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R V O

Francisco José Calazans Falcon


Professor titular do Programa de Pós-Graduação
da Universo e Professor titular aposentado da UFF.

De um Século a Outro
Uma nova época ou um novo mundo?

O artigo apresenta um panorama das duas The article presents a general view of the
viradas de século – do XVIII para o XIX e two turns of the century, from the 18 th
deste para o XX – como o nascimento de to 19 th , and from this one to the 20 th ,
novos mundos ou épocas. Primeiramente, as the beginning of new epochs. First
o autor analisa o contexto de origem e penetração the author analyses the origins and spread of
das ideias iluministas e de crise do Antigo Regime the Enlightenment, and the crisis of the ancien
na Europa. Na segunda parte, discute o começo régime in Europe. In a second part, he discusses
de um novo mundo, marcado pela crença no the beginning of a new world, noted for the belief
progresso, pelos avanços tecnológicos e pelos in the ideal of progress, for the technological
grandes conflitos armados. improvements, and for the great armed conflicts.
Palavras-chave: história das ideias; Keywords: history of ideas; historiography;
historiografia; história cultural. cultural history.

D
e um século a outro: uma nova síveis de serem depreendidos do tema
época ou um novo mundo? Pas- proposto, dois sentidos ou, melhor, duas
sagem de século, mudança de leituras para as noções de passagem, épo-
época? Nascimento de um novo mundo? ca, e mundo. Qual delas escolher então?
Na realidade, quando começamos a pre- A passagem do século XVIII ao XIX, ou a
parar este trabalho, logo percebemos a do século XIX ao XX? Afinal, em relação
presença de dois sentidos distintos e pos- às duas são pertinentes as indagações

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baseadas nas ideias de época e mundo . de acontecimento histórico do ano de 1808


Concluímos então, preliminarmente, que – a transmigração da Corte portuguesa da
a proposta deste trabalho já continha em metrópole lusitana para as terras brasílicas.
seu bojo uma espécie de duplicidade
A fundação de um Império nos trópicos ,
interpretativa do ponto de vista do ob-
no bojo da transferência da Corte portu-
servador do oitocentos. Origens e conti-
guesa de Lisboa para o Rio de Janeiro,
nuidades/rupturas.
em 1807-1808, processou-se no âmbito
Decidimos, então, pela abordagem da- de um contexto histórico caracterizado
quelas duas passagens, a especificidade pelo impacto da Revolução Francesa so-
histórica de cada uma delas, os diferen- bre a sociedade do Antigo Regime, a partir
tes espaços-tempos que as caracterizam. de 1789, com repercussões as mais va-
Percebemos, também, que não caberia riadas em termos políticos, sociais, eco-
no tempo de que podíamos dispor mais nômicos, culturais e ideológicos.
do que algumas pinceladas bastante am-
Convém não perder de vista que a Revo-
plas a respeito das características mais
lução Francesa eclodiu em pleno mundo
significativas historicamente de cada uma
ocidental (dos historiadores do século XX).
daquelas passagens.
Na realidade, tratava-se de um mundo do-
Comecemos então pela primeira, a mais minado até então, com poucas exceções,
antiga em termos cronológicos, entre o úl- pelas práticas e instituições típicas do
timo quartel do século XVIII e as primei- Ancien Régime: o Estado absolutista, uma
ras décadas do XIX. Afinal, é ao longo des- sociedade de ordens ou estamental, o
se percurso cronológico que se situa o gran- mercantilismo como mistura de ideias e

Máquina a vapor produzida no Arsenal da Marinha


e apresentada na Exposição Nacional de 1861, no Rio de Janeiro

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práticas econômicas, a contestação à pre- pela máquina a vapor. A partir daí afir-
eminência intelectual e pedagógica ecle- mou-se o poderio econômico da Grã-
siástica pelos filósofos e artistas da Ilus- Bretanha, caracterizado pela íntima
tração/Iluminismo, a ascensão mais rápi- integração da exploração e do comércio
da ou mais lenta do terceiro estado, as coloniais com a produção industrial da
disputas pelo domínio sobre a expansão metrópole. Em plano mundial, vivia-se
mercantil e colonial ultramarina. 1 então a realidade, dia a dia mais eviden-
te, da preponderância britânica do ponto
A Revolução Francesa teve início quando
de vista do sistema econômico mundial .3
eram ainda bastante recentes os aconte-
cimentos da revolta das colônias inglesas Simultaneamente, porém, vivenciavam-se

