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Karl Marx SOBRE O SUICIDIO Tradugio Rubens Enderle Francisco Fontanella Inclui ensaio de Michael Lowy, “Um Marx insélito” Tradusso Maria Orlanda Pinassi Daniela finkings SOBRE O SUICIDIO* ‘A critica francesa da sociedade tem, em parte, pelo menos a grande vantagem de ter apontado as con- tradicdes e os contra-sensos da vida moderna, nao apenas nas relagdes entre classes especificas, mas também em todos os circulos e configuragdes da hodierna convivéncia e, sobretudo, por suas descri- ces dotadas de um calor vital imediato, de uma visao rica, de uma acuidade mundana e de uma ousada originalidade, que se procurariam em vao em outras nagées. Comparem-se, por exemplo, as exposicdes criticas de Owen e de Fourier, quando estas se ocupam do intercambio vivo entre os ho- mens, para se ter uma idéia dessa supremacia dos franceses| Nao é 0 caso apenas dos escritores pro- priamente “socialistas” da Franca, de quem se es- pera uma exposicao critica das condicoes sociais; 6 o.caso dos escritores de todas as esferas da literatura, sobretudo dos géneros do romance e das memérias. Em alguns trechos sobre 0 “suicidio”, extraidos das “mémoires tirés des archives de la police etc, par Jacques Peuchet”, darei um exemplo dessa critica francesa, que ao mesmo tempo pode Capa do Gesellschafsspiege! (ano M ‘ndimero VII Elberelt, janeiro de 1846) ‘onde foi originalmente impresso 0 texto cde Mars, “Peuchet: sobre 0 suicidio* 0 tuto original do ensaio de Marx é Peuchet: vom Selbstmord [Peuchet: sobre o suicidio} 21 ——— — Karl Mare nos mostrar até que pontga pretensio dos cidadaos filantropos esté fundamentada na idéia de que se trata apenas de dar aos proletarios um pouco de pio e de educagio, como se somente os trabalha- dores definhassem sob as atuais condicées sociais, 20 passo que, para o restante da sociedade, o mun- do tal como existe fosse o melhor dos mundos} Em Jacques Peuchet, como também em mui- tos dos velhos militantes franceses ~ hoje quase todos mortos ~ que passaram por varias revolu- ces desde 1789, por varias desilusées, momen- tos de entusiasmo, constituigdes, governantes, derrotas ¢ vit6rias, a critica das relagdes de pro priedade, das relacdes familiares e das demais relaces privadas — em uma palavra, a critica da vide priv surge como o necessario resultado de suas experiéncias politicas. Jacques Peuchet (nascido em 1760) passou das belas-letras para a medicina, da medicina para a jurisprudéncia, da jurisprudéncia para a admi- nistragao e para a especialidade policial. Antes do irromper da Revolucao Francesa, trabalhow com o abbé Morellet em um dictionnaire du commerce, do qual foi publicado apenas o pros- pecto, e dedicou-se preferencialmente @ econo- mia politica e & administragao. Apenas por um curto periodo Peuchet foi partidério da Revolu- Jo Francesa; muito rapidamente passou para 0 partido monarquista, ocupou por um bom tem- poa direcao da Gazette de France! e, mais tarde, recebeu das maos de Mallet-du-Pan a redagio do famigerado jornal monarquista Merctirio®. Ain- da assim, atravessou de forma muito astuta 0 perfodo da Revolugao, ora sendo perseguido, ora 22 Sobre o suicidio trabalhando nos departamentos de administracao ‘ede policia, Com a Géographie commercante, por cle publicada em 1800, 5v,,in-félio, Peuchet cha- mot para si a atengdo de Bonaparte, o primeiro- consul, que o nomeou membre du Conseil de ‘commerce et des arts. Mais tarde, sob o ministé- rio de Francois von Neufchateau, assumiu um cargo administrative mais alto. Em 1814, a Res- tauracio fé-lo censor. Durante os Cem Dias!, ele se aposentou. Com a restauracio dos Bourbon, conquistow 0 posto de arguivista da Prefeitura de Policia de Paris, que exerceu até 1827, O nome Peuchet aparecia freqiientemente ~e, como escri- tor, nao sem influéncia ~ nos discursos dos ora- dores da Constituinte, da Convengao, dos Tribu- nais, como também das Camaras dos Deputados sob a Restauragio®. Entre suas muitas obras, a maior parte sobre economia, esta, além da ja ci- tada Geografia do Comércio, sua Estatistica da Fran- a (1807), a mais conhecida. Peuchet escreveu ja idoso suas memérias, cujo material ele havia reunido em parte dos arquivos da Policia de Paris e de sua longa experiéncia prati- cana policia ena administragao, e s6 permitiu que elas viessem a piblico aps sua morte, de modo que ninguém pudesse inclui-lo entre os “precipitados” socialistas e comunistas, que, como é sabido, care- cem completamente da profundidade admiravel e clos conhecimentos abarcantes da nata de nossos escritores, burocratas ¢ cidadaos militantes.") ‘Ougamos nosso arquivista da Prefeitura de Poli- cia de Paris a respeito do suicidio! ‘O ntimero anual dos suicidios, aquele que entre nés é tido como uma média normale periédica, deve 23 Karl Marx serconsiderado um sintoma da organizagao deficien- te® de nossa sociedade; pois, na época da paralisacao, ce das crises da indhistria, em temporadas de encare ccimento dos meios de vida e de invernos rigoroses, esse sintoma € sempre mais evidente e assuime tim cardter epidémico. A prostituigao € 0 latrocinio au mentai séria seja a maior causa do suicidio, encontramo-lo entio, na mesma proporgio. Embora a mi- ‘em todas as classes, tanto entre os ricas ociosos como entre os artistas © 0s politicos. A diversidade das suas ‘ausas parece escapar & censura uniforme einsensivel dos moralistas, As doengas debilitantes, contra as quais a atual iéncia é inécuae insuficiente, as falsas amizades, os amores traidos, os acessos de desdnimo, os sofri- mentos familiares, as rivalidades sufocantes, 0 des- gosto de uma vida monétona, um entusiasmo {rus trado e reprimido sio muito seguramente razes de suicidtio para pessoas de um meio social mais abas- tad, e até o proprio amora vida, essa forga enéngica que impulsiona a personalidade, ¢ freqiientemente capaz de levar uma pessoa a livrar-se de uma exis- téncia detestavel. Madame de Stal, cujo maior mérito esté em ter estilizado lugares-comuns de forma brilhante, ten- tou demonstrar que 0 suicidio é uma agao antina- tural e que naose deve consideré-lo um ato de cora- gem; sobretudo, ela sustentouta idea de que é mais digno lutar contra o desespero do que a ele sucum bir, Argumentos como esses afetam muito pouco ‘as almas a quem a infelicidade domina. Se sao reli Sobre 0 sui. iosas, as pessoas especulam sobre um mundo relhor; se, a0 contrério, nao créem em nacia, entdo tascam a trangiilidade do Nada. As “saidas” filo~ coficas néo tém, a seus olhos, nenhum valor € S30 dim débil lenitivo contra o sofrimente(Antes de tudo, ‘eam absurdo considerar antinatural um compor- tamento que se consuma com tanta freqtiéncia; © suicidio nao 6, de modo algum, antinatural, pois diariamente somos suas testemunhas. Oque é con- tra a natureza no acontece,)Ao contrario, esta na suatureza de nossa sociedade gerar muitos suicidios, 20 ppasso que* os tértaros rio se suicidam. As soceda- ites nfo goramfodas,portanto, 05 mesmos produtos; € 0 {que precisamos ter em mente para trabalharmos na reforma de nossa sociedade e permitir-Ihe que se eleve a um patamar mais alto“. No que diz, respei- to A coragem, se se considera que ela existe naquele que desafia a morte a luz do dia no campo de bata Iha, estando sob 0 dominio de todas as emogdes, nada prova que ela necessariamente falte quando, se tira a propria vida e em meio as trevas. Nao é com insultos aos mortos que se enfrenta uma questo tio controversa.