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O verdadeiro karma do Ocidente

Chiara Valerio entrevista Giorgio Agamben.


Se nesta vida respondemos por nossas ações através um sistema de leis e na outra por elas
respondemos, segundo o budismo, através de reencarnações sucessivas, o motivo está – escreve
Giorgio Agamben no ensaio Karman – no fato de que moral religiosa, direito e ética fundam-se
sobre o princípio de que cada ação é ligada às suas consequências e a tal princípio

Há alguns anos Agamben dividiu o mundo em dois grupos. Os seres viventes e o conjunto de
instituições, saberes e práticas que controlam e orientam os gestos e os pensamentos dos seres
viventes: os dispositivos.

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Professor, o direito – cujas portas, se fosse um edifício, seriam a causa e a culpa – é um


dispositivo do qual é preciso subtrair-se?

Agamben: O direito é uma parte demasiado essencial de nossa cultura para que seja possível
simplesmente dele se subtrair. Também é verdade, no entanto, que o nascimento do cristianismo
coincide com uma crítica implacável da Lei. É difícil imaginar uma objeção mais radical do que a
contida nas afirmações de Paulo, para quem a sem lei não existiria pecado e o messias é o fim e o
cumprimento (o telos) da lei. Todavia, como você sabe, a Igreja de modo paciente reconstruiu o
edifício da lei que o cristianismo primitivo pretendia ter colocado em questão, mesmo se
pontualmente fenômenos como o franciscanismo tenham por vezes reivindicado a possibilidade
de uma vida fora do direito. Penso que uma sociedade vivível possa resultar apenas da dialética
de dois princípios opostos e, de algum modo, coordenados: o direito e a anomia, um polo
institucional e um não institucional ou anárquico – ou, para usar suas expressões, os seres
viventes e os dispositivos históricos. Isso é evidente na linguagem: uma língua viva resulta da
relação harmônica entre espontaneidade (o "falar materno” de Dante) e regra (a língua
"gramática" de Dante). Parece-me que hoje essa dialética esteja por toda parte – tanto na língua
como nas relações sociais – distorcida e esfacelada.

O senhor escreve “a vontade age como um dispositivo cujo escopo é o de tornar controlável o
que o homem pode fazer". Também a vontade é um dispositivo do qual escapar?

Agamben: No livro procurei justamente mostrar que o conceito de vontade (quase desconhecido
no mundo antigo) é o dispositivo por meio do qual a teologia cristã pretendeu fundar a ideia de
uma ação livre e responsável e, portanto, imputável a um sujeito: é o "livre arbítrio" que define
tanto a ação humana quanto a divina (o Deus cristão não age por necessidade como o deus de
Aristóteles, mas por arbitrium voluntatis). A vontade é o mistério insondável que está na base do
conceito de ação legalmente sancionável (o crimen-karman) sem o qual a ética e a política
moderna se arruinariam. Se o homem antigo é um homem que pode, o homem moderno é, ao
contrário, um homem que quer. Em meu livro a crítica do primado do conceito de ação procede
assim concomitantemente a uma crítica do conceito de vontade. Sempre me espantou que de
Aristóteles a Hannah Arendt a ideia de ação sempre tenha permanecido de modo imutável no
centro da tradição do ocidente. Não sei se consegui, mas, de todo modo, tentei mover para outra
parte o lugar da ética e da política.

Permanecemos na evolução do “o homem que pode” ao “o homem que quer”. Marina


Cvetaeva observava que “Não posso” é a superação de todos os meus "não quero", o corretivo
de todos os meus quereres. Que relação deveria haver entre vontade e potência hoje?

Agamben: Respondo com as palavras de uma outra grande poeta russa. Anna Akmatova conta
que, nos anos das perseguições, enquanto por meses ficava na fila diante da prisão em
Leningrado, onde estava preso seu filho, uma mulher um dia a reconheceu e lhe perguntou:
“pode dizer isto?". A poeta se calou por um instante e, então, sem saber como e porque, sentiu
aflorar nos lábios a resposta: “sim, eu posso.” O que pretendia dizer? Por certo, não que tinha um
tão grande talento ou uma tão grande maestria sobre a língua a ponto de poder dizer tudo o que
queria dizer. Aquele “eu posso” não se referia a nenhuma certeza ou habilidade e, todavia,
empenhava-a e colocava-a integralmente em jogo. É algo do gênero que tinha em mente Spinoza
quando definiu a maior alegria acessível ao homem como a contemplação do que se pode fazer.
Por isso a transformação cristã e moderna da potência em vontade me parece deletéria.

Landau, em “A física para todos", observa: “Se de repente o peso de papel dá um salto, vocês
pensariam estar vendo coisas. Se isso se repete, vocês se colocariam imediatamente a
procurar a causa que tira esse corpo do estado de repouso. Por isso é natural considerar
racional o ponto de vista segundo o qual os corpos em repouso não se movem sem a
intervenção de uma força". É racional pensar que os corpos humanos não se movam, não
realizam ações, sem a intervenção de um fim?