da América do Norte contra o domínio as seculares disputas entre uma Inglater-

britânico – a chamada Revolução Ameri- ra senhora dos mares e uma França pre-

cana – e, por outro lado, quando o ponderante no continente europeu e sem-

Iluminismo, ou seja, a hegemonia das pre pronta a disputar à Inglaterra rotas

ideias ilustradas, associadas ao prestígio marítimas e espaços coloniais. É nesse

dos filósofos, sob o domínio da Razão, cenário de intermináveis disputas anglo-

aprofundava seus ataques às igrejas em francesas, espécie de nova Guerra dos

geral, mas em particular à Igreja Católica Cem Anos, que se deve interpretar o pro-

Romana. A partir da década de 1790, o blema específico de Portugal, inclusive a

racionalismo iluminista já começa a ex- decisão tomada em 1807 de transferir a

perimentar as primeiras ondas hostis do Corte para o Rio de Janeiro.

movimento romântico, isto é, do Roman- Quanto à Europa continental, desde mea-


tismo, sobretudo em terras germânicas, dos do século XVIII vinham acentuando-
mas não só. 2
se as diferenças econômicas, sociais, po-
líticas e culturais entre alguns poucos pa-
Mas o último quartel do setecentos foi
íses ou regiões centrais, como a França,
também o palco de transformações
os Países Baixos austríacos, as Provínci-
cruciais nas explorações agrícolas e nas
as Unidas, a Renânia e a Suíça, relativa-
atividades manufatureiras em algumas
mente mais desenvolvidos que os demais,
poucas regiões europeias, a começar pe-
e uma espécie de Europa periférica, mais
las ilhas britânicas. A chamada revolução
atrasada e amarrada às instituições do
agrícola, baseada no cercamento dos cam-
Ancien Régime : os países ibéricos, os es-
pos e na introdução de novas práticas e
tados italianos, a maior parte dos Esta-
técnicas agrícolas, de viés capitalista,
dos germânicos, as terras das coroas da
abriu caminho a transformações ainda
Áustria e da Hungria, a Polônia e a Rússia.
mais radicais e decisivas na esfera da
produção industrial, com a introdução de Não por simples acaso, foi nos territórios
diversos tipos de máquinas, a começar desses Estados que surgiram na segunda

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metade do século XVIII as políticas refor- Morto d. José I, afastado Carvalho e Melo
mistas, ditas ilustradas , caracterizadas para o exílio em Pombal, por ordem de d.
pelas ações de governos monárquicos Maria I, iniciou-se um período de ruptura
cujos príncipes e/ou ministros mais influ- e ao mesmo tempo de continuidade em
entes buscaram intervir diretamente nos relação à época pombalina , durante o
diversos setores da sociedade, através de qual, apesar de alguns equívocos suscita-
leis e decretos tendentes a induzir trans- dos pela ideologia da Viradeira, as idéias
formações econômicas e mudanças soci- do reformismo ilustrado predominaram,
ais e culturais tidas então como necessá- ajustando-se aqui e ali às realidades dos
rias ao crescimento econômico, à moder- novos tempos. Com a fundação da Acade-
nização e ao progresso em geral, segun- mia das Ciências de Lisboa, em 1779, e
do o modelo de ideólogos e as exigências o prosseguimento das mudanças
dos erários régios e de novas camadas modernizadoras na Universidade de
sociais em ascensão. Coimbra, abriu-se uma nova era repleta
de perspectivas otimistas para Portugal e
Políticas econômicas mercantilistas, as-
seus domínios. Foi também nessa época
sociadas a práticas reformistas as mais
que as ideias fisiocráticas ganharam for-
variadas, sobretudo em relação à socie-
ça, traduzindo-se em estudos voltados para
dade e à cultura, configuram então um
a investigação e o aproveitamento dos re-
processo de mudanças “pelo alto”, as
cursos naturais do império lusitano. 6
quais ficaram conhecidas desde então
como despotismo esclarecido, ou abso- Trata-se também de uma época marcada
lutismo esclarecido . 4
em Portugal e outras partes da Europa
pela penetração lenta, mas continuada,
Em Portugal, esse reformismo ilustrado
das ideias francesas , ou seja, as ideias
corresponde ao reinado de d. José I, quan-
de liberdade, igualdade e fraternidade,
do seu principal ministro, o secretário de
sempre bastante críticas em relação ao
Estado Sebastião José de Carvalho e Melo,
arbítrio do poder típico dos regimes ab-
o futuro marquês de Pombal, empreendeu a
solutistas, à intolerância religiosa, à cen-
ferro e fogo a tarefa de pôr em prática as
sura intelectual e aos inúmeros privilégi-
múltiplas reformas que deveriam levar o rei-
os sociais ainda existentes.
no luso à modernidade plena, notadamente
no plano mercantil, educacional e cultural, De um ponto de vista cronológico, a pas-
por meio da submissão irrestrita da velha sagem de um século a outro, isto é, do
aristocracia e da afirmação do poder real em século XVIII ao XIX, deveria ser entendi-
face da antiga hegemonia eclesiástica. As- da em função de dois momentos distin-
sim, de 1750 até 1777, o despotismo e o tos: em primeiro lugar, 1789, início da
arbítrio, como diziam seus adversários, mar- Revolução Francesa, ponto de partida da
cou o exercício do poder monárquico. 5
própria ideia de revolução que haveria

