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Jornalismo Literário no cinema

Por Edvaldo Pereira Lima

Um fenômeno curioso da produção cinematográfica brasileira atual ilustra o quanto


o Jornalismo Literário é antes de tudo uma atitude, um modo de ver e reportar a
realidade, independentemente do tipo de veículo que abriga a mensagem.
Tradicionalmente, a expressão Jornalismo Literário faz pensar na reportagem
escrita, produzida para um jornal impresso, uma revista gráfica ou um livro-
reportagem, com requintes de estilo narrativo que busca qualidade.

Nada mais natural pensar-se assim, já que o Jornalismo Literário nasceu e


desenvolveu-se no território do jornalismo impresso, parcialmente importando da
literatura procedimentos de observação, descrição e narração. Com o tempo,
evoluiu para conquistar a maturidade consolidada hoje em dia, especialmente nos
Estados Unidos, incorporando características decisivas que o definem com precisão.
O Jornalismo Literário que se preza envolve a imersão do repórter na realidade que
deseja retratar, a exatidão no relato de acontecimentos e situações, a leitura
simbólica do mundo que observa, estilo, uma voz narrativa distinta e às vezes
digressões que abram uma reflexão profunda sobre o tema subjacente à narrativa.
Busca unir a compreensão racional do mundo com o entendimento intuitivo,
passando pela leitura sensível de pessoas, ações, cenários e contextos. Une razão e
lógica, integra as esferas objetiva e subjetiva que constituem a realidade integrada.

Um elemento marcante é a presença de pessoas na narrativa. Por isso é que o


Jornalismo Literário trabalha tanto o perfil - gênero que coloca em primeiro plano,
preferencialmente, indivíduos ou grupos sociais. No perfil busca-se construir
retratos que ajudem a compreender os valores, a visão de mundo, os traços de
comportamento, as ações, as motivações que tornam cada ser humano único e ao
mesmo tempo representante de uma partícula do vasto calidoscópio narrativo que
é a trajetória da humanidade na face da Terra.

Também é por isso que incorpora tanto Histórias de Vida - episódios da ação
humana que ajudam a dar cor, movimento, drama, intensidade e sentido aos
acontecimentos. Basicamente, contam-se histórias em Jornalismo Literário.
Histórias fortemente centradas na figura humana, célebre ou anônima. Pode-se
dizer que, num certo sentido, procura essencialmente retratar e compreender a
alma humana através da narração e descrição de conteúdos importantes de suas
vidas.

Essa preferência do Jornalismo Literário por representar o mundo através das


pessoas de carne, osso e alma, propondo-se a conhecê-las na sua complexidade
humana, corresponde a uma profunda necessidade social. Precisamos contar
nossas histórias, gostamos de ver e ouvir as histórias dos outros, pois são elas que
ajudam a dar sentido às nossas vidas, que nos mostram quem somos. Permitem
que nos identifiquemos, ajudam-nos a encontrar quem nos inspira na nossa
caminhada, quem nos mostra, através de suas histórias, iluminações para a
realização do nosso propósito de viver. Possibilitam que compartilhemos, com os
outros, a nossa contribuição para a sociedade.

Lamentavelmente, porém, o ser humano tem sido pobre e superficialmente tratado,


na maioria dos caos, pelos meios jornalísticos convencionais. Isto no Brasil dos
anos mais recentes. A pessoa humana é, quase sempre, apenas um dado folclórico
de ilustração de uma situação, uma fonte de informação, um arremedo de gente,
uma figura estereotipada. Pouco se conta histórias humanas reais, na sua dimensão
complexa plena.
Sugiro que na ausência do cumprimento desse papel pelos veículos jornalísticos
tradicionais brasileiros, essa necessidade psicológica, social, está encontrando
espaço cada vez mais crescente tanto nos livros-reportagem quanto no cinema de
documentários. É notável, nesse sentido, o trabalho da produtora carioca
Videofilmes.

Uma de suas produções relativamente recentes, "Edifício Master", documentário de


Eduardo Coutinho, conquistou um bom público - pelo menos no Rio de Janeiro e em
São Paulo - e boa bilheteria no cinema, retratando as vidas de pessoas comuns -
mas reais, de sangue, suor, lágrimas e risos, com seus sonhos e tropeços, dramas
e conquistas - que habitam um famoso edifício do bairro de Copacabana, no Rio.

