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Normal-Patolégico, Satide-Doenga: Revisitando Canguilhem * MARIA THEREZA AVILA DANTAS COELHO ** NAOMAR DE ALMEIDA FILHO *** RESUMO Este artigo pretende reavaliar a obra de G. Canguilhem sobre a normalidade, a sade, a doenca e a patologia, Discute inicialmente a critica canguilhemiana da abordagem positivista da dicotomia normal-patol6gico, avaliando-a como insatisfat6ria porque reafirma a disjungSo qualitativo-quantitativo. Analisa ainda a distingdo entre normalidade ¢ saiide, juntamente com a proposigao da saiide como capacidade normativa. Por fim, apresenta a reflexio ética pioneira de Canguilhem sobre a engenharia genética e a sua proposta de distingao entre saiide privada (subjetiva) ¢ savide péblica, apontando para a necessidade de investigagées epistemoldgicas sobre o conceito de satide. Palavras-chave: Saiide, normalidade; epistemologia; Canguilhem. * Trabalho realizado com apoio do Consetha Nacional de Desenvolvimento Cientifico ¢ Tecnolégico (CNPq), sob a forma de Bolsa de Mestrado para o primeiro autor ¢ de Bolsa de Produtividade para o segundo (Proc. '520573/95-1), Os autores agradecem a valiosa colaboragao de Jairnilson Silva Paim, Lfgia Vicira da Silva e ‘anénimos revisores de Physis, cuja leitura erftica tigorosa muito contribuiu para 2 versio final do presente texto. ++ PsicSloga, membro do Colegiado Diretivo do Colégio de Psicanélise da Babia, doutoranda no Programa de Pés-Graduagfo em Satide Coletiva - Instituto de Satide Coletiva da Universidade Federal da Bahia. «#4 Ph.D, Ditetor do Instituto de Satide Coletiva da Universidade Federal da Rahia, Pesquisador I-A do Conse- tho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecaolégico (CNPq). PHYSIS: Rev. Saiide Coletiva, Rio de Janeiro, 9(1): 13-36, 1999 13 Maria Thereza Avila Dantas Coelho / Naomar de Almeida Filho ABSTRACT Normal-Pathological, Health-Disease: Revisiting Canguilhem This paper evaluates the work of the French philosopher G. Canguilhem on the relationship of the concepts of health, normality, disease and pathology. Canguilhem’s critique of the positivistic approach on the dichotomy normal- pathological is considered unsatisfactory, because it reinforces the disjunction uantitative-qualitative, The distinction between normality and health, as well as the conception of health as normative capacity, is analysed. Finally, his pioneer ethical reflection on genetic engineering and his distinction between private, subjective health and public health are presented, pointing to the need for epistemological researches on the health concept. Keywords: Health; normality; epistemology; Canguilhem. RESUME, Normal-Pathologique, Santé-Maladie: En Revisitant Canguilhem Ce texte analyse ’ocuvre du philosophe ftangais G. Canguilhem sur les rapports entre les concepts de santé, normalité, maladie et pathologie. La critique de Canguilhem sur Papproche positiviste de la dichotomie normal-pathologique y est considerée comme insatisfaisante, parce qu'elle réaffirme la disjonction quantitatif-qualilatif, La distinction entre normalité et santé, ct également la conception de santé en tant que capacité normative, y sont analysées. A Ia fin, il présente la réflexion éthique pionnigre de Canguilhem sur le génie génétique et sa proposition de distinction entre santé privé subjective et santé publique, en soulignant la nécessité de recherches épistémologiques concernant le concept de santé. Mots-cli Santé; normalité; épistémologie; Canguilhem. Recebido em 19/10/98. Aprovado em 20/05/99. 4 PHYSIS: Rev. Satide Coletiva, Rio de Janeiro, 9(1); 13-36, 1999 Normal-Patolégico, Saiide-Doenga: Revisitando Canguilhern Introdugio A obra de Georges Canguilhem (filésofo francés contemporaneo, nascido em Castelnauday, em 1904) desempenhou imporiante papel na etapa inicial de construgio da Satide Coletiva no Brasil. Os estudos pioneiros de Sérgio Arouca (1975), Anamaria Tambellini (1976) e Cecilia Donnangelo (1976), entre outros, buscaram estabelecer uma critica filosdfica do pensamento sanitério tradicional, com base numa perspectiva marxista, porém referindo- se principalmente as obras de Bachelard, Canguilhem ¢ Foucault'. Certa- mente que tal movimento foi bastante facilitado pelo fato de que dois desses autores efetivamente haviam analisado temas da drea de satide: Foucault e a histéria da loucura, da clinica e dos hospitais, Canguilhem e os modelos da explicagao biolégica ¢ 0 bindmio normal/patol6gico. Uma interessante hipdtese de histéria das ciéncias, a ser devidamente considerada, pelo menos para alguns desses autores, € que essa referéncia teria funcionado, dentre outros motivos, como uma camuflagem da base tedrica marxista das andlises propostas, num momento de intensa represséo politica e censura ideolégica. Faz, parte do anedotario da época que 0 capi- tulo metodolégico da tese de Sérgio Arouca (1975) sobre o “Dilema Preventivista” (alias, o inédito paradoxalmente mais difundido de que temos noticia) havia sido escrito de modo hermético ¢ propositalmente pouco compreensfvel, justamente para desencorajar censores € outros leitores indesejados. Desse modo, tanto Foucault como Canguilhem inadvertidamen- te vieram a adquirir, na literatura sanitarista latino-americana, uma respei- tosa consideragio como expoentes tedricos de um pensamento epistemolégico de esquerda. Da parte de Foucault, essa aura foi rapidamente revisada, por iniciativa principalmente do préprio autor, com sua guinada genealégica nietzschiana, no inicio da década de citenta (Rabinow, 1984). O mesmo nao ocorreu com a epistemologia de Canguilhem, que, protegido de andlises criticas mais ptofundas, talvez pelo desconhecimento do conjunto da sua obra”, continuou a ser referida como base conceitual para importantes empreendimentos ted- ricos fundamentados no marxismo no campo da Satide Coletiva. O exemplo mais marcante desse cfeito talvez seja a teoria do “processo de trabalho ¢ 1 Para Machado (1981), tais autores constituem uma Tinhagem da filosofia da ciéneia enquanto histéria epistemolégica. 