujo acesso a0 livro j4 se fez hd algum tempo) um conjunto de reflexdes no sentido de desenvolver (questionando ou aceitando) 0 conceito de funcao poé- tica da linguagem, definido por Roman Jakobson como o resultado da “projecio do principio de equivaléncia do eixo de selec’ sobre o eixo de combinagio”. A tentativa de desenvolvimento se faz no sentido de se construir uma Semistica Poética, procurando, para isso, caracte- rizar 0 objeto poético e, a0 mesmo tempo, formalizar regras explicu- tivas do seu funcionamento interno. Assim, se os autores de Essais de Sémiotique Poétique admitem o conceito jakobsoniano como um marco, hoje cléssico, para a Poética, da mesma maneira que o admitem res- ponsivel pela ruptura epistemolégica verificada na ciéncia do discurso conotativo (todos os ensaios publicados neste livro salientam este fato), podemos afirmar que a publicaso no Brasil de Lingiistica e Comuni- cacao (Cultrix, 1969) também orientou os trabalhos do estudante bra- sileiro preocupado com o estudo dos objetos poéticos ou com caracte- risticas poéticas. Agora, a tradugio ¢ a publicacio, pela Cultrix, deste novo livro, considerado também imprescindivel para a discussio e compreensio do poético, permitiré a abertura de novos caminhos, reflexdes e refor- mulagdes sobre o discurso com fungio poética. Por que a necessidade de desenvolvimento da fungio poética de Jakobson? Se considerarmos a linguagem como a conjungio manifestada de paradigma, sintagma © aspecto criador da linguagem ou produtividade (Chomsky, Aspectos de la Teorta de la Sintaxis, 1970, p. 8), deve- remos admitir uma dependéncia implicita entre os princfpios que regem © paradigma € os que regem o sintagma. Isso quer dizer que par digma existe no sintagma e que a existéncia deste daré também exis téncia ao primeiro. Dessa colocagio surgem basicamente dois pro- 3 blemas: 1) se em qualquer sintagma existe a projegéo do principio de equivaléncia do paradigma, afirmar que um determinado sintagma tem fungio poética, sem outras explicagdes, ser simplesmente apontar ‘0 problema; 2) como caracterizar € diferenciar os sintagmas poéticos © 0s ndo-potticos? ‘A discussio dos problemas levantados nos levaré, inicialmente, & caracterizacio dos conceitos de paradigma e sintagma (conceitos ja fartamente discutidos e, parece-nos, néo devidamente explicitados) e, posteriormente, as implicagées relacionadas com a funcio poética da linguagem. Comecemos por afirmar com Hjelmslev (Prolégomenes, 1968, p. 188), que a formalizacao das duas entidades depende basicamente da “ctiagéo do espirito cientifico”. A existéncia formal do paradigma e do sintagma dependerd, entio, da presenga do estudioso que segmen- tard 0 continuo lingiifstico, dando-lhe uma forma (organizagio espe- cifica) capaz de referendar um conhecimento das entidades demarcadas. Assim, a dicotomizagéo de duas formas que se realizam simultanea- mente no discurso permite a descoberta dos principios que as norteiam. O sintagma € definido pelo tedrico como uma “hierarquia relacional”, €0 paradigma como uma “hierarquia correlacional”. Se compardssemos esta colocacéo com as caracterfsticas determinadas por Roman Jakob- son, poderfamos dizer que a correlacao € feita com base no principio da similaridade © a relacio com base no principio da contigiiidade. As unidades paradigmiticas, similares, seriam colocadas como equivalentes, uma vez que foram ainda atualizadas ¢ nao ganharam, com isso, uma discriminacio significativa. Nesse sentido, Jakobson, estabele- cendo uma oposigao entre unidades manifestadas e unidades ndo-meani- festadas, nio considera 0 aspecto distintivo das nio-manifestadas. E por isso que ele pode afirmar que, no paradigma, os signos “crianga”, “menino”, “menina”, etc., se equivalem. E um sintagma com fungio pottica atualizaria uma dessas possibilidades, mas manteria a significa ‘io paradigmética. Entio, uma pergunta se faz necesséria: — seré que no paradigma as unidades realmente se equivalem? Se se equivalem, onde colocar 0 principio da pertinéncia, instituido como um determinador de paradig- mas? Parece-nos que 0 conceito de hierarguia vem ajudar a discussio do problema, pois, uma vez considerado como vilido, automaticamente ‘estaremos considerando o aspecto distintivo das significagSes paradig- miticas. Vejamos 0 conceito de hierarquia: o paradigma, uma vez conhe- ido, se coloca como um conjunto de relagdes formais estabelecidas 4 entre duas substancias (a do plano da expressio ¢ a do plano do con- teGdo). A forma que da conta do paradigma deve ser entendida, se- Greimas, como uma hierarquia de categorias fémicas (orienta- doras do ‘plano da expresso) ¢ de categorias sémicas (as do plano do contetido). Estas duas formas se apresentam ora em conjungao, ora em disjuncdo. Quando as categorias (fémicas ou sémicas) esto con- juntas, dizemos que ndo esto articuladas, e, inversamente, quando se articulam, afirmamos que estio disjuntas. Além da oposigio antoni- ica, as formas podem relacionar-se hiponimicamente, quando 0 enca- nto légico se processa do articulado para o nio-articulado, © hiperonimicamente, quando se processa do nio-articulado para o atti- culado, Vejamos alguns exemplos do que foi dito acima: 1. Plano da expressio: Consonantalidade vs Nio-consonantalidade ae Grave vs Aguda fo Tenfa vs Naotensa Obs.: Usamos o aspecto sonoro da linguagem verbal, mas existe a possibilidade de hierarquizar os mais diversos planos da expresso. Para efeito de clareza sé usamos as uni- dades minimas distintivas (dos dois planos). Isso nao impede que determinemos unidades paradigméticas mais complexes [fememas (ou fonemas) e enunciados fémicos para o plano da expresso, e sememas e enunciados sé- micos pata 0 plano do contetido]. 4 — Oposigéo antonimica disjuntiva: grave vs aguda. b — Oposigio antonimica conjuntiva: consonantalidade. ¢ — Orientagio hiponimica: grave —> consonantalidade. d — Orientacio hiperonimica: consonantalidade > grave. 2. Plano do contetido: Espacialidade vs Naoespacialidade . Dimedsio. -Néo-dimen- nalidade sionalidade K 4 Horizon Naoho- talidade vs rizonta- lidade Obs: Usamos, para o exemplo, o quadro de Greimas (A Semdn- tica Estrutural, 1973, p. 46). a — Oposiggo antonimica disjuntiva: horizontalidade vs nio-ho rizontalidade. b — Oposigéo antonfmica conjunti © — Orientagdo hiponimica: horizontalidade -> dimensionalidade. d — Orientaio hiperonimia: dimensionlidade ~> horizontal Se observarmos os exemplos hierarquicamente organizados, pode- remos verificar que as operagGes disjuntivas (vs) se apresentam eixa- das em um nivel imediatamente superior, que orienta a conjuncio. Nesse nivel, as relagdes discriminatérias perdem as suas caracteristicas diferenciais, para, logicamente, se fundirem através do principio de equivaléncia. Poderfamos, entio, dizer que a oposigio Grave vs Aguda, ou a oposigio Horizontalidade vs Nao-borizontalidade deixam de se distinguirem no nivel imediatamente superior, consonantalidade e di- mensionalidade, respectivamente. Entretanto, isso nao quer dizer que as unidades se equivalem no paradigma, pois o que aconteceu foi a presenga do fenémeno da neutralizagio. Neutralizouse a disjuncio €, conseqiientemente, houve uma suspensio fémica ou sémica (depen dendo dos planos da linguagem) de algumas unidades em favor de outra disjungio. Nao poderemos dizer que a neutralizagio de uma oposicéo provoca 0 desaparecimento da disjuncio, mas que 0 principio da perti- recaiu sobre outra disjuncio. dimensionalidade. oe A funcio poética de Jakobson ocorreria quando a equivaléncia estbeleida pelo exo da conjungio se atuaizase na mensagem, que ‘o da teria a capacidade de anular 0 seu proprio principio formadot disjungio — a contigiidade norteadora do sintagma constitu masio da categoria légica da disjungio. A projecio da categoria légica conjuntiva, numa mensagem, permitiria a possibilidade de “igualar sons e significados diferentes”, pois os tragos diferenciais deixariam de existir. A neutralizagio da categoria anton{mica disjuntiva de um deter- minado nivel do plano da expressio ou do plano do contetido nao faz com que a disjuncio desapareca. Ela garante a sua existéncia através de uma suspenséo. Da mesma maneira, uma categoria légica disjuntiva atualizada numa mensagem nio-poética nio anula a conjuncio, visto proceder de tal maneira, que ela existiré através de uma oposi¢ao priva- tiva, Trata-se, portanto, de dois aspectos de um mesmo fenémeno. Em ambos os casos, teremos a equivaléncia paradigmética projetada na mensagem, quer em presenca (conjungio), quer em auséncia (dis- jungio). ‘Nio queremos, com o que foi dito acima, negar 0 conceito jakob- soniano que, como jé afirmamos, € 0 ponto de partida para os estudos sobre 0 poten. 105, isso sim, acentuar a importancia das ten- tativas oferecidas por Essais de Sémiotique Poétique frente a0 impasse criado a partir da determinacio, num poema, por exemplo, da fu poética. Muitos so os caminhos oferecidos ina presente traducio. nosso ver, o desenvolvimento da Poética surge com 0 conceito for- mulado por Greimas de articulagao dupla. Para este autor, a mensagem eaten) ica se diferencia de outras mensagens na medida em fica um discurso capaz de articular simultaneamente os Ee plane da lngmagesh. News scotido, = lngusgem yottcs sc chs tituiria como o interpretante (pottanto, um outro sistema de signifi- cagio) de um sistema de do elementar. Ela tenta conte rea iconizar, para Peirce), por meio de novas categorias I6gicas dis. feasted ‘um sistema de si bisico (para Greimas, o sistema das Iinguas naturais). Esquematicamente, terfamos: E R C= sistema de significasio bisico. ERC + (ERC = inerprune. us " A linguagem poética, funcionando como interpretante de outra lin- guagem transformada em substancia, estabelece um conjunto hierarqui- zado de relagSes légicas, cujas caracter{sticas sio andlogas em relagio ao sistema que definiu. Este procedimento & importante porque ao arti- cular (formalizar) uma determinada substdncia, a linguagem poética nos permite um conhecimento do sistema bisico que “interpretou”, assim como a possibilidade de prever novas formas daquela substincia, ainda nao formalizadas. O conhecimento se faz através da determi- nagio de isotopias (Greimas, Semdntica, 1973, p. 94) na sua conse- giiente hierarquizagio pois, se existe a hierarquia, devem-se prever também tipos de isotopias, por nés chamadas fundamentais © secun- darias, conforme a posiggo que ocupam na hierarquia, e a orientacio que estabelecem entre si (conferir neste livro o ensaio de F. Rastier sobre o assunto). A hierarquia conseguida representaré, por sua natu- reza_analégica, o sistema submetido A interpretacéo, assim como a possibilidade de transformar as colocagées relativas 4 infinitude de lei- turas (Kristeva), numa tentativa cientifica (apesar de ainda parcial ¢ falha) de abordagem do discurso com fungio pottic JESUS ANTONIO DURIGAN (Centro de Estudos Semidticos A. J. Greimas) POR UMA TEORIA DO DISCURSO POETICO I, INTRODUGAO 1.1. O Faro poérico J& nao se pode falar hoje em dia em fato poético integrando-o na teoria geral da literatura, considerando, por exemplo, os textos poéticos como um subconjunto de textos literdrios; e por uma razio muito sim- ples: a literatura como discurso auténomo, que comporta em si mesmo as suas proprias leis e sua especificidade intrinseca, é contestada quase unanimemente, e 0 conceito de “‘literaridade” que pretendia funda- mentéla € facilmente interpretado como uma conotagio sociocultural, variével segundo © tempo € o espaco humanos. Mas nio é somente isto. Mesmo aceitando 0 relativismo cultural e encerrando-nos volun- tariamente no europeucentrismo Iicido de nossa tipologia conotativa dos objetos culturais, énos dificil escolher critérios suficientemente gerais que permitissem subsumir, sob uma denominagio comum, a chamada poesia cléssica, susceptivel de ser identificada com a versi ‘cago, e a concepgio romantica e pés-romintica da poeticidade, que essencialmente a dos contetidos, Contudo, a poesia existe, e dela todos nés temos, em grau maior ou menor — dentro dos limites impostos pela perfomance do leitor — uma certa intuigéo ingénua. Todavia, & primeira vista, ela parece indiferente & linguagem em que se manifesta: fala-se muito em cinema © em teatro poéticos ¢ acontece-nos ter sonhos poéticos. Situando-nos no ponto de vista dos efeitos de sentido produzidos sobre 0 ouvinte, seria possfvel considerar, por extensio, como poético o que para outras civilizagées depende do’ sagrado: hinos, rituais cantados, assim como Cettos textos religiosos ou filosdficos. Desta maneira, para formar uma primeira idéia do objeto da se- mistica poética, poderiamos dizer: 4) que 0 discurso poético no € coextensivo ao conceito de lite- ratura; u b) que, em principio, ele é indiferente a linguagem em que € produzid ¢) que sua percepgio intuitiva como discurso a um sé tempo “‘poético e sagrado” provém dos efeitos de sentido caracte- risticos de uma classe particular dos discursos. A problemética do fato poético situa-se, por conseguinte, dentro do quadro da tipologia dos discursos quaisquer; sua especificidade, per- cebida intuitivamente, 86 poderd ser reconhecida se 0 efeito produzido ficar justificado por um arranjo estrutural do discurso que Ihe seja peculiar. efeito de sentido surge aqui como um efeito dos sentidos: 0 significante sonore — e grafico, em menor proporcio — entra em jogo para conjugar suas articulagdes com as do significado, provocando com jsto uma ilusio referencial ¢ incitando-nos a assumir como verdadeiras ‘as proposigdes emitidas pelo discurso poético, cuja sacralidade fica ‘assim fundamentada em sua materialidade. O postulado da correlagao do plano da expresso ¢ do plano do conteido, que define a especifi- dade da semiética poética, se faz presente ao longo de toda esta cole- tinea, justificando-a ao mesmo tempo como demonstragio dos p1o- cessos de anélise e como lugar de sua validacio. 1.2, A LEITURA Dos TExTOs PoETICOS ‘A teoria que procurasse explicar o discurso poético ¢ fundamentar 20 mesmo tempo a semidtica poética, deveria estar capacitada, num primeiro tempo, a enfrentar duas espécies de problemas: a) Reconhecendo que o discurso poético € na realidade um discurso duplo que projeta as suas articulagdes simultancemente nos dois planos — no da expresséo e no do conteido — ela deverd cla- borar um aparato conceitual susceptivel de fundamentar ¢ de justificar 0s processos de reconhecimento das articulagdes desses dois discursos. So aqui de duas espécies as articulagées a serem reconhecidas: por um lado, elas tornam possfvel 0 que se convencionou designar como segmentacéo do diseurso em unidades de dimensoes varidveis, desde os objetos poéticos discretos, que constituem as grandezas totali- zantes, até os elementos minimos, tracos distintivos pertinentes dos dois planos, isto é, os semas ¢ os femas; mas elas devem permitir igualmente a distingao dos niveis lingiiésticos de anélise, de modo que © reconhecimento de um certo tipo de unidades permita que se defina, de maneira homogénea, um nivel lingiistico determinado, e vice-versa. 2 iltimos tempos entre a palavra imedis b) Dispondo assim de diversos niveis lingiifsticos homogéneos em cada um dos dois planos da linguagem, a semiética poética deve estar capacitada a estabelecer uma tipologia de correlagdes posstvcis entre os planos da expresso ¢ do contetido ¢, conseqiientemente, a instituir uma tipologia de objetos poéticos calcada na atribuigio destes ou daqueles niveis lingiifsticos do discurso poético, tendo em vista a sua correlagio. Essas duas diregdes da pesquisa, e os esforgos visando a trans- formé-las em processos de descricao, subentendem o conjunto das ané- lises que se acham aqui reunidas, conferindo-lhes certa unidade meto- dolégica. Para a maioria dos pesquisadores aqui presentes, 0 conceito de leitura & que abrange 20 mesmo tempo o objetivo, o encaminhamento € a justificagio de seu fazer semistico. Para JC. Coquet, a leitura consiste, de inicio, em “reconhecer um vocabuldtio ¢ uma gramética, isto é, unidades lingiisticas, suas regras de organizagio (morfologia) € de funcionamento (sintaxe)”. Mas este aspecto heuristico da leitura, gue a transforma em instrumento da claboracio teérica, fica comple tado pela insisténcia quanto ao “papel da leitura (que €) de validar a teoria”. O fazer semidtico é assim definido como uma praxis cien- tifica, como um ir-e-vir entre a teoria e a prética, entre 0 construido © 0 observavel. 1.3. A oRGAaNtzacho PoéTica Sair em busca da especificidade do fato poético, afirmando que ele se manifesta numa classe particular de discurso, s6 é simples aparen- temente. Como se sabe, a lingifstica, que até recentemente limitara ‘seu objeto as dimensdes da frase, nao nos havia preparado para mani- pular ecieacakA distingio que se vem procurando estabelecer nestes (didlogo, comentério sobre ‘© universo) ¢ a palavra mediatizada (discurso, texto, narrativa) néo € dbvia € até agora nio parece bascada em critérios formais compro- vados e suficientemente gerai Conceber o discurso como uma concatenaio de enunciados nao ser suficiente para explicar a sua isotopia, isto é a sua coeréncia sintagmética. Entrever, nele, redundancias significativas j4 equivale a reconhecer regularidades que no mais dependem da gramitica gera- tiva das frases, mas que obrigam a imaginar uma organizacao discur- 2B siva auténoma. Impossibilitada de buscar apoio numa teoria geral dos discursos, a semiética poética se vé assim compelida a ir forjando pelo caminho seus préprios conceitos operacionais. Uma vez reconhecida a existéncia.de duas espécies de regulari- dades superpostas — umas gramaticais e microestruturais, e as outras discursivas ¢ macroestruturais — € pronunciada a tendéncia para con- ceber 0 discurso poético como susceptivel de ser definido por essa superposicio e pelo desvio por ela produzido. Podemos distinguir gros- seiramente ués interpretagdes desse desvio: a) Sem falar no célculo estatistico, decepcionante por falta de uma teoria subjacente, nos desvios significativos que determinam a especificidade dos textos literdrios, ¢ lembrando apenas a querela apa- rentemente superada a respeito da agramaticalidade dos enunciados poéticos, cujo estudo consistiria num registro das anomalias, encontra- mos vestfgios dos conceitos de norma e de “texto normal” em Van Dijk, que propde considerar este tltimo como “um quadro de refe- réncia”” do discurso poético. Uma interpretagio desta ordem, mesmo muito atenuada, néo deixa de se alicercar numa concepeao racionalista dos discursos formulados em linguas naturais, segundo a qual Ihes seria subjacente uma ldgica implicita, numa convicgao herdada do posi- tivismo, que afirma que as palavras dizem de inicio 0 que pretendem realmente dizer, obedecendo os discursos a uma funcio denotativa fun- damental. b) No extremo oposto, encontrase uma atitude caracterizada pela hipdstase da linguagem poética, resultante da projecio sobre a lingua natural “‘cotidiana” de configuragdes nao/ou translingiifsticas, produzindo © deslocamento das “estruturas da linguagem comunica- tiva”” (J. Kristeva) e a destruicdo sistemética dos signos (M. Arrivé). Nio obstante as conotagées ora euféricas ora disféricas — mas, nos dois casos, nio pertinentes para uma abordagem cientifica — do fato poético, as duas atitudes se encontram menos distantes uma da utra do que se poderia crer: a0 mesmo tempo em que afirmam 0 esta- tuto normalizado das Iinguas naturais, elas situam o discurso poético como um desvio, ou melhor, como um conjunto de desvios sistema- tiziveis, susceptiveis de fundar outra normalidade, que mantenha re- laces de distorgio com a primeira. Poderiamos, quando muito, cri- ticar a sua concepgo por demais restritiva das linguas naturais: como linguagens de manifestacio, estas nos parecem fundamentalmente pol sémicas e ambfguas, podendo cobrir e articular a totalidade dos uni vversos seminticos pelo desenrolar em seus discursos de todos os “sis- temas secundérios modelizantes”. “4 ¢) Como 0 conceito de desvio & impreciso e dé facilmente margem a interpretagGes e procedimentos atomistas, o problema da sistematizagio dos desvios no deixou de se propor no quadro da re- flexio estrutural sobre a linguagem. A hipétese de Roman Jakobson, segundo a qual a organizacio dos desvios poderia ter estatuto paradig- mftico, sendo a especificidade do discurso poético definida pela pro- jecdo dessas regulatidades paradigméticas sobre o desenrolar sintagmé- tico da linguagem, abre caminho para as pesquisas estraturais em poesia. Assim, a andlise dos Chats de Baudelaire, proposta por R. Jakobson e C. LéviStrauss, constitui, de per si, uma data a que se refere 0 conjunto de estudos concretos desta coletanea, como represen- tando uma hipétese de trabalho e um modus operandi exemplar. Depois disto, a teotia semiética enriqueceu-se com certo mimero ide conceitos novos, incorporando 20 mesmo tempo novos campos de ‘observacio e de experimentagao. Assim, o reconhecimento das estry- turas narrativas subjacentes aos discursos, organizando-os gracas a uma regulamentacdo sintagmética que comporta transformagées previstveis formalizdveis, no pode deixar de pdr em discusséo, pelo menos par- cialmente, o principio do agenciamento exclusivamente paradigmatico do discurso poético. Da mesma forma, a leitura paradigmética dos mitos, restaurada por C. Lévi-Strauss, a0 mesmo tempo em que nao permite mais consideré-la como caragteristica especifica do fendmeno poético, propée simultaneamente 0 problema dos niveis de profundi- dade da leitura dos textos. Gracas 2 gramética gerativa, a distingio entre estruturas profundas e estruturas de superficie — ou, na versio soviética (SaumjanSoboleva, e J. Kristeva), entre genotexto e feno- texto — parece aplicdvel, mediante uns poucos ajustes, a certa hierar- quizacio dos nfveis do discurso poético. Torna-se entio possivel uma inversio de ponto de vista: em lugar de proceder ao registro das regu- laridades de ordem “poética”, consideradas como informacées comple- mentares, fornecidas pelo texto situado no quadro da comunicagio potticn, podemos considerar os processos semiéticos que condicionam _& produgiio dos discursos potticos como sendo articuldveis formali- 2ivels, em instiincias, num espaco apriorfstico, de modo que uma gramé- tica poética, de cardter dedutivo, assim elaborada, possa explicar todos 8 discursos produzidos ou produatveis, — a aplicagio desta gramé- tica a discursos-ocorréncias constitui 0 procedimento de validagio. Tendo resultado de uma escolha estratégica deliberada, as andlises reu- nidas nesta coletinea situam-se quase todas a meio caminho das duas abordagens. b Il. O SIGNO POETICO II.1, SicNo £ onjero Poérico Um texto poético qualquer apresenta-se como um encadeamento sintagmético de signos, tendo um comego e um fim marcados por siléncios ou espagos brancos. Os signos, definidos, de acordo com a tradigéo saussureana, pela reunio de um significante e de um signifi- cado, podem ter dimensdes desiguais: uma palavra, uma frase, sf0 signos, mas também um discurso, na medida em que este se mani- festa como uma unidade discreta. Numa primeira abordagem, o dis- ‘curso poético pode ser considerado como um signo complexo. Se a delimitagio constitui o texto em signo poético manifesto, € preciso que uma nova leitura, cujo primeiro procedimento € conhecido com o nome de segmentagio, impondo-Ihe suas articulagSes préprias, 0 transforme em objeto poético. A divisio do texto em partes nao repre- senta uma simples segmentagio sintagmética; € também uma primeira Projegio sobre © texto de uma ordem sistemética e hierérquica, O teconhecimento de um objeto poético, sob as aparéncias do signo lin- Biifstico complexo, no constitui, por conseguinte, a descricio exaus- tiva desse signo, até esgotarem-se as suas articulagées, sim uma ope- ragio da construgao do objeto, que emerge ¢ adquire forma a partir do estado de coisa em que é oferecido aos nossos sentidos. A decomposi¢io do signo que constitui 0 discurso poético situa as articulagdes paralelas do significante e do significado: diremos que © significante se faz af presente como nivel prosédico do discurso, e 0 significado, como seu nivel sintético. IL.2. O NiveL pros6pico __ Sob a denominacio de nivel prosédico, podem ser agrupadas as diferentes manifestagGes supra-segmentais do plano da expressio, desde © acento de palavra, passando pelos fraseados de modulagio dos enun- clados, até as curvas melédicas das frases complexas, dos ‘perfodos ora- t6rios, ete. a) As matrizes convencionais, estudadas por J. Geninasca, sur- ‘gem assim como deformagies deliberadas das articulagées supra-segmen- tais do significante: © metro, o ritmo, a instituicio dos versos e das estruturas estréficas (reforgadas pela’ rima e pela assondncia) cons- tituem apenas uma organizacio auténoma, deslocada em relagio aos facentos e as modulagdes “naturais” das Hinguas, do nivel prosédico, 16 simetrias alternadas, 0 projeto paradigmatico do discurso poético. b) Na auséncia desta verdadeira institui¢io poética, as modu- agdes supra-segmentais “normais” readquirem os seus direitos e de- ~semperham o seu papel de regulador do fluxo sonoro, instaurando 0 nivel prosbdico que, embora menos ostensivo, organiza entretanto discurso poético. Uma estrofe de Apollinaire, (J.C. Coquet), um fragmento de Michaux (J-L. Houdebine) néo constituem exemplos F iconizando com insisténcia, por um sabio jogo de paralelismos ¢ de esperados — e isto devido 8 homologia que af se encontra entre os fraseados de modulagio e a organizacio sintéxica: € nas distorgdes deliberadas, a separar os dois niveis, que transparece a sua eficécia _ poética. Embora pouco estudadas, as modulagées supra-segmentais i constituem uma componente no desprezivel da articulagio do discurso poético moderno e pés-modemo, caracterizada pelo abandono das ma trizes convencionais. ©) O nivel prosédico podese apresentar, finalmente, sob sua forma grifica: a disposigio geral do texto impresso, a distribuicio dos espagos brancos a assinalur as pausas, os sinais de pontuacéo ow sua auséncia, a utilizagdo de varidveis tipogrificas, cujo estudo € aqui esbocado por N. Gueunier, desdobram a manipulacio fénica do nivel prosddico e reatticulam a “prosa” em ‘poesia’. Também af as pes- quisas continuam insuficientes ¢ cheias de lacunas. 