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erro de português
Quando o português chegou
Debaixo duma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
3
O português
A "arte negra" cubista penetra a criação Pau Brasil de 1924 e a Antropofagia de 1928
por uma inversão de perspectiva. O que no primitivismo europeu é exotismo etnográfico
para o modernismo oswaldiano é uma "descida antropofágica" ao encontro de nossas raízes
étnicas e culturais: o índio e o negro, que sustentam o "ethos" do nosso pensamento. O
primitivismo é congenial à poesia e à arte modernista, afirma Antonio Candido. De acordo
com Paulo Prado, Oswald de Andrade descobre o Brasil do atelier de Tarsila na Place
Clichy, o "umbigo do mundo", deslocado da Grécia dos Clássicos. O deslocamento do toma-
viagem permite a devolução do olhar do estrangeiro ao "um" que ficou em terra. E que olha
1
In: CHIAPPINI, Ligia; BRESCIANI, Stella (Orgs.). Literatura e cultura no Brasil: identidades e fronteiras. São
Paulo: Cortez, 2002.
2
Professora livre-docente em Estudos da linguagem (UNICAMP).
3
In: Poemas menores, 1925.
4
Nunes. A antropofagia ao alcance de todo. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1970.
de volta, com a visão modificada pela digestão difícil dos valores assimilados dos europeus.
Esse olhar é de vingança: "Tínhamos a justiça codificação da vingança", diz o "Manifesto
Antropófago".
Um curto aparte
De volta ao assunto
5
Nunes, Benedito. "Homem de muita fé". In: Oswald Canibal. Perspectiva, São Paulo, 1975, p. 57.
A elaboração da Antropofagia dá-se ao longo da carreira de escritor de Oswald de
Andrade. O "Manifesto Pau Brasil" de 1924 já prenuncia elementos que irão constituir as
noções fundamentais do "Manifesto Antropófago" de 28. Logo no início, o "Manifesto Pau
Brasil" preconiza: "O carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau Brasil.
Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso." A orgia carnavalesca
simboliza o retomo à origem, a busca da unidade primitiva, a qual promove a individuação.
O carnaval exprime o "espírito da música", que submete a razão ao mistério do sagrado. O
carnaval expressa a paixão dionisíaca, o sofrimento do deus dilacerado, cuja unidade é
reconstituída nas trevas do sentimento órfico. Os cordões de Botafogo são a "obra de arte
integral", tal como a ópera wagneriana teorizada por Nietzsche, em O nascimento da
tragédia. "Bárbaro e nosso", resume o "Manifesto Pau Brasil". Oswald de Andrade busca no
"espírito dionisíaco" o fundamento sagrado da nossa "barbárie". As leituras de O nascimento
da tragédia, de Nietzsche inspiram os aforismos do manifesto de 24. A tensão dramática da
nossa cultura se resolve na catarse carnavalesca. Da noção de catástrofe grega, Oswald
conserva sobretudo o misticismo de Dionísio, o qual se exprime nos "cordões de Botafogo",
nos quais se abolem as diferenças, as interdições, se vivência a morte e o renascimento. O
manifesto conclui: "Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos”. Leitores de jornais. Pau Brasil.
A floresta e a escola. O Museu Nacional. A cozinha, o minério e a dança. A vegetação. Pau
Brasil6.
6
Correio da Manhã, 18 de março de 1924.
nacionalidade. Mas, ao contrário do índio do contrato social de Rosseau, idealizado pelo
Romantismo, opõe a figura do canibal, como alegoria da resistência à hegemonia política e
cultural do Ocidente. O índio histórico, derrotado pela expansão do capital comercial, pelo
genocídio e pela escravidão, é alçado a resíduo cultural de resistência ao capital industrial
moderno, nos anos vinte e trinta. O canibalismo praticado pelos tupinambás, relatado pelo
viajante Hans Staden, como ritual de devoração das qualidades guerreiras do inimigo
vencido, é tomado por Oswald de Andrade, em suas leituras dos viajantes, como metáfora
de resistência, pela devoração dos valores culturais do estrangeiro e sua transformação
num produto cultural autóctone assimilando a técnica avançada do colonizador à técnica
atrasada da cultura periférica ao sistema cultural dominante. A figura idealizada do índio
cavalheiresco do Romantismo passa de recurso estilístico de afirmação da nacionalidade,
frente ao concerto das nações, para significar, na figura do antropófago, um produto cultural
"novo" capaz de emulação e de concorrer com outros produtos junto ao mercado mundial: o
primitivo. Lembra o "Manifesto Pau Brasil" em 24: "E a coincidência da primeira construção
brasileira no movimento de reconstrução geral". O contexto histórico-social no qual se
processa esta dinâmica é a polêmica da vanguarda literária e artística européia, cujos
recursos estilísticos do seu discurso "revolucionário", nos manifestos, é originado pela
retórica das vanguardas políticas da época e por sua dimensão utópica. "Dividamos: Poesia
de importação. E a Poesia Pau Brasil, de exportação", já declarava o "Manifesto" de 24.