2 No campo da Saiide Coletiva, os trabalhos de Mendes-Gongalves (1984) € Ayres (1995) constituern talvez importante excegdo a esse “siténcio analitico”. PHYSIS: Rev, Salide Coletiva, Rio de Janeiro, 9(1): 13-36, 199915 Maria Thereza Avila Dantas Coelho / Naomar de Almeida Filho satide”, elaborada por Laurell e colaboradores (Laurell e Noriega, 1989; Laurell, 1991), extremamente influente na 4rea da Satide do Trabalhador, que toma, em segunda mio, a expressio “modo de andar a vida”, suposta- mente origindria da obra de Canguilhem, como conceito-chave. ‘Sem a pretensio de elucidar essas intrigantes hipsteses “genealdgicas”, © presente ensaio busca discutir brevemente alguns elementos da obra canguilhemiana que poderiam compor uma teoria geral da satide. O trata- mento critico de algumas dessas proposigées, apresentado na seqiiéncia, poderd resultar num conhecimento mais bem contextualizado das contribui- Ges de Canguilhem, de certo modo abrindo espago para reavaliar as suas potencialidades enquanto fundamento teérico e epistemolégico de um pen- samento sanitério progressista. Normalidade e Patologia No século XIX, a identidade entre os fendmenos vitais normais ¢ pato- légicos apresentava-se como um dogma cientificamente endossado pela bio- logia e pela medicina (Canguilhem, 1943). Segundo a doutrina de Broussais, a distingao entre o normal e o patolégico era de natureza quantitativa, tanto para os fendmenos organicos quanto para os mentais. A doenga consistia em falta ou excesso de excitagdo dos tecidos abaixo ou acima do grau que constitui o estado normal. Nessa concepgao, a satide ¢ a doenga nao passa- vam de um mesmo estado ¢ dependiam de estimulos que variavam, nos diferentes casos, apenas por nivel de intensidade. O positivismo de Comte (1854), influenciado pelas idéias de Broussais, tinha como objetivo determinar as leis da normalidade capazes de funda- mentar uma doutrina politica de base cientifica. Assim, a politica implicaria uma terapéutica das crises sociais buscando o retorno das sociedades 4 sua estrutura essencial e permanente. Para isso, 0 conhecimento do estado nor- mal dos homens e das sociedades deveria preceder o do estado patolégico individual ¢ social. Embora Claude Bernard nao se refira a Comte, sabe-se que ele o leu com bastante atengao (Canguilhem, 1943). A fisiologia de Bernard expressou, no campo médico, a exigéncia de uma época que acreditava na onipoténcia da técnica baseada na ciéncia. A identidade essencial entre fendmeno fisiolégi- co e patolégico era conseqiiéncia do postulado determinista, que explicava os fendmenos reduzindo-os a uma medida comum ¢ tornando-os homogéneos, tal como na ffsica. A idéia positivista fundamental, comum a Comte e a 16 PHYSIS: Rev. Sailde Coletiva, Rio de Janeiro, 9(1): 13-36, 1999 Normal-Patolégico, Sadde-Doenga: Revisitando Canguilhem Claude Bernard, que se deve conhecer cientificamente para agir, ou seja, a técnica é a aplicagao direta de uma ciéncia. Em 1943, Georges Canguilhem defendeu a sua tese de doutorado sobre o normal e o patolégico. O argumento de fundo dessa obra é que se trata de dois fendmenos qualitativamente diferentes e opostos, que implicam forgas em luta. Dessa maneira, Canguilhem (1943) contrariava 0 pensamento do- minante da época, segundo 0 qual os fendmenos patolégicos seriam meras variagdes quantitativas dos fenémenos normais’. Para Canguilhem (1943), o contetido do estado patolégico nao pode ser deduzido, de maneira Idgica ou analégica, do contetido da satide, pois o primeiro € uma nova dimensio da vida, uma estrutura individual modificada, As reagées patolégicas jamais se apresentam no individuo normal da mesma forma e nas mesmas condigées, pois o patolégico implica uma relagio com um meio novo, mais limitado, j4 que o doente nao consegue mais responder as exigéncias do meio normal anterior. Segundo Canguithem (1943), a redugao comteana da natureza qualitativa do normal e do patolégico a uma perspectiva quantitativa seria devida a dois fatores: & necessidade de o organicismo se afirmar pela oposigao & concep- ¢io vitalista dominante e ao desejo terapéutico de intervengiio sobre o pa- tolégico. Com relac&o ao primeiro fator, como a doenga era associada ao deménio e ao pecado, a afirmagao da identidade quantitativa entre o normal e o patolégico teria servido para engendrar uma concepgao monista de re- cusa do mal. Dessa maneira, Comte teria tomado partido na polémica antivitalismo, reafirmando as implicag6es religiosas daquela doutrina. Com relagdo ao segundo fator, antes de Comte, pensava-se que 0 patolégico ¢ o normal obedeciam a leis completamente diferentes, ¢ que intervir no pato- légico nao produziria efeitos de normalizagao, jé que se tratava de naturezas distintas. Canguilhem (1943) observou a auséncia de qualquer exemplo médico concreto na exposigio de Comte, que Ihe pareceu demasiado abstrata. Considerou uma séria lacuna na proposta comteana a falta de critérios para reconhecer a normalidade de um fenémeno. Afirmou que a conti- nuidade dos estdgios intermedidrios entre 0 normal e o patolégico nado anula a diversidade dos extremos, de modo que estes sdo contfnuos mas 3 Posteriormente, Canguilhem (1968) amplia a sua andlise da filosofia bioldgica de Comte ¢ da coniribuigo de Claude Bemard para a medicina experimental, na coletinea Etudes d'histoire er de Philosphie des sciences. NSo obstante, nessa obra mais recente, pouco atualiza da sua discussio anterior sobre 0 normal € 0 patolégico. PHYSIS: Rev, Saiide Coletiva, Rio de Janeiro, 9(1): 13-36, 1999 17 Maria Thereza Avila Dantas Coelho / Naomar de Almeida Filho nao homogéneos. Um comportamento do organismo pode estar em con- timnidade com os comportamentos anteriores ¢ ser, a0 mesmo tempo, um comportamento novo, diferente. Para ele, a perspectiva comteana con- fundia 0 cdlculo abstrato das identidades com a apreciagao concreta das diferengas. Canguilhem (1943) reconheceu a importincia da perspectiva comteana sobre o normal e o patolégico para o século XIX, mas considerou-a insatisfat6ria para o século XX. A idéia de uma anormalidade origindria, de um erro genético, surgida na década de 30 nas obras de Goldstein e Leriche, dentre outros, teria engendrado essa nova forma de ver a doenga como uma variagéio qualitativa do normal. No século XX, a medicina dos fenémenos organicos e a dos fendmenos mentais apontaram para uma diferenga quali- tativa entre o normal e 0 patolégico. Para Canguilhem (1943), o fracasso da teoria positivista sobre 0 normal € 0 patolégico decorreria do fato de ela se apoiar no argumento da variacao quantitativa para distinguir os dois fenémenos e nao conseguir definir esta mesma varia¢ao, continuando a utilizar termos qualitativos, como exagero & desarmonia, para designar o patolégico. O que parecia ser simples aumento ou diminuigado da quantidade passava a ser visto como uma alteragdo no todo, Além do mais, nem toda doenga implicava uma variagdo quantitativa da normalidade. A alcaptontria, resultante do metabolismo incompleto da tirosina, tomada como exemplo por Canguilhem (1943), nao teria relagiio quantitativa com o processo normal. A impossibilidade de definigfio da medida de normalidade, acima ou abaixo da qual se apresentaria 0 patoldgico, po- deria significar a ressurreig&o da idéia de perfeicao, de satide ideal, e impli- car tanto a possibilidade tedrica de existir apenas doentes, quanto a de que eles nao existiriam, Mas afirmar a inexisténcia da satide perfeita nao impli- caria negar a existéncia da satide, mas sim postular que ela se sustentaria nao como existéncia, mas como norma com a qual a existéncia deveria buscar se conformar. ‘Um objeto ou fato normal se caracteriza por ser tomado como ponto de referéncia em relagiio a objetos ou fatos ainda & espera de serem classifica- dos como tal (Canguilhem, 1943). O sentido da norma era existir, fora dela, algo que nfo correspondesse sua exigéncia. Normalizar seria impor uma exigéncia a uma existéncia. O anormal, do ponto de vista légico, deve ser posterior & definigao do normal, designando a negacao deste. No entanto, do ponto de vista existencial, esse anormal era considerado como anterior ao normal, provocando uma inteng’o normativa. 