*** Sogberbensse “do destino do gene humano “Paras seo motivo que determina oindividuoa se mata é Jeviano ou ndo, nose pode pretender medira sensibilidade dos homens tsando-s uma nica emesma media; ndose pote con ‘lu pela ipusldade das sensages,tampouco ela igualdade dos cre dos temperaments; o mesmo acontecimento prov ‘hum sentiment imperceptvelem alguns uma dor violentaem wuts, A fleldade ea infeliidade tm tantas manera de sere les manfestar quanta so as dilerengas entre os indviducse ‘os esprit, Um poeta disse: que faz ta felicidade & minha aich (0 prémio de tua virtude ¢ minha pun. Karl Marx Tudo 0 que se disse contra 0 suicidio gira em torno do mesmo circulo de idéias. Aele si contra- postos os designios da Providéncia, mas a propria existéncia do suicidio é um notério protesto con- tra esses designios ininteligiveist, Falam-nos de nossos deveres para com a sociedade, sem que, no entanto, nossos direitos em relagio a essa so- ciedade sejam esclarecidos ¢ efetivados, e termi- nase por exaltar a faganha mil vezes maior de dominar a dor ao invés de sucumbir a ela, uma facanha tio liigubre quanto a perspectiva que ela inaugura. Em poucas palavras, faz-se do suicidio ‘um ato de covardia, um crime contra as leis, a sociedade e a honta. Como se explica que, apesar de tantos andte- mas, 0 homem se mate? E que o sangue nao corre do mesmo modo nas veias de gente desesperada ce nas veias dos seres frios, que se dao o lazer de proferir todo esse palavrério estéril.“¥O Homem parece um mistério para o Homem; sabe-se apenas censuré-lo, mas nio se 0 conhece Quando se véem a forma leviana com que as instituigées, sob cujo, dominio a Europa vive, dispoem do sangue e da vida dos povos, a forma como distribuem a justiga civilizada com um rico material de prises, de cas- *Pechet escreve: “Optem-se 20 sucidio os designios da Prov nc, sem que esses designiosnos sgjam expostos de forma bem ‘lara, uma vez que aqueles que se matam dees duvidam. Iso pode se dar por cpa de quem nlotorna inteligiveisesatsfatérios 's termos daqueles designios. O diamante do Evangelho perma- ‘necou encoberto pela argila” *Talvez nio se tenham ainda estadado todas as causas do suck dio: no foram sulicientementeexaninadas assubversbes da alma nesses momentos teriveisequais germes venenosos, causadores de dores tio profundas, podem ter se desenvolvido insensivel- mente no carter, 26 Sobre o suicidio tigos e de instrumentos de suplicio para a sangao de seus designios incertos; quando se vé a quanti- dade incrivel de classes que, por todos os lados, go abandonadas na miséria, e 08 parias sociais, que s2o golpeados com um desprezo brutal e pre- ventivo, talvez para dispensar-se do incémodo de ter que arrancé-los de sua sujeira; quando se vé ‘tudo isso, entao nao se entende com que direito se poderia exigir do individuo que ele preserve em si ‘mesmo uma existéncia que é espezinhada por nos- sos habitos mais corriqueiros, nossos preconceitos, nossas leis e nossos costumes em geral ( *Acteditou-se que se poderiam conter os suici- dios por meio de penalidades injuriosas e por uma forma de infamia, pela qual a meméria do culpa- do ficaria estigmatizada.,O que dizer da indigni- dade de um estigma langado a pessoas que nao estio mais aqui para advogar suas causas? De res- to, 08 infelizes se preocupam pouco com isso e, se 0 suicidio culpa alguém*, é antes de tudo as pes- soas que ficam, jé que, de toda essa grande massa de pessoas, nem sequer um individuo foi merece- dor de que se permanecesse vivo por ele. As me didas infantis e atrozes que foram inventadas con- seguiram combater vitoriosamente as tentagoes do = Qualquer ques a motvago pringpal edeteminante do su cid, éerto questa agt age cm uma fog absoluta sobre ua ‘onic Porgue eno, devemos nosespantarse, ato present, tudo o que cio ou fio para veneer ese pet ego acab0U sem estad ee slegiladoes os merlitanacssaran gta nestcmsus tena Fra ces compre oes man fare neces, inant tera miseries ple dade do Cristo. sneer perante Deus 27 Karl Marx desespero? Que importam a criatura que deseja escapar do mundo as injirias que o mundo pro- mete a seu cadaver? Ela vé nisso apenas uma co vardia a mais da parte dos vivos. Que tipo de socie- dade é esta, em que se encontra a mais profunda solidio no seio de tantos milhdes; em que se pode ser tomado por um desejo implacivel de matar asi mesmo, sem que nninguuém possa prevé-lo? Tal sociedade nao é uma socie- dade; ela &, como diz Rousseau’, wma selon, habitada por feras seloagens. Nos cargos que ocupei na adi nistracao da policia, os casos de suicidio** entra- vam no ambito de minhas atribuigdes; eu queria saber se entre suas causas determinantes nio po- deriam ser encontradas algumas cujo desfecho se poderia*™ prevenir. Havia realizado um trabalho muito abrangente sobre esse assunto. Descobri que, sem uma reforma total da ordem social de nosso tempo, todas as tentativas de mudanga seriam intiteis**. Entre as causas do desespero que levam as pes- soas muito nerves: irritaveis a buscar a morte, seres passionais e melancolicos, descobri os maus- trates Como o fator dominante, as injusticas, os castigos secretos, que pais e superiores impie- dosos**** infligem as pessoas que se encontram sob sua dependéncia/A Revolucito no derrubow todas + Pechet: "ear Jacques’ * Peuchet: "séries de suicidio”. * modera ow “** Peuchetescreve, em vez disso: “Sem me baseat em teorias, tentare apresenta fats “* Peuchet: “pais inflexvvs ereceosos, superiors iitadigas & ameacadores 28 Sobre suiciio as; 0s males que se reprovaoam nos poderes des ira Es 3; nelas eles provocam crises pts subsite mas fois eles amélogas Aquelas das revolugdes.*7—— “As relagdes entre os interesses € 0s animos, as ver- dadeiras elagdes entre os individuos ainda estio para ser criadas entre nés inteiramente, € 0 sucitio nao é mais do que wm entre 05 mile wom sinfomas da Tata social gem, sempre percebida em fatos recentes, da qual fantos combatentes se retiram porque estao cansa- dos de serem contados entre as vitimas ou" porque se insurgem contra aidéia de assumir um lugar hon- oso entre os carrascos. Se se querem alguns exern- plos, vou tirs-los de processos auténticos, No més de julho de 1816, filha de um alfaiate foi prometida em casamento a um agougueito, jo- vem de bons costumes, parcimonioso e trabalha- dor, muito enamorado de sua bela noiva, que, por sua vez, era-the muito dedicada. A jovem era cos- Re qae como se supe, temo de ver seus amigos seus pais uses fares jade ifm e seus compos arastados na lima seria capae demand eases omens mpiedososa pei dln, asia para com sean eres eo ev Ta preven aga as ores volume qu si comets na ican deexapar de sun dominagio? Ean co 30, Os Spniada port dupo saci, maciar dos calls de uma er, oealto ac vse o lo as mors. No pare, até gue ese meio tena sting o fm a el rrunciowse ‘Sbimente aa sober um bom stad chro epato dos superiors prncpalmente sobre ox pal em lg sess bordinads, pensouse que enor dese ver atingdo pla dia- tna e ei ecndlopabico and era una media st median era sue eaclpa pena de maga qe Canada sobre nle que se pv dads ainda inl nos culpado mesmo quenaa chegueaetngsrreesesesentier toa vrgnia de Tdos esses ecndalwe cocina de no seremes ern culpados.O cleropaeceme mais inligioso do ques pipriasocedadequandocntendea mio aprecacas So ovary recs aos suds uma septa lige “Deuce 29 /-c4/0 Karl Marx tureira; conquistava a atencao de todos os que a conheciam e os pais de seu noivo amavam-na ca- rinhosamente. Essa brava gente nao perdia nenhu- ma oportunidade para usufruir com antecipacio, dos bens da sua nora; promoviam divertimentos nos quais ela era a rainha e 0 fdolo*. Chegou a época do casamento; os arranjos entre as duas familias foram providenciados e os contra- tos fechados. Na noite anterior ao dia em que deve- riam comparecer & municipalidade, a joveme seus pais comprometeram-se a jantar com a familia do noivo; quando estavam a caminho, ocorreu um in- cidente inesperado. Encomendas que deveriam ser entregues a uma rica casa de sua clientela forgaram, © alfaiate e sua esposa a retornar a casa. Eles se desculparam, mas a mie do agougueiro foi ela pré- pria buscar sua nora, que recebeu permissao para acompanhé-la. Apesar da auséncia de dois dos principais con- vidados, a refeigao foi das mais agradaveis. Mui- tas brincadeiras familiares, que a perspectiva das ntipcias autorizava, foram realizadas da melhor maneira possivel.