11.3. O nivet sintAttco No plano do contetido, o nivel sintético € 0 que parece corres- ponder a0 nivel prosédico da expressio: 0 estabelecimento da relagao entre esses dois niveis fornece a rede de articulacdes suficiente para f segmentacio € circunscricio do objeto poético. | Apresentando-se 0 modelo téxico construido por J. Geninasca, a pnetos de Nerval, como « deformacio e a automatizagio Suptasegmentais “naturais”, € normal que ‘so nivel do significado, uma sistematizacéo comparivel das articulagbes dos conteddos, libertando o texto das coergdes sinté- ticas da Mogua natural, A mateiz surge entio como um “crivo téxico”, como uma estrutura hierdrquica de classes posicionais, onde sio verti- dos os conteddos simétricos ou equivalentes. Esta homologacao dos fignifcantes e dos signficados, além de explicar a "moderidade” de Nerval, evidencia 0 principio segundo © qual cada transgression do + esquema convencional “funciona como fcone de transformagio”: as regularidades poéticas seriam propostas apenas para serem negadas, para dar lugar a novos desvios formais, criadores de sentido. 7 Portanto, os niveis prosédico e sintéxico nio sio necessariamente isomérficos; pelo contririo, como vimos a propdsito de Apollinaire ¢ de Michaux, sua articulagio homologada limita-se a manter a confor- midade do discurso poético em relagio as normas da lingua natural utilizada. Nos textos analisados, as relagdes entre os critérios de arti- culagéo prosédicos sintéticos ‘apresentam-se de duas manciras dis- tintas: a) quando se trata de articulagées de sintaxe discursiva, trans- fréstica, os critérios sintéticos parecem dominar os critérios prosédicos: a conjungao ‘‘mas”, colocada entre duas estrofes do poema de Rim- baud, que as conjuga numa Gnica seqiiéncia (C. Zilberberg); a opo- siglo do discurso-enunciado (em “‘ele”) ¢ do discurso-enunciagio (em “‘eu-tu’) justifica por sua vez a segmentagio do fragmento de Michaux em dois parigrafos (J-L. Houdebine); b) quando se trata de unidades sintéticas frésticas, ficam clas situadas sob a dominincia de articulages prosédicas: é no interior da ‘organizacio estréfica que se reconhecem os sintagmas ¢ as classes sin- téticas com seus pardlelismos e seus contrastes (J-P. Dumont). Ill. O DISCURSO PORTICO III.1. © 1soMoRFIsMo DA EXPRESSAO E DO CONTEUDO progresso fundamental da lingiiistica no perfodo entre as duas guerras consistiu em estabelecer a evidéncia de que a anélise, iniciada no plano dos signos (morfemas, palavras, frases, discurso) s6 podéria prosseguir ¢ explicar 0 fendmeno lingiiistico operando a disjungio dos dois planos simples da linguagem — o da expressio ¢ 0 do con- teido — ¢ submetendo cada um deles isoladamente a uma segmen- aioe a uma sistematizagio, no mais dos signos € sim, para usar © termo hjelmsleviano, das figuras, isto é, em unidades — agora cons- trufdas endo manifestadas — dos dois planos. Como vemos, a palavra de ordem da destruicio do signo nio ficou A espera do aparecimento de uma nova geracio de criticos litersrios. Pareceu-nos assim oportuno examinar as anélises aqui reunidas para verificar de que maneira concebem elas a articulagio do discurso poético em cada um desses dois planos, antes de procurar reconstituir © objeto poético em sua totalidade. Este procedimento analitico, que se tornou clissico, fica reforgado por uma nova exigéncia tedrica: a lingifstica de apés-guerra, como vimos, acrescentou ao principio de articulagSes autGnomas dos dois planos consideragdes referentes aos niveis de profundid: as unidades cujas realizagSes sintagméticas ‘tém dimensdes mais reduzidas situar-se-iam ao nivel da linguagem mais profunda, a0 passo que as unidades mais amplas seriam conside- radas como unidades de superficie. problema do isomorfismo dos dois planos, de importiincia ca- pital para a semistica poética, decorre logicamente do. paralelismo entre 0 significante e 0 significado, postulado por Saussure: evidente no plano dos signos, esse paralelismo poders ser postulado para a constrticao das figuras? A. inregularidade dos progressos realizados pelas pesquisas em- preendidas nos dois planos isolados da linguagem nao permitiu até hhoje que se entreveja uma solugio para este problema, Sabe-se que a fonologia conseguiu, nao sem dificuldade, elaborar os conceitos de fonema, unidade abstrata, independente de suas realizagGes f6nicas a0 nivel dos signos, e de fema ou traco distintivo, unidade minima cons- tivutiva do fonema, A semantica, que a acompanhou com um atraso considerdvel, postula por sua vez as figuras correspondentes de semema ede sema. Por conseguinte, a hipétese do isomorfismo pode ser apre- sentada sob a forma de um esquema simplificado: nfvel 7 Pekan: femas Plano da expressio | | A el de superficie: fonemas + silabas Plano da manitestecio {one realizados nfvel de ee: siwciar: -, tact x = Semdnticos Plano do conteido Sat pred ie 19 O exame deste quadro impde imediatamente as seguintes cons- ‘tatagdes: embora seja possivel postular 0 isomorfismo de unidades lin- iifsticas dos dois auténomos considerados como figuras de articulacio, ‘este isomorfismo deixa de exercet-se (salvo em pouquissimos casos, ‘em que o formante do lexema monossemémico seria uma tinica reali- zacao fonémica) nao apenas no plano da manifestagao, no qual a um fonema realizado corresponde um lexema, como também, e sobretudo, ‘ao nivel da organizagao sintagmatica da’ linguagem, no qual a com- binagio linear dos fonemas produz unidades-sflabas, 20 passo que uma combinacéo de sememas leva construcéo de enunciados seménticos. © isomorfismo, tal como acabamos de defini-lo, nfo leva portanto a homologacao tetmo a termo, segmento fOnico a segmento semintico dos dois planos do discurso poético. Quando possivel, a homologagio aparece sob forma de correlacio de outro tipo. No exemplo de Apolli- naire, analisado por JC. Coquet, ela poderia ser formulada da seguinte forma: Silaba \ ik] + Silaba 2 Uk (1) i : Enunciado 1: Enunciado 2 Quando © prinefpio de um certo isomorfismo entre as unidades da expresso e do contetido pode ser mantido — com a condigéo de no situé-lo no plano da manifestaco sintagmética dos signos — € pos- sivel extrair outras conseqiiéncias desta hipétese. Por exemplo: pode- -se tentar definir a especificidade do discurso poético pela co-ocorréncia, no plano da manifestagio, de dois discursos paralelos, um fonémico € outro semintico, desenrolando-se simultaneamente, cada qual no seu plano auténomo e produzindo regularidades formais compardveis ‘eventualmente homologiveis, regularidades discursivas, que obedece- tam a uma dupla gramética poética, situada ao nfvel das estruturas profundas, A partir do reconhecido isomorfismo da sflaba e do enun- Giado semintico, poderiamos tentar estendé-lo e aplicé-lo as dimensoes transfrésticas, com vistas 4 possibilidade de organizagdes discursivas — fonémicas e seminticas — paralelas; finalmente, as taxias fémicas stmicas situadas ao nivel mais profundo comandariam e ordenariam essas produgées discursivas. TlIl.2. O PLano Da ExpREssio As cxigéncias tedricas do modelo do discurso poético, cujas linhas igerais acabamos de esbosar, aparentemente tém muito pouca coisa em comum com o estado atual das pesquisas, refletido com suficiente fide- lidade pelos estudos aqui reunidos. Basta ler os trechos bastante perti- 20 entes consagrados por JC. Coquet ao exame das incoeréncias da finguagem de descrigio, utilizada para explicar a estrutura do plano ‘da expressio das linguas naturais, para nos convencermos de que ‘a responsabilidade com relagio as debilidades de nossas anilises do formante poético cabe, pelo menos, tanto 0s lingilistas como 0s semidticos. Apesar da superioridade da fonologia cléssica sobre ‘outtas disciplinas lingiiisticas, foram-lhe impostas algumas adaptacGes ‘passagem da instincia fisiolgica da fonagio para a apreensao per- ptiva, fortemente dosada de impressionismo; desenvolvimento re- ente das pesquisas localizadas na instincia actistica do fenémeno sono- fs quais contribuiram mais para conturbar os espiritos que para lum instrumental tecnolégico renovado: a heteroge- que ser encontrada nesta coletanea constitui incertezas. esas hesitagdes no podem deixar de reper- pottico. Embora a descrigio de R. as de N. Ruwet, tenham distintivos, as pesquisas neste tessentindo-se provavelmente da {tes que sejam os resultados localizados, 0 principio de acoplamento I$. Levin) aplicado A expressio — a descrigio de JL. Dumont parece exemplar, deste ponto de vista — no pode chegar a formu- cio das regras de homologacéo dos niveis; como observa J.C. Co- , ainda nfo passamos do registro dos “‘pontos de equivaléncia” ‘poder cogitar da organizacéo global do discurso fonético. Certas simetrias estabelecidas entre seqiiéncias sonoras (J-L. udebine) ou entre conjuntos sonoros mais amplos, que se procura logar as disjuncdes fundamentais do contetido (cf. vida vs morte Rastier) parecem susceptiveis de interpretagSes mais gerais. ‘esquemas discursivos simples, que decompdem 0 objeto poético “antes e num depois com tonalidades contrastantes, e reconhecem charmeira, lugar de transformaggo das estruturas da expresso 1G. Zilberberg, assim como J-P. Dumont) fazem pensar que 0 prin- ‘elpio de equivaléncia pode ser completado pelo princfpio de transfor- magio que modula o discurso expressivo. Sao, todavia, apenas ele- ‘mentos de uma teoria do discurso poético, pois a descri¢éo propria- mente dita ainda permanece no nivel do registro das “tendéncias”, incapaz de utilizar, devido a fraqueza numérica das populagdes sonoras, as abordagens estatisticas, © sem saber como proceder ao estabeleci- 21 mento das isotopias sonoras, que suprimiriam 0 parasitismo peculiar a0 discurso manifestado. Teoricamente, no existe nenhum empecilho 20 empréstimo do conceito de isotopia a0 plano do conteiido: a isotopia semantica de natureza semémica € que permite superar os obsticulos opostos a lei- tura pelo carter polissémico do texto manifestado. Parece ser pos- sivel postular um nivel fonémico que d? margem a uma leitura iso- tépica./Sabe-se que o destinarério de um discurso qualquer consegue climinar, no momento da percepsio, até 40% das redundincias {micas desnecessérias & apreensio do sentido; a recepgio da mensagem poética poderia ser interpretada, pelo contrario, como uma valorizagio das redundancias, que se tornaram significativas com a mudanga de nivel da percepcio, valorizacao que daria margem a apreensio das regulari- dades constitutivas de uma nova isotopia sonora, jd agora conotativa se quisermos, € no mais denotativa, Desenrolando-se sobre o plano da expressio, c discurso poético poderia assim ser concebido sob forma de uma projecao de feixes fémicos isotdpicos, onde seriam reconhecidas as simetrias ¢ as alterndncias, as consonancias e as dissonancias ¢, final- mente, as transformagées significativas dos conjuntos sonoros, S6 ulte- riormente poderia ser elaborada uma gramética da expresséo poética, comportando modelos formais de organizagio das taxias fémicas ¢ das regras de geracio dos discursos fonémicos, conformes aos dis- cursos seminticos. Pois 0 que autoriza a falar numa gramética da expresso poética, em sentido nao simplesmente metaférico, nio é apenas o postulado de isomorfismo dos dois planos da linguagem ¢ a transposicio do modelo gramatical de um plano para outro que isto implica: sio também certas consideragées de ordem mais geral a res- peito do que se qualifica de musicalidade da poesia. Pouco importa a explicagio genética: que a poesia tenha sido inicialmente canto, ou que 0 canto possa encontrar suas origens, como dio a entender certos trabalhos de etnomusicologia, nas modulagSes e ritmos do discurso poético, a expressio poética situa-se a meio-caminho entre os garga- rismos que, saindo da garganta, se ozganizam em sons da linguagem exclusivamente em razio de sua virtude discriminatéria, ¢ das seqiién- cias ordenadas de sonoridades, constitutivas da linguagem musical. O discurso poético surge em seu plano de expressio como uma linguagem constituida ao mesmo tempo de ruidos e de sons, ¢ € justificadamente qu, JeG. Cogust, referindo se a ele, invoca as tegras de harmonia € inarmonia de sua organiza¢io, ou que F. Rastier ce reporta aos efeitos de eufonia e de disfonia que © conotariam. A gramética da expresso pottica seria a teoria dessa linguagem. 22 ‘ III.3. O PLaNo po conTEUDO Invertem-se as dificuldades quando se pretende falar, nio mais em ‘expressio ¢ sim em contetido poético; no primeiro caso, decorriam elas ‘do fato de se saber tio pouca coisa a respeito das estruturas fonémicas ‘expressivas; no segundo caso, elas se devem ao fato de saber-se talvez demais. Expliquemo-nos: considerado isoladamente, o significado poé- ‘tico nfo se distingue de maneira alguma dos outros discursos — lite- fos, misticos, onfricos — que possam ser claborados. sobre 0s mos assuntos. Nossos conhecimentos € nossas ignoténcias se véem ‘cles igualmente distribuidos, ¢ consistem numa massa de ede pontos de vista multiplos, assim como na auséncia génea do Discurso. ‘apenas a necessidade de encaminhar conjunta- s, projetando as coergdes da expressiio ‘¢ vice-versa, que determina em gran- tas ou Aquelas formas de organizacéo ‘possivel afirmar que 0 poético que Ihe so apresentados pela © € as relagdes reciprocas que se n que se caracterize 0 discurso poé- por sua densidade, significando-se com isto o nimero de relacies turais exigidas pela construcio do objeto poético. Por cons ° de densidade pode servir de critério para uma cla‘ B te lobjctos potticos. Por sua vez, esse critéio poderia crasarse dos tipos de seledes recfprocas dos niveis e das formas discur- ‘operam, um sobre 0 outro, os dois planos da linguagem. ois casos-limites, um tratado de Algebra versificado e um dis- nte delirante, mas que nao envolva a expressfo, hé um oderia estabelecer uma tipologia dos discursos pod OMO s¢ se mantivesse uma correlagdo flexivel - extruturas prosédicas nivel de superficie es ‘estruturas fonémicas nivel profundo Pe rcelc-oc) allafiqde’ ae Mndilsed ioe textos poeciooe”aciit“aptesentadas ora se inclinam para uma representagio narrativa, ora para uma leitura paradigmética do plano do significado: se 0 texto de.G, Bataille presta- se a uma interpretagio narrativa, 0 quarteto de Rimbaud é legivel “em todos os sentidos”. Conciliar as duas abordagens, ler um texto poético 23 86 tempo como taxia e como narrativa, como um conjunto de is repercutidas em diversos nfveis, € que seriam propostas ape- ‘nas para servir como lugares de transformacdes, parece constituir, no ‘momento atual, as caracteristicas de uma estratégia de deciframento de ‘objetos poéticos. A introdugdo da dimensio narrativa na andlise do discurso poético, apesar de constituir uma das principais contribuigées destes vltimos anos, nfo deixa de suscitar novos problemas. Um dos exemplos ¢ 0 das isotopias de leitura. A possibilidade de leitura pluricisotdpica dos textos, dificilmente admitida pelos defensores da linearidade dos discursos, nao é peculiar 0s discursos poéticos (um conto popular, o “Chapeuzinho Vermelho” por exemplo, pode ser lido a0 mesmo tempo nas isotopias culindria e sexual); constitui, entretanto, uma de suas caracteristicas freqiientes. Assim, para um soneto de Mallarmé, F. Rastier distingue trés leituras isotépicas possiveis: 0 soneto narra ao mesmo tempo a historia do “banquete” e a de uma “navegacio”, estando as duas narrativas subten- didas por uma problemética narrativizada da “escritura”. O mesmo acontece com a leitura de A. Jarry, onde M. Arrivé reconhece a iso- topia excremencial, a religiusw © a sexual Deveria ficar claro que a pluri-isotopia do texto no tem nada que ver com a “infinidade de leituras posstveis”, expressio muito em voga e que tende a negar a possibilidade de qualquer andlise cientifica de obras literdrias: com efeito, pode ser “infinito” © mimero das lei- turas possiveis, mas essas variagdes dependem exclusivamente da per- formance dos leitores, sem com isto “destruit” ou “desestruturar” 0 texto, Duas perguntas pertinentes se propdem, pelo contritio, a este ito: a da passagem de uma isotopia para outra, a das relagies de “profundidade” entre diversas leituras possiveis. Segundo nos parece, foi J-C. Coquet, em sua andlise do Etranger, de Camus, quem atraiu pela primeira ver a atencéo para a existéncia de elementos que funcionam como engates que propiciam a passagem de uma isotopia para outra: 0 aparecimento do paralexema ‘“matar 0 tempo”, legivel em dois niveis semémicos diferentes, desencadeia uma segunda leitura que se superpée A primeira. Aqui mesmo, F. Rastier procura generalizar este tipo de observagées e formulé-las em procedi- mentos de reconhecimento: 0 aparecimento, entre os lexemas polissé- micos, susceptiveis, por isto mesmo, de serem lidos em diversas isoto- pias, de pelo menos um lexema que s6 é lido numa tinica isotopia, arante a autonomia desta wltima; a existéncia de um lexema que no € lido em nenhuma das isotopias reconhecidas postula a existéncia de uma nova isotopia ainda nio reconhecida. Outras sugestoes pa- a4 insergo de uma narrativa em outra ie M. Arrivé explica a instauragio de uma nova leitura da narrativa inserida; € devido & reorganizacio das partes constitutivas do texto de Bataille que aparecem, para N. Gueunier, novas dimensées de inter- pretacio. A sistematizagio dos processos de engate das isotopias surge desde jé como uma tarefa precisa da semiética narrativa. ‘A questio de saber se as diversas leituras isotépicas independem ‘umas das outras, ou se se encontram, pelo contrario, em relagées de- pendentes umas com as outras, no poderia deixar de se propor. A resposta que, no estado atual de nossos conhecimentos, nao poderia deixar de ser parcial, sugere a existéncia de uma relagio de pressu- P 4 leitura “escritura” seria impossivel no caso "se nilo tivesse sido instituida antes a leitura ‘sexual do texto de Jarry pressupde a narrativa Uma hierarquia de isotopias seminticas, "mas mais “profundas”” que outras, poderia ser assim postulada fundamentada em critérios formais. E evidente que, dentro da pers- ‘pectiva gerativa, a estrutura pluriisotdpica do discurso, que desce de instincia em instincia até o plano da manifestacio, produz af lexemas olissémicos € distorgdes textuais, ocasionando muitas vezes metadis- mitificantes sobre a ambigitidade, que constituitia a prdpris da poesia, Seria entretanto perigoso confundir as isotopias € suas articulagdes em profundidade com os niveis de orga- formal do plano do contetido, tais como se supde que eles ‘entrem em correlacio com os niveis compariveis da expressio para €onstituir o discurso poético. Trata-se, neste caso, da diferenca exis- tente entre 0 diciondrio e a gramética, entre a mensagem, varidvel de um objeto para outro, ¢ a estrutura do préprio objeto poético, — utras palavras, entre as estruturas seménticas stricto sensu ¢ a o das regularidades formais que constitui o segundo discursc Embora pareca geralmente admitido 0 projeto de uma gramitica iva, e reconhecida a necessidade de distinguir nfveis “grama- ainda estamos longe da concepgio comum da forma canénica que deve ser atribufda a esses niveis: partindo das reflexdes sobre a nartatividade, gostariamos de ver af a oposicio entre estruturas abs- tratas, lugares das transformagGes légico-semanticas e uma sintaxe mais superficial, actancial e modal ao mesmo tempo; trata-se de um ponto de vista que nio é inconciliével com a distingdo dos nfveis caracterizados pelas estruturas sémicas, de um lado, e as estruturas semémicas de | satro, adotada por T. A. Van Dijk. As divergéncias surgem, entre I 25 ‘quando se trata de representar as articulagdes fundamentais do nivel profundo a partir do qual sio gerados os objetos poéticos: para Van Dijk, a