18 PHYSIS: Rev. Sade Coletiva, Rio de Janeiro, (1): 13-36, 1999 Normal-Patolégico, Saéde-Doenga: Revisitando Canguilhem De acordo com a cuidadosa argumentacao de Canguilhem (1943), nao seria a auséncia de normalidade que constituiria o anormal, ou seja, 0 patolégico também seria normal, pois a experiéncia do ser vivo incluiria a doenga. O patolégico implicaria uma certa forma de viver, pois néo haveria vida sem normas de vida. O estado fisiolégico seria mais o estado so do que o estado normal, j4 que todo estado vital seria normal € 0 normal patoldgico seria diferente do normal fisiolégico. A qualidade que diferenciava o estado de satide do estado patolégico seria a abertura a eventuais modificagdes, pois essa abertura estaria presente na satide e ausente no estado patolégico, o que conferiria 4 doenga um carater con- servador. O estado de doenga constitufa, portanto, uma norma de vida inferior, incapaz de se transformar em outra norma de vida, e o doente seria aquele que teria perdido a capacidade normativa por nao poder mais instituir nor- mas diferentes sob novas condigdes (Canguilhem, 1943). A satide se carac~ terizaria pela possibilidade de ultrapassar a norma que define o normal momentineo, tolerando as infragdes & norma habitual e instituindo novas regulagdes para novas situagSes. A cura nao implicaria satide, necessaria~ mente. A cura poderia estar mais proxima da doenga ou da satide se, na estabilidade que ela proporcionasse, estivesse ausente ou presente a abertura a eventuais modificagées. Canguilhem (1943) nao postula a existéncia do patolégico em si, j4 que 0 carater patolégico s6 pode ser apreciado numa rela¢ao. Tornou-se clas- sica a ilustragdo de que um individuo com astigmatismo seria normal numa sociedade agricola e anormal na marinha ou aviagao. Além do mais, a propria norma mudaria ao longo do tempo. As novas invengoes tornar- se-iam necessidade e ideal para os individuos que, em sua Ansia de domi- nar o meio, poderiam ser normais ou anormais com os mesmos Orgaos, a depender da sua capacidade de lidar com os novos instrumentos. Assim, no que diz respeito a velhice, seria sadia a pessoa que manifestasse uma capacidade de adaptagdo ou de reparagdo dos desgastes organicos que outro nao revelasse. Sob esse prisma, a norma seria sempre individual, ou seja, ela nao seria a média, mas sim uma nogio-limite que definiria 0 maximo da capacidade de um ser. A média, por si s6, nao seria capaz de estabelecer 0 normal ou anormal para determinado individuo, j4 que certos desvios individuais nao seriam necessariamente indices patolégicos. Cada individuo teria a sua pré- pria concepgio do que seria o normal para si mesmo. Para ilustrar esse PHYSIS: Rev. Sade Coletiva, Rio de Janeiro, 9(1): 13-36, 1999 19 Maria Thereza Avila Dantas Coelho / Naomar de Almeida Filho ponto, Canguilhem (1943), filésofo infiltrado no olimpo médico*, busca ajuda em fontes de alta credibilidade. Do neurologista Goldstein: um individuo poderia se sentir capaz de realizar certas atividades em condigdes organicas que, para um outro individuo, seriam inadequadas para a realizagao da ta- refa. Do mais eminente historiador da medicina, Henry Sigerist: se Napoledo conseguiu satisfazer as exigéncias que The eram impostas com um pulso de quarenta contragdes por minuto, quando o mimero médio era de setenta pulsagdes, € porque o pulso de quarenta era normal para ele. Assim, se a fronteira entre o normal ¢ 0 patolégico era imprecisa para diversos indivi. duos considerados simultaneamente, ela seria precisa para um Unico indivi- duo considerado sucessivamente, pois, num mesmo individuo, esse limiar poderia variar ao longo do tempo. O que fosse normal numa situagao pode- ria se tornar patolégico noutra, caso permanecesse inalterado. Observou Canguilhem (1943) que o médico nao se interessa pelos con- ceitos de satide e doenca porque estes Ihe parecem excessivamente vulgares ou metafisicos. Interessa-lhe diagnosticar e curar, fazer voltar ao normal. A definigio médica de normalidade é tomada, sobretudo, da fisiologia. Por isso, nao se considera que a doenga seja uma nova forma de vida. Para Canguilhem (1943), o homem faz. a sua dor e a sua doenga, julgando se estas deixaram de ser normais ou se voltaram a sé-lo. Voltar a ser normal € retomar uma atividade interrompida, nao ser invdlido para ela. Uma terapéu- tica deve respeitar 0 novo modo de vida instaurado pela doenga, nao agindo intempestivamente no sentido do retorno ao normal. A vida nao conhece a reversibilidade, mas admite reparagGes (as curas), que sdo inovagées fisio- logicas. A cura no implica a saiide, necessariamente. A cura pode estar mais préxima da doenca ou da satide se, na estabilidade que ela proporciona, encontra-se ausente ou presente a abertura a eventuais modificagées. Se os médicos utilizam técnicas de laboratério que thes permitem reco- mhecer como doentes pessoas que assim nao se sentem € porque, no passado, a sua atengdio para certos sintomas foi despertada por pessoas que sofriam ou se queixavam de ndo serem mais as mesmas, suscitando o conhecimento que se tem hoje (Canguilhem, 1943). Uma observagio anatémica ¢ histolégica, um teste fisiolégico, um exame bacteriolégico ou de outra natureza nao diagnosticam por si mesmos. Fornecem apenas um resultado. Para fazer um +A formagao basica de Canguilhem € em filosofia, Posteriormente, ele cursa medicina com © objetivo ‘de completar a sua formago de historindor das ciéncias (Roudinesco, 1988) e, conforme confessa (Canguilhem, 1943), para ser apresentado a problemas humanos concretas. 20 PHYSIS: Rev. Satide Coletiva, Rio de Janeiro, 9(1): 13-36, 1999 Normal-Patolégico, Satide-Doenga: Revisitando Canguilhem diagnéstico é preciso observar 0 comportamento do doente. O diagnéstico pode até mesmo contrariar tal resultado. Em matéria de patologia, a primeira palavra e a ultima sfo da clinica. A clinica nao é uma ciéncia, mesmo que utilize meios garantidos por ela. A clinica é insepardvel da terapéutica, cujo fim escapa ao saber objetivo, na medida em que implica a satisfagao sub- jetiva de saber que uma norma esté instaurada, que se sente normal, em posi¢io normativa. Em suma, para Canguilhem (1943), néo hé patologia objetiva. Objetivamente, s6 se pode definir variedades ou diferengas, sem valor vital positivo ou negativo. Foucault (1976), inicialmente aluno herdeiro de Canguilhem, pretendeu aprofundar a andlise do mestre, postulando uma diferenga essencial entre 0 conflito normal e o “absurdo patolégico”. O conflito normal dilacera a vida afetiva do sujeito a partir do exterior, ou seja, implica uma situagao ambi- gua, estimuladora de formas opostas de conduta e perturbadora da estabili- dade do sujeito, criando incoeréncias e causando atos que provocam remor- so. J4 0 