** Bebeu-se, cantou-se, Divagou- se sobre o futuro. As alegrias de um bom matri- ménio foram vivamente comentadas. Muito tarde da noite, encontravam-se ainda mesa. Movidos por uma indulgéncia facilmente compreensivel, os pais do rapaz*** fecharam os olhos para 0 acordo tacito entre os dois amantes. As maos procuravam = Aeestima geral acrescentava-se & estima que os noivos tinham sum pelo outro. ** A sogra ja se imaginava av6 de um bebezinhvo, ** entusiasmadios com suas criangas e desfrutando de sua du- pla termural 30 Sobre o suicidio * 9 amor ea confianga tomavam- ‘umas as outras, ; considerava-se que inteit ente. Além disso, jovens ase frequentavam havia muito fempo sem ge Ihes fizesse a mais leve censura.“* A como- Gio dos pais dos amantes, as horas passadas, 0s ar entes desejos recfprocos, desencadeados pela negligencia dos seus mentores, a alegria sem ceri- mmonia que sempre reina nessas ocasides, tudo isso jnto, ea ocasiao, que se brindava prazerosamente, ‘vinho, que borbulhava nas cabegas, tudo ensejava ‘um final que se podia imaginar. Os enamorados se reencontraram no escuro, depois que as luzes se apagaram. Era como se nao houvesse nada a ponderar, nada a recear. Sua felicidade estava cer cada de amigos e livre de toda inveja."** ‘A jovem filha retornou somente na manhi guinte para a casa dos pais. Uma prova de que ela nao se acreditava culpada esta no fato de ter volta- do para casa sozinha.”*** Ela esgueirou-se para seu quarto ¢ fez, sua toalete, mas, mal seus pais adivi- nharam sua presenga, irromperam furiosamente e cobriram-na com os mais vergonhosos nomes & impropérios. A vizinhanga testemuahou a cena, 0 se- * Nunca os prazeres de um bom casamento foram 80 vivamente =" Ocontedo tomou por um instante o fugar da forma, queso “=o emer ance, sem dvi, pelo simples fato da preo- pate mas ealguma vee bondade, a indulgérca a prudéncs, a Os mats clpados foram os mats flies 31 Karl Mare escindalo nao teve limites, a julgar pela comogio aquela crianga, por sua vergonha e pelo encanto que era quebrado a golpes de xingamentos. Em ‘vio a consternada moca protestava a sets pais que cles mesmos a haviam abandonado & difamacao, que ela assumia seu agravo, sua tolice, sua desobe- dliéncia, mas que tudo seria reparado. Suas razbes sua dor nao conseguiram desarmar 0 casal de costureiros/As pessoas mais covardes, as mais capazes de se contrapor, tornam-se intolerantes as- sim que podem lancar mio de sua autoridade absoluta de pessoas mais velhas. O mau uso dessa autoridade é igualmente uma compensaciio gros- seira para o servilismo e a suborelinacao aos quais essas pessoas estio submetidas, de bom ou de mau grado, na sociedade burguesi)Padrinhos e ‘madrinhas acorreram ao barulho e formaram um coro. O sentimento de vergonha provocado por essa cena abjeta levou a menina a decisio de dar ‘um fim a prdpria vida; desceu com passos ripidos ‘em meio multidao dos padrinhos que vocifera- vamea insultavame, com olhar desvairado,correu., paraos mae jogou-se na Agua; os barqueiros res- sgataram-na morta do rio, enfeitada com suas jdias nnupciais. Como éevidente, aqueles que no comeco gritaram contra filha viraram- mseguida con- tra 0s pais; essa catdstrofe chocou até mesmo as almas mais mesquinhas. Dias depois vieram os pail que a moga portava no pescoco ¢ tinha sido um olicia para reclamar uma corrente de ouro presente do seu futuro sogro, um religio de prata cevarias outras jias, todos objetos que ficaram de- positados na reparticio, Nao perdi a oportunidade dle recriminar energicamente aquelas pessoas por Sobre 0 suiciti 2 ipo? pealiar de eigisdade que predomsina posrit lus ts relquis; acres que pode fihe Is recusava evetinha ocertiad de gu les precisvar pra rtirar esses cjetos da cae lp atl ple dame ti ds asia famias da Mavtnica Ble ir oak en chee ie te ecu Gnico info eexposo da falda. Ha hava te iogado Esse ipo de uid go mais eqiente © corpo fora encontrado no longed praia de Argent pelos tancondiosencaregados de eo Pero cuir Timrackodaqualeatintode ude spero, a moca afogada havia cuidadosamente oito, Marx alten radicalmenteo sentido onde aparece “tipo, Peachet exceve fli” de religosidade Somente gular reaver aqueles objets. *e, desde que feamos de nha sal Sn a strane a 33 Karl Marx: amarrado a bainha de seu vestido ao redor de seus pés. Essa precaucao pudica tornava evidente o sui- cidio. Logo depois de recolhida, levaram-na ao ne- crotério, Sua beleza, sua juventude, seu rico traje deram ocasiao a milhares de suposigdes a respeito da causa daquela catastrofe. O desespero de seu marido, 0 primeiro que a reconheceu, nao tinha limites; ele nao compreendia aquele inforttinio, a0 menos € 0 que me era dito; eu mesmo jamais o havia visto. Expliquei ao crioulo que a reclamagao do marido tinha preferéncia sobre qualquer outra, que este tinha até encomendado a construgao de uma magnifica sepultura de marmore para sua in- feliz esposa. “Depois que ele a matou, o desgraga- do!”, gritou o crioulo, enquanto caminhava enrai- vecido de um lado para o outro. Depois da afligio, do desespero daquele jovem, depois de suas stiplicas fervorosas de que seus de- sejos fossem atendidos, depois de suas lagrimas, eu acreditava poder concluir que ele a amava, e disse-lhe isso. Ele admitiu 0 seu amor, mas sob os mais vivos protestos de que sua cunhada nunca soubera nada a respeito. Ele jurou. Apenas para salvar a reputacao de sua cunhada, cujo suicidio daria margem as habituais intrigas da opinido publica, cle pretendia expor a luz as barbaridades de seu irmao, nem que para isso precisasse langar- se no banco dos réus. Pediu-me ajuda. O que pude deduzir de seus esclarecimentos entrecortados, apaixonados, foi o seguinte: o sr. Von M..., seu ir- mado, rico e amante das artes, amigo do luxo e da alta-roda, casara-se com essa jovem havia aproxi- madamente um ano; segundo parecia, de comum acordo; formavam o par mais bonito que se podia 34 Sobre o suicidio yer. Depois do casamento, itrompeu de forma stibi- tr e galopante na constituigao do jovem marido jum problema de sangue, talvez um mal de familia Esse homem, antes tdo orgulhoso de sua bela aparéncia, ce seu elegante porte, de uma perfeicao, de uma plenitude de formas sem igual", sentiu re- sntinamente um mal desconhecido, contra cuja acio devastadora aciéncia era impotente;ele estava transfigurado da cabega aos pés de um modo horri- pilante. Havia perdido todos os cabelos, suas costas estavam arqueadas. Dia a dia modificavam-no acentuadamente a magreza e as rugas; para os outros, pelo menos, pois seu amor-préprio tentava negar a aparéncia. Mas nada disso 0 fazia depen- dente do leito; uma forca férrea parecia triunfar sobre os ataques daquele mal. Ele sobrevivia forte- mente a seus proprios escombros. O corpo caia em rufnas e a alma permanecia em pé. Ele continuou a dar festas, a liderar cacadas ea manter seu modo de vida rico e luxuoso, que parecia ser a lei de seu carter e de sua natureza. Contudo, as