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diseurso (25), 1995: 97-119 Nietzsche: Critica 4 Linguagem como Critica 4 Moral Thelma Lessa da Fonseca* Resumo: Este texto busca mostrar que a critica a linguagem empreendida por Nietzsche, j4 em seus primeiros escritos sobre o tema, nao pode ser tomada em um sentido meramente epistemolégico, uma vez que enfoca a discussio sabre o conhecimento a partir de uma perspectiva moral. Palavras-chave: impulso a verdade — retérica — moral — linguagem Os escritos a serem aqui tratados pertencem ao perfodo que se pode denominar, talvez de forma demasiado genérica, “perfodo de juventude”; mais exatamente, trata-se de escritos datados de 1872 e 1873. Partiremos de um pequeno trecho de Ueber Wahrheit und Luege im aussermoralischen Sinne, trecho esse que resume uma pergunta central desse escrito, e, para esclarecé-la, nos remeteremos ao texto conhecido por “Curso de Retérica”. A pergunta a que me refiro é a pergunta pela origem do “impulso & verda- de”, a qual serd aqui focalizada como “porta de entrada”, por assim dizer, para qué se possa adentrar o sentido da critica ao conhecimento que move 0 primeiro desses textos. Uma das questées que a leitura de Wahrheit und Luege impGe ao seu leitor € aquela voltada para esclarecer que nogdo de verdade teria o autor * Professora do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual Paulista (Marilia) ¢ aluna de Pés-Graduagio do Departamento de Filosofia da Universidade de Sao Paulo. 98 Fonseca, T.L,, discurso (25), 1995: 97-119 em mente ao anunciar que o conhecimento nao esta apto a alcanga-la, ou seja, contra que conceito de verdade se volta sua critica. O texto parece néo deixar diividas quanto 4 existéncia de uma recusa da idéia de verdade como adequagao no sentido classico, tal como é possivel entrever no trecho que se segue: “Acreditamos saber algo das coisas mesmas, se falamos de drvores, cores, neve ¢ flores, ¢ no entanto nado possuimos nada mais do que metaforas das coisas, que de modo nenhum correspondem As entida- des de origem. (...) Em todo caso, portanto, nio é logicamente que ocorre a génese da linguagem, ¢ o material inteiro, no qual e com o qual mais tarde o homem da verdade, o pesquisador, o filésofo, traba- lha e constréi, provém, se nado da Cucolindia das Nuvens, em todo caso nao da esséncia das coisas” (Nietzsche 11, p. 879; grifos meus). Vé-se que Nietzsche refere-se af A ilusdo do fildsofo ou do pesquisa- dor de que a linguagem sobre a qual edifica seu constructo teérico corres- ponda algo das coisas em si mesmas. Tal ilusio é combatida pelo autor na medida em que este entende que a linguagem em geral nada contém da es- séncia das coisas, jd que é constituida de metdforas. Assumamos, provisoriamente, a hipétese de que a critica de Nietzsche ao conhecimento, erigida sobre uma concepgeao especifica da linguagem—a saber, da palavra como originalmente metafé6rica —, tenha como alvo a no- gio de verdade como adaequatio. A seguir, leiamos o trecho seguinte sob 0 prisma desta hipétese: “Continuamos ainda sem saber de onde provém o impulse d verdade: pois até agora sé ouvimos falar da obrigagdo que a sociedade, para existir, estabelece: de dizer a verdade, isto 6, de usar as metdforas usuais, portanto, expresso moralmente: da obrigacdo de mentir segun- do umaconvengdo sélida, mentir em rebanho, em um estilo obrigatério para todos” {id., ibid., p. 878; grifos meus). Fonseca, T.L., discurso (25), 1995; 97-119 99 Vé-se que o autor contrapde ao Trieb zur Wahrheit o respeito as convengées da linguagem, o que ele denomina “dizer a verdade”, Pode-se facilmente compreender em que medida as convengGes da linguagem sao necessdrias na vida em coletividade, ¢ 0 que o texto parece nos dizer, 0 enigma proposto esta, portanto, em explicar de que maneira surge um impulso espontineo em diregio & verdade que teria impelido os homens a atribuirem a linguagem uma fungdo que excede esta. Dois pontos marcam a diferenga entre “impulso a verdade” e “obrigagdo de seguir as convengdes”: de um lado, quando se fala em “impulso”, esté se referindo a um impeto, a um movimento de origem interna ao individuo em diregdo a algo; além disso, este impulso quer a verdade, o que estamos aqui provisoriamente supondo ser um reflexo da esséncia das coisas. De outro lado, “obrigagao de mentir segundo convengdes” remete a idéia de uma coergao imposta pelo todo social ao individuo, convengées estas que nao se pretendem legitimadas por um referencial externo as préprias relagdes humanas, mas que visam apenas 0 respeito as regras estabelecidas entre homem ¢ homem. Aqui, se estaria bus- cando a mera veracidade. Com isso, pode-se compreender que Nietzsche supde que tal impulso estd voltado para algo outro do que o respeito as convengées lingiifsticas, para algo distinto de uma “mentira”’ coletiva. Assim, € poss{vel entender que a critica de Nietzsche nesse texto tem como alvo a pretensfo de que a linguagem seja capaz de refletir as coisas tal como sao em si mesmas ¢, para delatar a auséncia de fundamentos desta pretensao, ele estaria enfatizando o cardter puramente convencional da linguagem Este trecho nao é o inico que nos leva a interpretar a critica de Nietzsche A linguagem e ao conhecimento como uma critica voltada para destruir os fundamentes da idéia de verdade como adequacao no sentido classico, em Oposicao a uma idéia (supostamente aceita por ele) de verdade como acordo deliberado entre os membros da coletividade. Em se atentando para este texto, nota-se que esta no é a tnica vez que a palavra “convengio” (Convention) aparece como contraponto da crenga na existéncia de uma re- lagao origindria entre palavra e “coisa”. Isso nos leva 4 convicgao de que autor se apdia no cardter convencional da linguagem para promover uma Tecusa da cren¢a de que a palavra é uma decorréncia de seu contetido con- Ceitual. Lido desta forma, tudo se passa nesse texto como se a “novidade” 100 Fonseca, T.L., discurso (25), 1995: 97-119 Pretendida pela critica nietzschiana 4 linguagem e, conseqiientemente, ao conhecimento, seria a de anunciar que nao ha efetivo conhecer porque nao ha, na linguagem, correspondéncia entre palavra e “coisa”. Suposta, af, seria aidéia de que a simples convengao nao poderia fundar conhecimento algum, © que resultaria em afirmar que nao havendo adequagao — havendo