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de assombrar, em diversos sentidos, in- da história dos últimos anos do século


teresses e mentalidades conservadores, XIX e dos primeiros do século XX. Coi-
ao longo de todo o século XIX e começos sas demais, repetimos, quando sequer
do século XX; em segundo lugar, 1815, temos clareza suficiente acerca das to-
fim das guerras napoleônicas e marco madas de consciência associadas às no-
inicial da Restauração antirrevolu- ções de época e mundo . Pensamos en-
cionária, quase sempre associada ao tão em como tais noções podem assumir
Congresso de Viena e sua tentativa de sentidos ou significações muito diferen-
reconstituir o mapa político-territorial da tes, conforme pretendamos associá-las
antiga Europa absolutista. Entre essas aos próprios agentes históricos seus con-
duas datas, a transferência da Corte por- temporâneos, ou à história da história
tuguesa para o Brasil e o início da elaborada desde então, por historiado-
interiorização da metrópole , ou, se as- res até o momento atual.
sim o preferirmos, da construção de um
Trata-se aqui, portanto, de lidar com aque-
novo Império nos trópicos . 7
las duas perspectivas possíveis em todo
Muitas continuidades e inumeráveis ino- trabalho historiador: a perspectiva dos
vações acompanharam tais mudanças. contemporâneos, ou seja, daqueles que
Delas tem se ocupado constantemente a vivenciaram em suas várias dimensões os
historiografia, sobretudo em ocasiões, próprios acontecimentos a partir dos quais
como a atual, em que se comemora o im- as diversas narrativas historiográficas fo-
portante marco cronológico do ram produzidas, e, em segundo lugar, as
bicentenário da transmigração . Historiá- perspectivas presentes em tais narrativas
las, no entanto, seria escrever mais uma com suas variadas interpretações,
vez a história do Reino Unido e aquela construídas que foram a posteriori pela
outra, bem mais longa, do Brasil Impé- própria escrita da história.
rio. Fiquemos, por ora, tão somente, com
Entre o último decênio do século XIX e o
o breve panorama que procuramos de-
primeiro do século XX, habituamo-nos a
senhar daquela primeira passagem de
acreditar na existência de uma espécie
épocas e de mundos.
de passagem , não somente cronológica,
Pensemos, a partir de agora, na segunda
entre dois grandes séculos, ou dois gran-
das passagens antes mencionadas: a pas-
des mundos. Pensamos então nas gran-
sagem do século XIX para o século XX –
des realizações do oitocentos, seus indis-
mudança de época, emergir de um novo
cutíveis progressos em todos os campos
mundo, e, no caso brasileiro, passagem
do conhecimento humano, nas realiza-
do Império à República.
ções da civilização ocidental, e não po-
Há muitas coisas convenhamos, uma cer- demos deixar de lembrar Les bourgeois
ta demasia de sentidos quando se trata conquérants , de Charles Morazé, 8 ou

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tampouco esquecer o quase profético os acontecimentos de 1789, isto é, com