estrutura ab quo teria a forma de uma frase simples; para J) Kristeva, seria uma configuracio translingiifstica do sonho, a0 passo ‘que nés preferirlamos vé-la como estrutura téxica elementar. Contudo, ‘essas divergencias nfo devem ocultar um consenso, muito mais impor- tante, relacionado com o projeto e com a economia geral da teoria do discurso. Parece impossivel interromper neste ponto a reflexdo sobre 0 componente semantico do discurso poético, sem tentar precisar o estatuto da enunciacao, que tendem a opor ao texto considerado como enunciado, ¥: perfeitamente normal que o sujeito da enunciagio poé- tica esteja presente, de uma maneira ou de outra, no processo de pro- io do objeto poético, e nesse proprio objeto: & este até um dos critétios que permitem distinguir a literatura escrita da literatura oral. Todavia, o fato de ser caracteristico da manifestagio escrita jé priva de uma’ parte de sua espontaneidade criativa, de que se supde seja ele 0 refigio. O que significa que, 20 tempo em que se recusa uma nova misti- ficagio, que permitiria a reintrodugio, por portas travessas, da pro- blemética do “‘inefével”, deve-se procurar determinar o estatuto € 0 modo’ de existéncia do sujeito da enunciagéo. A impossibilidade em que nos vemos de falar, em semistica, em sujeito puro e simples, sem o conceber necessariamente como parte da estrutura Iégico-grama- tical da enunciacio, da qual & actante-sujeito, revela ao mesmo tempo 5 limites dentro dos quais encerramos deliberadamente nossa reflexio semidtica ¢ 0 quadro teérico no interior do qual o seu estatuto pode ser precisado. Ou a enunciagio é um ato produtor nic-lingiistico e, + como tal, escapa a competéncia do semistico, ou entio ela se acha pre- sente, de uma maneira ou de outta, — como um pressuposto implicito no texto, por exemplo — e, neste caso, a enunciacéo pode ser formu- Jada como um enunciado de um tipo particular, isto é, como enunciado dito enunciagio, por comportar outro enunciado como seu actante- objeto, vendo-se portanto reintegrada na reflexio semidtica que vai procurar definir 0 estatuto semintico € gramatical de seu sujeito. No plano semintico, o enunciado dito enunciagao aparece como ‘uma isotopia possivel do discurso poético (cf. a escritura de Mallarmé). Se entéo distinguirmos trés tipos de conteiidos que ai podem estar investidos: 0 sujeito falando de seu préprio ser, de seu fazer, que per- tence @ ordem de seu dizer ou da finalidade de seu dizer — teremos um ponto de partida possivel para uma classificagio semintica das 26 isotopias enunciativas. Conceda-se que, num dado momento histérico, ‘uma subclasse de discursos poéticos cuidou de maneita particular dos problemas da escritura: contudo, este critério isolado, que se refere a um tipo de contetido investido, nfo é suficiente para esgotar a defi- nigio do fato poético. No plano gramatical, pode-se dizer que a estrutura econdmica da enunciagio, na medida em que pode ser identificada com a comuni- _ cacio de um objeto enunciado, entre destinador ¢ destinatério, se acha Togicamente anterior ¢ hieratquicamente superior a estrutura do enun- ples: € que os enunciados lingiifsticos de tipo fo de que se encontram mais préximos do sujeito € produzem uma “ilusio de realidade” € apenas neste sentido, pode J-L. Hou- nean ” © no “tu”, semioticamente desarticulados, j texto. A andlise dos engates actanciais constitui um capftulo tante, ainda nio redigido, da semictica, mas nada autoriza a 0s diversos “quem fala?” do discurso literdrio — sejam eles nifestados por pronomes “eu” ou, de maneira mais vbliqua, por um tivo possessivo identificado por J-P. Dumont no quarteto de Rim- ‘com um sujeito tinico da enunciagio, assim como nio é pos- el aliés afirmar que Michaux esteja menos presente no “ele” da parte de seu texto que no “eu-tu” da segunda Allis, no se percebe de que maneira, sem voltar a cair na onto- do sujeito, de que a semistica literdria a tio duras penas se ou, seria possivel conceber a definigio do sujeito da enunciago no ser através da totalidade de suas determinagées textuais. Que possa encarar, num estégio ulterior, a investigacio das correlagdes — neira das correlagies estabelecidas, por exemplo, entre as lesdes do € 0s distirbios da linguagem — entre as “estruturas refe- * do sujeito nao-lingiifstico e as estruturas semidticas corres- , isto j € outra questio. IV. O OBJETO POETICO } As reflexées anteriores buscaram transmitir uma imagem das pos- sibilidades atuais da andlise dos discursos poéticos, atribuindo a mesma Mengio 20 que pode ser considerado como pertencente a0 dominio do adquitido ¢ constitufdo em procedimentos susceptiveis, sem diivida, ide aperfeicoamento, mas que j4 podem ser propostos aos pesquisadores 27 ‘modelos de um fazer que ultrapassa o estégio das intuigées indi ‘€ ao que ainda é conjecturdvel, extrapolivel a partir de an ‘concretas, que constituem outras tantas hipéteses de trabalho “caja eficécia ainda esté por verificar. O inventério das aquisigoes resul- tantes de uma pritica analitica competente, mas também das elabo- ‘ragdes tedricas parciais, constitui para nés uma etapa necessiria no caminho da construcio de uma teoria que, para ser coerente, no poderd deixar de ser dedutiva. Uma gramitica pottica sé poderé ser construfda se conseguir integrar, tornando-as homogéneas, as diversas probleméticas aqui ex- postas, de maneira suméria e sobretudo lacunar. S6 poderd ser uma construcio, e nio uma reproducio fiel da realidade, e 0s objetos poé- ticos que ela pretendesse gerar idealmente nfo passariam nunca de objetos construidos que nio poderiam atingir a plenitude do “vivido” de sua manifestagio textual, A linguagem claborada para explicar a inteligibilidade dos objetos poéticos nio pode ser, ela propria, postica, fa menos que se possa defini como poeticidade de segundo grau a correlagio entre a metalinguagem e a linguagem-objeto que ela busca traduzir. Uma gramética desta ordem deverd explicar a producto de objetos poéticos em nimero indefinido. Referimo-nos a produgio de objetos, pois eles resultam das aplicagées, as linguagens de manifestacio, das formas canénicas regulamentadas ¢, de certa forma, enclausurantes; referimo-nos a objetos poéticos porque, devido 4 sua natureza biplana, cles sio motivados e socialmente conotados; dizemos que eles podem ser produzidos em niimero indefinido porque, cuidando apenas da dis- posigio e do funcionamento de suas formas canénicas, a gramética per- manece indiferente as mensagens poéticas que proporcione e que sio inumeréveis, tal como as frases produzidas pela gramdtica das linguas naturais: é da semantica e da fonética poéticas que depende a anélise das mensagens-ocorréncias sua eventual tipologia. Ao conceito de fechamento, que constitui um elemento da defi- nigéo do objeto poético, contrape-se freqiientemente a nogio de aber- tura, cujas diferentes interpretagdes seri conveniente preci m efeito: um objeto poético pode ser declarado aberto a outros objetos poéticos: € impensivel uma gramética que explicasse apenas a cons- trugio de um tinico objeto; ela s6 dé origem a objetos considerados enquanto classes, definidas pela identidade de suas formas candnicas ¢ pelas diferencas que as opdem a outras classes de objetos. Todo objeto poético abre-se, portanto, para o universo das formas poéticas 56 tem existéncia no interior desse universo. Por outro lado, 0 objeto 28 poético se abre para o seu contexto, para 0 universo semantico que _ assume, com todas as suas implicages, ¢ manifesta em outras ocasides € por outros textos, o sujeito da enunciagio nao-lingiifstica. A elabo- tacio do cédigo poético — assim como a do cédigo mitolégico, por exemplo — ¢ a boa utilizacio deste eddigo por ocasifo da andlise das mensagens poéticas, constituem por si sés toda uma i cionada com a teoria semidtica geral. Observa-se que a intertextualidade bakhtiniana, a niio_ sic universo € que se fazem as escolhas dos poéticos. O objeto pottico se abre, final- 9 em que se manifesta na lingua natural ‘bem mostrou J. Kristeva a propésito do texto polissémico polifémico da manifestaio per- i a forma de jogos de associacées livres, todas as aber- Pee do significado, cujos limites correspondem entre- performance do leitor (seria provavelmente nesse mesmo © que se poderia situar e interpretar o fendmeno de anagrama- fa qualidade de signos, vale dizer na instancia de sua manifes- @ numa Ifngua natural, os objetos poéticos podem ser ditos moti- os, desde que se entenda por motivacio, dentro da tradicéo saus- na, a Pttos de relagdes nio-arbitrérias entre o significante ¢ cante ¢ do significado no momento de sua manifestagio, ins- a motivacao poética, susceptivel de ser definida como a reali estruturas paralelas e compardveis que estabelecem corre- gnificativas entre os dois planos da linguagem fornecendo, com estatuto especifico aos signos-discursos assim manifestados. 0 ideal, em que todos os niveis se vissem correlacionados das todas as unidades estruturais, seria talvez o mais incapaz de homologar, mesmo as dimensdes da frase, as estru- turas da expressio e do contetido, ele se reduziria inevitavelmente a umm grito do coragio” do poeta. De modo que sé é possfvel falar justificadamente em motivacio relativa de objetos poéticos. Em primeiro lugar, porque € subre o fundo ondulante sintagmético que as equivaléncias correlatadas impoem ‘win significagio, e que € a partir dessas homologacdes estabelecidas ih ~ 29 como significativas as novas transgressées. Em segundo ‘a motivacio, parcial, pode tomar a seu cargo este ou juele nivel de articulagio, pode exercer-se sobre esta ou aquela classe ‘de unidades potticas discursivas, dando assim lugar, eventualmente, a “uma tipologia formal de objetos poéticos, utilizando os prdprios cri- “tétios que definem 0 objeto poético como ‘al. Abandonando a descrigéo que registra as correlagies reconheciveis ‘¢ adotando o ponto de vista da producio de objetos poéticos, nao po- demos deixar de nos interroger a respeito do tipo de relagdes que se instauram progressivamente entre o plano da expresso € 0 do con- tetido, Antes de tudo: esse “‘grito do coragao”, essa “‘verdade essen- cial”, seja qual for a sua forma — estrutura elementar, frase simples, configuracio onirica — aparecem no nivel profundo, como uma estru- tura ja desdobrada, como uma constelagio ao mesmo tempo sémica € fémica? E, em seguida: se tentarmos tragar o percurso adotado pela getago do objeto poético, quais so as insténcias em que, segundo a | __ otdem previstvel de prioridades, a significagio captaria a sonoridade ou, 20 contrério, a expressia selecionaria a contetido? Verifica-se, por exemplo, que a poesia que utiliza as matrizes convencionais solida- mente estruturadas, delas se vale nfo para selecionar os contetidos propriamente ditos, mas sim para organizar a forma discursiva dos mesmos, prevendo a sua distribuigio e as suas localizagdes sucessivas (J. Geninasca). Nao podemos deixar de concordar com T. A. Van Dijk, quando postula que na instdncia imediatamente anterior 4 mani- festacao, a expresso, isto é, 0 esquema discursivo fonémico, seleciona ‘as realizagdes lexeméticas dos contetidos. Mas talvez fosse possivel encarar igualmente a inversio das relagdes de pressuposi¢ao admitir que 0 momento, por exemplo, em que as regras narrativas impdem as disjunges ou as transformagdes dos conteidos profundos ¢ tam- bém 0 momento das disjungées e das transformagoes da expresso, que ‘0s tempos fortes da narrativa assinalam, situam ¢ determinam as per- turbagdes fonémicas (J.-C. Coquet, C. Zilberberg). E af esté mais um obstéculo a claboracao da teoria dos discursos poéticos. Para ser completa, esta deve comportar, além disso, uma tipo- Jegia da conotagio social dos objetos poéticos. No quadro de uma tipologia dos textos, tal como a concebe Lotman, ou mesmo de uma ti- pologia dos objetos culturais em geral, os objetos poéticos se acham submetidos a variagdes no tempo ¢ no espaco, devidas as apreciagdes conotativas que sobte eles proterem as coletividades culturais dos con- sumidores e, em menor proporgio, dos produtores da poesia. E muito varidvel 0 que é considerado como poético € 0 que nio o é: 0 estabe- 30 Jecimento de uma correlagio entre duas tipologias — a primeira, estru- tural, baseada nos tipos e graus de motivagio dos objetos poéticos; a segunda, conotativa, fundamentada na articulacio taxinémica da classe das varidveis, vale dizer, dos destinatérios e¢/ou destinadores sociais — traria uma contribuigéo a histéria das formas poéticas. Todavia, a teoria do discurso poético hi de surgir durante muito tempo ainda como um travejamento a cercar um edificio do qual apenas determinadas paredes, e nio as mais importantes, se mantém mais ou menos de pé. A auséncia de uma teoria getal do discurso, que deve servirlhe de fundamento e determinar sua economia, por mais lamen- tavel que seja, no basta para justificar o ceticismo e, sobretudo, a desisténcia de qualquer estorgo de sistematizacio. De modo que fi- zemos questio de destinar um lugar importante nesta coleténea aos ecentes projetos ¢ desenvolvimentos tedricos: os dois estudos finais se referem, globalmente, a uma concepcio gerativa da linguagem; mas ‘enquanto T. A. Van Dijk, mais ortodoxo em seu projeto gramatical, se esforca por integrar af, organicamente, as aquisigdes recentes da semantica, J. Kristeva abrese amplamente as exploragdes da psicand- ise. Nao nos cabe fazer aqui o elogio ou a critica de uma e de outra tude. Diante do dossié que represent letijes, 0 leitor hi formar a sua propria cpinito. $25 foF nate wu ea lingiistica contribuir para do principio de equivaléncia ire, Hugo, Apolinaie, mos- spor os limites impostos pela lingilistica da frase, faz-se uma gramética do discurso poético, anilises, porém ainda mais do que elas, as profissdes de fé n no campo mal definido do poético. Pouca gente reconhece dificuldade que existe em geral para se escrever dez linhas com 9 comum em matéria de fatos de linguagem”*. No entanto, o Figo de nio dizer coisa alguma talvez seja ainda maior em poética “em lingiistica. Eis por que atribuiremos tanta importincia aos quisadores que concordaram em ilustrar a teoria com exemplos se- dos, Portanto, gostariamos que nosso critério tivesse uma fun: taco prética; € mais pela eficécia dos métodos que pela habi- d itual das constragées que pretendemos pautar 0 nosso pen- um método é eficaz quando permitir, em condigdes s, a identificagio €, conseqtientemente, 0 conhecimento do to pottico”. E indiscutivel que se pode discorrer de todas as sobre @ poesia, mas aqui considerarse-4 que o problema per- | Carta de Soussure, citada in R, Godel, Les sources manuscrites du Cours linguistique générale, DroaMinard 1957, 31. 2. Ch. a bibliografia citada nas notas. O asterisco assinala os estudos onde jIeitor encontraré uma anilise de um texto poético de certs amplitude. 35 | mamos que, num ; que s6 é possivel construir uma espécie de discurso ‘vez, caso se pretenda conservar a sua coeréncia. Nao vemos 0 seria possivel, no estado atual de nossos conhecimentos, unificar meio de um tnico discurso as palavras tio diversas do critico 0, do antropélogo, do filésofo, do gramético, do esteta, e de ‘virios outros ainda, sem incidir em grave e ridicula desordem mental. ‘Vejamos, porém, que fato de linguagem temos em mente quando afir- texto, hé poesia"? Qual o critério que nos permite reconhecer que as Iiluminations ou os Chants de Maldoror fpertencem a0 dom{nio poético? Muito embora o processo de distingao inteiramente retSrica entre prosa e poesia jé tenha sido feito ha muito tempo, a maior parte dos estudos que se inspiram nos métodos mais modernos das ciéncias humanas acabam adotando como referencia textos’ versificados. Se cada disciplina, se cada escola de pensamento procurar precisar de maneira rigorosa 0 que convencionaremos deno- ‘minar “‘poético”, talvez se torne possfvel, confrontando os resultados, delimitar um pouco melhor este eélebre € por enquanto mitico objeto pottico, O proprio termo objeto id se presta a discussio, A nosso Yer, cle assume pelo menos trés formas, segundo a maneira adotada pelo lingiiista para apreendé: 1. dado como conhecido. F a atitude positivista. A obser- vaio € segura, mas a descricio se baseia num a priori. O que esté ‘em jogo é apenas a renovagio de métodos inteiramente pragméticos. 2. So contestadas as nogées de objeto e, correlativamente, de sujeito. Nao se prope, por principio, nenhuma definigéo substitutiva. Recusa-se 0 analista a empreender uma descri¢ao, metamorfoseando-se assim em escritor. Satisfatéria no plano do desejo, por sua prépria ambigio, a tentativa fica no futuro. 3. 0 objeto no € um dado imediato. Fica por descobrir. As condigées do conhecimento sero atendidas quando o analista puder propor para um determinado objeto visado uma gramatica especifica, isto é, 0 conjunto das regras explicitas de que depende 0 jogo das significages ¢ das sonoridades. Inttil dizer que nfo existe nenhum estudo que se aproxime, pelo menos, deste resultado. Mas, aqui acoli, jd vio sendo colocados alguns elementos de conhecimento. Gostarfamos de apresenté-los e de discuti-los. 3. W. A. Koch, “Linguistiche Analyse und Strukturen der Poetiitit”, Orbis, 17, 1, 522. 36 Il. Equivaléncias horizontais e verticais ___ Ja hé muito tempo disseram os poetas que a arte implicava uma equivaléncia (é 0 proprio termo empregado por P. Valéry) entre 0 fundo e a forma. Nada de preciso, entretanto, quanto a natureza dessa ‘equivaléncia: impresses, apenas. Cuidou-se, em lingiiistica, de refor- mular com maior rigor esta espécie de postulado. E 0 que ficou conhe- ido sob a designacao de “Principio de equivaléncia do eixo da selegao sobre 0 eixo da combinacio” *. E portanto convidativa a idéia de mostrar que no mesmo lugar da seqiiéncia podem se encontrar € se somar categorias de nivel lingiifstico diferente, fOnicas, gramaticais, seménticas, etc. Apresentar-se-ia, por conseguinte, 0 texto poético sob a forma de uma equacdo verificada sobre dois planos: 0 bori- zontal, visto seem equivalentes 0s segmentos cont{guos; € 0 vertical, j4 que os niveis lingiifsticos empilham-se uns sobre os outros, ¢ s30 ‘eco uns dos outros. Jamais, segundo nos parece, um discurso continuo, cujo objeto é todo um poema, mesmo de pequenas dimensdes, conseguiu _fequer provocar um esboro de demonstragio desse princpio de equi- valencia Em contraposicao, jd foram registrados resultados interessantes ‘quanto a pontos precisos. O principio geral consiste em valorizar a antiquissima teoria das relagdes quaternérias: a esté para b como ¢ est4 para d. Fundamentada na relacdo légica de conjungio (ou de dis- jungio), a anilise revela: 1. 0s paralelismos gramaticais (ou sua ruptura); 2. 0s paralelismos dependentes do eixo das convengdes® (ou ‘sua ruptura); 3. 08 paralelismos fOnicos e prosédicos * (ou sua ruptura); 4. 0s paralelismos semantics (ou sua ruptura). plo T a Possivel descobrir as equivaléncias dentro de um mesmo nivel tico; observar, por exemplo, seguindo o nivel 3, a seqiiéncia nasais do pocma Les Chats e, de maneira mais sutil, como fez Baya yektemn, Essais de linguistique générale, £d. de Minuit, 1963, pp. 5. 'S. R,, Levin * Linguistic Structures in Poetry, Mouton, 1962, p. 46, vet , "Sciam thas iments, segmental ¢ al 1G.” Sciam eau egecanl'¢ popesscemiena py 7. R. Jakobson ¢ Cl. LéviStrauss,* “Les Chats de Charles Baudelaire” L'Homme, 1, 1962, p. 15. 37 1, étinceles 1, qu'un sable [kes ...], fin [fe]. [rins, cheios, centelhas, assim, como uma areia, fina] exemplo IT Neste verso de Hugo “Quand la lune apparait dans la brume des plaines” {Quando a lua aparece na bruma das planicies) registrar uma simetria f6nica quase perfeita, afirmando entio que “o retorno da mesma série de vogais nos dois hemistiquios {...] sustenta o verso”. Acrescenta H. Meschonnic: “Quase sempre simetria desigual, mas pelo menos homogeneidade parcial em cada hemist{quio e de um para outro’ exemplo IIT Tomemos estes célebres versos de Apollinaire: “Les tramways feux verts sur Véchine ‘Musiquent (...) leur folie de machines Les cafés gonflés de fumée Crient tout Vamour de leurs tziganes (...) Vers toi, toi que j'ai tant aimée.” [Os tramways luzes verdes sobre a espinha / Musicam (...) de miquinas // Os cafés pejados de fumaga / Gritam todo o am ciganos (...) // A ti, a ti que eu tanto amei.”) Isolando as construgdes paralelas, obtemos duas frases simétricas: P, — Sujeito (determinado + determinante) + Predicado (verbo + ‘complemento) P, — Sujeito (determinado + determinant) + Predicado (verbo + complemento) de modo que sera possivel dizer: P, esté an A (“Vers toi, toi que jfai tant aimée”) como P, esté para A. E a forma “abrandada” da relagio de analogia acima apresentada. E a que S. R. Levin denomina 8. H. Meschonnic, “Problémes du langage poétique de Hugo” in Nouvelle Critique, 1968, 134-135. 38 “Tipo I”: “Two forms may be equivalent in respect to the linguistic environment(s) in which they occur” *. E claro, entretanto, que o principio de equivaléncia visa menos a cada nivel tomado isoladamente que a relagdo de interdependéncia entre os niveis e sobretudo A relagao dos niveis 1, 2, 3 com o nivel 4. Relagio mal definida, como veremos. Para que ela ficasse estabelecida de maneira rigorosa, seria preciso que nfo nos contentdéssemos com algumas amostras (que sabemos produzir, com efeito); seria preciso também que soubéssemos apresentar as regras que sujcitam os niveis tuns aos outros. Seria preciso, antes de tudo, que soubéssemos.dizer 0 que € a prosddia, cujo dominio, na verdade, ainda permanece mal co- nhecido, que pudéssemos identificar e qualificar univocamente os fo- nemas e distinguir a semantica, que se prende a uma teoria interpreta- tiva, da semantica do discurso, muito diferente, se nfo em seu prin- cipio, pelo menos em seu objetivo. Ill. Sera possivel remediar as insuficiéncias da teoria lingiistica? Hi diversas maneiras de remediar as insuficiéncias da teoria lingiifstica: 1. Recorrendo, por exemplo, aos métodos da Idgica matemé- tica, o que supde um alto grau de abstragio e, correlativamente, uma “especificagio muito precisa dos dominios estudados (autématos, gra- miticas formais, etc.). Estd fora de diivida que a linguagem poética, pela sua propria heterogeneidade, nio € redutivel a nossos modelos matematicos. Nessas condicdes, 0 formalismo matemético parece um desafio. J. Kristeva deve usé-lo figuradamente em seu estudo “Pour tune sémiologie des paragrammes” (Tel Quel, 1967, 29, p. 53-75). Despojado de seu objeto especifico, endossa ele, a duras penas, uma fungio discursiva, a0 mesmo tempo controvertida e decorativa ?°, Ou entio, inversamente, sendo porém © procedimento igual- iscado, visar ao “vivido”, sem entretanto definir nem a nocd , nem a maneira com que se faz analisvel a “relagio da com tudo 0 que nio seja ela”, E vasta a ambigio tedrica; jé S$. R. Levin, op. cit, p. 29: “Duas formas podem ser equivalentes com ‘elagio 20 seu ambiente lingiistico. 