injtirias, as tudantes e dos rapazes arruaceiros quando ele passeava a objecdes, as palavras sarcasticas dos e: cavalo, sorrisos mal-educados e zombadores, ad- moestacGes sérias dos amigos a respeito dos nume- rososridiculos a que ele se expunha pela obstinacao de suas maneiras galantes junto as damas, tudo isso acabou por desfazer sua ilusdo e 0 tornou apreensivo consigo mesmo. Quando enfrentou sua fealdade e sua figura grotesca, tio logo tomou cons ciéncia disso, seu cardter amargou-se e ele ficou {ue RHO The permitiam temer em torno dele enh rival 5 Karl Marx desalentado. Parecia menos dedicado a levar sua mulher as soirées, aos bailes, aos concertos; fugia furtivamente para sua casa de campo; desfazia-se de todos os convites, desviava-se das pessoas com mil pretextos, e as gentilezas de seus amigos para com sua esposa, toleradas por ele enquanto 0 orgu- Iho Ihe dava a certeza de sua superioridade, tor- naram-no ciumento, irascivel, violento. Em todos aqueles que ousavam visité-lo, via a decisao firme de conquistar o coragao de sua mulher, que restava para ele como seu tiltimo orgulho e conforto. Por esse tempo, o crioulo chegou da Martinica, anegé- cios, cujo sucesso a recondugao dos Bourbon ao trono francés parecia favorecer. Sua cunhada rece- beu-o distintamente e, no naufragio das numerosas relagdes que ela estabelecera, 0 recém-chegado aproveitou-se da vantagem que seu titulo de irmao naturalmente The dava junto ao st. Von M... Nosso crioulo percebeu a solidao que se deixava entrever em meio as tarefas domésticas, tanto pelas desa- vencas diretas que seu irmao tinha com muitos amigos como pelos mil artificios indiretos usados para despachar e desanimar os visitantes. Sem se dar conta das motivagées amorosas que o torna- vam ciumento, 0 crioulo aprovava essas idéias de isolamento e até as estimulava em seus conselhos. Com isso, o sr. Von M... acabou retirando-se total- mente para uma linda casa em Passy, que em pouco tempo se tornou um deserto. O citime se nutre das coisas mais insignificantes; quando nao sabe mais i mesmo e torna-se engenhoso; tudo Ihe serve como alimento. Talvez em que se agarrar, consome a a jovem senhora lamentasse a falta dos prazer de sua idade. Os muros impediam a vista das casas 36 Sobre o suicidio ‘yizinhas; as persianas ficavam fechadas da manha 3 noite(A infeliz mulher fora condenada a mais insuportavel escravidao, eo st. Von M... podia praticé-la apenas por estar amparaclo pelo Cédigo Civil e pelo direito de propriedade, protegido por uma sittacao social que torna o amor independente dos livres sentimentos dos amantes e autoriza 0 marido ciumento a andar por ai com sua mulher acorrentada como o avarento com seu cofre, pois ela representa apenas uma parte de seu inventario. ‘A noite, o st. Von M.... andava armado ao redor da casa e fazia sua ronda com os caes. Ele acreditava descobrir vestigios na areia e perdia-se em estra- has pressuposicdes caso uma escada tivesse sido mudada de lugar pelo jardineiro. O proprio jardi- neiro, um beberro quase sexagenério, foi cologdo como guarda no portdo. O espirito de exclusao nao tem freios em suas extravagancias; ele avanca até aimbecilidade. O irmao, inocente ctimplice de tudo isso, compreendeu finalmente que contribufa para a infelicidade daquela jovem ~ dia a dia vigiada, insultada, privada de tudo aquilo que pudesse dis- trair uma imaginacao rica e feliz, o que a tornou tao melancélica e triste quanto havia sido livre e serena, Ela chorava e escondia suas lagrimas, mas 0s sinais eram visiveis. O crioulo sentiu remorso. Decidico a esclarecer tudo abertamente com sua cunhada e a reparar um erro que ele cometera de- certo movido por um furtivo sentimento de amor, entrou certa manha sorrateiramente num pequeno bosque aonde a cativa ia de tempos em tempos tomar ar e cuidar de suas flores. No gozo dessa to limitada liberdade, supée-se que ela se sabia sob os olhos de seu ciumento marido; pois, a0 olhar 37 Karl Marx: do cunhado, que pela primeira vez se encontrou sozinho diante dela, e sem o querer, a jovem de- monstrou uma grande perturbagao, contorcendo as maos. “Afaste-se, em nome dos céus”, gritou- Ihe assustada. “Afaste-se!” 4 E, de fato, mal teve ele tempo de esconder-se numa estufa, o sr. Von M... apareceu subitamente. O crioulo ouviu gritos, procurou escutar secreta- mente, mas o martelar de seu coracao o impedia de distinguir até mesmo a mais simples palavra daquela conversagao, pois sabia que sua fuga, caso fosse descoberta pelo esposo, poderia provocar uma conseqiiéncia deploravel. incidente despertou o cunhado; ele viu a ne- cessidade, daquele dia em diante, de ser o protetor de uma vitima, Decidiu-se a sacrificar qualquer re- serva que ainda guardava ao seu amor*. O amor pode renunciar a tudo, menos ao seu direito de protecdo, pois tal rentincia seria a obra de um co- varde. Ele continuou a visitar seu irmao, disposto a falar-Ihe francamente, a abrir-se com ele e con- tar-lhe tudo. Osr. Von M... ainda nao tinha nenhu- ‘ma suspeita dessa ordem, mas a persisténcia de seu irmao fé-lo ficar atento, Sem decifrar muito cla- ramente as causas daquele interesse, 0 sr. Von M.. desconfiava delas ¢ calculava, com antecedéncia, aonde aquilo poderia chegar. O crioulo logo per- cebeu que seu irmao nem sempre se ausentava de sua casa, o que pode confirmar em seguida, tantas foram as vezes que a campainha da casa de Passy foi tocada inutilmente. Um oficial de serralharia fez-Ihe uma chave de acordo com 0 molde daquela Sha esolugdo de se devotar sua cunhada 38 Sobre 0 suicidio que seu mestre ja havia forjado para o st. Von M. ‘Apés um afastamento de dez dias, 0 crioulo, exasperado de medo e atormentado pelas fantasias mais absurdas, penetrou de noite por sobre os muros, quebrou um portao diante da entrada prin- cipal, alcancou o telhado por meio de uma escada e deixou-se deslizar pela calha até a janela de um depésito™*. Gritos enérgicos permitiram-no arras- tar-se, sem ser percebido, até uma porta de vidro. O que ele viu despedagou seu coragao. A claridade de um candeeiro iluminava o quarto. Entre as cor- tinas, a cabeleira despenteada e o semblante pur- ptireo de raiva, estava o sr. Von M..., seminu, ajoe- Ihado ao lado de sua mulher, sobre a mesma cama que ela nao ousava abandonar, embora tentasse escapar pouco a pouco dos seus bragos, enquanto ele a dominava com reprimendas mordazes, se- melhante a um tigre pronto a fazé-la em pedacos. “Sim”, dizia ele, “eu sou horrendo, sou um mons- tro e sei muito bem que te causo medo. Gostarias que alguém te libertasse de mim, que a minha vi- sio no mais te incomodasse. Anseias pelo mo- mento em que te tornarés ivre. E nao me digas 0 contrario; eu Adivinhg teus pensamentos no teu Pavor, na tua repugnancia****. Ruborizas com a gargalhada indigna que suscito, estas internamente tevoltada contia mim! Contas um a um, sem dti- vida, 0s minutos que faltam para que eu nao mais te assedie com minhas fraquezas e meu estado {0 ciouio nao temia os cdes de guarda: eles jé 0 conheciam ‘ousadia bastante habil doesposo “ que Ihe permit chegar proximo do quarto de dormir de sess cunhado (so) 9 “"enastuas ligeinas 39 Karl Marx atual. Para! Acometem-me desejos terriveis, a ftiria de te desfigurar, de tornar-te semelhante a mim, para que tu nao possas ter a esperanga de te conso- lares com teus amantes da desgraca de me ter conhecido. Quebrarei todos os espelhos desta casa para que nao me lancem qualquer comparacao, para que cessem de servir como alimento ao teu orgulho, Nao deveria eu conduzir-te ou deixar-te ir pelo mundo para ver como todos te encorajam a me odiar? Nao! Nao! $6 deixaras esta casa depois de me matar. Mata-me, adianta-me 0 que eu estou tentado a fazer todos os dias!