apenas convengao — nao ha conhecimento. Se assim for, a critica de Nietzsche ao conhecimento seria facilmente colocada de lado por uma idéia de conhecimento que nao estivesse estruturada sobre o conceito de adaequatio. A pergunta que se impoe a partir de entao é: teria passado despercebida pelo autor a possibilidade de fundar o conhe- cimento sobre outras bases? Teria ele julgado que a recusa da idéia de ade- quacgao no sentido classico € suficiente para questionar o aleance do conhecimento em geral? Parece-me que, ao se buscar compreender exatamente qual o sentido desta “obrigagao de usar as metéforas usuais”, pode-se observar que a idéia de convengao na linguagem nao constitui, aos olhos do autor, uma real al- ternativa para a idéia de uma conformidade entre palavra e “coisa”. Se isso puder ser comprovada, sera possfvel constatar que a critica de Nietzsche ao conhecimento nao se reduz a uma critica a idéia de adaequatio, As anotagdes de 1872,” conhecidas pelo titulo de “Curso de Retéri- ca”), contém diversos desenvolvimentos da discusséo sobre a linguagem que nos fornecem subsidios para compreender discussdes apresentadas de forma demasiado sucintaem Wahrheit und Luege. Entre estas, hd a defesa do carater originalmente metaférico da linguagem, cardter esse que aparen- temente surge como contraponto da idéia de uma linguagem adequada as “coisas”, ou seja, como contraponto da crenga na existéncia de uma relagao biunivoca entre palavrae “coisa”. Assim sendo, irei me remeter a este texto (Rhetorik) com 0 intuito de buscar indicagGes de que a critica nietzschiana linguagem recai também sobre a idéia de verdade como convengio, 0 que implicaria, portanto, uma ampliagao do ambito da critica ao conhecimento, uma vez que esta nio se limitaria a idéia de verdade como adequagio". Aparentemente, 0 propdsito desse texto é o de promover uma reabili- tagdo da retérica, Entretanto, mais do que isso, serd aleangado ai o questionamento mesmo da possibilidade de uma linguagem nao retorica. Este Fonseca, T.L., discurse (25), 1995: 97-119 101 questionamento parte da definigao aristotélica de retérica®: “Admitamos pois que a retérica é a forga® de considerar teoricamente o que, em cada caso, € 0 mais conveniente para persuadir” (Aristoteles 3, p. 76). A partir desse trecho, Nietzsche analisa a definigao aristotélica termo atermo, andlise esta que podemos resumir em trés pontos”, quais sejam: 1. “Persuadir segundo o conveniente”: Nietzsche entende por isso que se trata de um discurso que visa a opinido do ouvinte, mesmo em se tratando de uma causa duvidosa, isto €é, mesmo quando se incute uma opiniao errénea ou falsa. A ret6rica, tornada arte dessa maneira, aparenta-se a dialética, diz Aristételes, pois tanto uma como outra visam a opiniao (doxa) do ouvinte ou leitor. Ambas podem ser usadas para diferenciar 0 verdadeiro do aparen- te ¢, neste caso, auxiliarem a instrugdo®), mas unicamente o fazem se atendo A opinido. Quanto a esse assunto Nietzsche menciona 0 trecho do Organon no qual consta: “Em filosofia é preciso tratar dessas coisas segundo a verda- de, mas na dialética é suficiente se ater & opiniao (doxa)” (id., ibid., p. 33). Assim, aretérica no consiste, por si mesma, em instrumento capaz de levar ao conhecimento (epistemeé). 2. “Em cada caso” significa que ela é puramente formai, isto é, € apli- cdvel a diversas disciplinas. Sua peculiaridade esta em que ela “(...) nilo per- tence aum género definido” (id., ibid., p. 75) como as demais artes, as quais ‘sao “(...Jcada uma para seu objeto, préprias ao ensinamento e a persuasao (id., ibid., p. 76). Assim, ela consiste em algo que, como meio, pode servir a diversas finalidades. 3. “Considerar teoricamente” (theorisdi): este termo indica, pensa Nietzsche, que a retérica supde um estudo, uma preparagao teérica®). Ela nao consiste numa habilidade que se desenvolve espontaneamente, mas, an- tes, representa algo alcangado por um esforgo especulativo, por um trabalho teérico. Ha um trecho anterior ao citado no texto de Aristételes que corro- bora essa interpretagao de Nietzsche, qual seja: “(.,.) A retérica nfo tem a fungiio de persuadir, mas de ver os meios de persuadir que comporta cada assunto” (id., ibid., p. 74)°. Assim, 0 trés pontos permitem a Nietzsche concluir que a retérica, para Aristételes, conforma-se como um instrumento a servico de uma inten- 102 Fonseca, T-L., discurse (25), 1995: 97-119 ¢ao determinada, de um fim previamente estabelecido. Ele observa que, para ‘os autores antigos de uma maneira geral, a arte (tekhiné) retérica consiste no estudo e no conhecimento da persuasao'"”, Em Platao, continua 0 autor, a retérica é definida como um artiffcio que, embora “(...)situado no mesmo nivel da arte culindria” (Nietzsche 10, p. 289), exige o conhecimento de uma técnica. Assim, a arte da oratéria exige uma preparagdo, um dominio do verossimil que permita suscitar determinadas paixdes nos ouvintes. Enquan- to artificio, ela nao é€ um dom natural, nao se desenvolve espontaneamente, mas unicamente em vista de uma reaciio especifica a ser provocada no inter- locutor. E, portanto, movida por uma intengao. Desta forma, a partir da definicio de Aristételes, Nietzsche ressalta a importancia do termo “theoresdi” na definigao de ret6rica, entendendo que, para 0 autor antigo, ela é resultado de um esforgo especulativo, de uma “consideragao tedrica” {id., ibid., p. 292) movida por uma intengao determinada. Diante disso, conclui Nietzsche: “Os antigos s6 podiam conceber a arte como consciente (...)” (id., ibid., p. 315). Quando as figuras de lingua- gem eram usadas de outra forma, esse uso era entendido como fruto da ignorancia no dominio da lingua“, Neste caso, tais figuras seriam denotadoras de um uso impréprio da palavra. Com isso, encerramos a pri- meira parte do nosso trajeto, a qual buscou resumir alguns elementos da compreensao que Nietzsche tem, no texto tratado, do conceito antigo de “retérica”, Cabe, agora, abordar de que maneira esta compreensiio fornece material para sua propria concepgao de linguagem como fundamentalmente retorica, Ainda em Rhetorik, a partir da definico aristotélica, o autor ira enten- der que nao ha linguagem que no seja retérica. Contudo, essa definicdo é tomada com uma ressalva: ndo hé necessariamente trabalho consciente na criagio das figuras de linguagem, isto