10. A eritica a este texto, feita por um mateméticopoeta (J. Roubaud), in Action poétigue, Maspero 1969, 41-42, p. 56 € 5s, corre 0 risco de as perspectivas de um trabalho ambicioso. “11. HL Meschonnic, “Pour la poétique”, in Longue francaise, 1969, 3, p. V4, 33. 39 por diversas vezes, em termos andlogos (cf. S. Dresden, gus, 36 [1952] 193-205). Sao porém severas as coergbes cientifico (demonstrativo); como permitiriam elas que se tasse 0 vivido (G. Mounin, La Communication poétique, Galli- ‘mard, 1969, p. 25-27)? O autor visa a “leitura total do sentido de ‘uma mensagem” (jbid., p. 284); mas, aqui ou ali, que significacio pre- - isa pode ter a nogio de sotalidade? A nosso ver, as criticas A teoria lingiifstica séo motivadas menos lum exame rigoroso dos seus poderes que por pressupostos filosé- ¢ literdrios, Basta observar sua evoluggo constante, as transfor- ‘mages sofridas para admitir que nao se justifica um balanco das aqui- __sigdes e das caréncias, como se a sua histdria fosse subtraida a toda inflexdo, Precisamente na medida em que fornece quadros de um dis- curso bomogéneo ¢ vulnerével sobre os fatos de linguagem, revelou-se ela como instrumento eficaz de descricio, o que é étimo, mas também, ‘0 que é melhor ainda, como instrumento de descoberta ¢ de axiomati- zagio. Basta que nos lembremos da importincia tedrica e metodolé- gica do Mémoire sur le syst?me primitif des voyelles dans les langues indo-européennes de Saussure (as “ralzes” € os fonemas, por exemplo, so af definidos a partir de célculos abstratos; nfo & este também o procedimento da fonologia gerativa? ). IV. Homologagéo dos niveis Como permanece a necessidade de pdr 2 prova, uma anilise algo aprofundada das relagdes entre os niveis nos hi de dar uma idéia mais ‘exata do que se pode esperar da aplicacio do principio de equivaléncia. No exemplo IT (estudo do verso de Hugo), 0 comentador liga ‘nivel 2 a0 nivel 3. A simetria fonica no é mencionada por si mesma € sim em fungio do equilibrio métrico: “A construgio do verso é, antes de tudo, fungio constitutiva dos sons” (H. Meschonnic, 1968, op. Git.). A distribuigio das sonoridades do primeiro hemistiquio é equiva- lente a distribuigio das sonoridades do segundo hemistiquio. No exemplo I (anélise do poema dos Chats), 0 que est em pauta € a rclacio entre os niveis 3 ¢ 4: “Sonbando, os gatos chegam a se identificar com as grandes esfinges, e uma cadeia de paronomésias, associadas a essas palavras-chave combinando vogais nasais com cons- tritivas dentais e labiais, reforca a metamorfose...” (R. Jakobson € C, Lévi-Strauss, op. cit.}, Os autores fazem muita questio de dizer “reforga”. Com efeito, o liame entre o nivel 3 ¢ 0 nivel 4, devido a “arbitrariedade do signo”, s6 pode ser frouxo. Neste caso particular, 40 a selecéo das correspondéncias sonoras pressupde a determinacéo das correspondéncias Iéxicas. E vélido dizer enti que as primeiras “re- forcam” as segundas; papel secundétio, nem necessério, nem suficiente. Quanto ao exemplo III (texto de Apollinaire), permite este que _ se estabeleca facilmente o relacionamento entre os quatro nfveis que _ adotamos. A equivaléncia sintética j4 manifestada (nivel 1) € cor- roborada pela simetria prosédica ( 1 2). Com efeito: os dois seg- mentos de frase tém uma coisa em comum: 0 segundo verso principia pelo verbo; é ele que marca o primeiro acento ritmico (a diferenga diz respeito a estrutura sildbica dos dois termos; neste caso, pode-se acom- panhar S. R. Levin, que adota um principio geral de descricio, da se- guinte maneira: “In a sentence like be painted the house and white- washed the garage, not the semantic differences between house and garage but the similarities will be foregrounded because in the other coupling painted and whitewashed are semantically equivalent” !2), Em outras palavras, € evidente, 0 processo de homologacio leva a privilegiar identidades. No nivel 4 intervém a tepresentagao semintica. Eis af uma das dificuldades anteriormente apontadas; em S. R. Levin, © papel da seméntica consiste apenas em associar uma significagio “aos modelos da gramética de superficie tomados como objetos de and- lise; trata-se porém igualmente de ordenar as relages situadas no plano da estrutura textual (semantica relacional). Podem ser assim explo- radas as equivaléncias Iéxicas entre musiquent e crient, que podem set facilmente precisadas com o uso dos métodos de Ch. Bally 8 em fungéo do denominador comum: “Vers toi toi que j’ai tant aimée.” Pode-se escrever inicialmente: Vers foi... esté para Les tramways musiquent assim como esté para Les cafés crient; dando a representagao: tramways cafés nu musiquent (vers toi) crient vers toi suficiente mostrar em seguida que les tramways musiquent... € ss cafés crient... io representaces metonimicas do actante-sujeito € luma representacio do actante-objeto, para estabelecer um primeito juema da relagio semintica sujeito > objeto. 12. S. R. Levin, op. cit, p. 35: “Numa frase como ele pintou a casa ¢ ‘al na geragem, nio sio as diferengas seménticas entte casa ¢.garagem ‘sim as suas semelhancas que aparecem em primeiro plano, porque or dois ter ‘nos do outro par pintou € passou cal sio semanticamente equivalentes.”” | 13, Procura do termo identificador; cf. J-C. Coquet, Combinaison et trans- en podsie: A. Rimbaud, Jes Iuminations, in L'Homme 1969, 1, p. 28 a do nivel fénico @ prosédico seria licito, neste estégio da anilise, aprofundar 0 estudo da textual. Em compensacéo, o importante € utilizar agora, ¢ te agora, o nivel 3 (os planos fénico e prosddico). Nés o fa- “remos, levando em conta as coercoes reveladas pelas anilises anteriores. Serio assim isolados (e isto, em razio de seu valor exemplar) os tragos comuns dos segmentos (myzik) e (kei). Diremos que a vogal leva “o facento dinimico” da silaba ™, impondo-se com isto a nossa atengao. A ‘mudanga de freqiéncia caracteristica da silaba € de tipo crescente no primeiro caso e decrescente no segundo "*: Silaba Ocorréncia | tipo zile (b) ab ri (b)bs Falar em acento dinimico é recorrer ao critério da intensidade, vale dizer, apoiar-se nos clementos fisicos da palavra. Sao trés esses ele- mentos: freqiiéncia, duracio ¢ intensidade. Eis a relacdo entre os dados objetivos ¢ subjetivos. Sé os pri- meiros podem ser medidos: ‘objetivo | subjetivo oposi¢des convencionais freqiiéncia | altura | agudo (claro) vs grave (sombrio) duracio. Jongura | breve vs longo intensidade forga fraco (difuso) vs forte (compacto) ‘As oposigdes convencionais sfo cOmodas, mas pouco rigorosas. Na rea- lidade, a complexidade dos sons é de tal ordem que, para ser preciso, € imprescindivel fazer referéncia ao artigo de P. Delattre: “La radio- ‘graphie des voyelles francaises et sa corrélation acoustique” (French Review, 1968, XLII, I, p. 48-65) e sobretudo, visto ser este dominio menos conhecido, a descri¢éo que ele faz do “sistema completo dos 14, R. Jakobson, Essais de linguistigue générale, p. 122. 15. P. Delattre, “Les attributs physiques de la parole”, in Revue d’estbé- tique, 1965, XVIIT, '34, p. 253. QQ indicios actisticos (...) necessdrios e suficientes para sintetizar todas ‘as consoantes do francés...” #*, Por certo, a andlise tradicional em ‘tracos pertinentes, de R. Jakobson a N. Chomsky, embora seja mais facilmente manejada, nem sempre € verificada experimentalmente. Por conseguinte, nés sé a manteremos em casos bem determinados, em que 0 arbitrério nao & por demais flagrante. Como 0 tipo silébico serve de quadro para a nossa pesquisa, nés nos vemos compelidos a comparar as seqiéncias fonemdticas [i + k] e[(k + R) + {]. Uma primeira observaio: [x] é quase inteira- mente dessonorizada por assimilagao ao contato de [k]: “Uma consoante doce ¢ sonora por natureza, observa P. Delatire, pode-se tornar tio dura e surda quanto uma verdadeira fricativa dessonorizada sob a in- fluéncia do meio fonético.. A consoante r que, depois de uma vogal final, como no caso de fleur, se desvanece em doces harménicas, re- forga-se num rufdo surdo e rugoso quando vem depois de uma con- soante dessonorizada como em cri” 1", Se procurarmos explicar 0 potencial harménico da palavra ou do verso (como pretende N. Ruwet em seu artigo “Sur un vers de Bau- delaire” in Linguistics, 1965, 17, p. 69-73), serd portanto necessério “observar que quanto mais acompanhada de rufdo estiver a consoante, mais breve ser a vogal precedente e mais préximos estaremos do pélo da inarmonia (P. Delattre). A titulo de ilustracio, propomos uma - escala de valores segundo a duragdo e a intensidade do rufdo (P. De- lattre, op. cit.). Ruido durante @ sustentacao da consoante Auséncia de ruido (inarmonia) > (harmonia) {ktp—fsf} {gdb—3zv} {anm—rjylw} m, entre os fatores relacionados com nosso nivel de anélise, dois tribuem poderosamente para a harmonia: a) a auséncia de ruido, ) a Tongura da vogal; ora, aqui, em silaba final ou diante de (k], vogal € breve. Comparemos [kei] a [tf:30]: ‘Tudo leva a cret, ta P, Delattre, que nao foi por acaso que Baudelaire escolheu as rimas de Harmonie du Soir em -oir e em -ige, com duas con- es muito fracas, que alongam pronunciadamente a vogal prece- jpaalSi, P Dest, “From Acoustic Cues to Distinctive Features” in Phonetics, , 18, p. 230. 17s P. Delattre, “Les attributs physiques de la parole”, op. cit, p. 251. 4a desta maneira finais de sflaba a0 mesmo tempo doces para acentuar o sentimento da natureza que © pocta procura O cfcito obtido deveria ser muito diferente nos versos de G. linaire de que estamos tratando, visto que as combinagSes conside- tadas associam [i] a [k] ou [kr] a [i] que sio “duras” e “breves”. "Finalmente, a relagio de analogia que une os dois tipos de sflaba ~ (sendo um 0 contririo do outro) se tornaré objetivamente sensivel se _Tevarmos nossa pesquisa para 0 plano dos tracos actisticos. Com efeito: [i] a vogal cujo segundo formante € 0 mais elevado de todas as vogais; por oposigo a [a], é também a melhor representacio da vogal “difusa”". Quanto a consoante (nao voltamos 0 fato da assimilacéo progressiva do [k] sobre [r]), esta & neutra, no plano da fregiiéncia; vale dizer que os seus formantes de transicéo se acham ligados, no re- sistro da palavra, a notas intermedidrias, entre as das lobiais, baixas, as das dentais, altas. A esta posigio mediana corresponde, no plano da intensidade, 0 termo polar “‘compacto”. Assim [k] opde-se 2 [t], como [a] se opde a [i], cada qual em sua ordem. A distribuicéo dos tragos de uma sflaba para outra pode ser figurada da seguinte maneira: &b(agudo/difuso) + (neutro/compacto) => bi (neutro/compacto) + (agudo/difuso). . VI. Pontos de equivaléncia Dessas observagdes sobre 0 nivel 3 deduzem-se duas conclusdes: 1. os cunponentes fénicos da sflaba possuem os caracteres da “inarmonia”; 2. a teligio de verso para verso, neste ponto preciso da se- qiiéncia, € uma relagdo de equivaléncia formal. ‘A primeira conclusio permitiré o estabelecimento de uma corres- pondéncia entre o nivel 3 € o nivel 4. Diremos que a relacdo seman- tica/sujeito —> objeto/, de que acima tratamos, serd qualificada por um classema, que, experimentalmente, iremos chamar de /misica/ € cuja ‘modalidade seré a /inarmonia/ (colocamos entre tragos obliquos as expresses de metalinguagem descritiva). A segunda concluso pode servir para marcar a inter-relagio formal dos nfveis 1 ¢ 2, de um lado, €-3 do outro. Assim, levando em conta os dois termos ana- lisados em cada nivel: equivaléncia sintética entre 0 verbo da frase 1 0 verbo da frase 2; equivaléncia métrica dessas duas palavras colocadas identicamente no inicio dos versos; equivaléncia silé bica e fonica; equivaléncia semantica, finalmente, julgamo-nos autori- s a apresentar a homologacio dos quatro niveis sob a forma con- vencional; @ esté para a’ (sintaxe) como b esté para b’ (métrica), ¢ 44 para c’ (prosédia e fonética), d para d’ (semantica). E preciso reco- nhecer a0 mesmo tempo, entretanto, que s6 conseguimos reunir pontos de equivaléncia aos pares, e nada mais. Em outras palavras, nao dis- pomos de meios para propor um sistema de equivaléncias. E isto por diversas razSes. A mais determinante, a nosso ver, é a extrema desi- | gualdade de nossos conhecimentos lingilsticos, segundo 0 nivel esco- Ihido: suficientes talvez em sintaxe ou em aciistica, sio0 muito modestos em semantica e em prosédia. E € ainda preciso fixar objetivos ra- zoiveis. Basta examinar as reducdes a que se forca a lingifstica formal (matemitica) melhor apreciar a distancia que medeia entre os pontos de vista. Propor a nocio de sistema seria o mesmo que pretender conhecer os elementos constitutivos de cada conjunto num dado nivel e as regras que presidiram a formacéo do conjunto consi- | derado. Seria mister, em seguida, precisar 0 estatuto de um nivel em relagio a outro e abranger talvez, ao cabo de tudo, o conjunto de regras que garantem a descrigio correta do sistema lingiistico. Esté bem claro que, por enquanto, esta ambicio € desmedida. O analista matemético que pretenda tratar a linguagem como uma estrutura algé- brica € forcado a situar-se bem distante das condigées de construgio do sistema, Em outras palavrus: “€ preciso repetir que os sistemas que se revelaram susceptiveis de um estudo abstrato sério sio, sem a menor divida, inadequados para traduzir toda a complexidade e toda a riqueza dos processos sintéticos utilizados pelas Ii limitar-se 4 busca de pontos de equivaléncia nao constitui um objetivo desprezivel. Basta considerar os resultados obtidos com um instru- "mento, no obstante, tio imperfeito. No nos deixemos impressionar também pela introdugio forsada do aparelho matemético. O trabalho de descrigio ¢ a formalizagio s6 hio de ser julgados satisfatdrios se os ‘mecanismos construfdos refletirem da maneita mais simples possivel as faculdades lingifsticas de um sujeito falando a sua lingua natural. O estado atual de nossos conhecimentos nio nos permite antever o éxito ‘ou o fracasso da tentativa matemitica. Se, como é evidente, o lin- gilista nfo pode rivalizar em todas as circunstancias com 0 rigor do algebrista, néo ha motivo, entretanto, para que seus métodos sejam tidos como caducos. Pelo contrério, € perfeitamente legitimo consi- deré-los validos, sempre que atendam a dupla preocupacio de eficécia ‘ede economia. Eles deve, portanto, pelo menos, a) aprimorar 0 co- nhecimento dos sistemas ldgicos que subtendem 0 funcionamento da 18. Observese igualmente que excluimos 0 estudo do comportamento fono- ‘actistico; “oe gesto oral”, como dizia P. Claudel, implica outro tipo de pesquisa Bie. Choma, GA Miles, Lenavie der lnoner neues, Pes, 168. ” ; b) quando se trata de um texto, garantirlhe a legibilidade; ‘€) no plano metatedrico, definir procedimentos facilmente reprodu- ‘VII. Sistemas de descrigio © ponto «) implica uma melhor identificacio das unidades de frase © das unidades de discurso. A nogio de sinapsia, por exemplo, renova a nomenclatura dos elementos constitutivos da frase?°. O que nos faz lembrar que a lingua sé € conhecida por intermédio da ati- vidade metalingiistica do pesquisador. Se acrescentarmos que toda descrigio depende do ponto de vista escolhido, ser4 necessério avaliar ‘0s resultados apresentados, em fungio da teoria que lhes serve de fun- damento. Assim, ficando no nivel 3 (f6nico e prosédico), de acordo com os sistemas organizados, as descrigées podem variar de maneira considerfvel. Uma unidade determinada muda totalmente de estatuto de uma andlise para outra. O som [R] reconhecido como uma liquida por R, Jakobson transforma-se em glida depois da anilise cientifica (ex- perimental), aperfeicoada nestes dltimos anos por P. Delattre. Propde- se atualmente o problema de saber como articular este sistema de trés classes (consoantes, vogais sonantes) #4 com o sistema tradicional de quatro classes das Preliminaries to Speech Analysis de R. Jakobson, Fant ¢ Halle (consoantes, vogais, liquidas e glidas). Com toda a cer- teza, impde-se um reexame de algumas regras de fonologia gerativa **. No plano de que nos ocupamos — o da descrig@o de um texto poético pecs eveskprocesmaran nares coos coment do som [R]: Classificagio Tragos articulat Classificacio _acistica [R] Kiquido Tk] lida consonantico 7 + vocilico + = continuo - + 20. Ela carece de uma nova oposicio, de caréter semintico, entre cate- goria (composicio singptica) e espécie (composigdo ordinétia); cf. E Benveniste, BSLP, LXI, 1966, 91-93. Tenha-se presente que Katz e Fodor julgam poder constituur um dicionétio formal com base na composigio (Cahiers de Lexico Josie, 1966, II, 67). 21. "As soantes incluem as nasais ¢ as glidas. 22. Cj. 0 estado de R. Schane sobre “Lidlision et la liaison en francais”, Langages, 1967, 8, particularmente p. 39-0. 46 (O primeiro tipo de classificagio € utilizado por N. Ruwet **, Podemos nos perguntar por qual modelo optar. Antes de responder, seria pre- iso pér a prova 0 modelo actistico, 0 que ainda nao foi feito, ¢ deli- mitar a dominio de validade dos dois sistemas. Em contraposicio, é possivel observar desde jd as falhas dos modelos matriciais que nos so propostos, ¢ extrair algumas conclusdes, A falha mais grave é, sem divida, o seu hermetismo. Um leitor bem disposto deveria ser capaz de interpretar, sem grande dificuldade, os dados fonoldgicos. nos duvidoso que 0 consiga de pronto quem quer que leia N. Ruwet, no estudo citado. E para isto vemos um motivo: a fraqueza das definigées. Por exemplo: que valor deveremos atribuir aos tracos Jeompacto/e/difuso/? A dar crédito a Jakobson, a oposigio entre eles € fundamental ?*, Nem por isto deixa de ser imprecisa. J. Mac Cawley, em seu artigo sobre Le réle d'un systéme de traits phonolo- giques dans une théorie du langage esboca um histérico das diversas " ‘transformagées desta oposi¢ao *®. Eis como dela se utilizou N. Ruwet (op. cit.) para a anélise das consoantes [3], Cp], [£], [k] e das vogais (ul, [y], (51, [oe]. Pretende o autor descrever “com grande preciso” a estrutura fonica do célebre verso: “Le jour n'est pas plus pur que le fond de mon coeur.” [0 dia no é mais puro que o fundo de meu corasio.] ‘Ou seja, considerando duas das quatro variagdes sistemdticas ado- tadas por N. Ruwet difuso 0 ‘Ao que parece, as duas referéncias do analista sio 0 estudo de R. Jakobson, extraido dos Selected Writings de 1962, € 0 livro de M. Halle: The Sound Pattern of Russian (1959). No sistema de Halle, “as consoantes [+ difuso] sfo marcadas [— compacto] e as con- 23. Em “Limites de l'analyse linguistique en poétique”, in Langages, 1968, 12, p. 58. 7 24." O ‘capttulo “Phonologie et phoné: dos Essais de linguistique i. 26. A saber: i » 1tinuo/descontinuo, :/ no 6, A et ono bom, con io, grave 47 tes [— difuso] sio marcadas [+ compacto]”. De modo que ‘[p] nio deveria ser [— compacto] e [— difuso]. Por que motivo, ‘nio obstante, o autor terd adotado duas dimensdes (compacto € fuso)? E, se é verdade que sio utilizadas duas dimensies, falta-nos fp POE mie! ativo o sepentn (3 J, por exemplo, nao ¢ espe- ificado em relacio ao traco difuso. Com efeito, tanto [3] ¢ [k] sio [+ compacto], quanto [p] e [£] sao, em princfpio [+ difuso]. A notacio esperada seria, portanto, para [p] ¢ [f] [+ difuso] ¢ £0 compacto}. Do lado das vogais, cada uma delas marcada por dois tragos, também nio hé nada de muito claro. Sem divida, € possivel introduzir um termo médio na andlise. As medianas ({o:}, [3 ], no ‘caso presente) sio entio [— compacto] e [— difuso]. Deveremos entender, entretanto, que uma vogal ‘difusa” como [u] seja marcada de maneira redundante [+ difuso] e [— compacto]? No caso de uma resposta positiva, é de espantar que 0 mesmo raciocinio jé nio se aplique a [pl], tradicionalmente andlogo a [uJ. Estes poucos exemplos bastam para ilustrar nossas dificuldades de leitura, Nao ‘estamos certos de que ela parega a outros mais facil. Admitamos, entre- tanto, que a insuficiéncia das definigées seja um mal inevitével, na medida em que sio combinados, sem o necessério rigor, os dados da fisiologia articulatéria e 0s da’ acistica**; admitamos’ também que ‘estas hesitagdes tenham importancia epistemolégica; ainda resta uma dificuldade de ordem a0 mesmo tempo tedrica e metodoldgica: como ‘descrever” uma estrutura fénice, a partir de tragos fonoldgicos? Os planos sio inteiramente diferentes: um deles remete ao texto mani- festado € 0 outro a estrutura textual. Assim sendo, em razio de seu menor distanciamento dos modelos de superficie, 0 modelo actistico nos parece muito mais adequado que qualquer outro a andlise do texto manifestado, “Nas relagdes de equivaléncia isoladas em (sua)-anélise fonolégica do verso de Racine (...)” vé N. Ruwet “uma ilustragio” do principio de projecio do cixo paradigmético sobre 0 eixo sintagmé- tico, A imprecisio das definigées, assim como a inadequacéo do mo- delé fonolégico, dio margem, a nosso ver, muito pelo contririo, a uma grande reserva. Se nos estendemos quanto a este aspecto da des- ctigio, é porque a falta de informagdes faz com que ele seja geralmente pouco discutido, Além disso, insistimos, 0 nivel fénico era um dos planos em que a lingifstica podia “desde agora”, proceder a descrigées “de grande pi invalidando a0 mesmo tempo certas hipéteses, ‘ou avangando outras”. Na realidade, é preciso eliminar algumas, ¢ 27, J. Mac Caley (op. cit, p. 118). 48 construir com paciéncia um objefo que, repetimos, niio € um dado. E 0 que admite todo leitor bem informado de Saussure *, ‘VIII. Dissonén jas e consonéncios prosédicas Uma construgio desta ordem apresenta, alids, sérias dificuldades. Os conhecimentos j4 adquiridos nao nos permitem, por exemplo, ana- lisar corretamente a relagdo entre silzba ndo-acentuada e silaba acen- tuada, Reportemo-nos a0 exemplo III. A descricdo dizia respeito aos segmentos acentuados dos lexemas crient e musiquent. Como definir © estatuto da primeira silaba ndo-acentuada [my —] e 0 equilibrio entre as duas vogais fechadas [y] e [i], entre as trés consoantes {m], [2], [k], entre as consoantes € as vogais, enfim entre a prép1 expressio sonora e a significagio do lexema? Estamos mais bem ap: - relhados para trabalhar sobre termos médios que sobre a seqiiénci acistica propriamente dita. Impde-se, por conseguinte, que avance- mos nossas hipsteses com extrema prudéncia, Seré coincidéncia? Os versos isolados citados por N. Ruwet ** terminam por uma vogal longa seguida de [2] (ou de [ve]): Malherbe: “Ex les fruits passeront la promesse des fleurs.” LE 0 frutos superario a promessa das flores.) Racine: “Le jour n'est pas plus pur que le fond de mon coeur.” LO dia nio é mais puro que o fundo de meu coracio.] Baudelaire: “Le navire glissant sur des gouffres amers.” (O navio a deslizar sobre amargos abismos.] Mallarmé: “La chair est triste, hélas, et j'ai lu tous les livres.” TA carne esté triste, ai! € li todos os livros.) Uma das razdes da segunda existéncia que tém certos versos fora de seu contexto na meméria do puiblico poderia muito bem set a sua carga harménica, calculada em fungio da presenca, da intensidade dda duragao das ondas periddicas. Observe-se que a silaba final de cada ‘verso comporta uma vogal aberta que sob o acento se alonga diante uma soante. Talvez nio fosse absurdo afirmar, embora se fizessem sitios imimeros exames para esbogar uma demonstragio, que na 28. © pensamento tedrico de Saussure geralmente & apresentado as avessas, for comentadores apresados. Sun originalidade deve ser avaliada 4 eitura da lémoire de 1879, ignorada dos que s6 conhecem lingiistica de passagem. 