absurdo patoldgico é animado de dentro pela contradigao e implica uma ambivaléncia da experiéncia e uma histéria patolégica marcada pela monotonia circular. O absurdo patolégico faz com que o doente se defenda contra a ansiedade com mecanismos limitados que servem apenas para au- mentar a propria ansiedade, Os Conceitos de Satide em Canguilhem Assinala Canguilhem (1978) que nao foi por acaso que a palavra normal, derivada do nomos grego e do norma latino (cujo significado € lei), surgiu no século XVII, em 1759, significando aquilo que n&o se inclina nem para a direita, nem para a esquerda, ¢ que se conserva num justo meio-termo. Embora a temdtica da normalidade fosse tratada desde a Grécia Antiga, este termo s6 ressurgiu quando, com o movimento da Revolugao Francesa, a burguesia funda uma nova ordem capaz de funcionar como norma para toda a sociedade: a ordem econ6mica capitalista. Com isso, a medicina adotou uma nova postura normativa, Com a concomitante industrializagao e complexificagéio do trabalho, tornou-se necessirio o estabelecimento de novas normas e padrdes de comportamento. O rendimento e a satide individual passaram a ser indispensdveis ao bom funcionamento da nova engrenagem social (Foucault, 1980). Até o fim do século XVII, como também nos elucida Foucault (1980), a medicina referiu-se mais & satide do que 4 normalidade. Ela apontava para PHYSIS: Rev, Satide Coletiva, Rio de Janeiro, 9(1): 13-36, 1999 21 Maria Thereza Avila Dantas Coelho / Naomar de Almeida Filho as qualidades de vigor, flexibilidade e fluidez que a doenga faria perder ¢ que se deveria restaurar, A pritica médica pré-Revolugao Industrial desta- cava o regime, a dietética, enfim, toda uma regra de vida e de alimentagao que o individuo impunha a si mesmo. J4 a medicina do século XIX se apoiava na andlise de um funcionamento regular, normal, para detectar onde © individuo teria se desviado. A partir das reformas da instituigdo pedagé- gica ¢ da instituicao sanitéria, 0 termo normal passou a ser utilizado pelo povo, significando o estado da satide organica ¢ 0 protétipo escolar, confor- me © indfcio de que a escola normal era aquela que ensinava a ensinar (Canguilhem, 1978). A partir da segunda metade do século XIX, surgiram novos padroes de normalidade no Ambito da medicina geral e mental, bem como no Ambito das nascentes ciéncias humanas — sociologia e psicologia. Buscava-se in- tervir sobre o individuo humano, seu corpo, sua mente, ¢ nao apenas sobre o ambiente fisico, para com isso normalizd-lo para a produgao. Nessa pers- pectiva, o homem, tal como a maquina, poderia ser consertado € programa- do. Listar as possibilidades normais de rendimento do homem, suas capaci- dades, bem como os parametros do funcionamente social normal passou a ser tarefa da psiquiatria, psicologia e-sociologia. Com a descoberta, neste século, dos chamados erros inatos do metabo- lismo, as enzimas foram metaforicamente consideradas como intérpretes das mensagens genéticas no processo de sintese das proteinas (Canguilhem, 1978). O organismo passa a ser visto como uma espécie de linguagem. Concebe- se que a propria vida, a prépria natureza erra. Uma hemoglobina pode trans- mitir informagées erradas, como uma fala ou um escrito. Uma doenga de- terminada geneticamente torna-se um mal-entendido. Deixa de ser falta ou excesso da parte de um individuo ou grupo, para ser um acaso genético, nado implicando mais uma responsabilidade individual ou coletiva, Na medida em que 0 erro genético nio tem um autor, ele dissolve o sentimento de culpa individual. Se até 0 século XIX 0 médico visava apenas a restabelecer o estado vital inicial do paciente, do qual a doenga o havia afastado, no século XX ele também poderia decidir sobre a nao geragio de seres doentes por fatores genéticos e sobre a elevagao do padrao de normalidade (Canguilhem, 1978). Verifica-se, entdo, a regularidade dos genes antes da proctiacio e se inter- rompe a gestago quando se constata no bebé uma doenga que nao pode ser corrigida. O chamado “aborto terapéutico” passou a ser legitimamente ado- tado pela medicina de alguns paises ocidentais, contrariando a prépria I6gica 22 —_-PHYSIS: Rev. Saside Coletiva, Rio de Janeiro, 9(1): 13-36, 1999 Normal-Patolégico, Satide-Doenga: Revisitando Canguilhem médica de promogao da vida. A partir do langamento do programa de eria- go de uma sociedade sem diferengas, através da eugenia, o homem passaria a ter a obrigacio moral e social de intervir sobre si mesmo, através das técnicas de conservagio do material seminal e da inseminagao artificial, a fim de se elevar ao nivel intelectual mais alto e vulgarizar 0 génio. Um debate ético surgiu, entio, visando a discutir se a norma de um individuo deveria ser determinada por ele mesmo ou por um geneticista, ov seja, se uma intervengio dessa natureza deveria ser necessariamente uma decisao individual ou grupal (Canguilhem, 1978). Sendo grupal, poder-se-ia desembocar numa policia genética de caga aos polimorfismos heterodoxos, bem como numa privagao do direito de gerar por parte dos genitores suspei- tos de ser portadores de anormalidades cromossémicas. Tsso redundaria num simulacro do admirdvel mundo novo projetado por Huxley, no qual nao haveria doentes nem médicos e todos seriam normais. Nesse caso, todos seriam normais nio porque haveria diferentes normas ¢ todas elas seriam sandaveis, mas porque s6 existiria um tipo de norma, a que nao admite a doenga, ¢ esta norma nao seria s, ela seria patol6gica. Partindo da afirma- tiva de que todos seriam normais, Canguilhem (1978) desemboca na propo- sigio de que todos seriam patoldgicos, ou seja, normais patolégicos, o que termina por constituir uma concepgio monista de auséncia de satde. Para ele, o homem normal saudavel teria que se sentir capaz de adoecer e de afastar a doenga. Se a possibilidade de testar a satide através da doenga lhe fosse eliminada, o ser humano nio teria mais a seguranca de ser normal e de poder enfrentar qualquer doenga que porventura viesse a surgir. Isso, paradoxalmente, configuraria uma nova e devastadora patologia, a patologia da satide perfeita. Segundo Canguilhem (1965), a atividade clinica e o pensamento médico sao incompreensiveis sem os conceitos de normalidade, satide, doenca e patologia, sendo necessario que estes se tornem claros, talvez através do que Bunge (1994) termina por conceituar como uma iatrofilosofia. Como vimos acima, nos seus primeiros escritos, cle ressaltou a ambigilidade do termo normal, que ora se refere a uma média, ora a um ideal. Uma das razées da identidade entre satide e valor € de natureza etimolégica: valor origina-se da palavra latina valere, que significa portar-se bem, passar bem de satide (Canguilhem, 1965). Nessa perspectiva, a hip6tese foucaultiana, segundo a qual a dimensdo normativa da satide é uma invengio da modemidade, parece insustentavel. O proprio Foucault (1980) afirmou que a pritica médica anterior ao século PHYSIS: Rev. Sade Coletiva, Rio de Janeiro, 9(1): 13-36, 199923, Maria