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SEGUNDA PARTE PAULO FERREIRA DE CASTRO 4 DO FIM DO ANTIGO REGIME As RAIZES DA MODERNIDADE 5. © SECULO xx 4. DO FIM DO ANTIGO REGIME AS RAIZES DA MODERNIDADE O Século Rejeitado Algo supreencentemente, a misica portuguesa do século xx no tem atraido a atengdo dos historiadores € musicologos na mesma medida ‘que a dos séculos anteriores, 2 ponto de, sob certos aspectos, termos de considerar esse periodo como verdadeira terra incognita da inves: tigagto. A tarefa de apresentar de forma sintética um panorama da vida ‘musical ojtocentista em Portugal reveste-se, pois, de dificuldades espe- cificas: as ocasides de contacto directo com o repert6rio sio pratica- mente inexistentes, faltam quase por completo edges musicais acessi- veis, ¢ a maioria das fontes documentais de base encontra-se ainda numa fase incipiente de inventariagio (quando nao dispetsa ou inidentificada). Por tudo isso, ¢ enquanto nao forem superadas as grandes lacunas do nosso conhecimento, hd que ter presente a necessidade de uma extrema prudéncia na formulago de conclusées, e reconhecer o carcter eminentemente provisérlo de todas as abordagens globalizantes do periodo em questio. ‘As razdes do relativo desinteresse até hoje manifestado por esta area do nosso pattiménio cultural no podem deixar de reflectir, no plano ida componente ideo- logica de Ambito mais vasto, assente no conceito de «cecadéncias, tal como este se encontra teorizado pelos sectores mais criticos do pensa- das respectivas andlises do pro- jural do Pais (em conse- jue isso que veio a der ‘os fumos da India’ ji em fase de teorizagio decade: us Messcria da sistea de alguma forma condicionou sempre, a partir de entdo, a perspectiva axio- l6gica do nosso transcurso hist6rico. Com efeito, dir-se-ia que Portugal, aps ter, mediante a sua expansio, “mudado 0 futuro do mundo" (H, Pirenne), se mostrou inapto para acompanhar o ritmo da transfor ‘macao moderna acorrido em alguns paises (Holanda, Inglaterra, Franga)s, af resultando a consciéncia de um desajustamento entre o tempo portu- gues (ou ibérico) ¢ o curopeu, que, persistindo € agudizando-se a0 longo. dos séculos xviit ¢ xtx, emergira sob diferentes formas e designacées fura portuguesa (polémicas entre 2 © sestrangelrados», inisMO € Outros messianismos, saudosismo, tradicionalismo, modernismos, etc. Uma parte mt simultaneamente ird colocar-se, pret de decadencia, acompanhado por diferentes tentativas © proj de «regeneracio» (Alexandre Herculano, Antero de Quental, Martins, Guerra Junqueito, Tedfilo Braga, Sampaio Bruno, Fernando Pessoa, Anténio Sardinha, AntOnio Sérgio), tendentes, allés, a uma vatié vel valorizagto do passado historico € A cleiglo de determinados perfodos desse pasado como épocas paradigmiticas de uma grandeza nacional perdi Idade Média, século XVI, ou mesmo xvi). Assim, entre las passadas ¢ ansia de reforma e actualizagao (de alinha mento com as transformagdes técnicas, cientificas, da Europa contemporanea), decorrera praticamente a totalidade da época histérica iniciada, grosso modo, com 0 traumatismo das invasdes napo- € prosseguida com a revolugio liberal (1820), politicas até a instauracio do novo regim © Setembrismo (1836- 10 © queda dos Cabrais (1 a chamada Regeneragdo (desde 1851) e os seus prolongament fim da Monarquia e 1 implantagio da Repsblica (1910), factos politicos com profundas implicagdes na vida social e cultural do Pais, €, conse quentemente, amplas repercussdes no dominio da actividade musical Sendo a propria historiografia musical, em grande parte, uma criagio do século xix, orientada para a descoberta e revalorizagao de um patri- » em que, na senda do idedrio romantico, se pretendia ica» e «profundar de uma identidade inegivel auséncia de grandes F uma stegeneragoe musical entendida como necesss € de admirar que os fundadores da musi cologia portuguesa (herdeiros directos, quase sempre, da dialéctica