é, nem todo uso da retérica € movido por intengdes determinadas. A ret6rica, para Aristételes, designa, entende Nietzsche, um “(...) uso consciente dos artificios (Kunstmittel) do discurso” (id., ibid., p. 297) quando abordada como uma arte Entretanto, diz ele, “(...) nao € dificil de provar que isto a que chamamos ‘retérica’ para desig- nar os meios de uma arte consciente jd estava em agao, como os meios de uma arte inconsciente (wnbewusst), na linguagem e na formagao desta e Fonseca, T.L., discurso (25), 1995: 97-119 103 mesmo (nao é dificil de provar) que a retérica é um aperfeigoamento dos artificios j4 presentes na linguagem” (Nietzsche 10, pp. 297-298)". Para Nietzsche, aquilo que os antigos consideravam fruto de um trabalho movido por esforgo especulativo, esforgo este que supunha uma intengao determi- nada conscientemente, nao é determinante da criagdéo da metafora (no que diz respeito 4 palavra) e, tampouco, da retérica (no que diz respeito 4 lin- guagem em geral). Ao contrario, pensa Nietzsche, “artificio” pode ser pro- duto de um trabalho inconsciente. O primeiro dos pontos em que se apéia a idéia de que a retérica nfo consiste num uso especifico da linguagem, mas constitui sua propria essén- cia, pode ser exposto tal como se segue: dada a definigao aristotélica de retérica anteriormente citada, qual seja, “a retorica é a forga de considerar teoricamente o mais indicado para persuadir em cada caso” (Aristételes 3, p. 76), Nietzsche afirma que toda palavra é um tropo. A palavra apenas assinala uma caracteristica que se apresenta como relevante e, para isso, recorre-s¢ a uma imagem que enfatiza esta caracteristica. Ha trés figuras de linguagem que o autor menciona para mostrar que, na sua origem, cada pa- lavra é fixada segundo pardmetros puramente subjetivos: sinédoque"’, me- tdéfora e metonimia. Por “sinédoque” Nietzsche entende o recurso retérico de tomar a par- te pelo todo. Ele cré que diversas denominag@es sao criadas por meio dessa figura, como, por exemplo, a palavra “serpente”: “(...) serpens designando a serpente como algo que se arrasta; mas por que serpens nao significa tam- bém ecaracol?” (Nietzsche 10, p. 299). Aqui se tem o caso em que uma ca- racteristica, comum a outros animais, € escolhida para determinar um animal. Entretanto, em outras Iinguas, o mesmo animal é designado por denomina- ges oriundas de outras caracteristicas: no grego, drdkon significa “aquele que tem o olhar brilhante” (id., ibid. ); no latim, anguis quer dizer “constrictor” (id., ibid.). Através deste exemplo, pode-se ver a arbitrariedade com que caracterfsticas parciais pretendem reproduzir um todo. A segunda figura, a metdfora, é entendida por Nietzsche como 0 pro- cedimento de transpor significagdes (undeuten) jd existentes. Através desse tropo nao se criam, portanto, palavras, mas elas apenas sao transpostas de um significado para outro, [sso ocorre quando se diz “pé”, “flanco”, “veia”, 104 Fonseca, T.L., diseurso (25), 1995: 97-119 u “cabeca” ao se referir a partes de uma montanha (Nietzsche 10, pp. 299- 300; obs.: seguem-se outros exemplos)('®), Como terceiro tropo, ha a metonimia, Esta é entendida pelo autor como a substituicdo da causa pelo efeito. Do mesmo modo que 0 retérico diz “suor” em lugar de “trabalho” (id., ibid.), dizemos: “(...) ‘a bebida € amarga’, em vez de dizermos ‘provoca em nés tal sensagiio’", Outro exemplo se encontra no parentesco entre letisso, lux e luceo (id., ibid.), onde a palavra “enxer- gar” é extraida do termo préprio para designar “luz” ou “brilho” (id. ibid.) A partir desses trés exemplos de figuras constituintes da lingua estabe- lecida, Nietzsche cré poder concluir que os tropos nao sao excegoes e, tampouco, distor¢Ges de palavras ja existentes, mas caracterizam a prépria natureza da palavra. Diante disso, “da mesma forma que hé t&o pouca renga entre as proprias palavras e os tropos, hd a mesma diferenga — minima —entre o discurso auténtico e as chamadas figuras retéricas” (id., ibid.). A argumentacio do autor se desenvolve, como se pode notar, no sentido de questionar a existéncia mesma de um uso “préprio” da linguagem, uso esse que determinaria a autenticidade do discurso. No que tange A sua génese, a linguagem 6 retérica, pois o tropo esté na origem da palavra. Mas, para que possa ser coneretizada a generalizagdo daqueles trés exemplos para a lin- guagem enquanto tal, ainda restard a Nietzsche mostrar que também do ponto de vista de seus fins a linguagem apenas visa a persuasao"”, Abordemos, portanto, o segundo argumento nietzschiano em favor da idéia de que a linguagem em geral nao se distingue substancialmente da re- t6rica. Este segundo argumento decorre do primeiro e o completa, na medi da em que permite sua generalizagio. Sendo a palavra uma figura de linguagem, “nao sdo as coisas que pene- tram na consciéncia, mas nossa maneira de nos relacionarmos com elas, 0 pithanén” (id., ibid.). Dois obstaculos se apresentam caso se queira defen- der a existéncia da exatido na linguagem: em primeiro lugar, ha 0 fato de que o homem nao apreende “fatos”, mas apenas excitagdes nervosas (confor- me foi visto anteriormente, o nome é marcado pela pura arbitrariedade). HA uma diferenga de natureza entre estas excitagdes experimentadas subjetiva- mente e sua suposta “causa”; apenas ocorre que essa excitagdo nervosa € projetada no exterior através de uma imagem sonora e a atribuimos, por Fonseca, T.L., discurso (25), 1995: 97-119 105 essa razao, a uma causa externa da qual somente temos noticia através de um outro processo de seqtiéncias nervosas a que denominamos “pensamento""®), Através daqueles exemplos, péde-se ver que diversas denominagdes so arbitrariamente fixadas, ou seja, que é possivel encontrar, na origem das denominagées mais simples, procedimentos chamados “retéricos”. Dado isso, a questo que aqui nos importa (enquanto segundo argumento em favor do carter retérico da linguagem em geral) reside no fato de que a arbitrarieda- de que marea o processo de criagdo das palavras indica que nao esti ao alcance do ouvinte uma “reconstrucio” do estimulo origindrio de uma sen- sagao interna do orador. Da mesma forma que nao existem passagens neces- sdrias entre meu est{mulo € a imagem sonora que encontro para designa-lo, nio ha necessidade alguma na transposi¢ao que meu ouvinte tenta operar entre