*” Eo selvagem rolava sobre a cama em altos gritos, a5 mordidas, espu- mando pela boca, com mil sintomas de raiva, com golpes que ele, enfurecido, aplicava a si mesmo, ao lado daquela mulher infeliz, que Ihe dirigia as mais ternas caricias e as stiplicas mais patéticas, Finalmente ela o amansou. A compaixao sem du- vida substituiu o amor, mas isso nao bastou para aquele homem, que se tornara tao amedrontador e cujas paixdes ainda haviam guardado tanta ener- gia. Uma longa depressio foi a seqiiéncia dessa cena, que petrificou o crioulo. Fle sentia calafrios e nao sabia a quem recorrer para ver-se livre da felicidade daquele suplicio. A cena, evidentemente, devia repetirse todos 0 dias, pois, nas convulsdes que se seguiam, a sra. Von M... recorria a ampolas preparadas por ela mesma com a finalidade de dar a seu carrasco um pouco de sossego. Nesse momento, em Patis, ocrioulo representava sozinho a familia do st. Von M... E sobretudo nesses casos que se poderiam *Matarmel 40 Sobre o suicfitio maldizer as formalidades juricicas e anegligencia {das leis, que nada podem titar das suas praxes cal uladas, mormente porque se tratava tio-somente lador cerca, deama mulher, aquele ser que o legis com as menores garantias.JSomente uma ordem deprisio, uma medida arbitréria, poderia preveni a desgraca que a testemunha daquela cena raivosa ja podia bem prever. Ele decidiu arriscar-se pelo tudo ou nada, assumindo todas as conseqiiéncias, ja que suas posses o habilitavam a fazer enormes ofertas ¢ a nao temer a responsabilidade de ne- nhuma grande ousadia. Alguns médicos, amigos seus e decididos como ele, planejavam uma inva- sao na casa do sr. Von M... para constatar aquele momento de loucura e, por meio do uso imediato da forga, separar os esposos, mas eis que a ocorrén- cia do suicidio veio justificar suas precaugées de- masiadamente tardias e suspendeu a dificuldade (Certamente, para todos aqueles que nao redu- zem 0 espirito pleno das palavras as letras. que formam, esse suicidio foi um assassinato, praticado pelo esposo; mas foi também o resultado de uma extraordinaria vertigem de citime/O ciumento ne- cessita de um escravo; 0 ciumento pode amar, mas as ‘© amor € para ele apenas um sentimento extrava- ganteyo citumento é antes de tudo um proprietirio pri uado.* Impedi que o crioulo* fizesse um imuitil e pe- Ag duas ultimas frases reproduszem quase completamente outa ppassagem de Peuchet e foram inseridas por Marx no lugar do se _Buinte techo: “E 0 marido infeliz, que sobreviveu tao pouco tem Po sua mulher, eseapava & acusagdo de seu irmao tanto com a ajuda dos termos expressos de nossa legislagao como pelo exage- 10 do sentimento que o fazia sentie-se culpado. Pode-se imaginar que esse caso no teve outras consequiencias”. ** mesmo que eu nao tena conseguido devolver-Ihe a paz a Karl Marx +igoso escindalo, perigoso sobretudo para a memé- ria da sua amada, pois 0 puiblico desocupado teria acusado a vitima de uma ligacao aduiltera com 0 irmao de seu marido.* Presenciei o enterro*. Nin- guém, além do irmao e de mim, soube da verda- de**. Aomeu redor eu ouvia pessoas murmurarem injirias sobre aquele suicidio, eas desprezava. Fica- se enraivecido diante da opiniao puiblica quando se a observa de perto, com suas lamiirias covardes e suas porcas suposigdes. A opiniio é muito fragmen- tada em razao do isolamento dos homens; pida demais, depravada demais, porque cada um. 6 estranho de si e todos sio estranhos entre si.*** De resto, foram poucas as semanas em que no ‘me foram trazidos casos daquele mesmo tipo. No mesmo ano, pude registrar relagSes amorosas que, por causa da recusa dos pais em Ihes dar o consen- timento, terminaram com um duplo tito de pistola Do mesmo modo, eu anotava os suicidios de homens do mundo, reduzidos a impoténcia na flor da idade e jogados numa melancolia insuperavel, gracas ao abuso do prazer. Muitos terminam seus dias dominados pelo pen- samento de que a medicina, apés Ihes haver infligi- do longos ¢ intteis tormentos com progressos frus- trantes, éincapaz de livré-los de seus males. est *Occadiver foi coneedio a0. Von M.., ja dor ocupou a atengio deta capital por uma cena pungente na cemitério Montmartre {quando padre gos as ltimas cinzas sobre o ain, eas palavras de eprovacao morreram em mets labios ‘0 proprio culpado, que amava demais a sua vitima para paler lerem Seu proprio coragio, pareca gnors-io como todo mundo. “ultima frase fi trada de outra passagem de Peuche, Marx substitu “costumes” (mews) por “homens” (Menschen). 42 Sobre 0 suicidio Poder-se-ia apresentar uma singular colegao de citagdes de autores famosos e de poesias escritas por desesperados que preparam suas mortes com fim certo fausto. Durante 0 momento de admiré- vyel sangue-frio que sucede a resolugio de morrer, ‘uma espécie de entusiasmo contagiante exala da- aquelas almase transborda por sobre o papel, o que ‘corre mesmo naquelas classes desprovidas de qualquer educacao. Enquanto se recolhem diante do sacrificio e examinam suas profundezas, toda a sua forga é concentrada para, em seguida, expan- dir-se numa expressao calorosa e caracteristica Algumas dessas histdrias, que estao sepultadas nos arquivos, sao obras-primas. Um filisteu bur- gués, que deposita sua alma em seu negécio e seu deus no comércio, pode achar tudo isso muito ro- manesco e, com seu sorriso sarcastico, rejeitar afli- goes que ele nao entende: seu menosprezo nao & deestranhar. Que outra coisa devemos esperar de trés por cento de pessoas, que nem sequer sus- peitam de que elas proprias, diariamente e a cada hora, pouco a pouco, assassinam sua natureza humana! Mas 0 que dizer entao da boa gente, que faz o papel de devotos, de bem-educados, e que repete as indecéncias dos primeiros? Sem chivida, € de suma importancia que esses pobres-diabos suportema vida, ainda que seja apenas no interesse das classes privilegiadas deste mundo, interesse ue setia arruinado pelo suicidio geral da canalha; mas haveria outro meio de tornar suportével a existéncia dessas classes, que nao a injiria, 0 sorriso irdnico e as belas palavras? Além disso, é necessario haver alguma magna- himidade naqueles mendicantes, que, decididos a 43 Karl Mary morter como estio,* matam-se de uma vez € no esperam para langar mao do suicidio quando ja se encontram a caminho do cadafalso. E verdade que, quanto mais nossa época de co- meércio progtide*, mais raros se tornam esses no- bres suiicidios da miséria, que ceciem lugar a hostili- dade consciente, ao passo que ao miseravel sio brutalmente impostas as oportunidades do roubo edo assassinato, E mais fécil arranjar a pena capital do que algum trabalho, Ao remexer nos arquivos da Policia, observei apenas um tinico sintoma inequivoco de covardia na lista dos suicidios. Tratava-se de um jovem ame~ ricano, Wilfrid Ramsay, que se matou para nao ter debater-se em duelo.”