Do Fim do Antigo Regime ds Ratzes da Modernidade itocentista da decadéncia e regeneragio) tenham consagrado o melhor io seu esforco ao estudo da miisica dos séculos xv, XVI! e, em parte, Ago $6 em virtude do seu valor este! seco, mas também (ou principalmente) pelo facto de essa masica reflectir, de algum modo, ‘uma suposta «época de ouros da histéria c da cultura portuguesas (combi nando uma afirmagio de identidade nacional com a projeccao «univer- sals da mesma), por oposigao 20 epigonismo sem gldria a que se reduzia ‘quase sempre, na visio historiogrifica tradicional, a produgio das épocas musicals mais recentes. ‘Uma das andlises mai entretanto em Fernando Loy das sobre esta problemitica encontra-se aga, no texto de uma conferéncia reali: de edecadéncias como na da falta de organicidade na evolugio hist6- rica da musica portuguesa (associada a dificuldade de esta «ac (© passo: Jo geral da mdsica europeia), Lopes-Graga cstendiz mesmo A suposta «idade de ouro representada pelos séculos xvi e xvi (@ idade dos polifonistas, considerada sobretudo a partir dos anos 30 como a época mais valiosa do nosso patriménio musical) a suspeita do seu de anacronismo e menoridade estética, em virtude, igualment carécter epigonal (cm relagdo aos modelos franco-flamengos) zindo assim uma perspectiva discordante na imagem ento cons do nosso pasado musical: portuguesa (se processus hé no ) € descontinuo, cheio de hiatos, inte representativas. O Gnico +0 processus hist6rico da mmiisi que nto apresenta uma feigao organ sem nticleos vitais e sem figuras re pperiodo em que na nossa produgao m historic, e que € aids, parece-me, 0 tinico digno de nota, € o dos poli- fonistas da chamada Escola de Evora (...). Nio me parece, porém, que, por mais talentosos que sejam os seus representantes curiosas que sejam as suas produgdes, ndo me par Seja0 tal periodo excepcional, aquete periodo que, s6 por si, pela enver- gadura das suas criages, basta para dar foros de criadora a uma cultura musical ¢ marcar na historia da arte onto liminaso, tum estado valorativo da sua personal até uma fase necessatia na evolucao geral da misiea [ aca 1944: 19-20} Pantilando uma orientagiio de algum modo evolucionista da hist concordante alids com 0 «progressismos das suas posigdes estéticas € ideo logicas, Lopes-Graga introduzia no debate a consci¢ncia modernista U6 Historia da Seca de um certo vicuo da tradigio musical erudita portuguesa, aparente- ‘mente ameagada pela sua incapacicade cronica de se ¢% forga cultural viva e actualizada (no sentido de, simultane: ‘origem a linhas consistentes de desenvolvimento auténomo, e participar dos movimentos europeus de transformagio de linguagens estilos) Deste modo, Lopes-Graca, que desde sempre viea na debilidade das insti- ‘originais) uma das principais razOes do «atraso+ da nossa musica, encon- trava-se vocacionado para empreender uma revis30 Fabituais da polémica decaderust, para proclavan de todo cetanerte provocat6rio para a €poca, que: sApesar de tio sistematicamente denegrido pelo facciosismo politico de um sector da mentalidade portuguesa hodierna, 0 nosso século KIX ical é, contudo, um dos mais activos e importantes, se n4o o mais vO € 0 mais ante, dos perfodos da hist6ria da musica port guesa. Se a sua actividade nao € a mais &, sem duvida alguma, a mais fecunda, a de mais fortes € proveitosas consequencias |...Je (Lores-Graga 1944: 85-7) Apologia do reformismo de raiz laica € liberal, © caracteristica desconfianga moralista pela Opera (0 género mais emblem: do século xvin) combinam-se em Lopes-Graca no sentido de demor tear que, apesar de aparentemente pobre em termos de criacio, © século x5 teria proporcionado 2 musica portuguesa um enriqueci- mento estético € institucional (Conservatério, sociedades de concertos, ctc.), 20 mesmo tempo que um certo niimero de compost tores oitocentistas langava as bases de um estilo mi a margem do paradigma de cosmopolitismo supe