You are on page 1of 2

Jean-Pierre Dupuy, "Crer ou não crer: as experiências Religiosas,

A Violência e o Sagrado"
202
Como tudo o que eu expliquei na primeira parte de minha
exposição deixa a entender, é no esclarecimento da relação
estreita que une a violência e o sagrado que se enraíza a teoria
de René Girard. O que é o sagrado? O sagrado nada mais é do
que a violência dos homens expulsa, exteriorizada, hipostasiada.
A máquina de fazer deuses tem como motor a violência
contagiante - Girard emprega a palavra mimética - dos coletivos
humanos. No paroxismo de uma crise, quando a fúria assassina
faz explodir o sistema das diferenças que constitui a ordem
social e quando todos estão em guerra com todos, o caráter
contagiante da violência provoca uma inflexão catastrófica,
fazendo convergir todos os ódios sobre um membro arbitrário
da coletividade. Seu assassinato restabelece a paz. Disto resulta
o sagrado nas suas três dimensões. Primeiro os mitos: a
interpretação do acontecimento fundador faz da vítima um ser
sobrenatural, capaz de, a um só tempo, introduzir a desordem e
criar a ordem. Em seguida, os ritos: estes, de início, sempre
sacrificiais, num primeiro tempo mimetizam a decomposição
violenta do grupo para, num segundo tempo, melhor encenar o
restabelecimento da ordem através de uma vítima de
substituição. E finalmente o sistema de interditos e de
obrigações, cuja finalidade é impedir que se desencadeiem os
conflitos que irritaram a comunidade da primeira vez.
Compreende-se por que o rito faz o contrário dos interditos:
ele deve inicialmente representar a transgressão e a desordem
para poder encenar melhor o mecanismo sacrificial que vai
reproduzir a ordem. O sacrifício e os interditos têm o mesmo
efeito, a consolidação da ordem, mas eles procedem de
caminhos opostos.
Quanto mais um ritual está próximo do acontecimento
originário mais ele se estrutura nestes dois tempos que
reproduzem, mimetizando, a dinâmica da crise que ameaçou
fazer desaparecer a comunidade: primeiro a desordem, quer
dizer, a guerra de todos contra todos, depois o retorno à ordem,
onde todos (menos um, evidentemente) se voltam contra um dos
seus, a vítima, que é, deste modo, divinizada. Uma vez mais
pensem no Carnaval, nas suas formas originais: num primeiro
tempo todos mimetizam juntos, mas uns contra outros, a 203
decomposição violenta da comunidade; num segundo tempo
destrói-se o rei do Carnaval - felizmente um simples fantoche!
Se eu tivesse mais tempo analisaria, nos mesmos termos, este
ritual do Dia de Reis que ainda se comemora no Nordeste, no
Recife e em Olinda em particular: a queima da lapinha, que
marca precisamente o início do Carnaval.
O sagrado é fundamentalmente ambivalente: impede a
violência através da violência. Isto está claro no caso do gesto
sacrificial que restaura a ordem: é um puro assassinato coletivo,
mas ele se dá por último, ele é o gesto violento que vai acabar
com toda violência. Isto também é verdade para o sistema de
interditos e de obrigações: as estruturas sociais que promovem a
solidariedade na comunidade em tempos normais são as
mesmas que a paralisam em tempos de crise. Quando um
interdito é transgredido, as obrigações de solidariedade
atravessam as barreiras do tempo e do espaço (pensemos no
mecanismo da vingança) e integram em um conflito sempre
maior pessoas que não estavam absolutamente implicadas no
confronto original.

Em Adauto Novaes, A Invenção das Crenças.


São Paulo: Ed. SESC, 2011, pgs. 187-208

You might also like