* A classificagao das diferen- tes causas do suicidio deveria ser a classificagio dos proptios defeites de nossa sociedade. ****Suicidou-se porque feve uma invengio roubada por intrigan- tes, em cuja oportunidade o inventor, langadoa mais degradante miséria em conseqtiéncia das longas ¢ eruditas pesquisas a que teve de se dedicar, nao pédle sequer comprar uma patente de invencao. Sui- cidou-se para evitar os enormes gastos e a conse- qiiéncia humilhante de dificuldades financeiras, que, alids, s2o tao freqiientes que os homens res- "Fle tomara uma bofetada de um oficial da guaeda em um baile uiblieo. Sua ustificativa foi dada por wm quacte em um flhetim sla epoca que eu guardarae que nso encomtra mais, Masse de fensor também o acusava, reprovando-a por no ter suportado obrementeo peso daquel aronta "O objetive nao Go de me dedicara essa anlise dificil, que legislador deve, entrtante,abordar se quiserextirpae saben mente de nosso solo os germes de dissolugia em que nossa ger ‘so crescee perece como que corroida por uma erva-danins 44 Sobre o suicitio siveis pela conducdo dos interesses gerais nao Pe preocupam nem tim pouco com clas, Suicidou- ge porque no consegui nenhuum trabalho, pelo {qual havia suplicado durante muito tempo sob as jjensas e a avareza daqueles que, em nosso meio, si0 08 seus distribuidores arbitrétios. ‘uma morte“, de cujo motivo ele confessava ser jo culpado™* ‘Uma noite, de retorno a Belleville, onde mora- va, ele foi parado por uma mulher disfarcada, ‘numa pequena rua escura, no fundo da qual estava a porta de sua casa. Com voz. trémula, suplicou- The que a ouvisse. A certa distancia, caminhava de ‘um lado para 0 outro uma pessoa, cujos tracos ele nao pode distinguir. Fla era vigiada por um ho- mem". “Meu senhor”, ela Ihe dizia, “estou gré da ¢, se isso for descoberto, estott desonrada. Mi- nha familia, a opiniao de todos, as pessoas de bem nao me perdoardo. A mulher, cuja confianca trai, enlouqueceria e romperia infalivelmente com seu marido. Nao defendo minha causa. Encontro-me = Tei, provincia sociale secundrs,guntd para com Des te piel legisiadore também ono a vida de Sengangmicasaoa tudo que esta ns mises do corpo n08 Sotimeno da alma os inp do espn No &langando ‘ler sve o tml ue os homens cumpre sa ‘ies para com ov vives (oars omit, apart deste pono, ling lato de Pehel, echo que restos a ota 7) ‘us non eu 0 acon esi ele procede) a mane ev seredo emora ee julgassenecesiriosubmctera0 exam ds men comune neontroveria que wna morte dese pO Freqienmente provera demo as coneciencinsdelicadasa area de determina se esse home ra vealmenteeulpado Sus ecrplon me ceopseh int cesotaram minha fogs “Pea “um cavalo prog cs psa daquela dam 45 Certo dia, um médico me consultou sobre7* (6) Qo I bon to Karl Marx Sobre 0 suicidio em meio a um escandalo cuja eclosio somente mic nha morte poderia evitar, Queria matar-me, mas. querem que eu viva. Disseram-me que sois piedoso e isso me dew a certeza de que nao serieis ctimplice do assassinato de uma crianga, conquanto essa crianga nao esteja ainda no mundo. Vedes que me refiro ao aborto desse fruto. Nao me rebaixarei até a stiplica, até a dissimulacao daquilo que me pare- fal sentia-me vacilar, ainda que em milhares de casos, como em partos dificeis, por exemplo, quando a questo cirdrgica oscila entre o salva- Trento da mae ou o do bebé, a politica ou o huma- fitarismo decidam inescrupulosamente de acordo ‘com suas preferéncias.” . “puja para o estrangeiro”, disse-lhe. “Impos- sivel”, ela respondeu. “Nisso nao se pode nem ‘mesmo pensar!” “Tome precaucées favordveis!” “Nao posso tomé-las; durmo no mesmo quarto que a mulher cuja amizade trai.” “Ela é sua paren- te?” “Nao posso mais responder-vos!” “Bu teria”, prosseguiu 0 médico, “dado o me- Ihor do meu sangue para salvar aquela mulher do suicidio ou do assassinato, ou para que ela pudesse escapar daquele conflito sem precisar me envolver em um conflito semelhante. Eu me res- ponsabilizava por aquela barbaridade, pois me continha diante da cumplicidade com um assas- sinato. A luta foi terrivel. Entao um deménio sussurrou-me que uma pessoa ndo se mata pelo ce o mais abomindvel dos crimes. Foi somente por ceder a pedidos de terceiros que ora me apresento a V6s, pois jé deveria me encontrar morta. Invoco a motte e, para isso, nao nece: ito de ninguém. Cria-se a aparéncia de se encontrar prazer ao re- gar o jardim ~ calcam-se, para isso, sandilias de madeira -, escolhe-se um lugar escorregadio aonde se vai buscar agua todos os dias, arranjam-se as coisas de modo a deixar-se submergir no reserva- t6rio da fonte, e as pessoas dirio que aquilo foi um ‘inforttinio’*, Calculei tudo, meu senhor. Dese- java que amanha fosse o dia, eu iria embora de todo o coracao. Tudo est preparado para acontecer dessa forma. Mandaram que eu vos dissesse isso, entao eu vos digo. Cabe a vés decidir se haveré apenas uma morte ou se haverd duas. Pois de mi- nha covardia obteve-se o juramento de que eu aca- taria sem reservas a vossa decisao. Decidi!” “Esta alternativa”, prosseguiu o doutor, “espan- tou-me. A voz daquela mulher possufa um timbre limpido ¢ harmonioso; sua mao, que eu mantinha entre as minhas, era fina e delicada, seu desespero franco e decidido denotava uma alma admirdvel Tratava-se, porém, de um assunto em relagdo a0 simples fato de querer morrer; que as pessoas comprometidas, quando se Ihes toma o seu poder de fazer 0 mal, so forcadas a renunciar a seus vi- ios. Percebi o luxo dos bordados que se deixavam mostrar por entre seus dedos e pude notar a abun- dancia de suas posses pela diccao elegante de seu discurso, Acredita-se que 0s ricos sejam menos dignos de compaixao; meu orgulho indignou-se contra a idéia de eu ser seduzido pelo ouro, ain- da que até entao ela nao tivesse tocado nesse as- sunto, o que era mais um sinal de sua delicadeza ©a prova de que respeitava meu verdadeiro cara- *Aspas colocadas por Marx 46 47 Karl Marx Sobre o suicidio ter. Dei uma resposta negatioa; a dama afastou-se rapidamente; 0 ruido de um cabriolé convenceu- me de que eu nao podia mais reparar o que aca~_ bara de fazer.” “Quinze dias depois, 0s jornais trouxeram-mé a solugao do segredo*. A jovem sobrinha de um ban- queiro parisiense, de no maximo dezoito anos de idade, pupila querida de sua tia, que nunca a per dia de vista desde a morte de sua mae, deixara-se deslizar para dentro de um regato na propriedade de seus tutores, em Villemomble, e havia se afoga- do. Seu tutor" estava inconsolavel; em sua quali- dade de tio, o covarde sedutor podia expor a sua dor diante do mundo.*** ‘Vé-se que, na auséncia de algo melhor, 0 suicidio 60 tiltimo recurso contra os males da vida privada, »*"Entre as causas do suicidio, contei muito freqiientementea exoneragao de funcionétios, a re- cusa de trabalho, a stibita queda dos salérios, em conseqiiéncia de que as familias nao obtinham os meios necessérios para viver, tanto mais que a maioria delas ganha apenas para comer. 2 cx) Naépocaem que, na casa do rei, o ntimero dos — guardas foi reduzido, um bravo homem foi afasta- do, como muitos outros, e sem maiores cerimonias.* Gua idadee sua falta de protegio nao lhe permitiam reincorporar-se as Forcas Armadas; a indtistria es- tava fechada para a sua caréncia de instrucao. ‘Tentou entrar na administracao civil; 0s concor- rentes", muito numerosos aquii como em toda par- te, vedaram-Ihe esse caminho. Caiu num profundo desanimo e se matou. Em seu bolso, foram encon- tradas uma carta e informagbes sobre suas relacies ais. Sua mulher era uma pobre costureira; suas duas filhas, de dezesseis e dezoito anos, trabalha- vam com ela. Tarnau, nosso suicida, dizia nos pa- péis que deixou “que, nao podendo mais ser ttil a sua familia, e sendo forcado a viver 4 custa de sua mulher e de seus filhos, achava que era sua obriga- ‘cao privar-se da vida para alivis-los dessa sobrecar- ga; ele recomendava suas filhas & duquesa de Angouléme; esperava, da bondade dessa princesa, que se tivesse piedade de tanta miséria”, Escre um boletim ao chefe de policia de Angles e, apés 0 andamento natural do caso, a duquesa fez depositar 600 francos para a infeliz familia Tarnau.