Thereza Avila Dantas Coelho / Naomar de Almeida Filho XIX implicava uma regra de vida. Como nao reconhecer nessa regra de vida uma dimensdo normativa? A medicina pré-cientifica também buscava um funcionamento regular ¢ normal. As praticas de satide publica (como a quarentena, o isolamento, acender fogueiras e desinfetar o ar através de perfumes e enxofre) eram normativas. Elas visavam a assegurar 0 ideal da satide. Recomendava-se a moderago no comer, no beber, no relacionar-se sexualmente, banhar-se e suar (Czeresnia, 1997). Segundo Foucault (1980), a norma da satide do século XIX teria substi- tuido o ideal religioso da salvagiio. O que dizer, entdo, da associagao pré- cientffica entre a satide ¢ a propria salvacdo? A doenga estava associada ao pecado, Uma das prescrigdes para sc ter satide era no pecar. A idéia da satide como um ideal, uma norma, um modelo 6, portanto, anterior & modernidade. A satide enquanto valor nao € algo que s6 se consolida neste século, como também afirmou Berlinguer (1978). Desde a Antigilidade, ela implica a norma, 0 ideal, o valor e se refere aos padrées sociais aceitos, estimados e desejados. Canguilhem (1965) questiona se os conceitos de patolégico e anormal, por um lado, ¢ os de normal e sdo, por outro, seriam idénticos, na mesma medida em que o normal e o patolégico seriam conceitos contrarios ou contraditérios. Ele conclui que o patolégico nao é 0 contraditério Iégico do conceito de normal. O patolégico nao é a auséncia de normas, mas a pre- senga de outras normas vitalmente inferiores, que impossibilitam ao indivi- duo viver um modo de vida anterior, permitido aos individuos sadios. A rigor, 0 patolégico ser4 0 contrério vital do sadio. Nessa perspectiva de Canguilhem (1978, 1965), a satide constitui um certo jogo de normas de vida e de comportamento, que se caracteriza pela capacidade de tolerar as variages das normas. O homem sé é sadio quando capaz de muitas normas, quando é mais do que normal. A satide constitui uma certa capacidade de ultrapassar as crises organicas para instalar uma nova ordem fisiolégica. Biologicamente assegurada pela vida, a satide sig- nifica o luxo de se poder cair doente e se restabelecer. As possibilidades do estado de satide séo superiores as capacidades normais. No que se refere ao psiquismo humano, para Canguilhem, a norma é a reivindicagdio e 0 uso da liberdade para a revisdo e a instituig¢éo de normas, o que implica “normal- mente” o risco da loucura. Quem pode sustentar que o anormal nao obedece As normas? Ele pode ser anormal justamente porque as obedece em demasia. O conceito de normal ser4 sempre, por conseguinte, um conceito normativo e filoséfico. 24 PHYSIS: Rev. Satide Coletiva, Rio de Janeiro, 9(1): 13-36, 1999 Normal-Patolégico, Saide-Doenga: Revisitando Canguilhem Em 1988, Canguilhem retoma o assunto numa conferéncia sobre a satide ministrada na Universidade de Estrasburgo (Canguilhem, 1990). Realiza um excurso etimolégico: 0 termo satide, originado do termo latino sanus, possui ascendéncia grega (sdos) e envolve dois sentidos: integro, intacto ou bem conservado e infalivel ou seguro. Daf a expressio popular sdo ¢ salvo. Revisitando as idéias de Hipécrates, Descartes, Leibniz, Diderot, Kant, Leriche, Valéry, Michaux, entre outros, Canguilhem observa que, ao longo da historia, a satide foi tratada como se ela nao pudesse ser apreendida pela tazBo € nao devesse pertencer ao campo cientifico. Na Grécia Antiga, por exemplo, Epicteto j4 considerava que a aplicaco da satide aos objetos ¢ ao comportamento era incerta. No século XVIII, Kant teria afirmado que a satide é um objeto fora do campo do saber e que, por isso, nao é um conceito cientifico, mas uma nogio vulgar, popular, ao alcance de todos. No século XIX, Daremberg propunha gue, em um estado de satide, todas as fungGes se cumprem no siléncio. J4 no século XX, René Leriche afirmara que “a satide a vida no siléncio dos érgaos”* ¢, Henri Michaux, que a saxide € silenciosa. Compreensivelmente, o velho Canguilhem parece simpatizar mais com 05 fildsofos que, como Nietzsche, postularam que a satide implica a doenga, no confronto e na superagiio das tendéncias mérbidas. Para Nietzsche, 0 corpo séo seria um corpo completo, cujos Angulos sao retos, feitos com 0 esquadro, sendo a satide a retido, a confiabilidade e a completude, que poré & prova todos os valores e todos os desejos. ‘A idéia de que a satide € algo individual, privado, singular ¢ subjetivo foi também defendida peto eminente filésofo Hans-Georg Gadamer (1996), um dos principais expoentes da hermenéutica contemporfnea. Segundo esse autor, © mistério da satide reside em seu cardter escondido, enigmatico. A satide nao se apresenta as pessoas, nao pode ser medida, porque implica um acordo interior © ndo pode ser controlada por forgas externas. Gadamer chega a dizer que o mistério da satide € 0 mistério da vida. A distingao entre a satide ea enfermidade no pode ser claramente definida. Trata-se de uma distingao pragmitica, a que s6 tem acesso a pessoa que estd se sentindo enferma e que, por nao poder mais lidar com as demandas da vida, decide ir ao médico. J4 antecipando uma posigdo antag6nica a de Gadamer, Canguilhem (1990) questiona a excluséo da satide como objeto do campo cientifico. Ele con- 5 A esse respeito, vide a critica de Clavreul (1980) a Leriche. Segundo 0 primeiro autor, quando Leriche diz que a sade 0 silencio dos Srgios, esquece que as tensGes do desejo sexual da fome no so silenciosas. Para ele, uma boa satide sem estados de tensdo (como a fome ¢ o desejo sexual) no seria satide, PHYSIS: Rev. Saiide Coletiva, Rio de Tanciro, 9(1): 13-36, 199925 Maria Thereza Avila Dantas Coelho / Naomar de Almeida Filho sidera que a satide se realiza no genétipo e na relagao do individuo com o meio, opondo uma satide filoséfica a uma sade cientifica. Enquanto que a satide filos6fica € a satide individual, a satide cientifica teria sido a satide piiblica’, ou seja, a salubridade e a doencga. O corpo pode ser um dado ou um produto. Sendo algo dado por um gendtipe singular, a satide corresponde. aum estado, A verdade do corpo, & auséncia de erros no cédigo genético. Ela é uma prova de que o corpo vivo é possivel, j4 que o gendtipo no se altera. A satide individual precéria implica uma restrigdo das margens de seguranga organica, uma limitago do poder de tolerancia e de compensagio das agres- sdes do ambiente. A doenga, enquanto nio-verdade do corpo, pode ser manifesta ou fatente. Sendo 0 corpo um produto das atividades do meio, na medida em que estas podem contribuir para determinar o fenétipo, a satide corresponderia a uma ordem implicada tanto no fato biolégico da vida, quanto no modo de vida (Canguilhem, 1990). Enquanto expresso de um corpo produto de um modo de vida, a satide propicia um sentimento de poder enfrentar 0 risco, como uma seguranga verdadeira contra os riscos. Nesse contexto se insere © discurso da Higiene ou da satide publica. A Higiene, que se inicia como uma disciplina médica tradicional, feita