29. “Sur un’ vers de Ch. Baudelaice”, in Linguistics, 1965, 17, p. 70, 74, 16; “Limites de Panalyse linguistique em poétique”, op. eit. p. 37. 49 [myzik] 0 movimento é inverso: sucessivamente, 03 sons do labo passam do mais sonoro para 0 menos sonoro, no caso das ‘eonsoantes, e do menos agudo para o mais agudo, no caso das vogais: ~ Consoantes soante —> constritiva —» oclusiva (m] (z] {k] ty] > fi) Vogais Um passo mais seré suficiente para que se veja na palavra [myzik] ‘uma espécie de ideograma, de figura sonora paradoxal da passagem da harmonia para o seu contrério. Assim, para Mallarmé, [3 u:x] ¢ [n Yi] haviam trocado estranhamente as suas qualidades fénicas na- turais, Seria indtil prosseguir: 0 leitor j4 se deu conta do perigo de semelhantes exercicios, por falta de um saber corretamente estabele- ido. Poder-se-ia observar igualmente que esta representagéo da har- monia bastante tradicional. Mas os nossos criticos escolhem justa- mente autores tradicionais e, dentro desta Perspective Biles a 0 papel da “‘modulagio numa composi¢ao musical” *, ow & economia de um movimento de sonata”™®" Ihes_parecem evidentes. NOs as julgamos arriscadas. Embora nfo seja impossivel descrever 0 sistema dos sons, com certa margem de incerteza, é bem verdade; e embora Seja muito mais arriscado, evidentemente, procurat caracterizat, por exemplo, as dissondncias (ou discordincias) de G. Apollinaire, con- trapondo-as is consonéncias de Racine ou de Baudelaire, a0 proceder assim, nds permanecemos dentro dos limites da lingua, Mas como egitimar a passagem de um sistema de signos ¢ de regras, objeto de estudo da lingijfstica, para um “sistema” semidtico diferente, como fa estética? Nao o sabemos. Pelas mesmas razdes, deve 0 lingiiista, tem boa politica, acolher com alguma reserva os achados do analista- spoeta? que transforma o nemifar (Victor Hugo: “Dans 'affreux cimetitre Frémit le nénuphar... [No atroz cemitério Freme 0 ne- niifar...]) “numa eflorescéncia irresistivel, pois ‘nénuphar' € a aber- tura sildbica de ‘affreux’, abertura fonética e abertura metafdrica. ..” leitor, sensivel ao fato poético, apreciaré, sem davida, 0 comenté- tio, mas o lingiiista s6 se deixaré convencer por uma demonstracio. 30. _R. Jakobson © Cl. LéviStrauss, “Les Chats de Ch. Baudelaire", op. it pe 9, ~ aa Qi N. Ruwet, “Limites de Tanase lineuinieue en patie", op: ct, 9. 70. POTS. HL. Meschonnic, "Problémes du langage podtique de Hugo", op. cit, p. 136, 50 Por ocasiéo de um fato semelhante e para corroborar como que de assagem uma equivaléncia semantica entre “les amoureux fervents” (“‘os amantes fervorosos”) (verso 1) ¢ “les chats [...] frileux” (“os gatos [...] friorentos”) (verso 4), R. Jakobson ¢ C. Lévi-Strauss limitam-se a apontar a paronomésia [fer... fri]. Com efeito, uma ise lingiistica que inclua os fonemas nfo nos permite ir adiante. Em contraposi¢ao, um analista que adote a “‘linguagem critica mo- nista” *8, poderia recusar-se a0 prazer de acrescentar que, em Baudelaire, 20 contririo de Hugo, jé nio existe “eflorescéncia irresistivel” e sim “retraimento irrepressivel”? A formula é parddica, bem 0 sabemos, ‘mas no a julgamos impossivel. Vamos dizer que, para evitar qual- quer abuso de metalinguagem, impée-se 20 analisador a obrigagio de justificar as suas férmulas, 0 que nao deixa de suscitar para cada um deles muitos problemas de definigio.. IX. As insuficiéncias da descrigao lingiiistica O primeiro objetivo proposto consistia em aprimorar 0 conheci- mento dos sistemas légicos que subtendem o funcionamento da lin- guagem. Ora, os exemplos citados nas péginas anteriores mostraram a) que os dados da andlise aciistica, concernente ao francés, ou eram ignorados ou inexplorados; b) que as definigdes atribuidas as teorias lingiifsticas “‘modernas” eram flutuantes € muitas vezes contraditérias; ¢) que o discurso de tipo metalingiifstico, utilizado pelos analistas, nao podia ser, com demasiada freqiiéncia, nem verificado nem reproduzido. Como esses inconvenientes geralmente se adicionam, a descricéo Tingiifstica do fato poético nfo tem o rigor que deveria ter, sendo "pelo contrério inteira ou parcialmente arbitrdria. Lembremos as razdes mais dbvias desta faléncia. 12 Os conhecimentos lingiisticos de valor desigual segundo o nivel considerado, Gracas, sobretudo, a P. Delattre, a aciistica se tornou uma ciéncia experimental"; os outros niveis da lingua depen- dem da teoria, ficando assim submetidos ao critério avaliativo da sim- plicidade e da generalidade. O disparate fica suficientemente acentuado tornar problemdtica a tentativa “‘monista”, em si mesma ideal, de . Meschonnic, 33. H. Meschonnic “Pour la poétique”, in Langue francaise, 1969, 3, p. 19. 34. Acrescentemos que 0 artigo de 1968 de P. Delattre ieva a corrigit iversos desenvolvimentos do texto publicado em 1965. P. Delattre nio teve es P ar, como pecends, um “Monet dcamque & Tomge da es”. 31 'O hibito quase geral de considerar © fato poético como jd ado €, por conseguinte, reconhecivel. Restam apenas os. pro- de explicacéo, tarefa entregue a uma “poética gerativa” *. Qs “poemas” mecanicamente produzidos serao aceitos ou rejeitados pelos leitores, segundo estes os julguem figis ou no as regras da poé- “ tica, Isso, parece-nos, € tomar o problema as avessas ¢ nio € certo que este procedimento, partindo de demasiado longe (cf. as restrig&es de N. Ruwet, 1968, op. cit.) nos possa ensinar a identificar 0 poético. 32 A selegio de textos versificados, como se a poesia devesse, por natureza, subordinar-se a padrdes métricos. Visando 4 homoge- neidade, afirma J. Cohen **. Este tipo de selecdo nos parece ditado, pelo contrério, por certo tipo de cultura em que predominava a rets- rica. Fica entio escamoteado o problema do “poema em prosa” e, mais geralmente, dos textos contemporineos, tidos como inclassificéveis; inversamente, os primeiros textos estudados (Baudelaire, Louise La- bé...) no somente sio versificados como também sobrecarregados de elogiiéncia. Sera preciso dizer? Nao esté de maneira alguma pro- vado que esses dois aspectos sejam significativos para a poesia. A escolha, finalmente, de versos isolados suscita problemas psicoldgicos interessantes, mas este procedimento nio deixa de parecer defeituoso, sempre que se faz necessirio um artificio qualquer para separié-los de seu contexto. Depois destas criticas, constituiré a descrigéo um empreendimento desesperado? Sim, com toda a certeza, quando o analista se compraz em multiplicar as dificuldades por um desconhecimento, voluntério ou no, do limite de seus poderes. Justifica-se, em compensagio, a procura das dreas de validade, a que se fique preso. O princfpio de equivaléncia € eficaz em sua aplicagdo: 0 reconhecimento dos modelos de superficie. Gracas a ele, € possivel identificar ¢ descrever, de nivel para nivel, as unidades homologiveis. Sua aplicacdo estrita representa além disso uma garantia do carter explicito da demonstracio. Seu campo de acio €, porém, exiguo: capaz de revelar pontos de equivaléncia e de justapor intimeros casos especificos, ele € totalmente inadequado para constituir um sistema de equivaléncias. 35. Ver, no presente trabalho, p. 180-206, T. A. Van Dijk, “Aspects d'une théorie pénérative du texte poctique”. : 36. Em Structure du langsze poétigue, Flammarion, 1966, p. 11. 32 X.. Por uma gramética do discurso poético Deve'se ter notado, com toda a certeza, que as descrigSes aqui comentadas obedeciam, pelo menos implicitamente, a uma idéia di- retriz: a busca da significacio. Contudo, por caréncia de modelos se- minticos suficientemente elaborados, ela no pode deixar de claudicar. A reflexao lingijistica emprestou énfase, nestes tltimos anos, neces- sidade de analisar de maneira rigorosa os diversos sistemas semidticos ¢, de um modo mais geral, de levar avante 0 estudo das “relacdes Iégicas... que ligam termos coexistentes € formam sistema” "7. De modo que a anilise da lingua efetuada nos coloca diante de uma légica organizadora ¢ nao diante de uma escolha arbitréria (E. Benveniste). No plano transfrisico, fazem-se necessérios outros modelos légicos. Se- " gundo nos parece, a reflexio sobre uma gramética do discurso poético situa-se num nivel intermedirio entre os modelos de superficie € os modelos que qualificaremos de fundamentais. Tem como objeto definir ‘um conjunto de regras de discurso, nio redundantes e pouco nume- rosas (uma axiomética). E de crer, por exemplo, que o sistema Iégico das Illuminations de Rimbaud seja extremamente lacunar. Observe-se S. R. Levin proceden, de seu lado, a uma constatagio da mesma com relagio aos modelos de superficie (‘“in a poem a specially tricted kind of code is used”) *. Uma ver disposto o sistema, regras propdem uma combinatéria das classes de discurso encon- nas Illuminations: torna-se assim possivel “especificar e em se- rever os arranjos peculiares a um dado tipo de discurso” °°. £ caminho entre tantos para a caracterizacio do fato poético. Van- concreta que pesava entre os objetivos a serem atingidos: ento do cédigo permite a leitura do texto analisado (sendo que ra significa “reconhecimento de um vocabulirio e de uma gramé- . isto €, das unidades lingiiisticas, de suas regras de disposicio ‘morfologia) ¢ de funcionamento [sintaxe]). Por conseguinte, 0 papel da leitura consiste aqui em validar a teoria. Embora este procedimento ‘a vantagem de apresentar os elementos de uma tipologia do 0 pottico sem perder de vista 0 texto manifestado, nao Ihe é vel evitar 0 recurso a modelos fundamentais, os tnicos capazes subsumir 0 conjunto de propriedades do fato pottico. Daf a espe- de J. Kristeva de encontrar na estrutura ortocomplementar de tum instrumento de trabalho que lhe permita “explicar esse 37. Sauseire, Cours de linguistique générale, Patie, 1964, p. 140. 38. S.R. Levin, op. cit, p. 41: “num poema utilizase um tipo de cédigo ente_restrito” 39. JC. Coquet, op. cit, p. 31. 53 essante vaie-vem entre 0 Wégico € 0 nio-légico, o real € 0 nio-real, re 0 nao-ser, a palavra e a nao-palavra que caracteriza esse fun- {to especifico da linguagem poética (por cla designado como) ura paragramética” *, Acrescentar o projeto de gramética rativa de A.J. Greimas poderia dar a impressio de que este tltimo ‘modelo fundamental tem o poder indispensdvel para efetuar todas as ‘operagdes previstas nos nfveis anteriores *'. O que significaria deixar- -se iludir pelas palavras que empregamos. Na realidade, cada teoria ‘traga o seu dominio de validade, sem prever automaticamente uma passagem de uma para outra; a fortiori, clas néo sio susceptiveis de serem traduzidas umas para as outras. Situados em niveis diferentes, ‘seus ptessupostos sio muitas vezes incompativeis ¢ os critérios de avaliagio no sio os mesmos. Para J-C. Coquet (op. cit.), 0 critério de legibilidade € aplicdvel e corresponde ao desejo de eficacia por nés exptesso no inicio deste estudo; para J. Kristeva (op. cit.), a teoria multiplica os campos de reflexao e alia as contraditérias; com isto, ela escapa, por sua prdpria disparidade, ao critério de falsificabilidade. E uma tentativa que se situa deliberadamente fora do pensamento cienti- fico tradicional. Outro tanto se poderia dizer a respeito da orientacio que H. Meschonnic imprimiu a sua pesquisa. Em compensagio, os critérios de simplicidade e de generalidade aplicam-se perfeitamente & teotia exposta por A.-J. Greimas em L’Homme, 1969. Falta provar que de uma axiomética desta ordem podem ser deduzidos teoremas (frases). Embora se facam referencias ao estado de adiantamento dos estu- dos poéticos, no hi motivo para grande otimismo, nem entretanto para espantos. Obedecamos neste ponto a licéo fundamental de Saus- sure: a pesquisa nao consiste em combinar, em sistemas, elementos previamente conhecidos. Se assim fosse, haveria razio para nos inquic- tarmos com 0s atrasos verificados com a descrigao. A pesquisa con- siste, muito pelo contrério, em ligar a identificacio das unidades ao reconbecimento dos modelos légicos que as integram. E 0 procedi- mento mesmo da Mémoire, ja duas vezes citado, e 0 que se nos afigura, no estado atual de nossos conhecimentos, 0 mais “‘cientifico” € 0 nico que se impée. Ler um texto constitui uma operagao que pressupae a delinitagio de n campos de validade, Uma leitura “total” € ut6pica. 40, Em “Poésie et négativité”, in L’Homme, 1968, 2, p. 54. 41. “Eléments d'une grammaire narrative”, in L'Homme, 1969, 3, p. 792. 54 O principio de equivaléncia é operatorio sempre que se trata de constituir modelos de superficie (lingiitstica da frase). O analista muda de plano quando pretende descrever as estruturas de discurso. Novos procedimentos se fazem entio necessarios e, com les, outras articulagaes Idgicas e semdnticas e outros modelos (lin- giiistica do discurso). Cuidaré finalmente o analista de que os procedimentos utilizados obedecam aos critérios de economia, de vulnerabilidade e de repro- dutividade. 55 DIVISAO CONVENCIONAL E SIGNIFICAGAO “Esta claro que os fatos posicionais séo portadores de sentido” lembrava pertinentemente Nicolas Ruwet na parte critica do artigo ‘que dedicou ao trabalbo, entio recente, de Levin, Linguistic Structures in Poetry. Ressalta Levin 0 papel das posicoes equivalentes com relagao 20 eixo do metro ou da rims, no estabelecimento dos acoplamentos, em entretanto se propor nenbuma pergunta quanto @ natureza dos tracos que permitem determinar as classes de equivaléncia téxicas. As reflexdes que se sequem tém coma objeto as posigées definidas em relagéo a matriz convencional, com exclusao das posigies sintéticas pro- priamente lingiisticas; existird um sistema de posicdes, um espaco, definivel independentemente de qualquer investimento lingiiistico, por um certo mitmero de tracos posicionais ¢ que se beneficie de propri dades seménticas? A forma convencional impoe um recorte suplementar a seqiiéncia falada ou escrita, mas esta coergao se revela proveitosa — como se observou muitas vezes, ela garante a conservacao da mensagem; — na medida em que contribui para estabelecer os acoplamentos (cuja funcéo é organizar as relacées semanticas) el3 facilita a descodificacao do texto; — finalmente, como tentaremos demonstrar, ela pode funcionar @ maneira de um diagrama Essas preocupagdes nos fazem incidir no lugar comum da “fusio, em poesia, da forma e do fundo”, que veremos ser um caso particular da “composicao isomérfica do significante e do significado” (R. Ja- kobson, “A la recherche de Vessence du langage”, in Diogtnc, n° 51, 1965). A relagao icénica que pode existir entre o dito e 0 feito nos faz lembrar que 0 dizer do poeta é antes de tudo um fazer, um poicin. 56 Elaboragao de uma rede téxica PRIMEIRAS ABORDAGENS 1, REALIDADE DA FORMA FIxA. As formas fixas (rondé, balada, Soneto, etc.) constituem apenas um caso particular, institucionalizado, segmentacio do discurso poético em unidades (métricas ou niio) ‘nao coincidem necessariamente com as unidades lingiifsticas. Defi- das pelas regras, que fixam particularmente a natureza e 0 mimero versos e das estrofes, elas, entretanto, s6 adquirem o estatuto de bjeto semidtico quando examinadss em suas relagdes com as outras tncias desse signo multidimensional, que € um poema (em forma rondd, de balada ou de soneto) e, muito especialmente, com o plano contetido, FORMA FIXA E CLASSE DE CONTEUDOS. De maneira inteiramente iva e sem nenhuma outra precisio, tende-se com freqiiéncia a mitir que, a uma determinada forma convencional apresentada deve orresponder um determinado tipo de conteiido. O que significa supor tuma.determinada forma fixa nfo seja adequada para exprimir in yremente qualquer contetido, operando, pelo contrério, uma selesio plano do significado; e que existem, por conseguinte, classes de , como a do soneto por exemplo, que poderiam ser definidas do ponto de vista do significante ‘como do ponto de vista do opor a existéncia de uma interdependéncia desta espécie entre uma de poemas e uma classe de conteidos: 0 carter limitado do is (seis sonetos das Chiméres) em que iremos buscar uma ilus- IGio no permitiria descobrir se uma correlacio desta ordem — admi- se que seja possivel estabelecer uma correlagio — ¢ imposta propria forma do soneto, ou se cla manifesta uma idiossincrasia SEGMENTAGAO DUPLA, DESCODIFICAGKO E sIGNIFICAGKO, Consi- .e uma forma fixa, a superposigio de dois tipos de segmen- es independentes, lingiiistica e métrica, tem como resultado: — garantir a conservagio da mensagem na qualidade de objeto, facilitando por conseguinte a sua memorizacio. Faltando um segmento, sua auséncia € marcada; além disso, 0 comparti- mento vario deixado no esquema das posicées possibilita a descricio das suas caracteristicas métricas ¢, tratando-se de uma palavra da rima, métricas ¢ fénicas; 57 — favorecer a descodificagio do poema: o recurso simulténeo a dois sistemas independentes de coercdes ¢ de acasos ajuda a distinguir de maneira mais segura os ruidos ¢ os sinais. O acoplamento, entendide como 0 actimulo em dois elementos distintos do discurso, de tracos (sintético, métrico ou fénico), apresenta'se assim como um caso particular de redundancia. ‘A forma convencional no pode funcionar como instincia autd- noma do plano da expressio: alheia ao significante quando lhe garante a conservagii, é parte integrante do mesmo quando organiza as relagdes pertinentes entre os elementos lingiifsticos — pertencam eles ou no a0 mesmo enunciado — aos quais ficam aparentemente reservadas as tarefas semanticas propriamente ditas. Torna-se claro entretanto que o espaco organizado pela rede téxica pode funcionar & maneira de um {cone e encontrarse em relacio diagramética com os elementos do plano do conteido: para demons. trélo, € preciso estabelecer que as unidades métricas convencionais mantém relagdes de encaixe, de comparabilidade e de sucesso, homé- ogas as relagées hierdrquicas, paradigméticas ¢ sintagméticas que de- finem a organizagio do plano do contetido. 1.4. © SISTEMA DAS UNIDADES CONVENCIONAIS COMO DIAGRAMA. A. divisfo formal presa 20 esquema de uma forma fixa, do soneto por ‘exemplo, determina a existéncia de unidades convencionais distribuidas em niveis hierdrquicos distintos (grupos de estrofes, estrofes, versos). ‘As unidades de um mesmo nivel sio compardveis entre si, sucedendo- se em ordem definida. A instauragio de uma organizagio hierdrquica de unidades simi- lares acarreta a constituicgo de uma rede téxica, susceptivel de deter- minar classes de posigdes equivalentes. De um modo geral, a rede téxica favorece o estabelecimento dos acoplamentos. Deixemos de lado, por enquanto, o estatuto ‘dos versos, que nfo parece compardvel em todos os pontds ao das unidades superiores, € admitamos que a segmentagio em estrofes ¢ em grupos de estrofes sé € funcional quando corresponde ao estabelecimento de seqiiéncias isoté- picas, cujos limites podem corresponder ou no as pausas sintéticas. Ficam enti preenchidas as condigies para que o sistema de uni- dades convencionais opere i maneira de um diagrama: unidades mé- tricas ¢ unidades isotépicas ocupam o mesmo espaco, tém a mesma grandeza e so definidas por um mesmo conjunto de relagées formais. Quando tentamos desctever 0 espago determinado pela forma con- vencional, somos levados a utilizar categorias abstratas, tais como ex- 58 terno/interno, primeiro/iiltimo, articuladas como categorias sémicas ¢ nao desprovidas de substancia do contetido. Nio se trata de definir univocamente 0 semantismo peculiar a uma determinada forma fixa: em todos os casos, s6 se pode tratar de ‘um semantismo segundo ou, mais precisamente, virtual: s6.0 contetido de um poema-ocorréncia nos permite atualizé-lo, em virtude do que ficou designado, a propésito das onomatopéias, como 0 efeito de retros- ignificacao * Uma forma fixa apresenta, por conseguinte, um campo de vali- dades semanticas nao-aleatérias, € atualizéveis de maneiras extrema- ‘mente diversas em funcio dos contetidos investidos em cada poema- rréncia, .5. DIMENSOES PARADIGMATICA E DIACRONICA DU DISCURSO POE- 1c0. A possibilidade de uma divisio da mensagem em unidades do 180, independentes da segmentacio fristica, prende-se A prépria finigio de isotopia, cujas dimensdes minimas sio as de um sintagma que tena pelo menos duas figuras sémicas” coincidindo a grandeza éxima com a da propria mensagem “tomada como um toda de sigi as Os contetidos pertinentes de uma unidade isotépica serio os que fantem a sua articulacio com as unidades isotépicas equivalentes (do smo nivel). A articulagdo seméntica pée em jogo uma substincia ‘uma forma do conteiido: definidos em relagao & estrutura clementar significagZo, os termos correlatados mantém relagdes de tipo Iégico. conseguinte, cada unidade isotdpica ficaré caracterizada pela pre- redundante de certos tracos substanciais, tais como: espacialidade, jporalidade, objetos fabricados, objetos naturais, etc., € por um ime formal determinado: pode'se distinguir assim pelo menos um ime de disjuncao (é realizado apenas um dos tetmos, positive ou tivo, de cada eixo semantic) ou um regime de conjuncao (pre- exclusiva de termos complexos) *. Quando realizada, a sucessio ordenada dos regimes é, por sua vez, ificante: confere ao discurso poético a sua dimensio diacrénica ou ui estatuto narrativo, 1. P. Guiraud, Structures étymologiques du lexique francais, Larousse, 1967. 2. Greimas, Sémantique structurale, recherche de méthode, Larousse, iP. 2, 3, A-J. Greimas, op. cit., p. 1829; ver também, do mesmo autor, Du sens, a Seuil, 1970, p. 39-48 ¢ 135-155, 50 1,6, A DUPLA FUNCKo Da piscurstvinape. A matriz que desenvolve no tempo da leitura-recitativo as classes posicionais por ela instauradas, apresenta-se como um instrumento particularmente adequado para fa- yorecer a realizagio da fungio poética, que “‘projeta 0 prinefpio de equivaléncia do eixo da selegio sobre © eixo da combinacio” *. Tal ‘como a miisica € a mitologia, a poesia funcionaria a maneira de mé- quina para suprimir o tempo. Uma das coergdes associadas & expressio lingiifstica exige que um contetido em si mesmo acrénico se apresente desdobrado numa série de posigdes sucessivas. Mas esta discursividade da mensagem igual- mente susceptivel de manifestar uma sucessio orientada de contetidos € de operacées. O desenrolar da seqiiéncia falada pode-se prestar a duas finalidades, que nem sempre sio facilmente desenredadas: ele propde um conteddo © 0 transforma. Essas duas operacdes sio elas ptdprias ordenadas, visto sé se poder transformar aquilo que ficou estabelecido, Dentro do fenémeno da_sucessio, distinguiremos por conseguinte posigées sucessivas e relacdes de sucessao: estas vltimas exploram as primeiras ¢ somente clas dizem respeito & dimensio “sin- tdtica"™ ou narrativa do poema. Sé se medem diferengas entre termos compariveis (que apre- sentam tracos semelhantes); 0 reconhecimento da transformacio pres- supde a repeticéo; a existéncia de relagdes de sucesso implica a de relagSes de equivaléncia. O estabelecimento de um campo paradigmé- tico (a rede taxica) condiciona a leitura do poema segundo a dimensio diacrénica; as posigSes sucessivas estabelecem séries paradigméticas: constituidas estas, podem ser descritas as relagdes de sucessio, 1,7. © ESTATUTO PARTICULAR DOS VERSOS. De acordo com a classe hierirquica a que pertencem, as unidades isotépicas no tm um mesmo estatuto, Convém distinguir, com efeito, as classes de unidades que formam um paradigma inteiramente articulado — isto é, no qual a re- lacio de cada unidade com cada uma das outras fica semanticamente definida e no qual as posigdes sucessivas se estabelecem em relacio a0 conjunto do poema — e as classes de unidades que nao formam ‘um paradigma desta ordem: € 0 caso, particularmente, dos versos nos sonetos de nosso “corpus”. ‘As fungies dos versos subordinam-se is da estrofe (e, portanto, do grupo de estrofes): a segmentagio dos quartetos ¢ dos tercetos em unidades isométricas, entre outras coisas, visa a manifestar a presenca 4. R. Jakobson, Essais de linguistique générale, Ed. de Minuit, 1963, p. 220. 