Essai sur l’accélération de l’histoire , de a Revolução Francesa. Bem, mas essa
Daniel Halévy, 9 entre tantos outros. era uma maneira de ver as coisas tipica-
mente gaulesas, a qual, no entanto, aca-
A lembrança dos inúmeros progressos
bamos por incorporar à nossa própria
associados ao século XIX constitui o in-
visão de mundo. Muito diversa, por exem-
dispensável pano de fundo da mitologia
plo, da visão anglo-saxônica, propensa a
da Belle Époque, espécie de antessala do
prolongar a Modern History até depois da
mundo contemporâneo. No entanto, é aqui
metade do século XX, ficando a
que ronda o perigo: a perspectiva otimis-
Contemporary History para os fatos mais
ta que a Belle Époque de certa maneira
próximos do historiador, enquanto a no-
simboliza, representa o risco bastante real
ção de Current History antecipava de cer-
de dois esquecimentos imperdoáveis: o
to modo a chamada história do tempo
esquecimento da face sombria e trágica
presente dos dias atuais.
dessa mesma Belle Époque , e o esqueci-
mento da própria história que se seguiu – Aliás, há bastante tempo, o historiador
a começar pela Primeira Guerra Mundial. G. Barraclough propôs, a partir de argu-
mentos ponderáveis, o ano de 1870 como
Assim, se estamos à procura de algo real-
sendo o começo da Época Contemporâ-
mente novo, é uma década adiante que
nea. Bem, mas essas são antigas quere-
precisamos ir buscá-lo. Somente então
las, amareladas pelo tempo e quase es-
estaremos em condição de compreender
quecidas hoje em dia.
que a passagem de um século a outro é
importante sim, por tudo que ela parece Na atualidade, a tendência é substituir-

antecipar de ameaçador no século que se mos os debates a respeito dos começos

inicia, em contraste com uma certa ima- da Idade Contemporânea pelas polêmi-

gem literária de paz, prazer de viver, cas acerca das origens e características

domesticação dos conflitos, e dos sentidos. do século XX, isto é, suas dimensões
históricas.Cada vez mais, a ideia de Épo-
A LGUMAS PERSPECTIVAS ca Contemporânea tende a identificar-se
HISTORIOGRÁFICAS com o próprio século XX.

P
ensamos, em geral, na passagem Vieram, assim, a Era dos extremos : o
de um século a outro como se breve século XX, 1914-1991, escrito por
tratasse de um acontecimento, Eric Hobsbawm,10 e O longo século XX :
inserido no próprio curso da Idade Con- dinheiro, poder e as origens de nosso tem-
temporânea, ou até mesmo como o seu po, de Giovanni Arrighi,11 tendo como li-
verdadeiro início. É certo que de acordo mites a Grande Depressão, de 1873-
com uma tradição hoje já bastante anti- 1896, e a crise econômica mundial da
ga, a Idade Contemporânea começou com década de 1970, ao passo que Hobsbawm

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fixara como limites do “breve século XX”, des realizações e os complexos proble-
os anos de 1914 e 1991. mas da herança do século XIX para o
século XX.
As interpretações da Época Contemporâ-
nea variam bastante conforme predomi- Economia e tecnologia
nem as dimensões econômicas ou não,
Temos então, no plano econômico, as
pois – uma vez relativizados os excessos grandes transformações associadas à
do economismo e recolocadas em cena
Segunda Revolução Industrial e aos sig-
em sua real importância – as questões
nificativos avanços realizados pela
políticas e ideológicas, além, é claro, das tecnologia. Ao mesmo tempo, verificam-
reflexões filosóficas e das diversas práti-
se as mudanças que caracterizam a su-
cas culturais, mudam bastante os dese-
peração do capitalismo liberal pelo capi-
nhos desse mesmo mundo contemporâneo talismo oligopolista e imperialista. Fun-
tomado como sinônimo do século XX.
damentais foram, assim, para boa parte

Na realidade, a maioria dos grandes estu- dessas transformações, os efeitos da

dos históricos sobre a Época Contempo- chamada Grande Depressão do século

rânea baseia-se em questões estruturais XIX (1873-1896) e os avanços tecnoló-

e conjunturais de natureza essencialmen- gicos cada vez mais rápidos resultantes

te econômica, analisadas a partir de pres- da associação intensa entre as ciências

supostos sistêmicos e tendo como horizon- e suas aplicações práticas.

te necessário o processo de globalização. Louis Pomméry, 12 ao resumir as princi-