Como assinala Haroldo de Campos7, o momento histórico é propício à inversão de valores
operada pela Antropofagia, pois as vanguardas européias se apoderam das criações
culturais africanas e asiáticas assimiladas às inovações da técnica industrial, o "acabamento
de carrosserie" preconizado pelo "Manifesto Pau Brasil". "Primitivos de uma nova era", tal
como apregoam os futuristas italianos. O primitivismo brasileiro pretende fazer concorrência
com o exotismo europeu, dos novos viajantes da modernidade. As vanguardas européias
copiam os estilemas da "arte" primitiva, sem qualquer consideração etnográfica ou
antropológica sobre a função ritual destas imagens e destes objetos. O modernismo
europeu estiliza os objetos rituais das „culturas exógenas, dessacralizando sua significação
de transcendência, como objetos de culto. A Antropofagia oswaldiana repõe o caráter ritual
da operação de assimilação das culturas primitivas na metáfora da transformação do tabu
em totem, em suas leituras de Freud. A Antropofagia propõe-se como uma operação
metafísica, a qual preserva o resíduo do caráter de culto do ancestral primitivo. Para nós, o
primitivismo é um produto cultural autóctone, descontada a distância antropológica e social
7
Campos, Haroldo. "Uma poética da radicalidade". In: Poesias Reunidas, Obras Completas de Oswald de
Andrade —7. 3ª ed., Civilização Brasileira — MEC, Rio de Janeiro, 1972.
entre a selva e a cidade. Pois o primitivo é evidentemente uma criação cultural urbana e
cosmopolita. A cidade de São Paulo é produtora das políticas de comercialização do café
para o mercado mundial e do discurso ideológico que acompanha a monocultura paulista. A
técnica da monocultura, entretanto, é desigual em relação à evolução da tecnologia
industrial, a qual se processa na cidade de São Paulo.
Canibalismo e Antropofagia
8
Publicado no Suplemento Literário Minas Gerais, em 16 de novembro de 1968.
matéria de anatomia masculina. Não façais a tolice de cozinhá-los. É preciso comê-los crus."
A literatura erótica de Marinetti, ao opor-se ao decadentismo dannunziano psicologizante,
utiliza o canibalismo como fonte do vitalismo, presente em outras manifestações futuristas. A
significação do canibalismo do conto de Marinetti é agressivamente repugnante, por seu
rebaixamento de um suposto "primitivismo" negro à devoração da energia sexual do negro.
A explicitação do ato sexual perverso do europeu decadente no conto de Marinetti não tem
nada de semelhante à ação simbólica da devoração operada na Antropofagia de Oswald de
Andrade com respeito ao selvagem. Pois a perspectiva adotada por Oswald de Andrade é a
do primitivo em oposição ao europeu colonizador. A vanguarda futurista canibaliza o
primitivo para comê-lo como fonte de energia sexual, produtora de energia destrutiva. O
"Manifesto Futurista" apregoa a guerra como "única higiene do mundo". O canibalismo se
apresenta em Marinetti como uma proposta de saneamento da cultura, para além do
alcance da palavra poética, no ativismo militar. Ora, o primitivismo brasileiro jamais se
apresentou como um vitalismo regenerador deste tipo.
9
Martins, Wilson. "Canibalismo Europeu e Antropofagia Brasileira" (Introdução ao estudo das origens da
Antropofagia), op. cit.
