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De um Século a Outro
Uma nova época ou um novo mundo?
O artigo apresenta um panorama das duas The article presents a general view of the
viradas de século – do XVIII para o XIX e two turns of the century, from the 18 th
deste para o XX – como o nascimento de to 19 th , and from this one to the 20 th ,
novos mundos ou épocas. Primeiramente, as the beginning of new epochs. First
o autor analisa o contexto de origem e penetração the author analyses the origins and spread of
das ideias iluministas e de crise do Antigo Regime the Enlightenment, and the crisis of the ancien
na Europa. Na segunda parte, discute o começo régime in Europe. In a second part, he discusses
de um novo mundo, marcado pela crença no the beginning of a new world, noted for the belief
progresso, pelos avanços tecnológicos e pelos in the ideal of progress, for the technological
grandes conflitos armados. improvements, and for the great armed conflicts.
Palavras-chave: história das ideias; Keywords: history of ideas; historiography;
historiografia; história cultural. cultural history.
D
e um século a outro: uma nova síveis de serem depreendidos do tema
época ou um novo mundo? Pas- proposto, dois sentidos ou, melhor, duas
sagem de século, mudança de leituras para as noções de passagem, épo-
época? Nascimento de um novo mundo? ca, e mundo. Qual delas escolher então?
Na realidade, quando começamos a pre- A passagem do século XVIII ao XIX, ou a
parar este trabalho, logo percebemos a do século XIX ao XX? Afinal, em relação
presença de dois sentidos distintos e pos- às duas são pertinentes as indagações
práticas econômicas, a contestação à pre- pela máquina a vapor. A partir daí afir-
eminência intelectual e pedagógica ecle- mou-se o poderio econômico da Grã-
siástica pelos filósofos e artistas da Ilus- Bretanha, caracterizado pela íntima
tração/Iluminismo, a ascensão mais rápi- integração da exploração e do comércio
da ou mais lenta do terceiro estado, as coloniais com a produção industrial da
disputas pelo domínio sobre a expansão metrópole. Em plano mundial, vivia-se
mercantil e colonial ultramarina. 1 então a realidade, dia a dia mais eviden-
te, da preponderância britânica do ponto
A Revolução Francesa teve início quando
de vista do sistema econômico mundial .3
eram ainda bastante recentes os aconte-
cimentos da revolta das colônias inglesas Simultaneamente, porém, vivenciavam-se
britânico – a chamada Revolução Ameri- ra senhora dos mares e uma França pre-
geral, mas em particular à Igreja Católica Cem Anos, que se deve interpretar o pro-
metade do século XVIII as políticas refor- Morto d. José I, afastado Carvalho e Melo
mistas, ditas ilustradas , caracterizadas para o exílio em Pombal, por ordem de d.
pelas ações de governos monárquicos Maria I, iniciou-se um período de ruptura
cujos príncipes e/ou ministros mais influ- e ao mesmo tempo de continuidade em
entes buscaram intervir diretamente nos relação à época pombalina , durante o
diversos setores da sociedade, através de qual, apesar de alguns equívocos suscita-
leis e decretos tendentes a induzir trans- dos pela ideologia da Viradeira, as idéias
formações econômicas e mudanças soci- do reformismo ilustrado predominaram,
ais e culturais tidas então como necessá- ajustando-se aqui e ali às realidades dos
rias ao crescimento econômico, à moder- novos tempos. Com a fundação da Acade-
nização e ao progresso em geral, segun- mia das Ciências de Lisboa, em 1779, e
do o modelo de ideólogos e as exigências o prosseguimento das mudanças
dos erários régios e de novas camadas modernizadoras na Universidade de
sociais em ascensão. Coimbra, abriu-se uma nova era repleta
de perspectivas otimistas para Portugal e
Políticas econômicas mercantilistas, as-
seus domínios. Foi também nessa época
sociadas a práticas reformistas as mais
que as ideias fisiocráticas ganharam for-
variadas, sobretudo em relação à socie-
ça, traduzindo-se em estudos voltados para
dade e à cultura, configuram então um
a investigação e o aproveitamento dos re-
processo de mudanças “pelo alto”, as
cursos naturais do império lusitano. 6
quais ficaram conhecidas desde então
como despotismo esclarecido, ou abso- Trata-se também de uma época marcada
lutismo esclarecido . 4
em Portugal e outras partes da Europa
pela penetração lenta, mas continuada,
Em Portugal, esse reformismo ilustrado
das ideias francesas , ou seja, as ideias
corresponde ao reinado de d. José I, quan-
de liberdade, igualdade e fraternidade,
do seu principal ministro, o secretário de
sempre bastante críticas em relação ao
Estado Sebastião José de Carvalho e Melo,
arbítrio do poder típico dos regimes ab-
o futuro marquês de Pombal, empreendeu a
solutistas, à intolerância religiosa, à cen-
ferro e fogo a tarefa de pôr em prática as
sura intelectual e aos inúmeros privilégi-
múltiplas reformas que deveriam levar o rei-
os sociais ainda existentes.