Trata-se de questões importantes, certa- pais marcas características dos gigan-
mente, talvez até mesmo fundamentais, tescos avanços e das mais importantes
conforme o ponto de vista adotado, mas transformações que distinguem 1900 de
que para nós, sobretudo a partir das di- 1800, destaca o progresso técnico: uma
mensões bem mais modestas deste nos- segunda revolução industrial, a ascen-
so trabalho, padecem de um duplo incon- são da eletricidade com relação ao va-
veniente: são excessivas e unilaterais. por, a entrada em cena do petróleo, a
importância cada vez maior das indús-
AS MÚLTIPLAS HERANÇAS
trias químicas, a eletrometalurgia, a
DO SÉCULO XIX

A
eletroquímica, a invenção da seda arti-
pesar de não simpatizarmos ficial, a indústria automobilística, o
muito com a noção de heran- emergir da indústria aeronáutica, isto
ça aplicada aos fenômenos é, as descobertas se multiplicam: “uma
históricos, decidimos, aqui, abrir uma única geração vê nascer o fonógrafo, o
exceção a fim de melhor enumerarmos cinematógrafo, o telégrafo sem fio, o
os principais aspectos que expressam, automóvel, a navegação submarina, a
nos vários níveis da realidade, as gran- aviação”. 13

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Acrescente-se, ainda, a expansão da pu- tes: as medidas que a sociedade ado-

blicidade, a produção em massa e em tou para não ser aniquilada, por sua
série, a aceleração dos transportes. vez, pela ação do mercado autorre-

gulável. 15
Mudanças e mais mudanças, materiali-
zando de certa maneira a ideologia do Tensões na política externa
progresso, numa nova arrancada da eco-
As interpretações econômicas, ou predo-
nomia capitalista a partir de 1896; um
minantemente econômicas, são insufici-
clima que cerca de expectativas otimis-
entes como instrumentos de compreen-
tas a aproximação do novo século.
são dos grandes problemas com os quais
Apenas para contrastar o nosso próprio o historiador se defronta ao analisar a
discurso, vale mencionar neste passo o passagem do século XIX para o século
texto fundamental de Karl Polany, A gran- XX. É imprescindível retomar conceitos
de transformação : as origens da nossa e noções hoje em desuso a fim de que
época. 14
Segundo ele, o que marca ver- se possa pensar concretamente a totali-
dadeiramente as origens de nossa época dade do mundo capitalista. E inevitável
é a ascensão e queda da economia de não se trazer ao debate a questão do auge
mercado, que garantiu cem anos de paz do imperialismo colonialista, com suas
e prosperidade a partir do mercado disputas coloniais e políticas protecionis-
autorregulável. Entre o final do oitocen- tas, assim como é inescapável de nosso
tos e 1920, diversas forças de ruptura horizonte a existência da paz armada e
vieram romper o equilíbrio das engrena- os constantes conflitos diplomáticos e mi-
gens econômicas, sociais e políticas do- litares localizados regionalmente.
minantes no século XIX.
A primeira coisa a se ter em vista é que
A civilização do século dezenove não no último decênio do oitocentos e no pri-
foi destruída por ataques de bárba- meiro do novecentos agravou-se, sobre-
ros externos ou internos; sua vitali- modo, a competição entre as grandes po-
dade não foi solapada pelas devas- tências capitalistas e imperialistas, sobre-
tações da Primeira Guerra Mundial, tudo porque ao lado da antiga rivalidade
nem pela revolta de um proletariado anglo-francesa entraram em cena as pre-
socialista ou de uma classe média tensões e conflitos da Alemanha, Bélgica,
baixa fascista. Seu fracasso não foi e Itália, bem como o expansionismo ja-
consequência de alguma suposta lei ponês, às custas da China e em conflito
de economia, como a da taxa de lu- aberto com a Rússia, além do imperialis-
cros decrescentes, a do subconsumo mo norte-americano, principalmente a
ou a da superprodução. Ela se de- partir de 1898, quando derrotou a
sintegrou como resultado de um con- Espanha e se apropriou do pouco que res-
junto de causas inteiramente diferen- tava do antigo império colonial hispânico.