O que faz Coutinho é uma forma de Jornalismo Literário adaptado ao cinema,


construindo perfis instigantes de um grupo social. O que faz Isabel Jaguaribe,
noutro trabalho recente da mesma produtora, em "Paulinho da Viola - Meu Tempo É
Hoje", é edificar um ótimo perfil do compositor e cantor, quebrando o estereótipo
de vê-lo apenas como um artista, para mostrá-lo também na sua dimensão de pai
de família, de freqüentador de situações cotidianas de um bairro, como qualquer
mortal, de criador com suas manias, de figura humana excepcionalmente proativa
psicologicamente, realizadora do belo, em que pese a intensidade dos problemas
sociais e dos dramas humanos que habitam o contexto da sua cidade.

E o que faz João Moreira Salles, noutra produção recente da Videofilmes, "Nelson
Freire", é enfrentar o enorme desafio de desenhar, cinematograficamente, o perfil
de um pianista clássico famoso, filho de um país onde a música clássica está longe
de habitar as preferências da grande massa.

Particularmente, agrada-me bastante o estilo com que João Moreira Salles pratica
esse Jornalismo Literário cinematográfico centrado em pessoas. Acho que é uma
inspiração para todos que desejam trabalhar com perfis e Histórias de Vida na
narrativa contemporânea da realidade, em qualquer forma de expressão. Salles não
sufoca seus personagens - muito ao contrário do que vemos acontecer com vários
entrevistadores famosos da televisão -, chega às suas vidas com delicadeza,
elegância. O grau de invasão é mínimo, o respeito é absoluto.

Há poucos anos, João Moreira Salles e Arthur Fontes dirigiram uma trilogia ,
"Futebol", que merece ser apreciada com carinho por todos os que pensam
Jornalismo Literário no Brasil. Co-produzida pela Videofilmes e pela GNT, a trilogia
exibe ao telespectador o mundo do futebol à luz dos seus principais personagens,
os jogadores.

O desenho da produção foi muito feliz. O primeiro documentário focaliza a vida de


quatro garotos - Fabrício, Wanderson, Jeosmar e Edmilson - que lutam para ser
jogadores profissionais, submetendo-se às "peneiras" - processos de seleção - dos
grandes times. Mas o foco não é reduzido, marqueteiro, preso à unilateridade do
fato esportivo. É amplo, humano. De repente, somos contemplados com uma
graciosa e reveladora viagem da câmera pelo cotidiano de família de Jeosmar e
Edmilson, em Goiás. Ali está uma bela lição de uso dos símbolos do status de vida -
artefatos que iluminam o nosso entendimento dos personagens -, técnica tão bem
empregada pelo grande mestre de Jornalismo Literário que é Tom Wolfe e tão
brilhantemente transplantada para o cinema nesse documentário exemplar. Noutra
surpresa, a vulnerabilidade e a fragilidade tão humana de um dos garotos são
mostradas, sem apelações, singelamente, quando defronta-se com seu grande
ídolo Zico.
No documentário seguinte, o foco centraliza-se em Iranildo e Lúcios, dois jogadores
profissionais do Flamengo que superaram a fase da busca do sonho e estão em sua
plena realização. No terceiro, as luzes caem sobre alguém que já esteve lá como
grande craque e agora vive a memória do passado, Paulo César Lima, o Caju.

Produções desse tipo são muito bem-vindas. Que continuem a florescer no cenário
cinematográfico brasileiro. Por outro lado, será pena se os jornais e revistas
brasileiros não aprenderem a lição, perdendo a oportunidade de colocarem de vez
os bons perfis e as boas Histórias de Vida de volta às suas páginas. Pois se não o
fizerem, as histórias continuarão a ser contadas e precisarão ser contadas, pelo
interesse genuíno que despertam. Só que estarão navegando em outros canais,
longe das páginas de Gutenberg. Clique aqui para ler nossas resenhas sobre
documentários cinematográficos.

Fonte:TextoVivo - Narrativas da Vida Real


http://www.textovivo.com.br

http://www2.eca.usp.br/pjbr/arquivos/arquivodomural8.htm

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