5. Ch LéviSteauss, Le Cru et le Cuit, Mythologiques I, Plon, 1964, p. 24 60 dante de certos contetidos sémicos (reconheciveis de um seg- mento para outro) no interior de uma estrofe cuja leitura isotépica fica assim facilitada; além disso, favorece, de modo particular, 0 cor- onamento das unidades de nivel superior, néo s6 do ponto de ta do contetido (tendo sido a comparabilidade semintica das estrofes ‘estabelecida por hipdtese em nossa descri¢io), como também do ponto de vista da expresso. A scgmentagio em versos desempenha um pa- pel decisivo no estabelecimento dos acoplamentos entre segmentos que pertencem a estrofes diferentes. Comparabilidade nfo significa necessariamente correspondéncia termo a termo: realizdvel entre dois quartetos (sem que, por isto, ejam sempre respeitadas as figuras do paralelismo ou da’simetria), esta correspondéncia jd nio ocotre entre um quarteto € um terceto. comparabilidade seméntica se baseia na subordinagio a uma classe rquica, independentemente da paridade ou da disparidade do ni- nero de versos. __ Nos poemas estudados, no existe uma relagio de sucesso entre ois versos contiguos, no sentido que ficou aqui definido. O que néo gnifica que a relacéo posicional, vir depois, esteja impossibilitada de necer um esquema interpretével, inclusive, com relacéo de continente conteido (ou vice-versa), de todo para parte, de causa para . A sucessio dos versos 36 tem sentido dentro de uma mesma fe: a relacio vir depois nao diz respeito aos versos separados por limite de estrofe: por exemplo, a0 tltimo verso de um quarteto iro da estrofe seguinte, 8. DEFINIGAo PosicIONAL E UNIDADES MéTRICAS, A posigio de unidade métrica seré definida univocamente — pelo nivel hierdrquico a que esté ligada; — pela situagio relativa que ela ocupa na série orientada das unidades equivalentes. definigio da posigéo pela subordinagéo simultinea a uma classe rirquica © a uma classe situacional nao pode ser realizada para todos 0s de formas convencionais independentemente do plano do con- (quando faltam critérios formais para estabelecer os grupos e ypos de estrofes); supée, além disso, a claboragio de categorias cionais, que ndo reportam a uma série ordinal linear (1+, 2, 3, «. nt) poucu adequada para constituit classes de equivaléncia logas em classes de equivaléncia semanticas. A questio esté em saber escolhet categorias situacionais que expliquem a organiza- wradigmatica dos contetidos e sua integragéo no poema. Uma das propriedades do esquema do soneto (voltaremos a0 assunto) € estabelecer formalmente uma definigio posicional unfvoca das unidades, independentemente de qualquer investimento lingiistico. B. O caso po SoNETO 2.1. RENDIMENTO DA FORMA FIXA DO SONETO. O soneto possui 0 ‘que chamamos de rede téxica saturante, isto é que permite definir univocamente a posic¢do da maioria dos versos: deve-se isto tanto a0 niimeto de niveis hierdrquicos formalmente reconheciveis como a natu- teza bindria de seu esquema. Com mimero quase igual de versos, a forma do soneto € mais finamente articulada, como tal, que uma série de 14 versos (um nivel hierrquico), de cinco tercetos ou de quatro quartetos (dois nfveis). No interior ‘de P (0 poema considerado como sistema fechado de relagdes), essa forma determina trés instancias hierdrquicas: 0s versos, as estrofes © os grupos de estrofes. ‘A titulo de exemplo, compare-se 0 esquema dos niveis hierdr- quicos relatives ao soneto (I) e ao poema composto de quatro quar- tetos (II): oO P. eo ae a oi” ty ti T2 nfv, 2 (01-04) (05-08) (09-11) (12-14) niv. 3 a P: era See fy. 1 (01-04) (05-08) (09-12) (13-16) niv, 2 titulo de comparacio, 0 nono verso do soneto nao € somente o pri- iro verso da terceira estrofe, como também o primeiro verso do gundo sistema de estrofes: pertence pottanto a duas classes de equi- yaléncia posicionais ¢ nds diremos que € equivalente ao segundo grau com 01 ¢ a0 primeiro com 05 ¢ 12. [A CATEGORIA SITUACIONAL “PRIMEIRO/ULTIMO”. Pode-se des- jer a sucesso do grupo dos quartetos e do grupo dos tercetos gracas correlacio vir antes/ vir depois ou, sob uma forma adjetiva prinreiro/ ‘segundo; utilizaremos, contudo, a categoria primeiro/iltimo, que x- ica a um sé tempo a dimensio discursiva de P, considerado como unidade superior € englobante, € seu fechamento. A articulagio interna dos grupos de estrofes, em que podemos distinguir, de acordo com a mesma correlacéo, estrofe inicial e estrofe final, € homotética da articulagio de P em Q e em T: : QU/Q2 : TI/T2 :: Q/T 2: primeirofiltimo rcé da relagio hierérquica das estrofes e dos grupos de estrofes, esta seqiiéncia de homologias & equivalente & relagio que traduz a sucessiio das estrofes com relacio a P: Ql > Q2—> Tl T2 (onde — significa “precede”) Vamos designar por 1 ¢ 0 os termos da correlagio primeiro/iltimo atribuir a cada estrofe um niimero com dois algarismos (ab), 0 pri- dos quais, a, define a situagio das estrofes com relagéo ao grupo estrofes, enquanto o segundo, 5, define a situagio do grupo com io a P. | Cada estrofe fica assim caracterizada por um niimero especitico, se exprime sua posi¢ao relativamente A organizagio hierérquica das jidades métricas € 4 ordem das sucessdes no poema QL: 11 (que se 1é “primeira estrofe do primeito grupo de 2 01 estrofes”) Q2 T1 : 10 12: 00 Observe-se que a correlagio biniria primeiro/iiltimo nao & apli- | isoladamente as unidades de 3.° nfvel, aos versos, que so em o superior a dois em cada estrofe, em mimero impar nos tercetos. AS RELAGOES DE HOMOLOGIA Das EstROFES. As estrofes do to, em niimero de quatro, podem articular-se segundo um sistema ‘A auséncia, no segundo caso, de uma instincia intermediéria entre nivel das estrofes e P tem repercussdes no modo de integracéo das estrofes no poema e no grau de defini¢ao posicional dos versos. A le relacdes de homologia do ‘tipo a/b :: ¢/d (a esté para b como ¢ para d). Aqui vai, a titulo de exemplo, o sistema de homologias 63 que esgota as similitudes posicionais instaurdveis entre pares de estrofes constituidas, de maneira a respeitar a ordem das sucessdes (obtém-se pares QI-Q2 ou QI-T2, com exclusio dos pares Q2-Q1 ou T2-Q1). Designemos por r as relagdes posicionais que fundamentam a com- parabilidade dos pares, distinguindo por um indice numérico, 1, 2, 3, respectivamente, as que traduzem, relativamente a oposigio primeiro/ Ailtimo: — no interior de cada grupo de estrofes, a situacio das estrofes: (1) QU 1 Q2 +: TL st T2 (ou seja 11/01 :: 10/00); — no interior de P, a situagao dos grupos de estrofes: (IT) Q 12 T :: QL 12 TI :: Q2 12 T2 (11/10 :: 01/00); — no interior dos grupos de estrofes e de P, a situagdo das estrofes ¢ a dos grupos de estrofes: (IID) QU 13 T2 :: Q2 3 TI. 33 apresenta-se como a composigio de r1 com 12, escrevendo-se no cédigo numérico, 11/00 :: 01/10 no qual os dois algarismos, ¢ nio mais um sé, mudam de um termo para o outro de cada par. As duas primeiras relagdes garantem a comparabilidade dos grupos de estrofes, a um tempo formalmente semelhantes — por (I) — € distintos — por (II); elas sio complementares, assim como (I) € (IIL), que estéo uma para a outra como uma relacio de abertura (seria possivel multiplicar indefinidamente a sucesso dos pares homé- Jogos propostos por rl) estd para uma relagio de fechamento (13 fecha P por inversio de todos os tragos). 2.4, HOMOLOGIAS POSICIONAIS E HOMOLOGIAS SEMANTICAS, Defi- nidas do ponto de vista posicional, essas homologias sé tém estatuto ‘semidtico quando fazem reportar a homologias do plano do contetido, quando refletem diagramaticamente as relacdes das unidades isotdpicas. Designemos por R1, R2, R3, os eixos seminticos a serem estabelecidos, correspondentes as relagées posicionais rl, 12, 13. Trés eixos se re- velam necessérios ¢ suficientes para assegurar a comparabilidade de quatro termos, dois a dois; podemos esperar descobrir que R1, R2, R3 formam sistema, garantindo, por sua vez, desta maneira a coc- réncia de P, e também encontrar, a0 lado de eixos do tipo natureza/ cultura ou espacialidade/temporalidade, correlagdes de operadores tais como afirmagao/negacao (sim/nio) ou possivel/nio-possivel (talvez/ nao), susceptiveis de conferir ao texto a sua dimensio narrativa. As relacdes realizadas em poemas-ocorréncias nem sempre sio pre- visiveis com’ relacZo apenas a forma convencional. De um modo par- 64 ticular, a condigio que impusemos a constituigio dos pares de estrofes (obediéncia a ordem das sucessdes) nao & pertinente em todos 0s casos. De um modo geral, o modelo téxico visa mais A pér em evidéncia as -virtualidades seminticas da forma convencional que a descrever as mo- dalidades de sua utilizacio efetiva. Em caso algum, as homologias acima descritas excluem outras telacdes, que se poderiam instaurar entre unidades métricas de nfveis diferentes. El Desdichado, por exemplo, da mazgem a que se observe a disténcia de relagdes de homotetia entre unidades métricas, que dependem de niveis hierdrquicos distintos, entre certas estrofes e certos os °. 2.5. DISTRISUIGAO DOS VERSOS EM CLASSES DE EQUIVALENCIA ORDE- NADAS. Quando sio colocadas paralelamente duas séties de versos da ‘mesma grandeza (por exemplo, abed e a’b’e'd’), devido 4 compazabili- dade das unidades métricas que elas constituem (neste caso, quartetos)), vas dos versos dentro de cada série (com a condigio, entretanto, de que as séries nio excedam determinadas dimensoes) ma-ocorréncia, 0 estabelecimento de acoplamentos como aa’, bb’, dd’. A existéncia, no soneto, de uma correlagdo entre quartetos e ter- tos, forca entretanto a admitir que as posigdes equivalentes das uni- des de 3." nivel nio se confundem, em todos 0s casos, com os lugares mmdlogos dentro de séries ordinais compardveis. Tendo em vista a elaboragio de uma rede téxica, impoe-se por- anto que se escolham critérios constitutivos de classes de equivaléncia jonais diferentes dos critérios ordinais fundamentais na telaao vir A cortelagéo primeiro/iltimo, a que recorremos para definir a Jo das estrofes, no pode ser utilizada em primeira instancia em do mimero, sempre superior a dois, dos versos de cada estrofe. compensacio, podemos distinguir entre as unidades de 3° nivel as ‘ocupam um lugar-limite e as demais, A categoria limite/nao-limite possui em comum com a categoria jeiro/iiltimo o fato de reportar ao cardter discreto das unidades 6, Ver um exemplo de anilise baseada numa exploracio semintica das 0 's posicionais em J. Geninasca, “Evento de Mario Luzi” in Revue Ro- V, 1, 1970, p. 17-38. 65 métricas: ela se apresenta, além disso, como uma tradugio posstvel da relagdo 13, que descreve a simetria das estrofes em P. A classe dos versos-limites compreende trés subclasses, ordenadas em fungio da hierarquia das unidades métricas: a dos versos exteriores em relacio as estrofes, com relagio a Q ea T, a dos versos inicial e final de P. Hipotéxico em rclagio a categoria limite/ndolimite, 0 eixo pri- meiro[iltimo também permite distinguir, dentro de cada subclasse, os vversos iniciais e os versos finais. A rede téxica comporta, por conse- guinte, seis subclasses de versos-limites, ordenadas por séries de trés ¢ correlatadas duas a duas: — verso primeiro de estrofe, de grupo de estrofes, de P; — verso ultimo de estrofe, de grupo de estrofes, de P; Desta maneira, esta rede determina no interior da série de versos do soneto posigdes definidas por um niimero mais ou menos elevado de tragos. Mais bem definidos que os versos nio-limites, os versos-limites ordenam-se, por sua vez, segundo se situem num limite de grau 1 (limite de estrofe: 04, 05, 11, 12), de grau 2 (limite de estrofe e de grupo de estrofes: 08, 09), ou de grau 3 (limite de estrofe, de grupo de estrofes e de P: 01, 14). Observa-se com freqiiéncia, nos textos- -ocorréncias, que os versos posicionalmente “fortes” so também os versos determinantes para a compreensio do poems. Teria sido possivel pensar em aplicar igualmente aos versos nfo- limites a categoria situacional primeiro/dltimo; para isto, seria pre- ciso agrupar dois a dois os versos dos quartetos. Mas, no quadro do nosso modelo, no se conservou 0 distico como unidade intermedidria entre a estrofe ¢ 0 verso: com efeito, a segmentacdo em grupos de dois versos nio € compativel com a segmentacio da sextilha em dois ter cetos. Nos prdprios quartetos, seria mister distinguir os pares des- continuos dos versos-limites ¢ 0 distico dos versos nao-limites. A di tribuigio dos contetidos isot6picos em grupos de dois versos contiguos — em conformidade ou nio com o esquema, varivel, das rimas — depende em todas os casos da escolha do poeta. 2.6. A SUCESSAO DAS UNIDADES DE TERCEIRO NivEL. O estatuto posi- ional do verso ¢ 0 da estrofe diferem em diversos pontos: — enquanto as estrofes sio comparaveis entre si em relagao as unidades superiores (de primeiro nivel) ¢ inferiores (de ter- ceiro nivel), os versos s6 sio comparaveis entre si em relacio as estrofes; 66 — no caso das estrofes, as classes de equivaléncia posicional, ba- seadas na categoria primeiro/diltimo c na hierarquia das u dades, sio traduziveis em termos de posicdes sucessivas: QI Q2-> TI T2 decorre de Q/T :: Q1/Q2 :: T1/T2 primeiro/ iiltimo (cf. 2.2.). Jé com os versos as coisas so diferentes: como Le final de uma mesma unidade nunca so contfguos, distribuic’o dos mesmos em classes de equivaléncia no depende apenas da categoria primeiro/dltimo; a organizagio paradigmética dos versos ndo é susceptivel, portanto, de ser interpretada diretamente numa série continua de posigdes sucessivas. Os versos sepatados por ‘um limite de estrofe no se “sucedem", sio essencialmente compa- rdveis, percebidos como semelhantes ou diferentes. As unidades de terceiro nivel funcionam mais como instrumentos capazes de integrar ‘unidades mais amplas do que como objetos que devem ser incorpo- tados i economia geral do soneto. Os agrupamentos de versos cons- titutivos das estrofes é que sio capazes de se sucederem, pois é a exis “ia da estrofe que permite o estabelecimento das relagdes de sucessio. 7. DIVIsio EM VERSOS E EFEITOS DE sENTIDO. Falta mostrar que o modelo da organizagio tfxica proposto confere um estatuto objetivo 5 efeitos de sentido intuitivamente percebidos ao serem examinados textos-ocorréncia. Encaremos de inicio algumas das cargas semanticas virtuais rela- jonadas com as propriedades do espaco descrito até 0 momento: nio grnaremos a falar no valor icénico, associado simples sucesso dos 1503 nas estrofes, pois ele no € especifico do discurso poético; a incidéncia ou nao das pausas sintéticas e métricas € um dos cle- nentos pertinentes da expressio diagramatica: a correlacio limite ssposto/limite nio-transposto, implicada pelo cardter discreto das des que se sucedem, pode surgir, num dado poema, como a figura vel de oposigées seminticas, tais como continuidade /descontinui- le, dinamismo/estatismo ou conjuncao/ disjuncao. A propria expres- 9 desses contetidos é, de certa forma, quantificada segundo seja de meiro ou de segundo grau o limite transposto (ou tespeitado). De um modo mais geral, os versos limites contiguos (perten- ites a unidades diferentes) ‘serio comparados em todos os nfveis fGnico, morfoldgico, sintético, lexical, semantico) em que a passagem limite possa realizar-se de acordo com as modalidades do eco ou contraste. Numa perspectiva como esta, pode-se falar — quando dlelo do contedido faz reportar a ela — na “circularidade” de um neto, ¢ admitit a existéncia de um “limite” também entre os versos e Ol. 67 Pode haver correspondéncia entre duas séries homélogas abed ¢ a’b'cd’ de acordo com a figura do paralelismo ou com a da simetria (a', bb’, ete. ou ad’, be’, etc.). Do ponto de vista semintico, nio € indiferente que 0 acoplamento dos versos-limites se faca entre versos primeiros (ou dltimos) ou entre um verso primeiro € seu contratio, tum verso final: a relagio de contririo, que une os termos da categoria ituacional, pode relacionar-se, por contraste ou por similitude, com as inversdes (ou com as nao-inversdes) dos tragos sémicos pertinentes ddos segmentos assim reunidos. Podem esses efeitos de sentido ser observados em textos e verifi- cados? FE conveniente mostrar, em cada caso, que 0 cixo semintico escolhido fica manifestado na expressio, de maneira redundante, sendo um elemento necessirio do modelo do contetido. Visando a isolar — a elaborar — no interior da gramstica constitutiva do poema, como objeto semidtico, uma “‘gramética da interagio do sentido e do metro”, 2 empreitada encontraria assim, no exame de poemas-ocorréncias, um inicio de justificacao. II. Elementos de ilustragao 3.1. LIMITES & ALCANCE DO EMPREENDIMENTO. Mede-se a validade de nosso modelo pelos servigos por ele prestados quando se empreende a claboragio da descricio de objetos poéticos particulares. Enquanto no € utilizada como cliché para um discurso, a matriz convencional continua a ser um campo relativamente indeterminado — embota nio aleatério — de relagdes virtuais. Em compensacio, a interferéncia das segmentacGes métrica e lingiifstica, de um lado ¢, do outro, a relagio icdnica a unir o sistema das unidades convencionais e 0 das isotopias, permite identificar as relages efetivamente realizadas. Dentro dos limites do presente estudo, no se poderia sequer pensar em elaborar um modelo descritivo, por pouco completo que fosse, de um poema; limitamo-nos a oferecer ilustragées locais, colhidas entre as mais significativas. Os exemplos seguintes, que fomos buscar ros seis primeiros sonetos das Chimréres de Nerval, no pretendem for- necet uma verificagio; seu objetivo, mais modesto, € esclarecer 0 sen- tido de nosso procedimento e mostrar sua utilidade, quando for o caso. 3.2. A COINCIDENCIA DAS SEGMENTAGOES METRICA E LINGUISTICA coMo Norma. Os seis sonetas escolhidos apresentam uma particula- Tidade: a segmentagio métrica coincide quase sempre com a segmenta- so lingiifstica. El Desdichado contém o ‘nico caso indiscutivel em 68 ‘que as dimensées da frase excedem as da estrofe (passagem de TL para T2); podemos questionar o valor dos pontos de reticéncia que separam € unem os tercetos de Delfica: indicario eles um limite de frase ou de “proposicio independente? Em geral, o sinal de pontuagdo acompanha © final do verso: s6 encontramos trés exemplos de enjambement nos dois poemas ja citados (El Desdichado, 03-04 e 13-14; Delfica, 12-13). ‘A coincidéncia das pausas sintéticas e métricas confere grande autonomia as estrofes e aos grupos de estrofes, a ponto de autorizar a sua petmutacio, em alguns casos. Como se sabe, Nerval propés, sob 0 titulo de @ J-y Colonna, uma combinagio dos quartetos de Delfica € dos tercetos de Myrtho*. E verdade que, 20 nivel de uma anilise suméria, os conteddos desses dois sonetos jé parecem estar um diante do outro numa relagio de transformagio. : LIMITE RESPEITADO/TRANSPOSTO. EI Desdichado e Horus ser- virdo para ilustrar duas maneiras de realizar 0 diagrama do conceito ‘de passagem (a articular, ele préprio, os conceitos contraditérios de ruptura ¢ de continuidade); veremos, em exemplos concretos, de que ‘maneita a palavra poética constitui um dizer que faz 0 que diz. 'No interior de um poema, ¢ até mesmo de uma coletinea, onde norma consiste em respeitar 6 limite estréfico, sente-se a nio-coinci- ia das pausas sintaticas e métricas como uma transposig@o, ou pas- gem, do limite, As tnicas excegSes apontadas em nosso corpus cor- cionam-se com a existéncia do contetido: passagem de uma dura- , de um espaco discreto, para outra duracio ou para outro espaco. Em El Desdichado, a correlacio dos contetidos isotépicos de TL T2 pode ser expressa pela oposi¢o monde des vivants (onde se neontram a rainha e a sereia) /monde des morts (onde a mulher aparece como fada ou santa); a nio-coincidéncia da pausa estréfica ¢ pausa fréstica funciona, neste caso, como icone da transposicio vitoriosa do Aqueronte, enunciada no verso 11: Et jai deux fois vainqueur traversé VAchérom TE, dass vezes vitorioso, atravessei 0 Aqueronte.] A autonomia dos grupos de estrofes parece enfraquecida em ;, onde os quartetos € os tercetos nao poderiam ser dissociados 7. Nao caberia aqui questionar a autenticidade da versio de Myrtho, publi- fem 1924 na edigio HelleuSergent das Chiméres, © que consiste na combi- scomplementar dos quartctos de Myrtho ¢ dos tercetos de Delfica.. Consultar Dpropdsito J. Senelier, Gérard de Nerval, essai de biograpbie. Nizet, 1959; illaume, “Les Chiméres” de Nerval, Bruxelas, Palais des Académies, 1966, € » Liecrivain et ses travaux, Corti 1967. 