tal imagem e sua sensagio interna, mesmo que ele apenas tenha como fim o de se representar 0 que eu vivencio internamente'”’. Assim sendo, caso se queira defender a idéia de que a linguagem serve para comunicar estados internos, resta esclarecer “(...) como uma imagem sonora poderia traduzir um estado d’alma” (Nietzsche 10, p. 299). Para que a linguagem pudesse reconstitui-lo, seria necessdrio que ela fosse formada do mesmo material que aquele constituinte da sensagio interna. Dado que isso no ocorre, toda linguagem somente pode comunicar uma doxa ¢ nado uma epistemé, Portanto, também se considerarmos a palavra como meio de transmitir impressGes subjetivas, a linguagem nfo visa a instrugao, mas apenas a persua- sio (peithein), se por “persuasado” entendermos que a comunicagao através da linguagem somente objetiva suscitar emog6es. Dado que a palavra € inca- paz de espelhar um estado d’alma, apenas poderiamos “comunicar emogdes internas” se supusermos que a “paixdo” suscitada no ouvinte € a mesma que experimentamos no momento. Pretender se comunicar desta forma € enten- der a linguagem como meio de persuasdo®, pois significa pretender desper- tar determinada paixao em meu interlocutor, pretensdo essa que de nenhum modo serviria de prova em favor da precisdo da linguagem. Ao contrario, ela apenas aproximaria a linguagem em geral da retérica’”’. Estas duas idéias —toda palavra é um tropo ¢ toda linguagem apenas visa a persuasfio—levam Nietzsche a entender que o engano dos autores antigos, engano esse que 106 Fonseca, TL, discurso (25), 1995: 97-119. resultou na repulsa da retérica como uso ilegitimo da lingua, é resultante da crenga de que “artificio” (Kunstmittel) no que diz respeito a linguagem é apenas alcangado por um trabalho teérico, resultado de um esforgo intenci- onal, isto é, resultante da crenga de que “artiffcio” designa um trabalho cons- ciente. A este uso “artificial” se oporia, para os gregos, um uso “natural”, isto é, um uso que se apropriasse da linguagem tal como ela naturalmente se apresenta, USO esse que preservaria a relagio originaria das palavras com seus significados sem a interferéncia da agdo humana. No entanto, o artificio (criagdo artfstica e arbitréria) provém, pensa Nietzsche, de uma atividade anterior & propria criagao da consciéncia. Com isso, nao é apenas “intencio- nalmente” que criamos termos, que forjamos palavras. Neste sentido, toda linguagem pode ser entendida como “artificial”, Até aqui € empreendida a recusa da idéia de uma linguagem natural. Nao ha, portanto, diferenga qualitativa entre discurso “puro” — que fosse um uso adequado a origem da linguagem —e um uso retérico, consistindo este numa corrupgao dos sentidos originais. Nao ha, tampouco, distingao tacita entre um uso que, respeitando tal origem, visasse a instrugao, 0 conheci- mento (epistemé), ¢ outro que apenas buscasse a persuasia, isto é, voltado para suscitar determinadas paixdes no ouvinte (doxa), A questdo que se co- loca é de que maneira, entio, se teria criado a idéia de “pureza” da lingua? Aqui comega a ser construida a pergunta — explicitamente formulada em Ueber Wahrheit und Luege — pela origem do impulso A verdade: se nao ha uma linguagem engendrada a partir de determinagdes externas, isto é, en- gendrada a partir das préprias “coisas” que as palavras buscam designar, entéo, como se instaurou no homem aquela expectativa de que o discurso do conhecimento pudesse refletir algo do “em si”? Com isso, chegamos ao terceiro ponto desta breve exposigdo. Tendo visto como Nietzsche entende a compreensao da ret6rica pelos antigos, ten- do detectado os pontos desta concepgao de que ele parte para afirmar que toda linguagem é ret6rica, poderemos agora verificar qual o problema espe- cifico que 0 autor levanta diante dessas consideragées. Este problema esta indicado na pergunta pela origem da cren¢a em um uso préprio da lingua- gem, uso este que seria fiel 4 exatidao da palavra. Para Nietzsche resta, enfim, perguntar como teria surgido ia de que hd um uso préprio da Fonseca, T.L., diseurse (25), 1995: 97-119 107 linguagem e outro impréprio, este altimo podendo ser “legitimo”, quando elevado 4 categoria de “arte”, ou desprezivel, se resultado de uma pratica impensada. O problema assumido pelo autor a partir de entéo é 0 problema ex- presso na pergunta pela origem da expectativa de que a linguagem e, conse- qiientemente, o conhecimento em geral possam refletir algo das coisas como sio em si mesmas. Este problema é visto como tal, por Nietzsche, a partir do momento em que este entende que a linguagem nao possui tamanho alcance. E como se fosse dito: dado esse limite, isto é, dado que a origem da lingua- gem € marcada pela pura arbitrariedade, o que leva os homens a esperar que ela possa ser outra coisa, isto é, o que alimenta a expectativa de que a lin- guagem deva representar algo das coisas em si mesmas? Ao recordarmos nosso objetivo inicial (a saber, o de buscar no “Curso de Retérica” elementos que possam contribuir para o esclarecimento da per- gunta nietzschiana pela origem do “impulso a verdade”), cabe agora dedicar atengio 4 pergunta formulada naquele escrito pela génese da crenga em um discurso “puro”. Isso porque a esse discurso é atribuida a tarefa de cons tuir-se como meio para o aleance de “verdades”, como instrumento para o conhecimento. O trecho de Rhetorik, reproduzido a seguir, aborda justamente a ori- gem da idéia de “pureza”: “Nao hd, por si mesmo, discurso puro nem impuro. Muito dificil problema (de saber) como se forma o sentimento de pureza e (0 pro- blema de saber) como uma sociedade culta (gebildete Gesellschaft) escolhe até circunscrever®) a totalidade de seu dominio, Evidente- mente, neste caso se procede segundo Jets e analogias inconscientes (unbewussten); alcanga-se uma unidade, uma expressio tnica: do mesmo modo que a uma tribo corresponde suficientemente um diale- to, auma sociedade corresponde um estilo sancionado como ‘puro’. — Nos periodos de desenvolvimento de uma lingua (Sprach- wachsthums) o “discurso” nao é sobre “pureza”: (ele o €) apenas em uma lingua acabada” (Nietzsche 10, p. 301; grifos meus). 