no luso à modernidade plena, notadamente
no plano mercantil, educacional e cultural, De um ponto de vista cronológico, a pas-
por meio da submissão irrestrita da velha sagem de um século a outro, isto é, do
aristocracia e da afirmação do poder real em século XVIII ao XIX, deveria ser entendi-
face da antiga hegemonia eclesiástica. As- da em função de dois momentos distin-
sim, de 1750 até 1777, o despotismo e o tos: em primeiro lugar, 1789, início da
arbítrio, como diziam seus adversários, mar- Revolução Francesa, ponto de partida da
cou o exercício do poder monárquico. 5
própria ideia de revolução que haveria
inicia, em contraste com uma certa ima- da Idade Contemporânea pelas polêmi-
gem literária de paz, prazer de viver, cas acerca das origens e características
domesticação dos conflitos, e dos sentidos. do século XX, isto é, suas dimensões
históricas.Cada vez mais, a ideia de Épo-
A LGUMAS PERSPECTIVAS ca Contemporânea tende a identificar-se
HISTORIOGRÁFICAS com o próprio século XX.
P
ensamos, em geral, na passagem Vieram, assim, a Era dos extremos : o
de um século a outro como se breve século XX, 1914-1991, escrito por
tratasse de um acontecimento, Eric Hobsbawm,10 e O longo século XX :
inserido no próprio curso da Idade Con- dinheiro, poder e as origens de nosso tem-
temporânea, ou até mesmo como o seu po, de Giovanni Arrighi,11 tendo como li-
verdadeiro início. É certo que de acordo mites a Grande Depressão, de 1873-
com uma tradição hoje já bastante anti- 1896, e a crise econômica mundial da
ga, a Idade Contemporânea começou com década de 1970, ao passo que Hobsbawm
fixara como limites do “breve século XX”, des realizações e os complexos proble-
os anos de 1914 e 1991. mas da herança do século XIX para o
século XX.
As interpretações da Época Contemporâ-
nea variam bastante conforme predomi- Economia e tecnologia
nem as dimensões econômicas ou não,
Temos então, no plano econômico, as
pois – uma vez relativizados os excessos grandes transformações associadas à
do economismo e recolocadas em cena
Segunda Revolução Industrial e aos sig-
em sua real importância – as questões
nificativos avanços realizados pela
políticas e ideológicas, além, é claro, das tecnologia. Ao mesmo tempo, verificam-
reflexões filosóficas e das diversas práti-
se as mudanças que caracterizam a su-
cas culturais, mudam bastante os dese-
peração do capitalismo liberal pelo capi-
nhos desse mesmo mundo contemporâneo talismo oligopolista e imperialista. Fun-
tomado como sinônimo do século XX.
damentais foram, assim, para boa parte
A
eletroquímica, a invenção da seda arti-
pesar de não simpatizarmos ficial, a indústria automobilística, o
muito com a noção de heran- emergir da indústria aeronáutica, isto
ça aplicada aos fenômenos é, as descobertas se multiplicam: “uma
históricos, decidimos, aqui, abrir uma única geração vê nascer o fonógrafo, o
exceção a fim de melhor enumerarmos cinematógrafo, o telégrafo sem fio, o
os principais aspectos que expressam, automóvel, a navegação submarina, a
nos vários níveis da realidade, as gran- aviação”. 13
blicidade, a produção em massa e em tou para não ser aniquilada, por sua
série, a aceleração dos transportes. vez, pela ação do mercado autorre-
gulável. 15
Mudanças e mais mudanças, materiali-
zando de certa maneira a ideologia do Tensões na política externa
progresso, numa nova arrancada da eco-
As interpretações econômicas, ou predo-
nomia capitalista a partir de 1896; um
minantemente econômicas, são insufici-
clima que cerca de expectativas otimis-
entes como instrumentos de compreen-
tas a aproximação do novo século.