Marinetti, provavelmente lido no Brasil, em sua segunda versão, Scattole d'amore in
conserva. Pois no mesmo volume está publicado o "Auto-Retrato", no qual Marinetti narra a
"triunfal explosão do Futurismo na América do Sul", durante a sua viagem de 1926, e cita
Antonio Sales e a Revista do Brasil. Há outros contos na coletânea, os quais tematizam o
canibalismo como ato sexual pervertido, tais como: "La Guancia" e "La Carne Congelata". O
crítico insinua que Oswald de Andrade pudesse ter se apropriado da idéia do canibalismo
pela leitura de Marinetti.
A modernolatria futurista
10
Santos, Milton, op. cit., p. 53.
definição da inteligência lógica." O manifesto "de violência agitada e incendiária", de 1909,
proclama: "nós queremos cantar o amor ao perigo, o hábito à energia e à temeridade",
segue-se: "os elementos essenciais de nossa poesia serão a coragem, a audácia e a
revolta". Outro manifesto, o "Manifesto Técnico da Pintura Futurista", propõe: "A nossa nova
consciência não nos permite mais considerar o homem como o centro da vida universal"
(Milão 1910). O "Manifesto da Cor", de Giacomo Balla, afirma: "Pintura' dinâmica,
simultaneidade das forças" (Roma 1918). Anterior a todos estes, o manifesto de fundação
do movimento (1909) exaltava: "o movimento agressivo, kl a bofetada e o soco". A
estratégia discursiva da polêmica vanguardista rompe o limite da linguagem para a ação. As
noções de "violência agitada e incendiária" da palavra é substituída pela vontade de agir
sobre o mundo.
tema e suas transformações, sem conceituá-lo com precisão, em relação à Antropofagia. "A
jangada da Medusa de Gericault foi apropriada por artistas como Davi Siqueiros, Asger Jorn,
Jeff Wall, Thomas Struth. Essa esquadra de La Meduse incluiria muitos outros nomes, como
Kippenberger ou Steele e Goldie na Nova Zelandia. Optamos por um tema clássico de
canibalismo, Ugolino, e um exemplo pontual de apropriação transcultural: Van Gogh e a
11
Santos, Milton, op. cit., p. 75.
12
Chauí, Marilena. Interrogação permanente de Marilena Chauí, CULT, São Paulo, Ano III, n° 5 (entrevista).
xilogravura japonesa13. 2° Mais adiante, afirma: "Na arte européia, encontramos um corpus
antropofágico que vai de Goya a Gericault. Evidentemente, a antropologia e a psicanálise de
Freud trouxeram contribuições consideráveis. A Europa viveu mitos — Saturno devora seus
filhos — e a perplexidade com o outro canibal, espécie de monstrificação do diferente14.
Para a curadoria, Van Gogh "toma o Japão pelo estranhamento mais extremo para o
olhar europeu — o código de cores e dos contrastes cromáticos violentos da xilogravura do
Ukyio-e, oposto às regras da arte européia. Assim, Van Gogh realiza uma radical operação
transcultural, índice característico da antropofagia". A metáfora da Antropofagia oswaldiana,
nascida de uma prática literária vanguardista, com referências históricas precisas, é
assimilada ao conceito pós-moderno de transculturalismo, o qual apaga as diferenças
históricas, configurando a projeção do conceito teórico sobre o objeto de análise,
desconsiderando uma "escuta" adequada das propostas do movimento modernista, e de
sua possível atualização Deste modo, o alargamento da metáfora antropofágica inclui a
questão do corpo e sua fragmentação, admitindo uma interpretação do "canibalismo" de
Bacon, "via" Elliot, no interior do espaço "museológico", e fora dele o "endocanibalismo" de
Giacometti, "eqüidistante da experiência literal e da especulação metafórica", de acordo com
Alain Cueff, citado pelo texto de apresentação do "Catálogo da 28a Bienal", assinado por
Paulo Herkenhoff. A Bienal universaliza a noção de empréstimo cultural praticado ao longo
da História da Arte, como estilização, homogeneizando os procedimentos no conceito de
canibalismo.
13
Herkenhoff, Paulo. "Introdução Gerar' — Núcleo Histórico. In: Antropofagia e Histórias de Canibalismos,
Catálogo da XXIV Bienal de São Paulo, São Paulo, 1998, p. 3.
14
Idem, ibidem, p. 5.