italianismo operatic. A invocs de Bomtempo (que se encont ihantes, em Viana da Mota ¢ Lufs de Freitas Branco) adquire assim © significado simbdlico de indicar, de certa forma, © caminho a seguir pelos misicos portugueses modemnos, chamando ao mesmo tempo 2 atengo dos historiadores para a importancia cultural de um século até entéo unanimemente menosprezado, Bo Fim do Antigo Regime &s Ratzes da Modérmidade nw logia portuguesa desde 0 anos 30 permitiu entretanto rever e dive: itos hist6ricos ¢ posicionament lagdo mais equi- librada da va das diferentes €pocas do nosso patri- desse patrim6nio em condig6es de execu condignas). No entanto, € no que diz respeito 20 século xix, pode desde jf tomar-se como seguro que, 30 contrério do que era habitual pensar-se até hd pouco tempo, cle nao € seguramente a sidade das trevas» que se seguitia 20 periodo ‘mais ou menos brilhante do século 21 de supor que, de um ponto de vista qu: levea criagdo propriamente a miisica desempenhou na vida cultural de Oitocentos um papel bastante mais relevante do que se admitia anteriormente, 0 que, 56 por si, just- fica certamente 0 interesse pelo menos documental do seu estudo, Um dltimo aspecto deve ser tido em conta: tanto ou mais do que 0 de ‘outras Epocas, esse estudo mio pode confinar-se 4 estrita abordagem dde uma cultura isolada no espago fisico do Pals ¢ desligada de um engua- A feli- cidade lusitana, «compostos (isto €, coreografado) por Gaetano Gioia com misica de Ant6nio Leal Moreira, que transitara do Teatro da Rua ‘dos Condes para cargo equivalente no Teatro de $0 Carlos; neste teatro manter-se-d até 1799, data em que the sucedera Francesco Federici (eguido de Marcos Portugal ¢ Valentino Fioravanti, em exercicio a partir de 1800 ¢ 1805, respectivamente [id 110 € 79 € BRITO ¢ CRANMER 1990: 83) Construido sobre o modelo do San Carlo de Napoles pelo arqui- tecto José da Costa e Silva, e baptizado em homenagem a Princesa D, Carlota Joaquina, 0 $20 Carlos representatia, no dizer de José-Augusto Franga (1979: 10. ‘do sala de corte [...] mas templo de uma certa civilizagio “iluminada’’ que subsistira para além da desgraca de Pombal e que era, ainda, sustentada pela geragio de capitalistas burgueses que (© Marqués fomentara. E S. Carlos contrabalangava outro templo, de empenho régio, que D. Maria trono: a Basilica da Estrela, sagrada em 1789, sequéncia de Mafra dupla situacio estética e cultur: logicos em que se verificam 0 guesa [..J+. De facto, a pronta e¢ possivel sobretudo gragas 2 part ipagdo de um grupo de financeiros [Do Firm do Antigo Regime as Ratzes da Modernidade a isboetas: Joaquim Pedro Quintela (que cedeu 0 terreno), Ansetmo José ‘da Cruz Sobral, Jacinto Fernandes Bandeira, Antnio Francisco Machado, Joao Pereira Caldas ¢ Antonio José Ferreira Sola (BENEVIDES 188: Por decreto de 28 de Abril de 1793, +0 teatro foi incorporado 4 Casa Pia, ficando fazendo parte da sua subsisténcia, debaixo da direcgao. ¢ inspeccao da intendéncia geral de policia> (ia. vez, entregaria a sua exploragio a empresarios privados (dos quais, ‘o primeiro sera Francesco Antonio Lodi — que, como Leal Moreira, tran- ssitara do Teatro da Rua dos Condes — de parceria com Andrea Lenzi ou Lence, um misico da Real Camara). ‘Com a excepeo das primeiras temporadas, como se disse, nas foram executadas pela companhi wna algumas obras em portuguesa (v. mais adlante 0 capitulo sobre os composit torio operitico do Teatro de Si0 Carl italiano, alternando este nos favores do piblico com 0 campo, adquirem especial popt ticos+, de inspirag4o politico: de declamacao e varias outras formas de espectéculo ‘coes de fundmbulos, etc,). Durante 2 Quaresma, davam-se igualmente Orat6rias, no sallo concebido especialmente para 0 efeito ¢ inaugurado em 1796. A proibigao puritana da actuacio de mulheres em ta que 0s primeiros idolos do pit Ico teve como. do Sao Carlos jente cOmico), Cuja supremacia s6 se ia feminina na época da famosa