são dos grandes problemas com os quais
Apenas para contrastar o nosso próprio o historiador se defronta ao analisar a
discurso, vale mencionar neste passo o passagem do século XIX para o século
texto fundamental de Karl Polany, A gran- XX. É imprescindível retomar conceitos
de transformação : as origens da nossa e noções hoje em desuso a fim de que
época. 14
Segundo ele, o que marca ver- se possa pensar concretamente a totali-
dadeiramente as origens de nossa época dade do mundo capitalista. E inevitável
é a ascensão e queda da economia de não se trazer ao debate a questão do auge
mercado, que garantiu cem anos de paz do imperialismo colonialista, com suas
e prosperidade a partir do mercado disputas coloniais e políticas protecionis-
autorregulável. Entre o final do oitocen- tas, assim como é inescapável de nosso
tos e 1920, diversas forças de ruptura horizonte a existência da paz armada e
vieram romper o equilíbrio das engrena- os constantes conflitos diplomáticos e mi-
gens econômicas, sociais e políticas do- litares localizados regionalmente.
minantes no século XIX.
A primeira coisa a se ter em vista é que
A civilização do século dezenove não no último decênio do oitocentos e no pri-
foi destruída por ataques de bárba- meiro do novecentos agravou-se, sobre-
ros externos ou internos; sua vitali- modo, a competição entre as grandes po-
dade não foi solapada pelas devas- tências capitalistas e imperialistas, sobre-
tações da Primeira Guerra Mundial, tudo porque ao lado da antiga rivalidade
nem pela revolta de um proletariado anglo-francesa entraram em cena as pre-
socialista ou de uma classe média tensões e conflitos da Alemanha, Bélgica,
baixa fascista. Seu fracasso não foi e Itália, bem como o expansionismo ja-
consequência de alguma suposta lei ponês, às custas da China e em conflito
de economia, como a da taxa de lu- aberto com a Rússia, além do imperialis-
cros decrescentes, a do subconsumo mo norte-americano, principalmente a
ou a da superprodução. Ela se de- partir de 1898, quando derrotou a
sintegrou como resultado de um con- Espanha e se apropriou do pouco que res-
junto de causas inteiramente diferen- tava do antigo império colonial hispânico.
da, é bem verdade, por um ou outro aten- gidos hoje em dia pela história cultural,
tado anarquista. a época que elegemos como nosso obje-
ajudaram a fortalecer uma alta burgue- samos aqui nos inúmeros debates, dis-
sia de banqueiros, industriais e comerci- putas e conflitos que então tiveram lugar
antes, com forte presença política e que na esfera do pensamento filosófico e ci-
bem ou mal agia em comum acordo com entífico, das teorias artísticas e literári-
estatal. Ao mesmo tempo, essa expan- novos movimentos sociais, como, por
Eis aqui um item fundamental, mas por Todavia, por mais importantes que te-
demais diversificado. A rigor, se tivermos nham sido, como o foram de fato, es-
presente a diversidade de tópicos abran- sas manifestações filosóficas, culturais
Dentre todos esses conceitos, autênticas tas, cada vez mais intolerantes, radi-
crenças, destacam-se duas que foram de mesmo promover a exploração dos po-
gado do século XIX ao século XX: as ideo- Dos encontros e desencontros entre re-
logias da revolução e do nacionalismo. volução e nacionalismo, o século XX fará
seus próprios usos, não raro contraditó-
Revolução, assim mesmo, no singular,
rios, de sua herança oitocentista.
como tão bem a analisou Koselleck, 19 é
a entidade que afirma a promessa do Chegamos, assim, ao final desta longa
devir anunciado pela Revolução France- exposição na qual tentamos dar algumas
sa, como revolução burguesa, primeiro, respostas, segundo perspectivas bastan-
como revolução proletária, no futuro. te gerais, às interrogações contidas no
Palavra mágica, revolução significou os nosso tema: mudança de épocas, de
movimentos românticos da burguesia li- mundos, passagens históricas decisivas
beral, antes de se tornar sinônima ou do final do século XVIII aos começos do
síntese das esperanças e reivindicações século XX.
N O T A S
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13. Idem, ibidem, p. 7-28, especialmente p. 15.
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19. KOSELLECK, Reinhart. Critérios históricos do conceito moderno de revolução. In: ______.
Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
Contraponto; Editora Puc-Rio, 2006, p. 61-77.
Recebido em 14/2/2009
Aprovado em 28/5/2009