de normas, possui uma ambigao sécio-politico-médica de regulamentar a vida dos indivfduos. A partir dela, a satide toma-se um objeto de célculo e comega a perder a sua dimensao de verdade particular, privada, passando a receber uma significagéo empfrica como conjunto e efeito de processos objetivos. Para Canguilhem (1990), a satide nao € s6 a vida no siléncio dos érgéios, como afirmara Leriche. Ela & também a vida no siléncio das relagées sociais. Se alguém diz que esté bem, as pessoas Ihe fazem interrogagdes estereotipadas. Se afirma que est mal, 0s outros perguntam como, por que, se tem plano de satide ¢ como se pode fazer para ser contabilizado numa instituigio de sade. Evidentemente, a presenga da satide nas relagdes sociais nfo se reduz a fala sobre a satide. Além disso, afirmar que a satide é 0 siléncio nas relagdes sociais implica desconsiderar as cumplicidades e antagonismos das tensdes e¢ interagdes sociais como saudaveis. Canguilhem (1990) considera enfim que a satide 6 uma questio filos6fica na medida em que, tal como a filosofia, ela € um conjunto de questdes no © ‘Satide piblica, nesta conotagio, ndo significa o importante campo das priticas coletivas de sadde, nem movimento ideol6gico do sanitarismo (Paim ¢ Almeida Filho, 1998). No glossdrio pasticular de- Canguilhem (1990), a satide publica significa mais a salubridade do que a sade propriamente dita. A doenga & que é pibliea, publicizada. Ela apela por ajuda, chama a atengio, € dependente. 26 —_-PHYSIS: Rev. Sade Coletiva, Rio de Janeiro, 9(1): 13-36, 1999 Normal-Patol6gico, Saide-Doenga: Revisitando Canguilhem qual ela mesma se faz questao. Essa satide filosdfica recobre a satide indi- vidual. Bla € diferente da satide do sanitarista, que compreende a satide da populagao. A satide filos6fica, individual, est4 longe de ser medida com aparelhos, j4 que é livre, nao condicionada ¢ nao contabilizdvel. Trata-se de uma satide sem idéia, presente ¢ opaca, suportada e validada pefo individuo e seu médico; implica o conceito de corpo subjetivo, que © médico cré poder descrever. O saber médico constitui, ento, um dispositive de promogdo ¢ protegao da satide subjetiva. © médico acolhe o que o paciente Ihe diz ¢ 0 que o seu corpo anuncia através dos sintomas e sinais clinicos. ‘A divisdo do corpo e 0 surgimento das varias especialidades médicas afetou a relagao do saber médico com a satide, uma vez que esta se constitui na unidade da vida (Canguilhem, 1990). Aludindo a abordagem illichiana da némese médica (Illich, 1981), Canguilhem analisa como tal divisdo gerou um protesto contra a expropriagio da satide e um movimento para buscar ressuscité-la. A defesa da satide privada implicou a desconsideragdo da sat- de cientifica e condicionada. Canguilhem (1990) defende, enfim, que a sad- de cientifica deve assimilar a sade filoséfica. Para ele, a satide individual, subjetiva, filosfica, e ndo apenas a doenga e a salubridade (ou, numa ter- minologia mais atualizada, os riscos) deve ser estudada pela ciéncia. Atualidade de Canguilhem Preliminarmente, no que diz respeito & critica da diferenga quantitativa entre o normal e © patolégico, os argumentos de Canguilhem contra o positivismo nao nos parecem satisfat6rios. A idéia de que o normal e 0 patol6gico se constituem a partir de forgas opostas em luta nao necessaria- mente implica que os fenémenos patofgicos sao variagdes qualitativas dos fenémenos normais. Freud (1980) também pensava que o quadro de norma- lidade ou doenga era devido a forgas opostas em luta e, no entanto, manteve a perspectiva da variagio das quantidades de energia de cada forga em atuagéio. Mais recentemente, a concep¢io da “histéria natural das doencas” (Leavell e Clark, 1965) e seus coroldrios da satide como um steady state & do processo satide-doenca como um continuum, base da abordagem preventivista (Arouca, 1975), também atualizam uma perspectiva da doenga enquanto dimensionalidade, sem deixar de incorporar uma ontologia quali- tativa da patologia. O fato de a teoria comteana ter afirmado uma variagao quantitativa entre © normal e o patolégico ¢ nao ter definido esta variagdo nao invalida a PHYSIS: Rev. Saiide Coletiva, Rio de Janeiro, 91): 13-36, 1999 27 Maria Thereza Avila Dantas Coelho / Naomar de Almeida Filho hipétese de uma variagdo quantitativa. A demonstragao, a partir do exemplo da alcaptomiiria, de que nem toda doenga implica uma variagao quantitativa da normalidade, revela duas inconsisténcias. A primeira delas € que, se nem toda doenca implica uma variagio quantitativa da normalidade, disto resulta que algumas doengas podem se dar por excesso ou caréncia (variagaio quan- titativa). A segunda inconsisténcia tem relagdo com a sua afirmativa de que, sendo a alcaptomiria o metabolismo incompleto da tirosina, ela nao tem relagdo quantitativa com o processo normal. Como néo visualizar ai, nesse metabolismo incompleto, simultaneamente uma dimensao quantitativa e uma relagio com o processo normal? Ao afirmar que nao seria a auséncia de normalidade que constituiria 0 anormal, ou seja, 0 patolégico também pode ser normal, pois a experiéncia do ser vivo incluiria a doenga, Canguilhem contraria a sua propria definigéo restrita de variagtio qualitativa entre o normal ¢ o patoldégico. Para ele, todo estado vital seria normal e o normal patolégico seria diferente do normal fisiolégico. Vemos, portanto, que 0 Canguilhem de 1943 permanecia limi- tado a dicotomia entre quantidade e qualidade, um dos fundamentos da abordagem positivista que ele pretendia superar com a sua critica. A sua prépria constatacao de que na teoria comteana a referéncia & quantidade se dava através de termos qualitativos parece demonstrar 0 quanto estas duas categorias — quantidade e qualidade — sto indissocidveis. O normal e 0 patolégico encontram-se imbricados, sendo simultaneamente quantitativos ¢ qualitativos. Em sintese, 0 fato de Canguilhem tomar como ponto de partida a critica de Comte no o tora um antipositivista, capaz de instrumentalizar modelos analiticos dialético-histéricos. Nesse aspecto, a sua critica revela- se insuficiente e ineficaz justamente por manter-se rigorosamente dentro do referencial positivista. Para Canguilhem (1966), “trabalhar um conceito é fazer variar sua extensdo ¢ sua compreensiio, gene- ralizd-lo pela incorporagao dos sinais de excegaio, exporté-lo para fora de sua regifio de origem, tomé-lo como modelo ou, inversamente, buscar-Jhe um. modelo: em suma, conferir-the progressivamente, através de transformag6es “7 regradas, a fungiio de uma forma’ 7 Tradugdo dos autores. 