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Acrescente-se, ainda, que um sistema de Questões ideológicas e


alianças entre as grandes potências cri- movimentos sociais
ara um complexo de obrigações políti-
Seja como for, no entanto, é comum
cas e militares que conferiam ao pano-
pensar-se na Belle Époque como exem-
rama internacional um clima de paz ar-
plo de uma época particularmente feliz
mada , no contexto da qual era cada vez
da história do mundo ocidental. Quando
mais intensa a concorrência armamen-
mais não seja por contraste com tudo
tista. Um sistema diplomático dos mais
aquilo que se lhe seguiu. Todavia, essa
intrincados caracterizava a busca do
visão dourada dos primeiros anos do
equilíbrio de poder entre as grandes
século passado nada mais é do que a
potências, na tentativa de amenizar cho-
visão retrospectiva construída por aque-
ques resultantes das rivalidades
les que podiam então usufruir um padrão
extraeuropéias. Estavam em jogo consi-
de vida elevado. Mas, para acreditar
derações de prestígio nacional, disputas
nessa visão é necessário esquecer ou
comerciais, rivalidades coloniais. As rá-
fazer de conta que não existiam duas
pidas inovações tecnológicas faziam par-
questões pelo menos: primeira, as divi-
te também desse jogo de poder, pois in-
sões ideológicas e suas tendências polí-
fluenciavam a modernização das forças
ticas; segunda, os conflitos sociais em
armadas nacionais pari passu com a ge-
termos de movimentos, reivindicações e
neralização do serviço militar obrigató-
injustiças de toda ordem.
rio, princípio básico da ideologia da na-
ção em armas . Meios de transporte mais As instituições políticas de então, base-
rápidos, armamentos mais eficazes, ti- adas no sistema parlamentar, pressupu-
nham como questão-chave os planos de nham um bipartidarismo como forma do-
mobilização de cada país, peças funda- minante e, segundo, a existência de mi-
mentais na estrutura e funcionamento norias descontentes, radicais, à direita
das principais alianças. Para muitos po- e à esquerda do espectro político, como
líticos, intelectuais e mesmo uma parte grupos ativos, loquazes, mas incapazes
dos setores militares, o equilíbrio de de desafiar eleitoralmente a maioria li-
forças entre os sistemas de alianças era beral e os sociaisdemocratas. Os efei-
a melhor garantia de que um conflito tos da universalização do direito de voto
armado entre as principais potências era (masculino) e da massificação social
algo impensável na prática. Não haveria crescente só viriam a ser percebidos de
guerra, dizia-se, mas, se ela vier a ex- fato após o primeiro conflito mundial. Até
plodir, será de curta duração, pois ne- 1914, acreditava-se muito na realidade
nhum país dispõe de recursos humanos, e importância de uma vida política civili-
materiais e financeiros para sustentá-la zada, bem comportada, fiel às regras
por mais de uma semana. do jogo democrático, apenas perturba-

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da, é bem verdade, por um ou outro aten- gidos hoje em dia pela história cultural,
tado anarquista. a época que elegemos como nosso obje-

Os progressos da industrialização leva- to de estudo é extremamente rica em ter-

da a cabo pelo capitalismo monopolista mos de ideias e práticas culturais. Pen-

ajudaram a fortalecer uma alta burgue- samos aqui nos inúmeros debates, dis-

sia de banqueiros, industriais e comerci- putas e conflitos que então tiveram lugar

antes, com forte presença política e que na esfera do pensamento filosófico e ci-

bem ou mal agia em comum acordo com entífico, das teorias artísticas e literári-

os quadros remanescentes da antiga aris- as e suas múltiplas manifestações em

tocracia fundiária ou ligada ao aparelho todos os campos da vida intelectual, nos

estatal. Ao mesmo tempo, essa expan- novos movimentos sociais, como, por

são capitalista, acompanhada de um for- exemplo, o feminismo, no cotidiano da

te crescimento demográfico, multiplicou existência social, nas novas formas e lu-

o proletariado urbano, aumentando o gares de convívio social, na importância

número de sindicalizados, apesar das di- dos espaços públicos etc.

ferenças ideológicas e político-partidári- Na história das ideias, por exemplo, vá-


as. Divisões entre os socialistas, cisões rias são as correntes que se opõem ao
entre os anarquistas, esforços em prol positivismo cientificista numa espécie de
de uma presença maior das igrejas no revolta antipositivista , como a denomi-
terreno da questão social, eram focos de nou Hughes. 1 6 Numa outra ordem de
conflitos por vezes violentos. Como ideias, mais em termos de história cul-
consequência de todos esses elementos tural, não se pode deixar de lado O sé-
socioeconômicos, a realidade da luta de culo de Schnitzler : a formação da cultu-
classes, as greves numerosas, as práti- ra da classe média, 1815-1914, 1 7 as-
cas repressivas. sim como a monumental série A expe-