108 Fonseca, T.L., discurso (25), 1995: 97-119 Abordemos este trecho termo a termo para que possamos compreen- der o sentido da pergunta nietzschiana enquanto preocupagao voltada para esclarecer a origem deste “sentimento de pureza”, com a expectativa de que ¢ssa compreensio nos possa ajudar a compreender o sentido da pergunta pelo “Trieb zur Wahrheit” Em primeiro lugar, “pureza” é reconhecida através de um sentimento (Gefuehi), 0 que indica que ¢la nao € definida por uma apreensao racional. Enquanto tal, ela nio é propriedade do discurso, mas é resultante de uma avaliagéo que se faz sobre este ou de uma inclinagdo diante dele. Assim, diz 0 préprio texto, tal reconhecimento se orienta por “leis ¢ analogias inconsci- entes”, ou seja, por critérios ndo estabelecidos por deliberagao. Nao se tra- ta, portanto, de “convengao”, se por isso for entendido acordo comum. Entretanto, em segundo lugar, vé-se que esse reconhecimento tem lu- gar no contexto social — “estilo sancionado como ‘puro’ em uma sociedade” —, sendo, desta forma, dado por uma coletividade. Assim, tais critérios, ain- da que inconscientes, sao de alguma forma comuns, ja que a elei¢io coletiva alcanga uma unidade. Terceiro ponto: esta unidade representa o assentimento coletivo a um estilo entre outros possiveis. O nome para sinalizar esta sangao do todo coletivo a um estilo especifico € “pureza”. Finalmente, chega-se ao ponto principal: apenas se pode construir um discurso sobre a “pureza” quando a lingua ja esta criada, quando ja existe uma lingua formada. A lingua fixada, chamada “pura”, nao é referéncia do criador da linguagem, mas da coletividade que conserva uma criacfio dada previamente a ela. Com este passo, Nietzsche separa, em sua discussao so- bre a linguagem, erigem — criagao individual — ¢ uso — fixagao pela coletivi- dade. Esta separagao se da da seguinte forma: Em Rhetorik a explicagao para a origem da linguagem € a seguinte: Nietzsche entende, ent&o, que sua uniformidade se deve ao fato de que a linguagem € fruto da criagdo de um tnico individuo. Se passa As maos da coletividade, isso ocorre através de uma coergao: “Estes poucos (criadores da linguagem), quando nao conseguem impor suas figuras (retéricas) 4 mai- oria, apelam contra ela ao usus e falam de barbarismos”®” (Nietzsche 10, p. 300). Para que a sua criagao individual prevalega diante de novas poss Fonseca, T-L., discurso (25), 1995; 97-119 109 veis criagdes, 0 criador da linguagem faz apelo ao “gosto da maioria” ¢ desqualifica qualquer nova denominagao como “barbarismo”, como igno- rancia ou uso indevido da linguagem estabelecida. Sub-repticiamente, o ar- tifice da linguagem determina, antes de mais nada, nao apenas o uso especifico da lingua a ser valorizado, mas sim 0 critério de avaliagao. Tal critério esta presente quando se associa o mais antigo ao “legitimo”, quando se valoriza o usual em relacdo ao novo, o que se faz ao atribuir artificialidade ao segun- do em contraposigao ao primeiro, ao se dizer que o “surpreendente” é farsa, mentira, impurezae imprecisao da linguagem, em oposigao ao familiar, que configuraria 0 uso “adequado”, “puro”. E desta maneira que se alcanga im- pedir que novas criagGes tomem o lugar das antigas: “Portanto, o puro se define pelo ‘nao surpreendente’ (Nicht-Auffaellige)” (Nietzsche 10, p. 301). O trecho citado permite concluir que hé uma precedéncia da retorica em relagao a idéia de “uso natural” da linguagem, uma vez que aquilo que se entende por “barbarismo” é, na verdade, apenas um recurso — retérico — para que se torne possivel impor como norma um determinado uso das pala- vras. A idéia de “uso natural” da linguagem € um artificio retérico (enten- dendo-se aqui o termo “retérica” segundo a defi aristotélica). A propria diferenciagdo natural/artificial esta a servigo de fins de persuasao: “(...) a arte do orador consiste em nao permitir que aparega 0 art ial: dai o estilo caracteristico que, sem dtivida, é em qualquer caso produto da arte mais elaborada: assim como 0 ‘natural’ do bom ator” (id., ibid., p. 306). O “natu- ral” aparece como invengao da arte retérica, para dissimular, através de uma técnica, o fato de que seu discurso visa apenas persuadir os ouvintes. Ele deve fazer parecer que as emocées despertadas em seus interlocutores sao as Mesmas ou ao menos similares 4quelas que ele préprio sente. Tem que ser capaz de aparentar que cré na causa defendida, que é “honesto”, isto €, que usa a linguagem de acordo com as regras fixadas. Como € dito em Wahrheit und Luege, o que se espera alcangar com um uso “legitimo” da linguagem € a veracidade. Nao haveria problema algum no fato de se fundamentar uma concep- cao de verdade sobre uma idéia de veracidade, desde que esta fundamenta- gio estivesse ao alcance de todos. Se isto ocorresse, tratar-se-ia de um acordo comum, 0 que seria suficiente para legitimar uma concep¢io de conheci- 110 Fonseca, T.L., discurso (25), 1995: 97-119 mento sustentada sobre uma idéia de convengio na linguagem. O que torna tal concepgiio de conhecimento impossfvel € 0 fato de que nao hd convengao nesta idéia de veracidade, mas apenas coergdo. A partir do trecho acima mencionado, pode-se compreender que “bar- barismo” é um dispositive coercitivo que visa restringir a poucos o privilé- gio da doagao dos sentidos. Dai por que nao se trata de convengao no estabelecimento da linguagem. Nao ha comum acordo pois nao ha conscién- cia, por parte da grande maioria, do cardter ficticio destes significados. Ha apenas, por um lado, um impulso artistico, eriador dessas figuras retéricas €, por outro lado, uma estratégia voltada para conservd-las. Mas, a partir desta compreensio do que significa um uso “legitimo” da linguagem, nao ha convengao (striciu sensu, isto é, como acordo deliberado) ainda pelo fato de que 0 uso comum da linguagem pela coletividade é instaurado através de uma imposi¢do, embora nao aparega como tal. A fixidez da linguagem, que encontra no adjetivo “puro” seu coroamento, nao é devida & sua origem, pois o criador da lingua tem de fazer com que suas criagdes sejam preservadas pelo uso corrente para que se fixem, para que adquiram o estatuto de denominagdes “corretas”, adequa- das. Assim, essa fixidez apenas pode ser atribuida por uma forca constante que a mantenha, forga esta presente em seu uso. Ela nao mais é fruto exclu- sivo da ago individual; ela é resultante da linguagem usada para a comuni- cagao no interior de uma organizagao social, Assim, pode-se verificar que Nietzsche nao se limita a uma critica 4 idéia de verdade