69 sem que se cortasse arbitrariamente o discurso de fsis inserido no interior de uma narrativa desenvolvida nas estrofes exteriores (Ql e T2).. A divisio do soneto em dois grupos de unidades métricas dis- tintas nfo perde com isto seu carter funcional. O contraste das estrofes interiores contfguas vem assinalar, no plano do contetido, a distancia que separa os quartetos € os tercetos: QTL: reptidio do antigo deus denunciado como traidor/ eleigio do novo deus, reconhecido como objeto-valor e como herdi. © discurso de fsis realiza a passagem precisamente na medida em que garante a continuidade de Q para T, apesar do contraste dos contetidos e do limite dos grupos de estrofes. A passagem dos oito primeiros versos para os seis tiltimos representa entio a passagem de uma era para outta, do antigo para © novo. O conceito de passagem nfo ocupa o mesmo lugar nos dois poe- mas: em Horus, é caracteristico da isotopia de P; em E! Desdichado, da isotopia de T, porque o limite transposto ora € 0 do grupo de estrofes, ora o que separa os dois tereetus. Nos dois casos, o sujeito que rranspée o limite é igualmente 0 heréi mediador que fala. 3.4, EXPRESSKO LINGU{STICA E RELAGOES DE HOMoLoGIAS. Nos poemas-ocorréncias, a distribuicdo das classes lingtifsticas (fonoldgicas, morfoldgicas, sintagmiticas, etc.) pode reproduzir as relagées de homo- logia descritas a partir de critérios posicionais. Em Artémis, pot exem- plo, estabelece-se a realizagio de uma redundancia desta natureza, assim: Q1/Q2 :: T1/T2 =: presenga de um enunciado interrogative da segunda pessoa do singular + auséncia da primeira pessoa / presenca de um enunciado imperative na segunda pessoa do plural -+ presenca direta ou obliqua da primeira pessoa, Os critérios posicionais podem ser interpretados semanticamente, gragas a um efeito de retrossignificacio; as categorias classificatdrias lin. Biifsticas (quando jé ndo se trata apenas do nivel fénico e/ou gréfico) sio, pelo contrario, dotados de um semantismo préprio (mesmo que este nem sempre seja identificado). As categorias que fundamentam as relagdes de homologia correspondem a eixos semanticos, que devem set conservados para a constituicio dos modelos descritivos do con- tetido. Em outros casos, quando se tem pela frente uma forma conven- cional nao-saturante (um poema composto de cinco quartetos, por exemplo), a distribuiggo dos elementos lingiisticos € que permite 70 “entre outras coisas, o estabelecimento das unidades imediatamente infe- riores a P, os grupos de esttofes (3.5. RELAGOES DE HOMOLOGIA E ORGANIZAGAO DOS CONTELDOS. Delfica pée em acio 0 conceito do tempo circular,.concebido como sucessio ordenada ¢ indefinidamente repetida de posigdes em ntimero finito. A repetigdo assegura a permanéncia, mas s6 se realiza mercé da ruptura, que implica necessariamente na passagem de uma posicao para outra, Pode-se qualificar de “atual” a posi¢ao realizada ¢ de “virtual” a ou as outras. Afirmada no primeiro quarteto, a repetigio é-dada como “virtual” no segundo: o sono da “antiga semente” (08) constitui uma repre- sentagio figurada da virtwalidade; 0 despertar corresponderia & ruptura, que atualizaria a repetigio. O primeiro terceto apresenta a ruptura como realizada no seio da natureza (10-11), mas 0 valor de indice do acontecimento telirico sé ficaré atestado se se produzir, no seio -da cultura, um acontecimento compardvel; o dltimo quarteto reafirma 4 permanéncia, o sono da Sibila faz reportar & hibernacio da semente do dragio (““dorme”; “esté ainda adormecida”) mas, enquanto uma continha a promessa de uma primavera, corresponde a outra a um mento que se prolonga: a possibilidade do despertar (da rup- pe que coincidiria com 0 retorno dos antigos deuses, € assim trazida Designemos por 1 € 0 os termos polares de cada eixo, a fim de iar a correspondéncia das definigSes posicional e semintica: ‘Menos diretamente ligados a0 conceito de tempo circular, outros itetidos suportam as mesmas relagdes de homologia; dat se poderd cluir que esses eixos seminticos so cortelativos dos precedentes: (1) Q1/Q2 :: T1/T2 :: atualidade/virtualidade :: voz + dina- yo/ siléncio + estatismo [:: (“romance antigo”, “‘cangio de 71 amor”, ‘‘sopro profético” + “‘que sempre recomeca”)/(sinal zero + “dorme”, “‘esté adormecida”, “nada mudou”)] (IL) Q/T :: QU/TI :: Q2/T2 :: permanéncia/rupture :: ausén- cia de atores antropomérficos*/ presenca desses atores. As estrofes exteriores e simétricas, QI e T2, acham-se em relacio de oposicéo disjuntiva: os contedidos presentes ‘numa esto ausentes na outra, e reciprocamente. Mas a existéncia de uma relacio semin- tica implica que todo contetido presente numa das estrofes se encontre correlatado a um contetido presente na outra. Os contetidos assim correlatados mantém uma relagio légica (de contrariedade, de contra- digo, de implicacio) cuja natureza deve ser definida em cada caso. ‘A descrigio assim dirigida leva-nos a propor, em Delfica: QU/T2 :: vegetal + arguitetural excluido | vegetal exclutda + arquitetural © a investigar se a oposicio vegetal/arquitetural nfo representa con- teiidos mais abstratos ¢ gerais, classemas, tais como objeto natural / objeto fabricado, que se referem decididamente a uma certa mancira de considerar as relagées da natureza e da cultura 3.6. EXPLORAGKO DA REDE TAxICA, Se admitirmos que a cada uma das classes de equivaléncia téxica corresponde uma classe de conteddos, seremos levados a investigar se a importancia de um verso com relagio 4 compreensio de P nao esté na proporgao de sua forca posicional. Assim, em Antéros, verificamos que a sucessio exclusiva dos versos exteriores de estrofes ainda apresenta certo grau de legibilidade: ot of os Tu demandes pourquoi j'ai tent de rege au coeur Je retourne les dards contre le dieu vaingueur. Oui, je suis de ceuxli quiinspire le Vengeur, 08 J'ai parfois de Cain Vimplacable rougeur! 09 Jébovub! Le dernier, vaincu par ton génie, 11 Crest mon aieu! Bélus ou mon pore Dagon. 12 Ils mont plongé trois fois dans les eaux du Cocyte, 14 Je resstme a ses pieds les dents du vieux dragon [01 Perguntas por que trago tanto édio no cotacio (04 Fago retornar os dardos contra o deus vencedor. 05 Sim, sou daqueles a quem inspira o Vingador, . Se concordarmor em clastificar & parte as pertonagens do didlogo Fo Tu, fem que no nos detivemos por motivos cuja exposi¢io ria as dimensics de uma simples ilustracio. Ainda mais justificadamente, desistimos de estabelecer 4 existéncia de uma relagdo R3. 72 | 08 08 uw 2 4 Tenho por veres de Caim o implacivel rubor! Jeovi! 0 iltimo, vencido por teu genio, £ meu avo Belus ou meu pai Dagon... ‘Mergulharam-me trés vezes nas Sguas do Cocito, Ressemeio a seus pés os dentes do velho dragio.] ® 0 texto de El Desdichado fornece-nos um exemplo de uma utilizacio sistemética das possibilidades oferecidas pela existéncia da rede téxica. “A anélise permite propor quatro tealizacSes (abe; a'b'c’; ABC; A’B'C’) de trés termos do plano do contetdo (aBy) dispostas duas a duas, segundo um paralelismo quase perfeito em QI ¢ Q2. abe "A verificagao deste esquema implica, evidentemente, uma desctigio -minuciosa de todos os acoplamentos e 0 estabelecimento do modelo dos inteidos, que fundamenta a existéncia dos termos oc, 8, Y a setem iidos. Limitar-nos-emos aqui a assinalar 0 paralelismo fOnico, posicional € semintico, que une os primeiros hemistiquios do verso inicial de cada rteto: “Je sUIs le TénéBreux — Dans la nUlt du TomBeau” [Eu sou o Tenebroso — Na noite da Tumba} = a correspondéncia dos contetidos be ¢ BC do segundo hemistiquio: palavras da rima “inconsolé” [inconsolado] e “consolé” (consolado } jo uma para a outra como disférico esté pata euférico, enquanto, lativamente, a relacio de troca ou de diilogo com a mulher morta acha negada (‘le veuf” [0 vidvo}) ou afirmada (‘‘toi” [tw]). 9. Do ponto de vista semantico, justificase 0 “enjambement” que liga 03 : a presenga simultinea num mesmo verso 03, da negacio da estrela e de afirmacio ("Ma seule étoile est morte, — et mon luth constellé”) produz 0 dle sentido: “a poesia garante a relacéo com a mulher amada, a despeito da Se trax 0 primeito contcido afirmativo de QU. Esse conuuste da nega a afirmagio fica ainda mais sublinhado pelo acoplamento (‘ktima palavra de stiquio: realizado/primeiro vocibulo de verso; durativo) das palavras “morte” te” unidas por um clo paronomésico. 73. | As outras realizagdes de 8, b’ e B’, correspondem a duas desig- nagdes convencionais da mulher amada: “étoile” [estrela] ¢ “ [flor] (aparecendo estas duas palavras em itélico no texto). | Tal como 04, 08 deve conter y; ele responde a 05 como iiltimo a primeiro de estrofe: & conjungao desejada, ele opde uma conjungio realizada, simbolicamente, ¢ verdade; faz reportar, além disso, a 01, 0 outro verso-limite de Q. Embora nfo sejam contiguos, os versos 01, 05, 08 encontram-se em relacio de sucesso, que traca uma progressio do tipo: — disjungio definitiva; — disjungao nao-definitiva (a relagio de didlogo pode se trans- formar numa relagao de troca nio-lingiifstica); — conjuncio realizada simbolicamente (em outros termos, pos- sibilidade de conjungio efetiva). 3.7. ““PRIMEIRO/ULTIMO”: INTERFERENCIA DO SENTIDO E DA PO- SIGkO. Os contetidas primeiro, tltimo e tinico sio lexicalizados de ma- ncira redundante nos quartetos de Arténis: em virtude da correlacio situacional primeiro/dltimo podemos esperar encontré-los particular- mente nos enunciados-limites (primeiro e ultimo do grupo dos quar- tetos) dos versos 01 ¢ 08. Esses dois versos, assim como 0 verso 05 (primeiro do quarteto, tal como 01) propdem uma definigao do ator feminino designado pelo titulo do soneto: Artémis tem’ como fungio confirmar a mediagio entre o dltimo eo primeiro, entre o mundo dos mortos ¢ 0 dos vivos. O primeiro ¢ 0 tltimo versos do grupo dos quartetos exprimem a continuidade, confirmada entre duas duragées ou dois espagos disjuntos, propondo ao mesmo tempo a natu- teza complexa (no sentido de definida por um ou diversos termos sémicos complexos) da figura feminina. Isto fica mais aparente em 01: ultimo (“La Treizitme”) + primeiro (“la premitre”) que em 08, no qual a “Rose trémiére” deve ser interpretada como “rose d’outre-mer” (Littré) ¢ onde se pode ver em “trémiére” a soma da silaba inicial de “TREIzitme” ¢ da silaba final de “preMIERE”! O esforco que fizemos, visando a tornar explicitas @ natureza ¢ as modalidades do que se chama, no discurso poético, “a estreita corres pondéncia da forma e do fundo”, levou-nos a atribuir a matriz con vencional funcées complexas e diversas, particularmente a Juncio pro priamente semantica de fornecer ao poeta um meio de realizar 0 que tle diz dizendo. 74 Nossa descrigio da rede taxica recorre a trés tipos de relagdes (de hierarquia, de similitude, de sucesso) anélogas as que regem — no plano do conteddo — as relagdes das isotopias; ela propde, como bipd- tese, a existéncia de correlacoes bindrias (nao destituidas de substincia semintica) homologdveis com os eixos seménticos do modelo descr tivo do conteddo. Os poucos exemplos que fomos buscar nos seis sonetos de Nerval nao fornecem uma verificacao propriamente dita: permitem, contudo, ‘que nos asseguremos de que 0 modelo construido — de maneira nio- -indutiva — nao somente nao é incompativel com a realidade obser- vével, como também permite deixar explicito (tornar comunicével) unt Seria conveniente estender @ experiéncia a outras obras ¢ aos tas de outras escolas. Se nossas hipdteses e nossas dedugoes resis- ‘em a uma prova desta ordem, estaremos em condigdes de constituir, ‘entre outras coisas, una tipologia dos sonetos, que poderemos clas- ificar, segundo seja ou nao realizada esta ou aquela virtualidede da jatriz convencional. 75 PROBLEMAS DO CONTEUDO — ESTRUTURAGAO E DESTRUIGAO DO SIGNO EM ALGUNS TEXTOS DE JARRY A intencao primordial deste trabalho & submeter um conjunto de textos geralmente tidos como ‘literirios” a uma andlise lingitistica, adotando como modelo de funcionamento do signo 0 que foi proposto por Helmsley em seus Prolégoménes a une théorie du langage. O texto literério fica portanto previamente definido como uma “linguagem de conotacio”. O primeiro momento da anilise consiste em identificar as unidades pertinentes do conteddo de conotacao do texto. O texto escolbido — o de Jarry, particularmente os Gestes et opinions du docteur Faustroll, pataphysicien e César-Antechrist — parece prestar-se, de mancira quase cémoda demais, a uma anélise deste tipo: certos frag- mentos metalingitisticos do préprio Jarry descrevem com efeito o texto literério como uma estratificagao bierarquizada de varias linbas de conteddo (ver o “Linteau” dos “Minutes de sable mémorial). Con- ‘tudo, outras férmulas, esparsas sobretudo na superficie de César- “Antechtist, sdo mais inquietantes, no que diz respeito ao signo: fazer -surgir, de maneira mais ou menos explicita, 0 conceito de “morte do signo”. Por conseguinte, 0 projeto do estudo muda de diregao: ao mes- ‘mo tempo em que se procede a estruturacdo do signo, trata-se agora também de descrever sua destruicao. ‘Ao quebrar a haste de sua cruz para assimilar-se a0 seu contritio, ‘0 arauto Fasce, simbolo do signo Menos, o Templirio de César-Ante- christ, pronuncia as seguintes palavras, para explicar 0 seu ato: “Irmio, vou mudar de ser, pois 36 0 signo existe (quebra a baste de sua cruz) provisério... O tepouso € a transformagio” (“Acte Héraldique", cena 7, p. 296) 1. 1. As referéncias a César-Antechrist remetem ais paginas do t, IV das res “completes”, Monte Carlo e Lausanne, 1948. As citagdes do “Acte H& raldique” foram confrontedss com o texto do manuscrito. Formula que até na grafia € essencialmente ambigua. A palavra signo teré ai o valor saussureano — significante e significado? Ou aplicar- -se-d apenas ao significante? Qual o valor da dupla qualificagio forne- ida pelos adjetivos 56 e provisdrio? Estaré o signo aptesentado como nica realidade a ter uma existéncia proviséria? Ou, de maneira mais verossimil, estaré sendo dado como tinica realidade existente, embora apenas proviséria? E como se manifesta esse caréter provisério da existéncia do signo? Qual a fungio, relativamente a primeira frase, da assimilagio dos contratios, que sio 0 repouso e a transformacto? Inde- pendentemente desses problemas — alguns dos quais serio abordados no decorrer deste estudo — a férmula e 0 gesto que a acompanha marcam de maneita nfo ambigua uma inversio das relagdes entre a substincia (0 “ser”) € o signo: este é dado como primeiro em relagéo Aquele, jé que uma transformagio do signo acarreta uma transformacio do ser. As implicagdes de uma decisio desta ordem nio podem ser negli- genciadas no que diz respeito & prépria estruturagio dos sistemas de signos que constituem os textos, cnja construgio se torna possivel gracas a cla. Sob este aspecto, pode-se dizer de virios textos de Jarry que eles constituem — exclusiva ou principalmente — um trabalho de estruturagio do signo. Como exemplo, apresentamos aqui um aspecto dos Gestes et opinions du docteur Faustroll, patapbysicien. Mas, inversamente, podemos nos perguntar se o postulado da existéncia apenas do signo nao implica em sujeité-lo — afinal — ao destino des- crito para a substancia, o que explicaria o caréter provisério de sua existéncia, Esta evolugio do signo — da proliferagio até a morte — delineia-se, a nosso ver, no proprio texto de onde se extraiu a palavra do Templicio: César-Antechrist. I. texto como estruturagéo de um sistema de signos A parte central dos Gestes e¢ opinions & constitufda pela narrativa de uma viagem por mar, efetuada pelo Doutor e por seus dois compa- aheiros, o meirinho Panmuphle e 0 grande macaco papiio Bosse-de- -Nage. Durante a travessia os trés personagens visitam certo mimero de ilhas. Cada uma delas dé margem a uma descrigio, que apresenta as mais das vezes um cardter enumerativo?. A vegetagio da Thha Soante, por exemplo: 2. Seria pouco pertinente, no momento, chamar a atengio para o fato de que esta viagem por mar é feita de Patis a Paris, em terta firme, e que as ilhas tém necessatiamente aspecto de lagos (p. 58), permanccendo entretanto sus 80 “2. Conduzivnes o senhor da ilha a suas plantagées, fortificadas ‘com eélias balizagens de bambus. As plantas mais comuns eram a5, tarolas, 0 ravanastron, a sambuca, a arquiviola, a pandora, o kin, © tché, © flajolé, a vina, © magrefa e a hidrfulia” (p. 66)'3. © leitor pouco avisado poderé ver nessas palavras pouco usuais nomes de plantas exdticas ¢ julgaré que a descrigio tem como referente de conjunto uma ilha real ou imagindria — 0 que vem a dar no mes- mo. Mas nada disto € certo: a Ilha Soante é a obra musical de Claude Terrasse, e as plantas estranhas que ali vicejam so instrumentos mu- ssicais. Sua presenga tem como fungfo conotar um aspecto, pertinente aos olhos de Jarry, da obra de Terrasse: o lugar que nela ocupam 3 instrumentos raros ou arcaicos. Da mesma forma, todas as outras ithas visitadas pelos viajantes sio outros tantos universos literdrios, picturais ou musicais: o pais das Rendas representa a concretizacéo da obra de Aubrey Beardsley, a Itha Amorfa € uma transposigio dos Petits Potmes Amorphes de FrancNohain, a Ilha de Ptyx evoca a obra de Mallarmé, a Ilha Fragrante representa 0 universo de Gauguin, A Ao nivel das estruturas de significago, so duplas as implicagSes de semelhante constatacio: a) O conjunto desses textos descritivos possui um cariter meta- ingiifstico acentuado. A bem dizer, seria mais exato falar em metasse- jdtica. Com efeito, o plano de conteddo dessas descriges no é ‘constituido precisamente por uma lingua, e sim por um sistema com- plexo de signos, que pode ser lingiifstico (obras literdrias) ou nao- ingiifstico (obras pictoricas ou musicais). E interessante observar que te aspecto metassemistico assinalado, embora apenas de maneira indi- , por um elemento do texto (as dedicatérias de cada um dos capi- s ao autor da obra descrita), fica quanto ao mais sistematicamente ‘camuflado, a ponto de ter podido escapar a certos leitores *, b) Nao existe apenas este aspecto metassemidtico. Os textos apresentam, além deste, um aspecto conotativo. No capitulo dedicado 2 Ilha de Her, a obra em questo € 0 conjunto dos contos de Henri de fveis de serem descritas como thas: implicagSes previsiveis da lei de identi dos contritios (ver a seqiiéncia deste estudo). 3. P, 66 da edigio Stock, 1923. 4. Quanto aos problemas menores suscitados pela identificacio _das_ilhas, ultar 0 fasciculo 22-23 dos Cabiers du collége de 'Pataphysique, 22 Palotin E_ P. (vulgarmente, 11 de abril de 1956). 5. Consultar por exemplo as observagies de L. Perche, Alfred Jarry, Edi- uuniversitaires, 1965, p. 117-118. 81 Régnier reunidos sob 0 titulo de La Canne de jaspe. Cada um dos elementos que intervém na descrigio desempenha uma dupla fungio: denotativa (significar determinado objeto) e conotativa (significar a fungio desse objeto na obra em questo). Assim, 0 proprio nome da ilha significa, por um lado — no plano da denotagio — a ilha em si mesma e, por outro lado — no plano da conotagio — a funcio privile- giada da silaba Her- no texto de Régnier: a maioria dos personagens tem nomes que comecam por esta sflaba (Hermas, Hermogtne, Hermo- crate, Hertulie, etc.). Percebe-se a relativa complexidade desse sistema de signos. Se adotarmos a terminologia de Hjelmslev * e a interpretacio oferecida por Barthes para as noses de metalingua e de conotagio 1, chegaremos com efeito a seguinte férmula: E c (ERC) R ERC Nesta férmula, E é 0 plano da expresso, C 0 plano do conteido € R a relagio entre os dois planos. O sistema ERC da parte esquerda da férmula é 0 do texto de Jarry, encarado como linguagem de deno- tagio, O todo — expressio e contetido — desta linguagem primeira serve de plano de expressio para um contedido segundo, que é, por sua vez, uma linguagem — a do texto descrito sob as aparéncias da itha, A esta linguagem € que corresponde 0 sistema ERC do lado direito da f6rmula, Deve-se ainda precisar que essa mesma linguagem — pelo menos quando se trata de um texto literdrio — é uma lin- guagem de conotacio®, de modo que, rigorosamente falando, a {6r- mula deveria ser apresentada da seguinte mancira: (ERC) R [(ERC) R C] Embora excepcional, esse tipo de estruturagio do signo sé se distingue das metalinguas ou das linguagens tradicionais de conotagio por um grau suplementar de complexidade. Teoricamente, nao ; impossivel imaginar linguagens ainda mais complexas: por exemplo, se quisés- semos proceder a maneira de Jarry ao descrever a viagem de Faustroll, que constitui desctigdes de linguagens, obterfamos uma linguagem um grau mais complexa, no lado esquerdo da {6rmula: (ERC) R{(ERC] R[(ERC) RC} 6. Prolégomenes... capitulo 22 7. “Eléments de’ Sémiologie", Communications n° 4, pp. 130-131. ‘Adotamos, com efeito, como postulado, que todo texto literdrio constitui por definigio uma’ linguagem de conotacio. 82 E nada nos impedisia de fazer funcionar por sua vez essa linguagem como expressio ou contetido de outra linguagem, ¢ assim por diante. Esses tipos de linguagem séo implicitamente previstos por Hjelm- slev: para certas metalinguagens, assim como para certas linguagens de conotagio, ele admite a possibilidade de serem os dois planos das mesmas constitaidos por uma linguagem (Prolégoménes, p. 162). Por conseguinte, basta supor que essas linguagens podem set, por sua vez, conotativas ov metalingiisticas para obter as f6rmulas da infinidade tedrica das linguagens possiveis, entre as quais a de Faustroll repre- senta apenas um caso particular. Como vemos, a prépria possibilidade de descrever um texto deste tipo, de acordo com os processos da lingtifstica estrutural, implica que, tem lugar de fugir 20 modelo tradicional do signo lingifstico, ele se limita a consolidé-lo, multiplicando o mimero de planos da linguagem. De modo que nao seria provavelmente inexato atribuir a esse sistema fo nome de hiperlinguagem. ‘Temos ainda um problema anexo: 0 do denotatum *. Nao nos cabe enveredar aqui pelo problema geral — dos mais espinhosos — do denotatum do texto poético: limitemo-nos a apontar que, pelo mes- mo motivo que 0 contetido, o denotatum se acha desdobrado. O deno- tatum de 12 nivel é 0 texto descrito sob forma de paisagem, de acordo com a possibilidade claramente indicada por K. Heger: “Um enunciado metalingitstico sobre uma coisa lingiistica qualquer (...) transforma automaticamente essa coisa lingiifstica qualquer em alguma “coisa” *, Quanto a0 denotarum de segundo nivel, trata-se do denotatum eventual do texto descrito. Il. © texto como destruidor de um sistema de signos Aparentemente, César-Antecbrist constitai o drama da alternincia “pendular” entre Cristo e seu “‘contrério”. O “Ato Prologal”” des- creve 0 fim do reino de Cristo ¢ o advento do Anticristo. O “Ato Herdldico” prepara o aparecimento de Ubu, duplo terreno de César- -Anticristo. As manifestagdes terrenas de Ubu constituem o objeto do “Ato Terrestre”, que nio passa da integra de Ubu Roi, amputado 9. Empregamos este termo atribuindo-lhe o valor de referente. Denotatum fornece uma inicial em D que, em nossas f6rmulas, tem a vantagem de nao se ‘confundir com a inicial R de relecao. 10. "La sémantique et la dichotomie de langue et parole”, in Tra, Li Li, ‘VIL, 1, 1969, p. 65 83 porém do Ato Ve de alguns outros fragmentos. Por fim, 0 “Ato Final” marca a “calcinagio” final do Anticristo e 0 retorno de Cristo. Reduzir porém 0 texto a um esquema desta ordem equivaleria literal- mente a privé-lo de todo sentido ou, como veremos, de toda auséncia de sentido, 0 que dé no mesmo. Com efeito, o texto no seu conjunto constitui também um esforco de estruturacio do signo, cujo primeiro momento pode ser descrito, provisoriamente, da seguinte maneira certos elementos do texto funcionam nio somente como signos, mas também como signos de signos, e eventualmente como signos de signos de signos, ¢ assim por diante. Temos um exemplo grosseiro deste fun- cionamento no jogo grifico do final do “Ato Herildico”, O conjunto desse ato € redigido exclusivamente em termos de brasio: cada um dos personagens tem o nome de pega (real ou ficticia) de herdldica, sendo © cenétio constituido de um ou varios escudos, sobre os quais aparecem ¢ desaparecem as diversas pegas, ¢ os movimentos dos personagens em cena sio descritos em termos de leitura de brasdes. Assim, formula-se da seguinte maneira a indicagio dos personagens da cena 9: “Goles com duas faixas de prata, um chefe contrapalado © uma perla de ouro, tranga de ouro com ito folhas de prats, — chapado Se ouro e negro, — de prata com uma faixa de carnagio ¢ uma esfera de negro, — ¢ de negro com trés esferas de prata, las: em primeiro com um girio de goles, em segundo com uma pila de Sinople, em terceiro com seis coticas azuis juntas” (p. 296). Voltaremos mais tarde & funcio da faixa. Fiquemos por enquanto com 06 elementos chef contreparlé (chefe contrapalado ), trescheur (tranca) € pairle (perla). O aspecto do primeiro lembra a letra T, 0 do se- gundo a letra O ¢ 0 terceiro a letra Y. Dai a possibilidade de se cons- tituir a palavra TOY: “Ubu. — Cornegidouille, Senhores, julgo ser a seguinte pergunta gue se deve fazer: quem seré Rei? (No levante, britbam os trés escudos de CHEFE, TRANCA, PERLA 12.) 