Ange- ini ¢ Catalani teve ‘o efeito de atrair a0 teatro, desde 0 i 20 apaixonado pelas proezas vocais de grandes ‘€ 0 baixo Giuseppe Nal exemplo, Ruders descrevia da seguinte forma o entusiasmo do pt «Fica-se admirado, fica-se espantado. Ha conhecedores de miisica ‘que ficam fora de si. Nao conseguem conservar-se quietos. Voltam-se, 122 Histéria da Mhisica mover 0 corpo, tocam nos vizinhos, levantam os bragos ¢ deixam-nos cair outra vez. Os misculos dos seus rostos estdo em const mento, Olham para as pessoas sem o saber, falam por ‘e quando uma dria € interrompida ou acaba batem palmas com u ‘sem iguale [VIEIRA DE CARVALHO 1984: 46-7) do século; a sua actividade até cerca de gular (chegando a encerrar as portas durante © perfodo miguel e sempre marcada pela dificuldade de contratar artistas italianos de qu: dade. Contudo, ser4 ainda antes do seu encerramento que se verifica ‘uma importante renovacio do repert6rio, com as primeiras representa- ‘goes em Portugal de Operas de Rossini (L italiana in Algeri c Tancredi, €m 1815 [BRITO € CRANMER 1990: 19] — Rossini, que viria 2 compor expressamente para Lisboa a sua farsa Adina, estreada em 1826), Doni- zetti (Zoratda di Granata em 1825) ¢ Mercadante (que esteve 20 Servigo ‘do Sao Carlos entre 1827 e 1828, escrevendo para este teatro as suas Operas Adriano in Siria © Gabriella di Vergy). Todos esses composi- tores conquistardo de forma duradoura o gosto do pablico (destronando assim, entre outras, as obras de Marcos Portugal, que fizera representar fo teatro numerosas Operas italianas de sua autoria, ¢ ditigira, pela primeira vez em Portugal, 0 Orfeo de Gluck ¢ La Clemenza di Tito de Mozart, respectivamente em 1801 € 1806). Entretanto, no Porto, a inauguracao do Teatro de Sio Jodo em 1798 (por acgio do Corregedor Francisco de Almada) veio substituir 0 velho Teatro do Corpo da Guarda, dar inicio a um novo ciclo de actividade operatica na capital do Norte (onde, apesar do menor brilho dos elencos, em rela¢io 20 teatro lisbocta, se registam ocasionalmente estreias portuguesas de obras importantes, como Cosi fan tutte, dada, 20 que se julga, na temporada de 1814-5 [Cranmer 1989: 27). Jd nas primeiras décadas do século xx, 0 gosto pela 6pera achava- -se definitivamente enraizado entre 2 burguesia culta lisboeta, a ponto istres representantes da classe em ascensao dos finan. .quim Pedro Quin- centro importante de act , apesar de exercida s amadores (entre 0s quais o proprio barao, trompista, (Do Fim do Antigo Regime as Rates da Modernidade ¢ cantor de mérito, que entretanto havia casado com uma meiro empresirio de $40 Carlos). Os especticulos de épera ai re ‘com grande fausto de decorag6es ¢ guarda-roupa, incluiram, numa primeira fase, 6peras de Mercadante (que para 0 Teatro das Larai compds 0 melodrama herdi-comico La testa di bronzo), Rossini, Coccia de meados da década de 30, igualmente obras anceses (MOREAU 1981: 247 € $51]. O Teatro das Laran- is 0 Unico teatro privado existente em Lisboa nesse jeiras nao foi perfodo. Mas a maior figura da época terd sido a cantora Lufsa Todi (Luisa Rosa de Aguiar), nascida em Senibal em 1753 ¢ falecida em Lisboa em 1833, ap6s uma extraordinaria carreira que a consagrou como uma das maiores cantoras europeias do século Xv! do século xvin, de que veio a ser uma das mais notdveis representantes. ‘No entanto, a sua arte ndo teve praticamente repercussdes em Portugal, ‘uma vez que, no auge da sua carreira, vigorava ainda nos teatros portu- ‘gueses a jd referida interdigio as actrizes; e se, curiosamente, a encon- tramos em Lisboa em 1793 (ano da inauguragio do Teatro de $30 Carlos, ‘em cuja companhia talvez tencionasse ingressar), sera apenas para part ‘do nascimento de D. Maria Teresa, na Real Casa Pia, ¢ num espectaculo Particular em casa de Anselmo da Cruz Sobral ‘Dos miltiplos testemunhos recolhidos por Mario Moreau em jornais curopeus da época, pode o seguinte excerto do Mercure de France (18-X11-1779) servir de exemplo da universal veneragdo de que foi alvo a notdvel cantora =M. de Todi, ap6s uma ausencia de alguns meses, reapareceu neste ‘concerto: af cantou um rondeau de Paisiello € uma cena de Piccinni;, 1a Mistéria da bist © rondeau é encantador: foi muito aplaudido. A cena éa do Alexandre na India: “‘Poro dunque mon’, que repetidas vezes foi pedida nos nossos Concertos, mas que nunca tinha causado tanta emoga0 como neste. O arrebatamento ia até 20 transporte, o entermecimento até 28 1igrimas; em todas a5 pausas da voz, 0 aplauso redobrava. E verdade ue nunca M, de Todi tinha posto no scu canto uma sensibilidade to profunda; ¢ talvez nunca se tenha visto exemplo de um acordo to perfeto entre a alma da Cantora ¢ a do Compositors [MOREAU 1981. 87} O Gosto Publico e Privado Além da épera, um dos géneros de misica mais apreciados pelo pablico portugues em fins do século xvut€ primeiras décadas do XIX era, sem (por corruy deantecedentes directos do fado, designagio mais generalizada da cangio de viels a partir de meados do século 2x (mas sobre cuja historia, domi- nada pela mitologia «castiar, pesam ainda muitas sombras). Do Fim do Antigo Regime as Ratzes da Modernidade a Desligadas de qualquer esquematismo formal predetermninado, 2s modi inhas aparecem sob designagées muito variiveis (incluindo «romance, varia, etc), subordinadas a uma simples forma estréfica, a formas de’ refrdo ‘© estrofe, formas bipartidas, de estrutura continua ¢ até formas «da capo>, repousando 2 identidade do género unicamente a tematica dos textos, Usualmente centrada em «desgostos de amor, saudades ¢ cuidados a volta ‘da pessoa amada, muitas vezes em cenas mitol6gicas, alegoricas ou bucé- licas» [DODERER 1984: XIII}; a0 longo do século xix, a influencia da pera italiana sobre 0 estilo musical da modinha torna-se preponderante, ‘a ponto de muitas composigdes tomarem 0 aspecto de simples subpro- ‘dutos operdticos para consumo doméstico, perdendo assim todo © carécter original. A popularidade das modinhas fez com que cir: cculassem desde finais de Setecentos em cépias manuscritas ou impressas; destas, salientam-se as publicadas no Jornal de Modinbas langado pelos ceditores Marchal e Milcent em 1792 (e prosseguido a partir de 1795 pelo segundo destes de forma independente). Compositores como Marcos Portugai, Ant6nio Leal Moreira, José Mauricio ou Antonio da Silva Leite, entre muitos outros, no desdenharam 2 composi¢4o desse género de pegas, tio efémera como universaimente apreciadas. ‘A voga da modinha seri ‘do processo de desenvolvi ‘que dara a0 clavic6rdi de instrumemtos vexpressivos» por exceleénci ‘um lugar preponderante 2, a5 tinicas composigies [por volta de 1770}, s30 as caracteristicas idiomiéticas ‘Jo pianoforte, apesar de 0 fron- et ainda mengao do cravo). Neste contexto, é interessante -r0 de piznofortes exi 4 mais de 500 entre 1809 € 1821 [BRITO € CRANMER 1990: 50). Plano: ido fabricados nas oficinas portu- guesas desde meados do século anterior, ¢ multos «cravos de penas* convertidos em «cravos de martelos» de acordo com © gosto mais moderno [DODERER 1974: 445]. Paralel dedithada, sob a designacao algo ind conservariam tenazmente 0s favores da Paixzo Ribeiro (para a viola de cinco ordens) publicada em Coimbra em 1789 (cobra dtil a toda a qualidade de pessoas; ¢ muito principal: Mit6ria da Misiea forme e com seis ordens de cordas) — fut dos acompanhadores do fado. Na sequéncia das Guerras Peninsulares, desenvolve-se também consideravelmente por todo o pais a tradigio ‘cas bandas militares, que virlam a desempenhar um papel de relevo na ‘cultura musical popular até meados do século xx e a fornecer em muitos ‘casos bons instrumentistas de sopro 3s orquestras portuguesas, Casticos e Estrangeirados ‘Apesar de formados no seio de uma cultura predominantemente de impor- ‘acao, compositores como Leal Moreira ¢ Marcos Portugal podem ser consi derados 0s altimos representantes