Agamben: No livro, a crítica do fim é inseparável daquela feita à ação. Um dos pressupostos que
estamos habituados a considerar como certo é que toda ação seja dirigida a um fim e que isso
seja o bem a que o agente, a cada vez, necessariamente se propõe. Desse modo, uma vez que o
fim é concebido como algo transcendente ou até mesmo externo, o bem é separado do homem.
Como me parece mais convincente, a ideia epicurista segundo a qual nenhum órgão do corpo
humano fora criado com vistas a um fim e que toda coisa que nasce gera no uso seu bem! Por
meio do gesticular a mão encontra seu prazer e seu uso, por meio do olhar o olho se enamora da
visão e as pernas, dobrando suas articulações, inventam a caminhada. De resto, é o que vemos
acontecer nas crianças e é o que nos sugerem as artes como a dança, que não têm outro fim
senão a pura exibição de um gesto, daquilo que um corpo pode fazer. Por isso procurei substituir
o paradigma da ação que se dirige a um fim por aquele do gesto que se subtrai a toda finalidade.

Um filósofo disse que definir os termos é o momento poético do pensamento. Como o senhor
definiria o fim?

Agamben: Dou uma resposta ao mesmo tempo estoica e zen: o fim é o que se atinge apenas com
a condição de jamais se determinar um fim.

Se “age contra a lei quem faz aquilo que a lei proíbe” e se “não há pena sem culpa", o que
nasceu primeiro: a culpa, a lei ou a sanção?
Agamben: Como Paulo havia compreendido ("a lei veio para que a culpa abundasse”), todo jurista
inteligente sabe que o princípio segundo o qual "não há pena sem culpa" é, na realidade,
invertido naquele segundo o qual "não há culpa sem pena”. "Não há pena sem culpa” significa que
a pena pode ser infligida apenas como consequência de certo ato, mas a culpa existe somente em
virtude da pena que a sanciona. A sanção não é acessória à lei: a lei consiste essencialmente na
sanção.

Em “O Nome da Rosa” Eco conta que o volume da comédia de Aristóteles jamais foi
encontrado porque tratava do riso, e o riso cria desordem. Em Karman o senhor (como já
Guilherme de Baskerville) deduz isso a partir do volume a respeito a tragédia e mesmo
levanta a hipótese de que Aristóteles o teria escrito para dirigir uma crítica a Platão. Qual?

Agamben: Na Grécia o conceito de uma ação culpada é elaborado pela primeira vez por meio de
uma reflexão sobre o herói trágico. É o que faz Aristóteles na Poética quando escreve que a
felicidade consiste na ação e que na tragédia os homens não agem para imitar os caráteres, mas
assumem livremente seu personagem através das ações. Mesmo se Aristóteles não tenha
completado seu tratamento da comédia, podemos deduzir que o personagem cômico age, ao
contrário, para imitar seu caráter e que, por isso, suas ações jamais podem a ele ser imputadas
sem uma culpa. Platão, que tinha sob o travesseiro não as tragédias, mas os mimos de Sófron, faz
com que seu herói antitrágico, Sócrates, diga que “ninguém faz o mal voluntariamente”, o que
implica a impossibilidade da tragédia.

A filosofia se interessa antes de tudo pelo ser, mas o ser mostra-se de pronto com suas
“qualidades”: possibilidade, contingência e necessidade. O senhor observa que é necessário
refletir sobre a utilização que a filosofia faz dos verbos modais: "posso”, “quero”, “devo”.
Vou expor em algumas palavras um tanto arriscadas. A língua da política, aderindo (às vezes
mesmo nos corpos) à televisiva, progressivamente aboliu as subordinadas, as “qualidades”
das frases: modais, temporais, causais. Sem essas “qualidades” somos obrigados a um falar (e
a um agir) privado de consequências. Existe um modo de manter a complexidade da
linguagem e não permanecer fechado no presente do indicativo (e televisivo) do estar no
mundo?

Agamben: Se sua pergunta é de ordem poética-literária, então respondo com os poemas tardios
de Hölderlin, nos quais os nexos sintáticos são abolidos e suspensos, e no verso parece que
sobrevivem apenas nomes em seu isolamento (por vezes, até mesmo uma só partícula: aber, que
significa "mas”). Há na poesia uma tradição, de Arnaut Daniel a Mallarmé, que tende
obstinadamente não à frase, mas ao nome – aliás, talvez, em última análise, toda poesia é apenas
uma tensão em direção ao nome, o qual, por definição, é subtraído a toda articulação modal. Se
sua pergunta é de ordem ético-política, responderia então que se trata de desfazer o nexo
perverso entre os três verbos modais que Kant colocou como fundamento de sua ética: “se deve
poder querer”. Essa frase monstruosa é o condensado paródico dos dispositivos que meu livro
procura desativar.

Na orelha do livro se lê "Giorgio Agamben ensinou Filosofia teorética... foi visiting


professor...”. Se eu perguntasse sobre dados biográficos no tempo presente?
Agamben: Responderia ao modo de Spinoza: “contempla o que pode e o que não pode fazer".
Sempre amei o mote maravilhoso de van Eyck: “Als ich kann”, “como posso”. Conhecer os
próprios limites significa conhecer a medida da própria potência e da própria impotência.
Original italiano disponível
em:http://www.repubblica.it/cultura/2017/08/27/news/giorgio_agamben_il_vero_karma_dell_o
ccidente_-173991710/ (trad.: Vinícius N. Honesko)
Imagem: Bhagavata Purana - Manuscrito - 1520-40. Museu Rietberg, Zurique.

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