11, Na realidade, Jerry enganase quanto a0 referente do chefe contraps: lado: como prova o desenho indicado na nota seguinte, © que tem em mente é © chefe-palo. Quanto a esses problemas, consultar © artigo de J. H. Sainmont “Petit guide illustré pour la visite de César-Antechrist, Cabiers du College de ‘Patephysique, n* 54, 12. As edicdes de César-Antecbrist iio comportam desenhos, mas apenas « palavra TOY em maitsculas, antecesida pela mengio éerivant. Jd 0 manuserito, entretanto, apresenta um desenho anilogo ao que aqui aparece. Encontra-se uma reprodugfo do mesmo em M. Acrivé, Peintures dessins et gravures de Jarry, pl. 30 84 Pode-se ver como funciona aqui o sistema de signos: € 0 deno- tatum do primeizo signo — o termo herildico — que serve de expres- sio para um segundo signo, cujo contetido € um grafema. Este assume, por sua vez, qu com os dois outros caracteres que constituem paralelamente os denotata das outras duas peas, uma fun- sao distintiva na estrutura do lexema TOY. E a seguinte a f6rmula desse sistema: ERC — D — ERC Nesta articulacéo de dois signos, 0 denotatum do primeiro € que fun- ciona como relais (intermedifrio) semistico em relacio a0 segundo. Formalmente, © processo de estruturasio difere do que foi_anali- sado para Faustroll: 9 denotatum é utilizado, € as telages enire os diferentes planos nfo sio as mesmas. Mas, tanto. num caso como no outro, assistimos a uma proliferacio dos elementos intermedirios do signo, cuja estrutura interna se acha de certa forma desmultiplicada, cesta mesma desmultiplicagio que consolida 0 signo, repetindo diversas veses a clio semi6tia, De modo que ere proceso representa, a nosso ver, uma nova manifestacio da hiperlinguagem de Jarry. Entretanto, intervém outras manipulages que, em lugar de conso- lidar 0 signo, ameagam-no de destruigio, de “morte”, para nos ser- virmos da palavra utilizada pelos préprios signos para encarar seu destino: “Treschewr, — Sinto uma morte, um sono especial, que nos hé de imobilizar até esse momento dentro do molde cristalino do céu. Chefe. — Sinto um vento brotado da terra, novo dilivio, para nés irrespirdvel, € que expulsa os animais do mundo herildico (...) (Os trés arautos vitrificam-se, cerimicos. Flamejam as tochas, ca- Jam-se os sinos)” (p. 292). De acordo com quais modalidades intervém esta destruigio do signo? ‘Tomemos, por exemplo, o lexema Baton-2-physique. Evidentemente, ‘ele niio faz parte do inventério tradicional de termos herildicos. O no o impede de figurar em lugar de destaque em diversas leituras brasées de César-Antechrist: 85 “Do mesmo para os MESMOS 18 e para um TEMPLARIO de goles com cruz de prata, e para o BATON-A-PHYSIQUE, palo ou (aixa de goles rolando sobre as suas extremidades” (cena VI, p. 292). © denotatum do béton-d-physique apresenta o aspecto de uma barra que corta 0 escudo sensivelmente no meio. Ou seja, em posi¢éo hori- zontal, o esquema 1. Mas este & apenas 0 seu aspecto estético: com efeito, 0 movimento de rotago que o anima (‘‘rolando sobre as. suas extremidades”) faz com que cle assuma todas as posigdes possiveis no escudo, particularmente a posigdo vertical (esquema 2). Dai a indi- casio “palo ou faixa” (palo = vertical; faixa = horizontal). Ld Esquema 1 Esquema 2 Como era de esperar, o denotatum deste signo serve de expressio para um segundo signo. Entretanto — e é af que este sistema comesa a se distinguir do que foi escrito anteriormente — 0 conteiido deste segundo signo duplo: 1. O Béton-d-physique € explicitamente apresentado como sim- bolo félico. Aliés, si0 por si mesmas interessantes as modalidades desta explicagio. Com efeito, a citagio de um fragmento de Lautréamont —na verdade, ligeiramente modificado — & que assinala a fungio de simbolo félico do bastio: diante da movimentacio constante do mes- mo, 0 Templitio Ihe dirige por duas vezes a seguinte apéstrofe: “Falo desenraizado, NAO DES SEMELHANTES SALTOS!” (pp. 292 ¢ 293). Alusio transparente as apéstrofes dirigidas por Deus a seu fio de cabelo esquecido no bordel, no Canto Terceiro. Esta citagio tem portanto uma dupla fungio: com relagio a0 texto de Maldoror, ela exibe © con- tedido sexual da metéfora do cabelo, Em relacio a0 texto de César- -Antechrist, desvenda o simbolismo félico do Baton-a-physique. Final- 13. Férmula tradicional, que indica que 0 escudo descrito assemelha-se to deaciw Imediatamente ents. Aqui, fSemuls remere s0 brioonanento da cena V. 86 mente, a aproximacdo dos dois textos conota o falo como acessério divino. 2. Simultaneamente, 0 Basto funciona como simbolo do signo menos: com efeito, quando horizontal, assemelhase ao arauto Faixa, que 0 considera como o seu préptio “‘reflexo” (isto é, como 0 seu signo): € nio nos admiramos por ver @ nosio de reflexo assumir esta importincia no texto}: “Em ti cu me remiro em meu reflexo” (p. 293) Ora, o arauto Faixa — que também é um signo — é explicitamente dado como simbolo negativo: diante do Templitio, s{mbolo positive (gragas & forma de sua cruz) que contra ele ergue a espada, ele pro- nuncia palavzas apaziguadoras: “© signo Mais nio lutaré contra 0 signo Menos” (p. 293). O Bastéo, reflexo de Faixa, também ¢, portanto, um simbolo do signo Menos. Percebe-se em que ponto esse signo se distancia das estruturas lingtifsticas tradicionais. A sua expressto tinica correspondem, com efeito, dois (ou mais, como veremos) conteddos, de acordo com a seguinte f6rmula: cl ERC+D—+ER C2 E trata-se ainda apenas do primeiro momento desta nova estruturasio do signo. Com efeito, na construcéo do contetido do signo, dé-se como pertinente outro traco do referente: o préprio movimento que o anima. Com cfeito, segundo as palavras respeitosamente dirigidas pelo Tem- plirio ao Bastio: “Em cada quarto de cada uma das tuas revolugdes (mecam-na de ‘onde quiserem) executas uma cruz contigo mesmo” (pp. 293-294) Desta mancira, simbolo do signo Menos, 0 Basto € ao mesmo tempo simbolo do signo Mais: dai a dupla qualificagio de “Menos-em-Mais” ¢ de “Mais-em-Menos” que lhe é conferida por Faixa (ibid.). O mesmo 4 Ver, por exemplo, a funcio do Reflexo de Sio Pedro no final do “Acte 87 signo significa a um s6 tempo os dois contréios: seu contesido constitui © cixo semintico que Ihes articula a oposicéo. Como comesamos a vislumbrar, esta possibilidade nao se restringe apenas ao contetido ma- temético: atinge também o conteiido sexual. Sob este aspecto, acontece portanto que 0 Bastio simboliza simultaneamente 0 falo e seu contrério ‘ou, para ser bem preciso, os seus dois contrérios: quanto 0 sexo femi- nino, na verdade, cogita-se apenas de mancira muito discreta na se- guinte apéstrofe de Faixa: “tu é (...) 0 homem e a mulher” (p. 293). Em compensacio, concede-se um lugar preponderante a0 es- fincter anal !8, A relagio existente entre ele ¢ 0 Bastio fica estabele- cida da seguinte mancira: a). O Bastio ¢ o personagem de Orle encontram-se na mesma relagio com referéncia a César-Antechrist; para ser mais preci numa relagio de expresso para contesdo™*. Sio, portanto, idénticos. b) Ora, 0 personagem de Orle, como impde 0 aspecto de seu referente (ver esquema 3) funciona como simbolo do esfincter anal. A Trombeta de Faixa, na cena IV, conferelhe a lisonjeira qualificasio de “‘anel fechado de vil esfincter” (p. 291). Esquema 3 c) Por conseguinte, 0 Béton-d-physique também simboliza o cesfincter anal. Repzesentemos o funcionamento desse signo: 15. Serd necessirio precisar a relasio entre este, 0 falo € 0 sexo feminino ‘no imaginétio jérryco? Neste caso, fazse mister citar este texto de “Autre Aleeste”: “Helena! © homem s6 pode plagiar 0 uso desta ferida, oferecendo como simulacro a safda por Deus condenada a excretar as imundicies do corpo” (in L’Amour abiolu, précédé de (...] 'Auteo Alceste, Paris, Mercure de France 1964, p, 37). 16. Esta dupla relacio no é manifestada de mancira inteiramente explicita E suposta, entretanto, pelos seguintes fatos: a) na_cena I do “Acte Heraldique”, quem é buscado pelo Rei sob a forma de Orla s6 pode ser César; b) 0 bastio € dado por Fuixa (p. 293) como o “reflexo de seu Senhor, isto é, de César. Ora, 4 noslo de reflexo funciona no texto como equivalente da noyao de signo 88 gl+ cl \ ERC+D+ER, OT 2+ NA Asia (OC maitisculo marca o eixo semantico sobre 0 qual se articulam dois contetidos opostos, marcados por ¢ mimisculo. O coeficiente 1 fica ligado ao conteddo sexual, 0 coeficiente 2 20 contetido matemético). Os fatos nao ficam nisto, Nés 0 observamos a propésito de uma das passagens citadas: 0 signo Mais € também uma figura da Cruz. E, por conseguinte, Cristo. O signo Menos — como acabamos de ver — serve igaalmente para exprimir 0 contetido César-Anticristo. O signo + e 0 signo —, sendo idénticos, segue-se que Cristo € 0 Anticristo ¢ que ambos se assimilam ao mesmo tempo ao Falo e ao Esfincter, entre outros ob etos, Chegamos finalmente seguinte fStrmula: cl+ , cl \ cl— 2+ ERC+D+ER+C2 e2— cot } Ca \ cn Os funcionamentos 1a descritos — e foi indispensdvel simplificé- -los 17" — nfo ficam adstritos aos termos da herdldica. Atingem outros 17. Com efeito, uma andlise exaustiva do texto revelaria séties comple- mentares de conteidos. Por outro lado, no foi possfvel levar em conta o fato de funcionarem certos elementos a um s6 tempo como expressio e como conteido. 89 exemas. Seu denotatum serve entio de expressio para dois ou mais de dois eixos seminticos e, sobre cada um desses dois eixos, para dois contetidos opostos. Fiquemos com o lexema César-Anticristo, entre os varios exemplos possiveis. Como nome proprio, esté ligado a deter- minado denotatum. Este denotatum € que serve, por sua vez, de ex- pressao para uma série de conteddos: 1. Em primeiro lugar, o Anticristo, como acabamos de perceber, significa 0 seu proprio contririo *. Na verdade, esta relagio s6 se estabelece, a principio, de maneira indireta, pelo ambfguo intermédio da nogio de reflexo, a um tempo semelhante e inverso: w-Anticristo, ido passas de um meu reflexo na banal visio humana” (p. 281). No “‘Ato Final”, entretanto, ela se manifesta de maneira decisiva: “O Cristo que me precedeu, que € eu préprio, jd que sou o seu contrério ...)" (p. 342). 2. © Anticristo significa igualmente o falo — ou, em outras palavras, 0 Béton-d-physique — ficando assim invertida a relagio ante- riormente descrita (ver nota 16). Também af a manifestagio desse contetido € indireta. Revela-se gracas & identificacio operada por Faixa entre César e 0 olho do Camaleio: “A Terra sujaré o olho bélido do camaledo acalentado” (p. 291). Ora, 0 “olho bélido” — entenda-se “pedunculado” #* — do camaleio funciona por sua vez como simbolo falico, como manifestam abundan- temente diversas passagens de Haldernablou ‘camaledes enroscados a0 redot dos altos aparadores viram-viram a0 sol os seus olhos como pénis de negros?” (p. 227). Desta maneira, o camaleio *° significa 0 falo; © mesmo acontece com César, comparado a0 camaleao, Por conseguinte, com referéncia a César, 0 falo € ao mesmo tempo expressio e contetido, ‘Mas, se o Anticristo significa o falo, € preciso que também 0 priprio Cristo tenha esse mesmo contetido. Daf, entre outros tragos, a 18, Deixemos claro, entretanto, que, para este primeiro contetdo, © deno- tatum & mantido fora da relacio semi6tic 19. Bolide: expressio colhida em Rabelais, que a emprega com o sentido srego de “sonda matinha”, 20. Também 0 caméleio constitui um motivo privilesiado da obra de Jarry: consular pranchas 20, 21 ¢ 34 das Peintures.... ob. cit. Em cada una esias figuras, cbservese a insisténcia com que se assinala o olho “bélido” do ‘amaleio. 90 assimilagio das trés cruzes invertidas do “‘Ato prologal” a outros tantos palos — objetos cujo contetido, evidentemente, nao se faz necessério cexplicar *) “Sao Pedro — Trindade de Patcas, fiastes os meus dias. Vés me Protegeis com a cerca de vossos trés palos” (p. 247). Por outro lado, o préprio fato de o Antictisto significar 0 falo, leva-o a significar igualmente o esfincter anal: daf a relagio, acima apontada, sob 0 seu aspecto inverso, que o prende a Orle. 3. Finalmente, e voltaremos a este aspecto, César-Anticristo tam- bém significa Ubu: 0 segundo € dado como “duplo terrestre” do pri- meiro. Mas Ubu, por sua vez, € duplo: Rei e Acorrentado, sédico masoquista. E, por fim, esses dois aspectos contréios slo equivalentes, como fica explicitamente dito em Ubu Enchainé (Ubu Acorrentado]: “Ja que (...) sou incapaz de proceder como todo mundo e que me € indiferemte ser diferente de'todo mundo, jf que serei ainda eu que acabarei matando todo mundo, vou me’ constituir escravo, Mie Ubu!” (Ato I, cena I, in Tout Ubu, p. 273). Qual 2 situagio do signo num texto destes? Jé no levando em conta seqiiéncia mais ou menos longa de “relés”” semidticos, examinemos algumas correspondéncias entre as unidades de expressio e as de con- teido. Tomemos por exemplo El + Cl + a expresso e 0 contetido de Cristo, El — e Cl —a expressio e 0 contetido de César-Anticristo, E2 + C2 + a expressio e 0 contetido do Baton-d-physique, E2 — © C2 — a expresso e 0 contetido de Orle. Limitando-nos as relagées aqui explicitamente assinaladas, vemos que: a) El —tem como contetido no somente C1 C1 + ¢, por outro lado, C2 + e C2 —; b) E2 + tem como contetido nao somente C2 +, como também C2 —e, por outro lado, Cl + e Cl —; c) Cl + tem como expressio nao somente El +, como também El —, e por outro lado, E2 + e E2 —; 4) C2—tem como expresso no somente E2 —, como também E2 + e, por outro lado, El + e El —. Todo signo de César-Antechrist € expresso de si mesmo, de seu priprio contririo e de um paradigma aberto de outros conteédos. O signo tradicional, que os esforcos descritos a propésito de Faustroll sb 21. Cf. a ortogratia significativa, adotada pelo derivado neolégico palloide isions actuelles et futures”, Cabiers du College de ‘Pataphysique n° 1, p. 6. 1 conseguiram afinal consolidar, acha-se desta vez destruido. Quanto a0 “contetido” (visto j4 ndo ser possivel usar esta palavra a nio ser aspea- da) do conjunto do texto, verificamos que ele se desdobra: sob a alter- niincia do Cristo e do Anticristo surge a alternincia do signo ¢ do nio- -signo, uma “‘significando” a outra, e vice-versa, de modo que, na rea- lidade, € impossivel afirmar onde est4 0 “conteéido” ¢ onde esté a “expresso”: tudo é expresso e tudo é contetido, A estruturagao infi- rita do signo trouxe como conseqiiéncia a sua destruigio. Sobre as rufnas da hiperlinguagem ergue-se uma antilinguagem: “Pai Ubu, — Cornegidouille! Nao teremos demolido tudo se nio Aemolirmos aié as ruinas!_ Ora, nio vejo outra solugio para isto ‘a nao ser equilibrar com elas belos edificios bem ordenados” (Ep/- grafe de Ubu Enchainé, Tout Ubu, p. 269). Ill. O efeito transformative dos textos César-Antechrist & 0 tinico texto de Jarry que se atribui essen- cialmente como “contetido” a construgao e'a destruigio do signo. To- davia, em razfo de sua exist pas, César-Antechrist altcra o sentido de todos os outros textos, de acordo com moddlidades que exigiriam uma descrigio particular para cada um deles. Trataremos aqui — sucintamente — apenas de Ubu Roi, o primeito a ser tocado pois, como dissemos acima, acha-se integrado a0 texto de César-Ante- christ. Sob este aspecto, 0 conjunto do texto de Ubu Roi pode ser comparado a uma frase que muda de sentido segundo tenha ou nao contexto, E fato indiscutivel que 0 contetido de Ubu Roi varia por completo segundo seja lido independentemente de qualquer referéncia a César- -Antechrist ou como parte integrante do drama. Uma das caracter{s- ticas que mais impressionaram os observadores, desde os mais ingénuos até os mais perspicazes *?, € a auséncia total, ao nivel da manifestacio textual, de qualquer elemento sexual. Todavia, leiase em seqiiéncia — como devem ser lidos — 0 “Ato Prologal”, 0 “Ato Herildico” e 0 “Ato Terrestre”: neste momento, impdem-se algumas constatacdes. Ci- temos algumas, dentre as mais evidentes, referindo-nos indiferentemente as unidades lexemsticas ou as unidades actanciais da narrativa: 22. Entre os mais ingénuos: Chassé, que nfo “ve em Ubu Roi a menor ‘alusio de ordem sexual” (D'Ubu Rot au Douanier Rousseau, p. 24). O usais pers: picaz: J. H. Sainmont, que finge espanto: “E muito curioso verificar que Obsessio. sexual fique adstrita a0 Mundo dos Emblemas ¢ suprima aqui, na vvida real, as suas manifestagoes simbélicas” (Cabier 5-6, p. 64). 92 1, © préptio Ubu, como vimos, € 0 duplo de César-Anticristo, Ora, César simboliza (e € simbolizado por) 0 Baton-d-physique. Por conseguinte, Ubu também é um simbolo filico. Sem entrar, por ca- réncia de espaco, na anilise dos elementos do texto que confirmam esta interpretagio, assinalemos um trago das representagdes grificas de Ubu: em nfo poucas #8, Ubu aparece ostentando no alto do cranio pitiforme uma orelha tinica, com formato de folha: objeto que, pelo menos, somos tentados a interpretar como simbolo félico. 2. O proprio lexema Béton-d-physique aparece no texto de Ubu Roi, mas em distribuigdes contextuais de tal ordem que se torna rigo- rosamente impossfvel atribuir-lhe qualquer significagio sexual: trata-se simplesmente de uma arma peculiar ao pai Ubu, tal como, entre outras, © casque a finances, ou 0 ciseau @ merdre, e sem que nenhum elemento dos diversos contextos em que aparece permita identificar os tragos pertinentes desta arma com relacio as outras: “Sire Soldado, levai, por favor, nosso casgue 2 finances, © v6s, si Lancto, extagen Sacer) mentee iy baeeopsytene™ (Chu Rox, IV, P. 101 de Tout Ubu; ver a8 outras tes ocortea- cas do lexema em IV, 3, 92, IV, 3, 96 ¢ IV, 4, 100). Esta interpretagio tio inocente fica evidentemente interdita 20 leitor de César-Antechrist, forcado a supor para o baton-d-physique de Ubu Roi 0 contetido sexual que se liga a este lexema no primeizo texto. 3. O personagem do eapitio Bordure exerce em Ubu Roi uma fungio facilmente definivel no plano da sintagmética da narrativa: ele funciona como ajudante de Ubu até a cena 5 do III ato e, depois, ‘como oponente a partir desse momento. Mas a que contetido corres- ponde o personagem? A resposta a esta pergunta ¢ mais uma vez fornecida pelo texto de César-Antechrist, indiretamente, € verdade. Com efeito, o lexema Bordure foi também colhido no vocabulério da hherildica. "A peca por cle designada tem o seguinte aspecto: 23. Consultar as pranchas 54, 55, 56 € 63 de nossas Peintures... 93 a Por conseguinte, a bordadura € uma orla dilatada até os limites do escudo, Conhecendo 0 valor simbélico da orla, nfo se pode deixar de olhar de maneira bastante suspeitosa para o capitio Bordadura! Sobre- tudo considerando-se que uma rede bastante densa de relagdes paragra- iticas * liga 0 seu nome nio apenas a0 de Orle (bOR-dur-E) como também ao de bougre (BO-rd-U-RE): lexema que tem um lugar pre- ponderante em Ubu Roi ¢ constitui parte do nome de um dos per- sonagens: Bougrelas, 0 qual, esta sujeito, tal como Bordure, aos trata- mentos sédicos do pai Ubu. 4. Os palotins (verguetas) nao apresentam em Ubu Roi nenhum aspecto sexual. Contudo, 0 préprio nome jé evoca o pal, e a pala metaforiza o falo, Ficando assim confirmado este texto dos Minutes, que descreve 0 que aparece em César-Antechrist como uma “germi- nagio” de Palotins sob forma de um “impulso falico” (p. 188). 5. Tomemos, finalmente, a imprecagio Cornegidouille, Nao sera indiferente observat que, embora merdre seja a primeira palavra de Ubu Roi, cornegidouille é que € a primeira pronunciada por Ubu quan- do este aparece no final do “Ato Heréldico”. Esta primazia atribuida 20 agudo e 20 ofensivo, num contexto em que se manifestam & sacie- dade os elementos sexuais, nio nos permitird imaginar para cornegi- douille uma fungio de simbolo félico? Sio incontiveis os fatos desta ordem no texto. Foi suficiente, com toda a certeza, a enumeracio de alguns para mostrar 0 estatuto de César-Antechrist com relacio a Ubu Roi. Estatuto metassemistico, insistimos: tudo se passa como se a fungio do aspecto sexual do con- teido de César-Antechrist fosse patentear o conteiido latente de Ubu Roi, desvendando um sentido sexual cuidadosamente camuflado 20 nivel da manifestacéo textual. Ubu Roi portanto, num primeiro mo- mento, € desdobrado: sob 0 contetido de superficie (excremencial), otganiza-se um segundo contetido (sexual). Mas nio se limita a isto © efeito de César sobre Ubu. Realmente, esses dois contetidos so “contrérios", tal como o signo mais e 0 signo menos, ou 0 falo ¢ 0 esfincter. E’neste momento que entra em acio o segundo aspecto do conteido de César-Antechrist: a identidade dos contrétios, explicitada alids, como vimos, embora sob um aspecto levemente diferente, pela paridade de Ubu Roi e de Ubu Enchainé (rei e acorrentado). Final- mente, 0 texto do ciclo ubuesco constitui a justificagio de César-Ante- christ, a tal ponto que, em Faustroll, Ubu & que € dado como autor de César: 24. Use-se aqui o termo paragrama com 0 sentido saussureano, 4 “Da luta entre o signo Mais ¢ 0 signo Menos, o R. P. Ubu da Companhia de Jesus, antigo rei da Pol6nia, extraiu um grande livro cujo titulo € César-Antecbrist, onde se encontra a vinica demons- ttagio pritica, por intermédio do instrumento mecinico chamado biton & physique, da identidade dos contrastes” (p. 120). O texto de Jarry 6 logoméquico, no sentido mais estrito do termo. Estrutura-se como signo de maneira exuberante, e esta mesma exube- réncia — levada até a possibilidade, para 0 mesmo elemento do plano da expressio, de ter a um s6 tempo dois contesdos contrérios — im- plica a sua propria destruigao como signo. O texto surge entio como um objeto semistico a bem dizer quimérico: destruicao de si mesmo, destruigio de sua prOpria destruigao, e assim por diante. a SISTEMATICA DAS ISOTOPIAS Diante da impossibilidade de definir uma ciéncia da literatura a nao ser por seus pressupostos ideoldgicos, consideramos o estudo que vem a seguir como uma contribuigao a andlise do discurso, deixando provisoriamente de lado o problema da determinacao das relacdes, indis- cutiveis, existentes entre esta e a lingiiistica, que considera a frase como limite de seu objeto. O exame das estruturas discursivas autoriza-

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