como adequagio, critica esta que deixaria intocada uma concep¢io convencionalista da linguagem. Isso porque nao ha, para ele, a possibilidade de compreender que a linguagem fora instaurada por um acor- do comum. Ha, isto sim, a coergfo para que se atribua a linguagem uma determinagao externa, coergio esta que, quando se impde de maneira vela- da, € vivenciada como “impulso a verdade”, como aprego espontineo pela verdade. Assim, pode-se compreender que Nietzsche, ao perguntar pela ori- gem do impulso 4 verdade, de fato questiona os fundamentos da idéia de verdade como adequagio no sentido cléssico, No entanto, se ele o faz, tal questionamento esta voltado, antes de mais nada, para o antincio de que a crenga em uma conformidade entre linguagem e as coisas em “si mesmas” Fonseca, T.L., discurso (25), 1995: 97-119 111 pode ser, ela propria, enquanto crenga, fruto de uma coergao, Mas, Er rceneies, © autor também evidencia que a idéia de que hd convengao na linguagem igualmente pode ser resultado de um procedimento coercilivo, mascarador do processo impositivo que determina o “uso adequado” ou le- gitimo da palavra. Ao atribuir a fixagdo da linguagem ao Ambito da comunicagio, a dis- cussdo terd que se transportar para o terreno da moral, na medida exata em que o préprio pendor a “verdade” reduz-se, aos olhos do autor, a sublima- gao de uma regra — moral - que impde a veracidade: “(...) a veracidade (Wahrhaftigkeit) (e a metdfora) produziu a propensao para a verdade. As- sim um fendmeno moral, esteticamente generalizado, da o impulso intelec- tual” (Nietzsche 9, § 130). O impulso a verdade constitui, assim, a introjegao desta regra ¢ a conseqiiente elevacio da “verdade” a um valor per se (id., ibid., § 133). A esta “verdade” nao se opde o erro, a falsidade. Opde-se a mentira, € 0 que Nietzsche busca revelar: “O mentiroso usa as designagdes vlidas para fazer aparecer 0 ndo-efetivo como efetivo; (...) se ele o faz de maneira egojsta ¢ de resto prejudicial, a sociedade niio. copter’ mais nele eo excluird de si” (idem 11, p. 881). O respeito ao uso “leg! * das palavras —a“verdade” — somente tem sentido na situagao eatahileeids: entre falante € ouvinte com a finalidade de checar a fidelidade do primeiro no que diz res- peito & sua adesao as regras estabelecidas. Esta é a forma escolhida pelo autor, sobretudo em Ueber Wahrheit und Luege, para nos dizer que, quando se discute sobre as possibilidades de se alcancar a “verdade”, sup6e-se que ela deva ser, por si mesma, desejavel, hecessdria, valida. Tal suposigdo, ao ser questionada na pergunta pela ori- gem do impulso a verdade, desloca o problema do ambito estrito da teoria do conhecimento para situé-lo no campo da discussao sobre a moral. Esse tratamento dispensado pelo autor 4 linguagem enquanto algo que teflete, sobretudo, as constelagées de poder entre os homens, nos permite entender que sua critica 4 linguagem a situa no terreno delimitado por uma Preocupagao moral, j4 que se configura como pardmetro para a avalia das relagdes entre homem e homem, e nada poderia esclarecer quanto 4 su- Posta relagao entre homem e “mundo”. As regras que regem a linguagem Sao refinamentos de normas criadas para manter uma certa hierarquia nas 112 Fonseca, T-L., discurso (25), 1995: 97-119 relagées entre os homens. Tais regras configuram apenas normas sociais quando apresentadas de maneira explicita, como, por exemplo, quando apre- sentadas na forma de lei. Sao regras morais quando a norma social nao se apresenta como tal, isto é, quando ela se apresenta como um valor per se, como € 0 caso do valor da verdade, Assim, 0 que Nietzsche teria buscado através dessa discussio sobre a retérica poderia ser entendido como uma dentincia da fixagdo (através da linguagem) das normas que regem as relages entre os homens, isto é, teria buscado anunciar que nas regras lingiiisticas — entendidas como validas em si mesmas ~ so sancionadas relagdes determinadas de poder. Por esta ra- 240, o tratamento dispensado por cle a linguagem parte dos limites desta, de sua impossibilidade de apreender as coisas em si mesmas, para desembocar na pergunta pela origem do impulso que visa ultrapassar estes limites. As regras da linguagem nao corresponde nada que estivesse para além das rela- des humanas, nada que existisse “em si mesmo". O ponto de partida con- tém, portanto, uma questiio epistemolégica — os limites do conhecimento edificado sobre a linguagem —, questao esta que reformulard o problema como problema moral ~ normas das relagdes humanas em um todo social. Pode-se dizer que ele parte dos limites da linguagem para refletir 0 “mun- do”, para aborda-la como instrumento apto a revelar as regras da comunica- gao e, através destas, as normas da convivéncia estabelecidas por valores que se impéem como inquestionaveis. Na realidade, o “Curso de Retérica” apenas nos permite vislumbrar a diregdo na qual se orienta a critica de Nietzsche como critica & moral. Tal conformagao da critica & linguagem apenas sera concretizada através da nogao de Trieb zur Wahrheit, que ocupa um lugar central em Ueber Wahrheit und Luege im aussermoralischen Sinne. Ai, Nietzsche podera dizer explicita- mente que sua questao € uma questao moral. Conforme consta na parte final do texto inicialmente citado, o que esta enfatizado neste texto, na medida em que € lido do ponto de vista da moral (“expresso moralmente”), & a obrigagao de mentir em rebanho, em um “estilo obrigat6rio para todos” (grifos meus). “Trieb zur Wahrheit" servira justamente para designar o im- pulso inconsciente que impele o membro da coletividade a busca das figuras, retéricas fixadas. “Impulso” indica que ele o faz acreditando que estas sao Fonseca, T.L., discurso (25), 1995; 97-119 113 determinadas por referenciais externos 4s agGes humanas, portanto, mos- trando-se incapaz de reconhecer como tal uma exigéncia que esta circuns- crita ao plano dos valores. “Valores”, neste texto, poderiam, portanto, ser entendidos como regras das relagées entre os homens que, quando hipostasiadas, apresentam-se como leis determinantes das relagdes entre homem ¢ “mundo”, como conformidade entre leis da natureza e leis do co- nhecimento racional. A irracionalidade presente na fundamentacio destas idéias seria 0 que Nietzsche pretende atestar e, ao fazé-lo, denunciar a de- terminagéo moral que as impede