Tais aspectos evidenciam a complexi- riência burguesa : da rainha Vitória a

dade da vida política e social em plena Freud. 18

Belle Époque , seus inúmeros conflitos No âmbito da história da arte, encontramos


e tensões, as muitas ameaças que en- as primeiras manifestações vanguardistas,
tão rondavam seu aparente equilíbrio, como o futurismo, e os primeiros acordes
o custo real, sobretudo em termos so- modernistas na música. Embora seu desen-
ciais, de uma ideologia francamente volvimento mais amplo tenha ocorrido a
utópica. partir de 1920, convém não esquecer suas
Temas para uma história cultural origens anteriores a 1914.

Eis aqui um item fundamental, mas por Todavia, por mais importantes que te-
demais diversificado. A rigor, se tivermos nham sido, como o foram de fato, es-
presente a diversidade de tópicos abran- sas manifestações filosóficas, culturais

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e artísticas são algumas das ideologi- proletárias anticapitalistas entendidas


as político-sociais herdadas do século como o próprio sentido do processo his-
XIX que irão literalmente explodir o tórico. Assim como havia tirado o sono a
mundo tal como este fora construído Metternich, a revolução perturba a
no oitocentos. tranquilidade da Belle Époque .

Papel decisivo das ideologias O nacionalismo, em suas diversas ma-


nifestações, traduz os impasses da
Referimo-nos, neste passo, às ideologias
geopolítica do Ancien Régime . As na-
dominantes ao longo do século XIX e que
ções, quer as consideremos ou não
foram legadas por este último ao século
como comunidades imaginárias , à ma-
XX: trata-se de ideias ou conceitos verda-
neira de Benedict Anderson, se afirmam
deiramente fundamentais, expressos qua-
ou se constroem como entidades histó-
se sempre através de alguns pares bas-
ricas, sobretudo na primeira parte do
tante conhecidos, como, por exemplo, as
século XIX. Logo, no entanto, um novo
questões inerentes à liberdade e à igual-
tipo de nacionalismo começa a se de-
dade, ou aos conflitos entre tradição e re-
senvolver a partir mais ou menos de
volução, além de tantos ismos típicos des-
1870 – o nacionalismo expansionista,
sa época: nacionalismo, evolucionismo,
imperialista, em estreita associação
racismo, modernismo, vanguardismo,
com ideologias apoiadas em conceitos
anarquismo, comunismo, socialismo, ape-
como civilização, cultura, raça, missão
nas para citar alguns deles.
e progresso. As ideologias nacionalis-

Dentre todos esses conceitos, autênticas tas, cada vez mais intolerantes, radi-

ideologias com seus próprios ideais e cais e agressivas, parecem justificar ou

crenças, destacam-se duas que foram de mesmo promover a exploração dos po-

fato o mais importante e mais trágico le- vos colonizados.

gado do século XIX ao século XX: as ideo- Dos encontros e desencontros entre re-
logias da revolução e do nacionalismo. volução e nacionalismo, o século XX fará
seus próprios usos, não raro contraditó-
Revolução, assim mesmo, no singular,
rios, de sua herança oitocentista.
como tão bem a analisou Koselleck, 19 é
a entidade que afirma a promessa do Chegamos, assim, ao final desta longa
devir anunciado pela Revolução France- exposição na qual tentamos dar algumas
sa, como revolução burguesa, primeiro, respostas, segundo perspectivas bastan-
como revolução proletária, no futuro. te gerais, às interrogações contidas no
Palavra mágica, revolução significou os nosso tema: mudança de épocas, de
movimentos românticos da burguesia li- mundos, passagens históricas decisivas
beral, antes de se tornar sinônima ou do final do século XVIII aos começos do
síntese das esperanças e reivindicações século XX.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 22, n o 1, p. 7-18, jan/jun 2009 - pág. 17


A C E

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Recebido em 14/2/2009
Aprovado em 28/5/2009

pág. 18, jan/jun 2009

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