*** Triste ajuda, sem duivida, depois de uma tal perda! Mas como exigir que uma familia**** se en- carregue de ajudar a todos os desafortunados, uma *Pouchet:“daquela diivida terrvel’ = Peuichet: “Seu tutoresestavam”. = Quanto a mim, havia matado a mae a0 querer poupar a crianca ++" Devo mencionaro exemplo daquela crianga que, trancada em lum sétio pela célera de seu pai, jogou-se do quinto andar, num acest decdlera frenética,cainco'em meio a seus parentes? Devo ‘ita ainda, aquees infelizes que, todos os anos, asfixiamse jun tamente com suas criangas para escapar aos ulteajes da miseria? Assim concluo este capitulo triste, em que s20 energicamente ex- ppostos as males que corroem todas as classes da sociedade.F pre- iso ter raz com sobriedade, ©Os governos representtivos nfo tatam dessa questi com o devi cade, ccupam se apenes com a economia por stad, tanto pior para os acontecimentos que se dB0 no var. ‘-Peuchet “os pretendentes + Peucheesereve no garda segunda meta desta fase:“En suse uaa vcd de Monmerenc vale dh £3 de Sin Majestade; madame de ordens para que wma soma de ‘80 anos ss envad fia do infeltzTamau, Ose Basten Beaupre, comissria de plicia do bato, for encrregado da en trega daquele beneficio” Pech" familia real” 48 49 *) o/ Karl Marx: vez que, somando-se tudo, nem mesmo a Franga inteira, tal como ela é no presente, nao 0s poderia alimentar. A caridade dos ricos nao bastaria para tanto, mesmo que nossa nagdo inteira fosse religio- sa, 0 que esté muito longe de ser verdade. © suicidio elimina a pior parte da dificuldade, 0 cada- filso ocupa-se com 0 resto. Somente com wma reforma de nosso sistema geral de agricultura e indtistria pade-se es- ' _perar por fontes de recursos e por wna verdadeira riqueza’] (Cos pergaminhos, podemos facilmente proclamar constituicdes, 0 direito de todo cidadio a educagao, 20 trabalho e, sobretudo, a um minimo de meios de subsisténcia, Mas, com isso, nao se fez. tudo; a0 se escreverem esses desejos generosos sobre o papel, persiste a verdadeira tarefa de fazer frutificar essas idéias liberais por meio de instituigSes materiais e inteligentes, por meio de instituigdes sociais.) Omundo antigo, a disciplina pags, lancow a terra formidaveis criagdes; resist a liberdade modema* a sua rival? Quem fundird esses dois magnificos ele- mentos do poder?** E assim prossegue Peuchet. ta filha de Cristo, ** Para obter dados exatos sobre o suicidio, elaborei o plano de ‘um grande trabalho. Inicalmente fiz uma avaliagio analitica © ppondetada dos autos dos sucidios; em seguida, dispus as carac- {erisicas particulares de cada caso.em tabelasdivididas em varias colunas: 1) a data do evento; 2) onome do individu; 3) seu exo: 4) seu estamento ou profissio; 5) se ele era casado, com ou se fihos; 6) seu género de morte, ou os meios dos quis ele se serv [para se suicidar a sétima coluna era destinada as diversas obs ‘vagées que podiam ser extradas das particularidades presentes ‘as outras colunas. Limitel-me aos anos de 1820, 1821 e 1824 € 8 circunscrigao de Paris, Pareceu-me que esses tés anos bastavam para oferecer objetos de eomparagao sobre onsimero eos motivos conhecidos dos suiidios; acreseentet a isso o resume daqueles «que ocorreram de 1817 3 1824 Sobre o suiciio Por fim, gostarfamos de fornecer uma de suas tabelas sobre os suicidios anuais em Paris. ‘Emoutra tabela divulgada por Peucet,consta que, de 1817 a 1824 (incluiclos), ocorreram 2 808 suicidios om Paris. Naturalmente, 0 mimero é, em verdade, ‘maior. Principalmente em relacio aos afogados, cujos corpos sio depositados no necrotério, apenas em pouquissimas casos pode-se afirmar com certeza se se trata ou nao de um caso de suiicidio® Gesellschaftsspiegel, tomo II, volume VII, p- 14-26. Tabela sobre os suicidios em Paris durante o ano de 1824 Numero 1 semestre 198, 2° semestre . 173, Portanto, 371 Da tentativa de suicidio Sobreviventes sn 1125 Nao-sobreviventes .. 246 Sexo masculino 2.239 Sexo feminino . 132 Solteiros .. 207 Casados ... 164 Tipo de morte Queda voluntaria Queda de cavalo Por instrumentos cortantes ..0. Por arma de fogo 51 Karl Marx Por envenenamento ... Asfixia por carvao. Afogamento voluntario Motivos Paixao, brigas e desgostos domésticos... Doengas, depressao, fraqueza de espirito.. Mé conduta, jogo, loteria, medo de censuras e castigos Miséria, necessidade ou perda de emprego e mudanea de posto de trabalho . Motivos desconhecidos 52 NOTAS DO EDITOR A Gazette de France, fundada em 1631 com 0 supor te do cardeal Richelieu, dedicava-se sobretudo & publicagao de documentos oficiais e de politica ex- teina, Até 1789, gozava de fato de um monopdlio sobre a publicacao das informacdes politicas oficiais Depois da Revolugao, sustentou sua orientagao mo- narquista e perdurou até 1915. Peuchet dirigiu a re- dagao nos anos 1789-1790. © Mercure de France foi um dos primeitos jornais literétios da Franga. Fundado em 1762 como Le ‘Mercure Galant, exerceu um papel central nos deba- tes culturais e artisticos até sua suspensao, em 1832. Quando Mallet du Pan, em 1790, deixou a Franga em missio oficial de Luis XVI, Peuchet assumiu a reda- ‘¢80, que manteve até 1792, Nesse tempo, o Mercure defendia energicamente 0 Fei e 08 principios da mo- narquia contra 0s revolucionarios. Em 1890, uma nova edicao do Mercure de France foi ressuscitada por um _grupo de intelectuais. Durante os Cem Dias, de 20 de margo a 22 de ju- nho de 1815, Napoledo voltou a Franga, saico do exilio, ao qual fora condenado em 1814, depois de sua primeira derrota. Ele retornou ao poder, mas, depois da derrota francesa em Waterloo, foi exilado para sempre. De fato, até 1825. A Assembléia Nacional Constituinte (1789-1791), com a Declaragio dos Direitos do Homem e do Ci- 53 Notas do editor dadao, pos em andamento a Revoluga. Fundou um novo sistema, constitucional, que restringia © poder da monarquia e da Igreja Catdlica. A Convencao Nacional (1792-1794) pds de lado a monarquia fundou a Primeira Repablica, derrubada prontamen~ te na ditadura da faccao jacobina, que implantou 0 Grande Terror, O Tribunal (1799-1807) foi um érg0 legislativo sob Bonaparte, A partir da Restauracio de 1814, a monarquia foi restabelecida com Luis XVII © a Camara dos Deputados vingou-se de Bonaparte e-da Revolucao com uma série de medidas politicas. 6 Otiulo exato 6 Statistique élémentaire de la France @.a data correta da publicagao & 1805, nao 1807. 7 Uma mulher ¢ sua filha vivem na pobreza, porque as jogadas econdmicas do bonapartisno as arruina~ ram financeiramente. Seguindo o desejo de sua mae, a filha se casa com um capitsio em boas condigdes. A mie, que vive com eles, quer, porém, manter 0 dominio sobre a filha, nao obstante a mudanga de sua situagao. A contrariedade entre elas conduz a um conflito aberto. © marido, apreensivo com aqui- lo, ndo ousa intervir. Subitamente a paz familiar retorna, a filha submete-se novamente a autoridade materna, © esposo busca explicacdes, mas depara- se com um muro de siléncio das duas mulheres. Em seguida, abre uma gaveta secreta e dentro dela en- contra cartas, que esto em posse da mae ¢ indicam que a filha, antes do casamento, mantivera relagoes com trés oficiais. A cada um deles ela havia declara- do 0 seu amor imorredouro, apesar da espantosa pro- ximidade temporal entre as trés correspondéncias. © marido, embora afirme que tais agoes de uma mulher, assim como as do homem, devem ser perdoa- das, ndo diz nada sobre a manifesta chantagem que a mulher sofria por parte da propria mae. De ime- dito, comeca a esposa a colocar novamente a auto- Fidade de sua mae em questio. A mae leva, entao, suas ameacas ao pice © convida os Wes oficiais, a quem a filha havia se entregado, para uma refeicao. 