de superar o simples estagio da crenga. Tal impossibilidade de apreensao racional, pelo todo coletivo, do que seria originalmente sua “verdade” — a saber, a impossibilidade de a coletivi- dade apreender a “verdade”, por ela “espontaneamente” buscada (0 “impul- so & verdade”) enquanto uma introjegdo da norma social que coage 4 veracidade — indica que aquilo que parece ser uma preocupagao da teoria do conhecimento se impée, se visto mais detidamente, como determinado por um valor moral. A idéia de pureza, assim como a idéia de adequagao é deve- dora de um valor estético “moralmente imposto”, ¢ nao pode reivindicar estatuto epistemoldégico diferenciado da idéia de estilo. Abstract: This paper intends to show that Nietzsche’s criticism on language, already in his very first writings on these theme, cannot be taken in a merely epistemological sense, since discussion about knowledge is focused under a moral view. ‘¢ywords: drive for truth — rethorics ~ morals ~ language 114 discurso (25), 1995: 97-119 Notas (1) Tradugdo de Rubens R. Torres Filho. Usaremas essa tradugdo sempre que for posstvel. Caso contrdrio, serdé consuliada a tradugde da Gallimard da edigao critica de Calli e Montinari. (2) Ha divergéncias entre os comentadores quanto 4 datagdo deste escrito. Na edigdéo Musarion, 0 texto & datado de 1874. P. Lacoue-Labarthe e J.-L. Nancy acreditam serem anotagoes de 1872. Cf. A. Meijers (Meijers 7, p. 384), ha dais grandes argumentos em favor de 1874, a saber: 1, 0 aniincio de um curso de retérica intitulado “Darstellung ueber Rhetorik” para o semestre de verdo de 1874; 2. somado a este, hd um outro fato: Nietzsche escreveu a Gersdorff afir- mando que daria um curso sobre retérica no semestre de verdo de 1874. Labarthe e Nancy extraem a convicgao de que o escrito data de 1872 de duas outras fontes: I, a partir da cronologia estabelecida por K. Schlechta; 2. de uma tabela de cursos das universidades alemds publicada em um periddico de filologia. Em favor de 1872, me pareceu, no entanto, decisivo o argumento de Meijers, que, apés documentar detalhadamente a compilagao de trechos de G. Gerber efetuada por Nietzsche nesses apontamentos, observa que o livro de Gerber fora empresta- da por Nietzsche junto a biblioteca de Basiléia ne semestre de inverno de 1872/ 73 (Meijers e Stingelin 8, p. 380), A este dado pode ser somado 0 fato de que a comparacdo das anotagées deste “Curso de Retérica” com Ueber Wahrheit und Luege im aussermoralischen Sinne parece indicar, como serd buscado demonstrar nas paginas que se seguem, que o primeira destes escritos constititi uma espécie de preparacao para o segundo, o qual é datado de 1873, segundo Coli ¢ Montinari. Diante disso, Meijers entende que as anatagées para o curso, se é que realmente Nietzsche a tenha ministrado, foram feitas anteriormente a data para a qual ele estava previsto. (3) Foram utilizados para este trabalho os trechos editados pela Musarion. (4) Esta ampliagdo do universo por ele criticado ird situar seu tratamento da linguagem no dominio de wna critica 4 moral, o que aqui serd apenas apontado, conforme dito mais acima. Fonseca, TLL., discurso (25), 1995; 97-119 115 (§) Trata-se, aqui, da definigdo presente na Retérica de Aristételes. Hd também referéncias explicitas ao Organon e indicios de mengdes a Poética. Por essa ra- zao, a abordagem da discussdo de Nietzsche com Aristoteles a ser feita aqui se limitara a essas obras, 0 que implica abdicar da pretenséo de questionar a legi- timidade da compreensao nietzschiana do tratamento que Aristételes dispensa a linguagem, coisa que exigiria uma andlise de outras obras sobre o tema. (6) A tradugao de dinamis por “forga” segue a tradugdo de Nietzsche (“Kraft”) tal como consta no seu comentario sobre o trecho feito loge a seguir. (7) Em verdade, 0 texto de Nietzsche contém quatre pontos. Aqui, porém, iremos tratar dois deles (o primeiro e 0 tiltimo) conjuntamente, jd que, no que diz respei- to aquilo que buscaremos enfatizar da compreensdo nietzschiana deste texto de Aristételes, seria repetitive abordar cada um desses pontos separadamente. (8) Seg. tradugao de Dufow ..) € manifesto que a retérica serve igualmente para descobrir 0 persuasivo verdadeiro e o persuasivo aparente, assim como a dialética o silogismo verdadeiro e o silogismo aparente; pois, o que faz a sofistica nao é a facildade, mas a intengdo; existe, entretanto, uma diferenga: aqui se é orador, este, por sua ciéncia, aquele por sua intengdo; se é sofista em razdo de sua intengdo e dialético em razdo ndo de sua intengdo, mas de sua faculdade”. Obs.: onde este tradutor usa “faculdade” leia-se “dinamis” (Aristételes 3, p. 75). (9) O primeiro ponto enfatizado por Nietzsche pode ser assim reconstituido: a retori- ca ndo é wnaepistemé, nem umatekhné, mas é uma dtinamisno sentido em que é algo que tem seu aperfeigoamento dado pela agdo para que se torne uma tekhné. (10) Observa-se que, a ndo ser pelo faio de que Nietzsche efetua uma andlise termo a termo da definigdo aristotélica, este tiltimo item poderia ser tratado jun- tamente com o primeiro, jd que ambos estdo estreitamente relacionados. Esta relagdo se revela quando se observa que a retérica, para Aristételes, para passar de diinamis para tekhné exige uma preparagio tedrica. (11) "Segundo os sicilianos Cérax e Tisias, a retérica é dona da persuasao (retoriké esti peithows demiourgés)” (Nietzsche 10, p. 289). Obs.: a tradugdo é de Lacoue- Labarthe. 