musicais de relevo do ancien régime ‘em Portugal, tendo em vista até as fungdes que ambos desempenharam ‘como mestres de capela. Ambos llustram com brilho as tradigoes de ensino do Semindrio da Patriarcal (a mais importante instituiglo de ensino da miisica até 1833), onde puderam beneficiar ainda dos ensinamentos do mestre Jodo de Sousa Carvalho (geralmente considerado © maior ‘compositor portugues da sua geracio, ¢ cle proprio em seu tempo bolseiro em Népoles, onde fora condiscipulo de Paisicilo) ‘Ant6nio Leal Moreira (1758-1819) era ja 75 ajudante substi- tuto dos seus mestres no Seminario; dois anos depois fazia asi oficial de compositor, endo uma missa pata a aclamagio de Anselmo da Cruz So! interpretou a serenata alegOrica 11 natale augusto de Leal Moreira; ee eee Do Fim do Antigo Regime as Ratees dt Modernidade Be em de varias ope ‘em um acto A sa 194), estes tiltimos com ras suas terem sido igualmente cantadas em Ital 9]. Depois de 1799, ‘ocupou-se principalmente ica religiosa. "A vinganga da cigana € a Gnica das suas obras que tem sido repre- sentada nos nossos dias, e constial um curioso exemplo de teatro musical ‘em portugues, cuja tradicdo se perder até, pelo menos, os meados do século XIx (¢ por essa altura, cultivaca fora do So Carlos). A opera, escrita num estilo eminentemente simples, mas contendo um desenvol- vido concertante final, é também um interessante documento de época, pela sua caracterizac¢30 musicodramitica de tipos socials contemporineos. ‘Admitido na irmandade dos misicos em 1783, Marcos Portugal (1762-1830) teve uma carreira muito mais cosmopolita do que Leal Moreira, De origem social modesta, adopta 0 nome altissonante de Marcos ‘Ant6nio da Fonseca Portugal (seu nome de baptismo era Marcos Ant6nio dda Ascensio) ¢ inicia a sua carreira de maestro € compositor no Teatro do Salitre, do qual € nomeado director em 1785, € onde pratica um reper- t6rlo de adaptagdes portuguesas de fursas e burletas italianas; compoc também mésica religiosa. Em 1792, benefictando de proteccio régia, parte para Napoles, onde nido parece ter estudado, 20 contrdrio dos seus prede- cessores, Inicla no ano seguinte, com a Opera L'eroe cinese (sobre libreto de Metastasio), estreada no Teatro della Pergola, de Florenga, uma brithante série de sucessos como compositor dramético (sob o nome italia- nlzado de Portogallo), que the valem rapidamente uma pela: obras suas serio representadas nos principais Londres, Dresden, Hamburgo, Viena, VarsOvia ¢ S. a sua Opera Non frritar le donne, ovvero it sedicente filosofo reccbido a distinglo de ser escolhida por Bonaparte para 2 reabertura do Teatro Italiano de Paris em 1801 (SAKRAUTTE 1979: 2-5]. ‘Em 1800, de regresso a Lisboa, € nomeado mestre da Capela Real € do Teatro de Sto Carlos, para onde compe novas Operas (entre outras, as eopere setie» La morte di Semiramide, Fernando nel Messico— nova versio de uma obra escrita para Veneza — Merope, I duca di Fokx, Arta- serse ea Opera cOmica L’oro non compra amore) ¢ onde conta com ‘© concurso da célebre Angelica Catalani; para Basilica de Mafra, compoe missas com quatro, cinco e sels 6rgzios obrigados. Quando da partida da conte para o Brasil, em 1807, Marcos Portugal permanece em Lisboa, acomodando-se aparentemente bem a ocupagiio francesa, mas acaba por 132 Mist6ria da Musica partir para 0 Rio de Janeiro em 181 nomeado mesire de misica de Suas, de mestre de capela (em concorréncia Junto da Corte, dedicarse-A quase ex Gincluindo uma Missa de Requiem pel depois do regresso de D- Jogo Vi, ndo yoltara a Lisboa [ver | integra-se no derradeito prolongamento |. par de um Paisiello ou de um Cimarosa. Dentro Ga escola nap. desses parimetros, a sua escrita € fluente e tecnicamente segura, centrada numa estética da pura vocalidade que o compositor ilustrou com uma mestria incontestivel. (© outro mais importante compositor da época é Domingos Bomtempo (1775-1842), filho de um mt nado a desempenhar