28 PHYSIS: Rev. Swide Coletiva, Rio de Janeiro, 9(1): 3-36, 1999 Normal-Patol6gico, Satide-Doenga: Revisitando Canguilhem Assim, a hermenéutica derivada da teoria do conhecimento subjacente a sua obra apéia a hipétese de ser esta uma perspectiva neokantiana que pri- vilegia 0 conceito. Segundo Canguilhem (1968), 0 conceito exprime a normatividade do discurso cientifico e, por isso, deve ser prioritariamente estudado no campo das ciéncias. Privilegiar 0 conceito implica valorizar a ciéncia como processo. Enquanto que o conceito assinala a existéncia de uma questao, a teoria busca apresentar uma determinada resposta. Nesse sentido, a unidade de andlise da hist6ria epistemoldgica deve ser 0 conceito, sendo a ciéncia um conjunto de conceitos de tempos heterogéneos. Dessa maneira, nao é possfvel deixar de assinalar que, ao admitir uma primazia do conceito sobre a praxis na ciéncia, Canguilhem assume uma proposta de reificagdo da categoria do conceito, base da sua teoria do conhecimento. Nao obstante o acima exposto, quatro proposigdes de Canguilhem apre- sentam um potencial estruturante para uma teoria geral da satide: a idéia de que a satide é a capacidade normativa, a concepgao da normalidade como uma norma de vida, a consideragdo de que a normalidade € um fendmeno relacional ¢ a proposta de absorgiio da satide filosdfica pela ciéncia. Canguilhem buscou sempre estabelecer uma distingdo entre normalidade e satide, Ele afirmou que a normalidade enquanto norma de vida ¢ uma categoria mais ampla, que engloba a satide e o patolégico como distintas subcategorias, numa visao de conjunto. Nesse sentido, tanto a satide quanto a doenga so normais, Como discutimos acima, ambas implicam uma certa norma de vida, sendo a satide uma norma de vida superior ¢ a doenga uma norma de vida inferior. O que caracteriza o padrao individual de satide é a capacidade normativa, a possibilidade de instituir novas normas e ultrapas- sar o que define o normal momentineo, como abertura a eventuais modifi- cagées. Na concepgao de Canguilhem, a satide implica poder desobedecer, pro- duzir ou acompanhar uma transformagao, adoecer ¢ sair do estado patolégi- co. Embora o seu critério seja universal para todos os individuos, a sua estrutura e forma sao singulares, na medida em que essas novas normas podem ser de naturezas diversas. Esse aspecto marca uma diferenga em relagdo ao padrio médico universal, que se caracteriza pela homogeneidade. das estruturas patol6gicas, podendo variar apenas a sua forma. Ja 0 patolé- gico é a perda da capacidade normativa, 6 a impossibilidade de mudanga, é a fixagio, a obediéncia irrestrita 4 norma, Essa distingdo entre a normalidade ea satide é uma contribuigéo camguilhemiana original, pois rompe com a concepgiio de satide do século XIX enquanto adequago a uma norma, a um PHYSIS; Rev. Saiide Coletiva, Rio de Janeiro, 9(1}: 13-36, 1999.29 Maria Thereza Avila Dantas Coelho / Naomar de Almeida Filho modelo pré-definido. Com isso, os conceitos de normalidade e de satide ganham uma nova dimensao, dado que eles nao se reduzem mais a um tinico padrao. Nesse sentido, a sattde nao se reduz a um discurso normativo impositive. Ela é também a possibilidade de normatividade peto individuo. Promover a satide nado é apenas ordenar uma série de agdes que gerem bem-estar ou evitem riscos. E também dar condigées de escolha e criagdo aos individuos. A relagio da satide com a cultura no se restringe & obediéncia irrestrita as normas (Canguilhem, 1943). Pela intermediagao cultural da interdi¢io do incesto, 0 homem no apenas se subordina a cultura, mas também tem acesso ao universo simbélico e & condigao desejante. Ele adquire capacidade normativa e de sublimagdo. A partir de Canguilhem, nao existe mais a normalidade, ¢ sim distintas normalidades: a satide é uma normalidade; a doenga também € uma norma- lidade. O aspecto comum a essas diferentes manifestagdes normais da vida € a presenga de uma Iégica, uma organizagao prépria, uma norma. A satide, por seu turo, deixa de se limitar a perspectiva da adaptagiio, nao sendo mais a obediéncia irrestrita ao modelo estabelecido. Ela é mais do que isso, na medida em que pode ser justamente a ndo-obediéncia a transformagio. Ela passa a expressar diferentes padrdes. A propria oposig&o entre a satide e a doenga estabelecida por Canguilhem, em 1943, desaparece nas suas refle- xGes posteriores sobre o tema. De acordo com o Canguilhem (1978) da maturidade, a perda da possibilidade de testar a sade através da doenga é patolégica. A satide enquanto perfeita auséncia de doenga situa-se no campo da patologia. Nessa perspectiva, a satide estd sempre relacionada a forma pela qual © individuo interage com os eventos da vida. Essa forma é construfda ao longo da existéncia, desde a tenra infancia. Canguilhem (1943, 1978) afirmou a existéncia de uma normatividade bioldgica. Para ele, a vida é normativa na medida em que ela institui normas. As normas organicas humanas variam também a depender da cultura, devido a uma relagao essencial psique-soma. A espécie humana, ao inventar géneros de vida, inventa modos de ser fisiolégicos. H4, no homem, uma plasticidade funcional ligada a sua normatividade vital. A luta da vida contra os perigos que a ameagam é uma necessidade vital permanente. A necessi- dade terapéutica € uma necessidade vital. O organismo € 0 primeiro dos médicos. Os tecidos cicatrizam e o sangue coagula. A medicina é um prolongamento da vida. 30 PHYSIS: Rev. Sade Coletiva, Rio de Janeiro, 9(1): 13-36, 1999 Normal-Patol6gico, Saiide-Doenga: Revisitando Canguilhem ‘A normatividade vital apontada por Canguilhem (1943, 1978) pode ser encontrada em todos os fenémenos do campo da satide-doenga-cuidado. Embora a separago entre a normalidade mental ¢ a organica tenha se efe- tivado no dominio das ciéncias médicas a partir do século XTX, aplicando na pratica clinica a cisdo cartesiana mente-corpo, Canguilhem nao reconhece como valida qualquer distingao entre elas, abordando a normalidade como um todo. No que diz respeito especificamente aos fenémenos psiquicos, podemos no maximo admitir uma equivaléncia entre essa normatividade particular © 0 processo cotidiano de simbolizagdo dos eventos da vida (Foucault, 1976). A questo que se torna premente, nesse contexto, é: 0 que faz com que alguns processos e efeitos sejam normativos em algumas situa- gées € em outras nfo? Tal questo aponta para o processo de constituicao do sujeito. & na relag&io com o outro que o individuo pode se deparar e assimilar as interdigdes, inserir-se no universo normativo e simbélico ¢ abrir- se para novas relagdes. Se isso nao acontece, ou se acontece com muitos conflitos ¢ sofrimento, 0 individuo tera mais dificuldade em ser normativo. Quando 0 individuo nao consegue dar um sentido ao que Ihe acontece ou este sentido é por demais penoso, o resultado pode ser a doenga. Os eventos que envolvem uma perda sio mais dificeis de ser assimilados. Mas se 0 indivfduo é normativo e se sente predominantemente bem, pode-se a ele atribuir satide, mesmo que apresente indices fisioldgicos desviados do que se considera como um funcionamento regular, que revele algum grau de sofrimento ou que porte, até mesmo, sinais de uma doenga. Sendo assim, o limiar entre a satide e a doenga é singular, ainda que seja influenciado por planos que transcendem o estritamente individual, como 0 cultural e 0 sociceconémico. Porém, em ultima instincia, a influéncia desses contextos da-se no nivel