116 Fonseca, T.L., discurso (25), 1995: 97-119 (12) Quanto a esse ponto, Nietzsche menciona Quintiliano: "(...) as metdforas ndo artisticas — in quo propium deest — eram imputadas (come Quintiliano) aos indoctis ac non sentientibus” (Nietzsche 10, p. 315). (73) Vé-se que Nietzsche parte da suposigdo de que hd nao apenas em Aristételes, mas, também, em diversos autores antigos, uma concep¢do dualista da lingua- gem, a qual entende que ela possa ser artificial (thesei) ou natural (physei). Deste ponto de vista, a retérica seria fruto de um processo corruptor da linguagem naturalmente instaurada, dat ser um “artificio”. Através dessa compreensdo, Nietzsche chega a alinhar a concepgdo aristotélica da linguagem ao Cratilo no que diz respeito a alternativa dualista para o surgimento da linguagem at formu- lada por Platao. Tal aproximagéo provavelmente encontraria diversos obstdcu- los se Nietzsche houvesse considerado também De Interpretatione. Como bem mostra P. Aubenque, ndo se pode afirmar a presenca da concepgdo de “lingua- gem natural” nesta obra de Aristoteles (ver Aubenque 4, pp. 94-162), (/4) Em se atentando para os textos posteriores a esse pertoda, vé-se que a men- gdo a esta figura é recorrente quando Nietzsche busca angariar argumentos con- tra a exatidda dos nomes. O exemplo citado mais adianie — Schlange enrodilhar-se — é reconstituido em Ueber Wahrheit und Luege im aussermoralischen Sinne. (15) Sarah Kofman (ver Kofman 5, pp. 41-85) enfatiza o cardter originalmente metaférico que teria toda linguagem para Nietzsche. De fato, a metéfora ganha Progressivamente maior importincia do que as outras figuras nas obras subse- giientes. Entretanto, no trecha mencionado Nietzsche atribui explicitamente a sinédoque a criagdo dos nomes. (16) A metonimia se mostrard cada vez mais importante no decorrer do desenvol- vimento da discussdo sobre a linguagem em Nietzsche, inclusive no pertodo ma- duro (a partir de 1883), pois em tal figura residird a raiz dos procedimentos antropomérficos que resultardo na criagdo de uma idéia de “substéncia” pré- pria da “coisa” a partir do efeito que é produzido subjetivamenie. (17) Contrariamente a essa critica de Nietzsche, poder-se-ia dizer que a comuni- ca¢do por palavras poderia unicamente pretender transmitir impressoes subjetl- vas € que suas exatiddo e eficiéncia ndo teriam que prestar contas as “coisas em mesmas”. Tal argumentagdao se daria no sentido de mostrar que mesmo sendo Fonseca, TLL., diseurso (25), 1995: 97-119 117 trépica, a linguagem poderia ser exata quando usada para transmitir algo como “estados d’'aima”. Diante disso, Nietzsche terd ainda de mostrar que, mesmo quando se pretende que a linguagem apenas deva comunicar impresses subjeti- vas, ainda se esté atribuindo uma tarefa excessiva @ linguagem. Conforme sera visto loge a seguir, a comunicagdo através da palavra somente pode suscitar emogées no interlocutor, (18) Aqui comega a se delinear a apropriagdo de G. Gerber por Nietzsche de maneira evidente. Cf. o esquema apresentada par Meijers do trecho carrespon- dente de Die Sprache als Kunst, Gerber concebe a formagiio da palavra da se- guinte maneira: “(Ding an sich) — Nervenreiz - Empfindung — Laut — Vorstellung = Wurzel — Wort - Begriff” nde havendo necessidade alguna na transicao entre as diferentes etapas do processo (Meijers e Stingelin 8, p. 377). Ao contrario, cada uma destas constitui-se de algo qualitativamente distinto das demais, néo podendo preservar nada da anterior e tampouco transmitir nada para a etapa posterior. (19) Por meio desse segundo argumento, pode-se deduzir: mesmo que meu ouvin- te ou interlocutor tenha razées indubitdveis para crer em minha honestidade, isto é, mesmo que sua confianga nao seja proveniente de meu discurso, mas sim resul- tante de outras fontes, sua discorddncia ou sua concordancia em relagao & causa que eu defendo pode provir de uma incontorndvel imprecisao da linguagem. Des- ta forma, poder-se-ia entender que Nietzsche estaria aqui aludindo a terceira e Jiltima prova técnica do discurso retérico segundo Aristételes, a saber, aquela que se apdia sobre o “valor demonstrative do discurso”: “(...) quando fazemos extrair 0 verdadeiro e o verossimil daquilo que cada assunto comporta de persu- asivo” (Aristételes 3, p. 77). (20) Com este primeiro argumento, pode-se suspettar que, embora Nietzsche néo 0 afirme, sdo visadas aqui as duas primeiras “provas técnicas” caracteristicas do discurso retérico segundo Aristételes (ver Aristételes 3, pp. 76-77). A primei- ra delas diz respeito ao cardter de orador, ou seja, trata-se da habilidade deste de inspirar confianca através de seu discurso, o que sigaifica manejar o discurso de forma que 0 ouvinte creia que este orador tem a intengdo de transmitir aguilo que ele efetivamente esta experimentando enquanto estado interno. A segunda Prova refere-se as paixoes do ouvinte, através do que a persuasdo ocorre quando © discurso 0 leva a experimentar uma paixdo determinada segundo a intengdo do erador, 18 Fonseca, T.L., discurso (25), 1995; 97-119 (21) Nesta etapa da discussdo, abre-se um flance que permitiria wm confronte entre a critica de Nietzsche a linguagem e a concepgdo aristotélica da mesma em De Interpretatione, jd que nesta obra a linguagem é abordada como meio de co- municagdo de estados d’ alma. (22) A multiplicidade de sentidos posstveis para a palavra“umschreiben” impede que se encontre uma boa traducao na lingua portuguesa, pois, além de “circuns- crever”, ela pode significar “transcrever”, “refundir”, “parafrasear” e, em sen- tido figurado, “dizer por perifrase”. Como se vé, esses diversos sentidos nao apenas sdo cabiveis na cantexto, come ainda podem enriquecer a interpretagao do trecho em questdo, quando se tem em vista a idéia de wma linguagem como originalmente ret6rica. (23) Em Vom Ursprung der Sprache, a explicagao para a origem da linguagem, tema central deste escrito, é outra, Ai, a linguagem ndo aparece como criagdo individual, mas como produto de wm instinto (Instinkt) que se expressa “na massa eno individuo”, podendo, portanto, ser criada por uma coletividade (ver Nietzsche 12, parte 1). Tal autoria coletiva estd totalmente excluida neste “Curso de Retérica”. (24) Esta quesido se relaciona ao problema de explicar de que forma a lingua- gem, jd que essencialmente retérica, alcanga uma forma tinica e serve para a comunicagdo. Isto significa, também, explicar de que maneira se dé a passagem da criagdo individual para o uso coletivo. Referéncias Bibliograficas 1. ANDLER, C. Nietzsche, su Vie ef sa Pensée, Vol. I. Paris, Gallimard, 1958. 2. ARISTOTELES. De Interprétation. In: Organon, Vol. 1 Tradugao de J. Tricot, Paris, Vrin, 1969, Fonseca, T.L., discurso (25), 1995: 97-119 119 3. . Rhétorique, Vol. 1. Tradugio de J. Dufour. Paris, Les Belles Lettres, 1932. 4. AUBENQUE, P. Le Probléme de L’Etre chez Aristote. Paris, Presses Universitaires de France, 1962. 5. KOFMAN, S. Nietzsche et la Métaphore. Paris, Galilée, 1988. 6, LACOQUE-LABARTE, P. “Le Detour”. In: Poétigue, n® 5. Paris, 1975. 7, MEIJERS, A. “Gustav Gerber und Friedrich Nietzsche”. In: Nietzsche Studien, n° 17. Berlim, Walter de Gruyter, 1988. 8. 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