54 Sobre 0 suiciio ‘Ao fim das discussbes, 0 esposo e a mulher acabam sempre se desculpando um ao outro sem, no entan~ to, chegar a esclarecer a razdo daqueles contflitos. A jovem mulher desaparece naquela noite. No dia seguinte, seu cadaver 6 encontrado sob uma das pon- tes do Sena, Peuchet indica, com esse relato, a propagada tendéncia de minimizar ou negligenciar, ‘nos outros, 08 sinais do mais extremo desespero. Nos- sa incredulidade diante da inclinagao das outras pessoas ao suicidio corresponde, de um lado, a0 iso- lamento social e, de outro, & moral entaio dominante. Em 1814, uma jovem bordadeira com ambigoes lite- ririas casa-se com um pequeno funcionario. Ela nao ‘o ama, mas consente nas bodas porque uma amiga a convence de que a unido com aquele jover clara: mente ambicioso methorara sua posig’o. A amiga espalha, por toda parte, que se trata de uma relacao amorosa unilateral, de tal modo que essa noticia chega diretamente ao noivo, antes do casamento. A noiva 0 tranqtiliza e dao-se as nipcias. Quase ime- diatamente, © novo esposo torna-se extremamente ciumento. As tentativas de amaind-lo, quando ela atendia a todos os seus desejos, apenas acentuam sua desconfianca. Nesse intervalo de tempo, a jo- vem mulher havia abandonado suas tentativas lite- ririas e renunciado, sob pressao de seu marido, a sair de casa e a receber visitas na auséncia dele, Seu citime violento torna o homem tao confuso que ele logo perde o emprego e passa a trabalhar apenas -ocasionalmente. A mulher comega a preocupar-se por causa de algumas cartas, platonicas porém afe- tuosas, que trocara antes das nupcias com um jovem poeta, la recolhe as cartas, mas hesita em queima- las e as esconde, Um dia, 0 esposo as descobre. Quando ela ousa mostrar-lhas, ele as toma para si, com violencia. Entao, ela ameaca abandoné-lo ou afogar-se caso ele nao thas devolva imediatamente Inseguro, ele Ihe devolve as cartas e deixa a casa por alguns minutos, De volta a casa, nao encontra mais 55 Notas do editor sua mulher e vé apenas os pedagos das cartas quei- madas a esvoagar no fogo da lareira. Ele decide que, dali em diante, sera mais liberal com sua esposa, mas ja & tarde. Perturbada e com pensamentos de suicidio, a jover senhora dirige-se a uma amiga in- tima, que, porém, estava muito ocupada com um héspede forasteito para poder falar com ela. Ela va- gueia pelas estradas e encontra uma mulher muito compreensiva, que a aconselha a voltar a casa; seu marido, diz ela, a recebera novamente e a perdoaré. Quando, no dia seguinte, a mulher ainda esta longe, ‘© esposo comega a anunciar, no seu cfrculo de conhe- cidos, sua resolucao de chamar o poeta e queixar-se aele do assédio sedutor a sua esposa. Dois dias mais, tarde, 0 cadaver dela é encontrado as margens de uma ilha do Sena, Suicidou-se claramente na mes- ‘ma noite em que deixou a casa. Peuchet, com auxt lio dessa noticia, discute como os homens podem ser t20 desprovidos de sentimentos, como podem ser tio maldosamente capazes de intrigar-se com, mas ndo de ver, o que se passa na vida dos outros ho- mens. Procura-se, de preferéncia, um culpado, em vez de uma explicagao efetiva, Finalmente, Peuchet recapitula, em uma passagem bastante curta, de que modo os suicidios, quando se tornam paiblicos, podem arruinar as familias deixa- das para trés, Num caso, um fabricante de latas de conserva, estando diante da ruina, desfere uma bala nna cabega, em seu estabelecimento, ja tarde da noi- te, Pela grande quantidade de pélvora armazenada, sua morte seria facilmente declarada como aciclen- te, mas uma testemunha acasional ouve o surdo tiro € alarma a vizinhanga. O suicidio é descoberto e a familia perde sua heranca, Em outros casos, pessoas so encontradas afogadas e as familias rejeitam a hipotese do suicidio, atribuindo a morte a uma pro- vavel sonoléncia ou distragao das vitimas, Mais tar- de, encontram-se indi ios do suicidio e as familias ficam difamadas. Peuchet pretende, com isso, deixar 56 Sobre 0 suicidtio claro que nem sempre € facil desvendar a causa da morte, Conseqtientemente, ha mais suicidios do que laqueles que sto comprovados, o que Marx sustenta 1no altimo paragrafo do seu ensaio. Marx omite as seis tabelas seguintes, que Peuchet acrescenta no fim do seu ensaio. Duas delas, relativas, ‘hos anos de 1820 e 1821, apresentam dados do mes tno tipo da tabela de 1824, reproduzida por Marx. Uma terceira tabela, bem pequena, compara nmeros de suicidio de 1820 € 1821. Outra tabela apresenta ‘0s dados das tentativas de suicfdio, dos suicidios prati- cados e dos suicidios conforme o sexo para cada ano de 1817 2 1824, Marx deduz o niimero geral de 2808 suicfdios, em que ele ~ como também o faz Peuchet, nas suas exposicOes ~ inclui suicidios e tentativas de suicidio, Em todo caso, a partir dessa tabela, Peuchet chega facilmente aos ntimeros altamente diferencia~ dos do suicidio de homens e de mulheres, aparecendo em cada ano o némero dos suicidios masculinos como aproximadamente 0 dobro dos suicidios femini- nos, Sobre isso, ele escreve: “Notar-se-4, neste ponto, {que 0 nlimero das mulheres é muito mais baixo que dos homens, seja porque elas suportam mais corajo- samente as necessidades da vida, renclem-se menos 2 elas ou tém mais sentimentos religiosos, que thes dio forga nesses momentos tertiveis;seja,finalmente ~ 0 queré bastante posstvel -, porque a aflicao, uma ‘vez que 6 capaz de maté-las, tra-thes do alcance até mesmo 0 poder de decisao”. Uma tabela seguinte s+ estabelece o nimero dos afogados ou dos salvos de afogamento e seus seX0s nos anos de 1811-1817, Uma Gltima tabela documenta, do mesmo modo, para os anos de 1811-1817 e segundo 0 sexo e o local onde foram encontrados, 0 ntimero das vitimas de suicfdio io de Paris. Um problema fundamental no necrot fem todas essas tabelas consiste em que Peuchel expoe separadamente seus nimeros totais por sexo, mas na segundo suas diferentes subcategorias (p. ex., suic dios vs, tentativas de suicidio, motivos do suicidic 87 Notas do editor ‘ou modo de execuco). Porém, se apontamos esses limites, também devemos nos lembrar de que essas tabelas representam ainda uma tentativa muito incipiente de apresentar estatisticas sociais, 58 INDICE ONOMASTICO, BALZAC, HONORE DE (1799-1850). Eseritor francés, formou-se em Direito, atuou como jornaista, mas tornou-se eélebre com seus romances, que 0 alga ram a condigao de pai do reatismo na literatura eu: ropéia, junta com Flaubert. Asseverando que “um s6 homem deve ter © poder de fazer leis", defendia ‘a monarquia constitucional como forma mais eleva dda de governo, alicergada em uma aristocracia do tipo feudal, e questionava a igualdade e a liberdade bburguesa, duvidando da capacidade de autodet rminagao dos povos. £m A comédia humana estao reunidos mais de noventa romances e contos, que juntos fornecem uma detalhada descrigao da socie- dade francesa da época. p.15, 17 CARLYLE, THOMAS (1795-1881), Historiador eensaista escocfs, foi um dos expoentes do “socialismo feu- dal’, Mar destacou nele 0 mérito de se haver mani- festado, j& a0 comeco, contra a burguesia, em uma = €paca em que as concepcoes desta mantinham subjugada toda a literatura oficial inglesa”, mas citi cou, a0 mesmo tempo, suas posigbes reacionsrias dante da classe operatia, bem como sua “apoteose ant-histérica da Kdade Média” e seu culto aos hers ‘Abra de Carlyle é marcada por uma concep {inal da histéria como fruto da vontade divina e do heroismo dos grandes homens. Ene suas obras, pode- se destacar a Histvia da Revolugdo Francesa, eserita fem 1837. p.17 fea) eo

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