individual. Isso se verifica na medida em que ha diferentes respostas diante de uma mesma estimulagéo num mesmo grupo socioeconémico e cultural (Bibeau, 1994). Enquanto que alguns nada sen- tem, outros adoecem. Ao mesmo tempo em que um individuo resiste a um estimulo considerado mais forte, outro pode sucumbir a um agressor mais fraco. F claro que o gendtipo também influencia o modo pelo qual o individuo interage com os eventos da vida. Entretanto, tal influéncia nao determina diretamente o resultado dessa interagao, ou seja, a satide ou a doenga, na medida em que seus feitos se subordinam aos processos de simbolizagao ou normatividade, Com uma argumentagiio impecavel, Canguilhem (1978, 1990) demonstrou como a determinagao da satide pelo genétipo conduziria A perda PHYSIS: Rev. Sade Coletiva, Rio de Janeiro, 9(1): 13-36, 199931 Maria Thereza Avila Dantas Coelho / Naomar de Almeida Filho da capacidade normativa ¢, portanto, 4 doenga. A sua discussao pioneira sobre 0s efeitos éticos da engenharia genética continua extremamente atual, revelando a sua sensibilidade e capacidade de antecipagio. Rabinow (1992) analisou um caso de registro de patente sobre as células de um corpo humano vivo que, por ilustrar com preciso a pers- pectiva de Canguilhem sobre o tema, merece neste momento destaque. Um cidadao chamado Moore, que se submetera a uma cirurgia de extra- ¢do do bago num hospital universitario e teve as suas células cultivadas e patenteadas por uma equipe de cientistas, reivindicou o direito de propriedade sobre tais células e a participagdo nos Jucros advindos da sua comercializagdio. Apés um longo embate judicial, a Suprema Corte da California considerou o seu pedido indevido, julgando que essas células nao mais lhe pertenciam. Este caso indica que os direitos individuais de propriedade, liberdade ¢ privacidade, coroldrios da satide privada, torna- ram-se secundarios em relag&o a satide piblica (Rabinow, 1992). O corpo teria se reduzido a uma mercadoria com fins lucrativos. Hoje, o corpo fragmentado tem mais valor potencial para a indtstria, a ciéncia e o individuo do que o corpo integral. Os pedagos do corpo de Moore, pro- cessados e imortalizados, podem ser usados para produzir mais conhe- cimento, mais satide e mais lucro. Nao esquegamos que, recentemente, © proprio Canguilhem (1990) havia proposto que a satide filos6fica, privada, individual silenciosa fosse tomada como um objeto privilegi- ado pela ciéncia. Canguilhem nao revelou, entretanto, como se poderia fazer isso, porém uma das alternativas Sbvias consiste em tornar ptiblico © corpo privado. O problema nio esta em decidir construir esse objeto, mas em como faz8-lo. O corpo privado poderia se tornar piblico sem que isto impli- casse, necessariamente, a subtragdo da dimensao individual. Moore nao havia pedido que as suas células deixassem de ser utilizadas para a solugio de problemas alhcios, mas apenas que clas fossem reconhecidas como também de sua propriedade. Embora esse predominio da autorida- de cientifica na sociedade atual possa, numa situagdo extrema, levar a patologia, conforme assinalou Canguilhem, tal perspectiva parece utépi- ca, na medida em que, provavelmente, nem todas as situagdes ficardio sob o dominio desta autoridade. Além disso, permanecem abertas as possibilidades de simbolizagao e normatividade diante de tais perdas. De qualquer modo, o alerta de Canguilhem para essa situagdo-limite ¢ ins- trutivo, na medida em que marca a influéncia dos eventos sociais nos 32 PHYSIS: Rev. Savide Coletiva, Rio de Janeiro, 9(1): 13-36, 1999 Normal-Patolégico, Saéde-Doenga: Revisitando Canguilhem processos satide-doenga-cuidado e chama a atengdo para a necessidade de se considerar 0 exercicio individual de produgao de normatividade. Consideragées Finais ‘A avaliago do pensamento de Canguilhem aqui esbogada nos permite levantar algumas questées cujo tratamento transcende os objetivos do pre- sente texto. Ser mesmo vidvel a proposta canguilhemiana de estudar cienti- ficamente 0 objeto satide? E possivel fazé-lo neste modelo atual de ciéncia? Caso contrario, que mudangas paradigmaticas serfio necessrias para que a ciéncia possa estudar a contradigao satide privada/satide publica? A antropologia médica contemporanea nos ensina que as concepgdes © préticas de satide so culturais, na medida em que uma teoria satisfaz varias exigéncias e postulados intelectuais do momento histérico-cultural em que 6 formulada (Corin, 1994). F. plausfvel que a falta de estudos sobre a satide propriamente dita no se deva exclusivamente a razées epistemoldgicas, mas também A influéncia da indtstria farmacéutica e & cultura da doenga, que tém restringido o interesse e os investimentos de pesquisa nesta drea, De acordo com Foucault (1980), as concepgdes de sauide refletem os valores sociais dominantes da cultura e da época e nao seria de se esperar que uma cultura biomédica baseada nas nogées de sofrimento, morte e doenga pudes- - se produzir um interesse institucional ¢ académico pelo antagonismo ~ conceitual incorporado no conceito de satide. Por outro lado, alguns movimentos ideolégicos recentes no campo da Satide Coletiva, como a Promogio da Satide, Cidades Saudaveis e Vigilancia A Savide, juntamente com as propostas para uma Nova Satide Publica (Paim e Almeida Filho, 1998), tém apontado para a necessidade de se centrar numa concepgfio ¢ pritica positivas da satide, vez que as politicas de saide volta- das para a dimensdo curativa das doengas e para a dimensio preventiva dos tiscos parecem encontrar seus limites (Paim, 1986, 1992; Mendes, 1996). Nesse contexto, as questdes aqui postas apontam para uma linha de inves- tigago extremamente importante no campo da satide: a pesquisa epistemo- légica senso estrito. Nessa agenda, destacam-se os problemas referentes ao objeto de conhecimento das ciéncias-base da Satide Coletiva e 4 correspon- déncia entre a produgio de saberes ¢ a incorporagio tecnolégica no campo da satide. Esforgos de reavaliagio das bases filoséficas e tedricas do conhecimento cientifico, tal como ensaiado neste texto, muito poderdo contribuir para a PHYSIS: Rev. Saude Coletiva, Rio de Janeiro, 9(1): 13-36, 199933. Maria Thereza Avila Dantas Coelho / Naomar de Almeida Filho construgao das novas praticas e saberes necessdrios para uma abertura cada vez maior do campo da Satide Coletiva. Nessa dirego, é importante ressal- tar a proposigio de Canguilhem (1968), segundo a qual o conceito néo se limita ao interior de uma tinica ciéncia, mas segue as filiagdes conceituais em ciéncias diferentes, bem como suas relagdes com saberes nao-cientificos com priticas sociais e politicas. Um conceito cientifico portador de algum. grau de fertilidade néo respeitard fronteitas epistemolégicas ¢ sim apresen- tard uma autonomia relativa perante o sistema conceitual ao qual pertence. Cada conceito tem a sua hist6ria: forma-se numa determinada época € vai sendo retificado (¢ reificado) ao longo do tempo. 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