na miisica portuguesa um papel literatos e pedagogos ditos «estrangeirados» do século xv1 do XxIx. Iniciando provavelmente os seus estudos sob paterna, reve também ligbes com os mestres da Patriarcal, ¢ 20s incompletos era jd admitido na Irmandade de Sant ‘na qualidade de cantor da Real Capela da Bemposta, sut arde O pai nas fungdes de primeiro oboé da Real Camara. Ao contrario da maioria dos seus contemporineos, nlo parece ter visto na pera o campo de actividade profissional mais adequado as suas abides, em 1801 parte, nao jé para Itlia, segundo uma tradicao até entio bem arreigada centre os muisicos portugueses, mas para Paris, onde se relaciona com (0 circulo de emigrados simpatizantes das ideologias liberais, e onde inicia uma carreira de pianista viriuose, na senda de Clementi, Cramer fe Dussek, 20 mesmo tempo que faz editar a5 suas primciras obras ‘de compositor (nas casas Leduc ¢ Pleyel). A partir de 1804, a sua noto- riedade na capital francesa € real, apresentando-se, entre outras, na Salle Olympique como pianista € compositor. Em Maio de 1809, por exci, o jornal Le Publiciste dava de um dos seus concertos a seguinte not «A maneira de tocar plano (de Bomtempo} conquistou todos 05 votos, pela agilidade ¢ energia da execucdo, pela nobreza ¢ alto estilo, que s6 raramente se véem reunidos no mesmo grau. Nunca dedos 120 ligeiros nem tao firmes percorreram o teclado; nunca foi dada tanta expressio a0 adagio num instrument que parece ser 0 menos indi- cado para tal, © senhor Bomtempo mereceu também clogios como compositor» [SARRAUTTE 1970: 20] Do Fim do Antigo Regime as Raizes da Modernidade 133 Provavelmente em consequéncia das derrotas napoleénicas em Portugal, Bomtempo € forgado a abandonar Paris, instalando-se em Londres em 1810, onde se ligari com Clementi (em cuja casa editora fara publicar a maioria das suas obras), e onde sera especial- mente bem recebido pela col6nia portuguesa ¢ por algumas familias atistocriticas britanicas, que © acolhem como professor de piano. Em 1811, em plena efervescencia da vit6ria anglo-portuguesa sobre de Napoledo, vé executada numa grande festa promovida ixador de Portugal a sua cantata Hino Lusitano, cor liberal Vicente Nolasco da Cunha, perante um au: {que incufa a quase totalidade co Gabinete inglés. Apés obter ‘como pianista, volt com a fraca recep! nde faz. publicat a su ‘onde 0 luto por D. Maria 0 impede de realizar concertos. Em 1818 ‘volta a Paris, onde se ocupard em especial na composigao daquela que € considerada a sua obra-prima: 0 Requiem & memoria de Camoes (integrado no mesmo movimento revivalista da obra camoniana que suscita a célebre edigio de Os Lusfadas pelo Morgado de Mateus); ‘© Requiem € executado pela primeira vez em 1819 num concerto parti- ‘cular na capital francesa, ¢ repetido com grande éxito em Londres, para ‘onde Bomtempo volta nesse mesmo ano, antes de regressar definitiva- mente a Lisboa ap6s a proclamacao da Constituigao de 1820. Da sua actividade em Portugal a partir dessa data (nomeadamente com a fun: dagao da Sociedade Filarménica), tratamos jd no capitulo anterior. Como compositor, Bomtempo € o autor de uma vasta produgao de concertos, sonatas, fantasias e variagdes para o instrument em que se celebrizou, na qual se combinam o brilho de uma escrita influenciada por Clementi e uma exploracdo plena dos recursos sonoros ¢ expressivos do pianoforte, Mas a sua personalidade de compositor revela-se talvez mais plenamente nas duas sinfonias que dele se conhecem (as primeiras — enten: ida 2 denominag20 no sentide modemo — compostas por um autor portu ‘gués), em algumas obras de milsica de cimara, ¢ no referido Requiem, evidenciando em geral uma assimilagio, cara em musicos ibéri ‘da época, de certos elementos do estilo de Haydn e Mozart [ver catd- Jogo das obras em SARRAUTTE 19° Ainda na segunda metade d , destacaram-se como membros da familia

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