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__ CLIMEPSI ” de = SICOSS@@ lologia coordenagao de : ok Barus-W Eugene Enriquez = André Lévy == 2 = e qualidade da ciéncia an ( Nina, " EDITORES ANALISE DE DISCURSO Florence Giust-Desprairies, André Lévy Nao existem situagées interactivas (conversa, discussdo em puiblico, entrevista, leitura de jor- nais, de cartas...) que nao solicitem o intetlocu- tor ou 0 leitor a analisar 0 discurso que recebe, seleccionando, do que ouve ou Ié, 0 que the pa- rece ser © mais importante ou o mais significa- erpretando-o tentando descortinar 0 sentido. E certo que cada pessoa procede de modo di- ferente, ¢ as anilises variam segundo 0 contexto da troca, os acontecimentos ¢ as palavras prece- dentes, as relagdes entre os interlocutores, as suas preocupacies... Alguns estario mais aten- tos ao que Ihes parece ser 0 que o locutor tenta exprimir sobre 0 tema, ou ao que comunica ow revela sem disso se aperceber, sobre si mesmo, sobre as suas relagdes (todo 0 discurso é endere- gado) ou sobre qualquer outra coisa. A andlise pode ser sistematica ou esponcanea, feita na pos- terioridade ou na imediatez que acompanha a toca, tacita ou verbalizada; no entanto, modifi- ca sempre 0 curso do discurso e as suas relagies entre 05 interlocutores, a sua compreensio mi- tua, as suas representacies. Esta pritica universal da Andlise de Discurso, elemento essencial de qualquer troca, é no en- tanto particularmente desenvolvida em certas profissoes: terapeutas, psicanalistas, formadores, professores, criticos literrios, socidlogos ¢ psi- cossocidlogos, psicdlogos clinicos, especialistas de estudos de mercado, politélogos, jornalistas... E entio posta ao servigo de objectivos defini- dos em fungao dos interesses do proprio locu- tor, do analista ou outros: diagndstico, previsto ¢ preparagao de decisoes, tomada de consciéncia ¢ facilitagéo da expressio (com uma finalidade de mudanga) E 0 caso de todas as profissdes cuja matéria- -prima é 0 discurso, falado ou escrito, portanto em especial da psicossociologia. tivo, i Discurso Na sua acepgio mais geral, esta nogio designa toda uma série de enunciados, orais ou escritos (mesmo nao verbais), efectuados por um sujeito 232 enquanto dirigidos a outros, dando assim lugar a uma «enunciagio», Na perspectiva linguistica classica, um discurso é mais do que uma frase, mesmo do que uma série de frases, na medida em que designa um conjunto que tem uma uni dade clara, portanto um inicio ¢ um fim identi- ficados. Tal pode ser uma carta, uma entrevista, uma discussio de grupo sobre um tema deter- minado, uma exposigio formal, uma declaracio de amor... Pode ser breve ou longo, pouco im- porta, desde que tenha uma unidade definida, Mas um discurso nao é apenas um meio de transmissio de uma mensagem, de uma infor- macio. Posstti uma consisténcia material pré- pria, que corresponde a um sistema de lingual dada — palavras, fonemas, organizacio sintacti- ca, estilistica, semantica... E também um acto, ido por um autor, cuja signifi- porranto produzi cacio, que nao € separivel desta consisténcia, nao remete para um tinico «verdadeiro sentido» preexistente, é sim um wefeito» da sua enuncia- séo. A anilise de discurso centra-se assim no discurso enquanto objecto quase material (for- mado de significantes? ou de fonemas), consti- tuido por uma série de palavras e de frases orde- nadas segundo regras de gramatica e de sintaxe, ce segundo uma organizacao interna que se refe- re a um projecto de comunicagio que se desen- volve numa temporalidade precisa (segundo um vector temporal). Nesse particular, a andlise de F nocessirio diferenciarwlinguas e slinguagems. A line gua é um osistema> de expressio verbal do pensamento, que comporta um vocabulirio e uma gramiica definidos, rela tivamente fixes, que constitu uma insticuiga0 social durdvel propria dos habieantes de um pais ou de uma regio, inde- pendente da vontade individual (lingua francesa, lingua da Crsega...) (segundo A. Lalande, Vocabulaire de la philoso- >phie, PUR). Otermo linguagem & utilizado para designar 0 temprego da lingua para a expressio de pensamentos e de sentimentos, por outras palavras, a pratica da Lingua, 0 seu funcionamento efvctivo nas trocas e na comunicacao, * Segundo F. de Saussure (1910), este rermo designa o as ecto material do signo linguistco, série de fonemas (-im gem actsticar) ou de leeas a que correspondem viris sig- nificados. Este iltimo termo designa um aspecto do signo, correspondente aos efeitos da sua significancia. Para Saus- sure e para os linguistas, o sentido resulta da relagio (ar traria) entre significante e significados, discurso diferencia-se da andlise de contetido, que se refere a wontetidos», unidades de signifi- cages supostamente veiculadas por um «cont nente» (a linguagem), portanto atravessando ou ignorando a sua realidade material Andlise de conteudo Segundo uma definisao cléssica, a anélise de contetido € «a ordenagio sistematica, objectiva, descritiva, quantitativa, do contetido manifesto de um discurso» (Berelson). Mesmo que esta definicao tenha sido posteriormente desenvol- vida ¢ enriquecida, em especial ¢ fundamental- mente incluindo os contetidos latentes ou nao conscientes, as perspectivas da anilise de con- tetido mantém-se centradas num projecto de ordenacio de contetidos de um ou virios textos (sendo estes reduzidos a0 papel de continentes, ou de meios de transmissio). A finalidade da anilise de contetido consiste assim em tornar os discursos mais inteligiveis, portanto mais acessi- veis a muitas pessoas. Por outras palavras, consiste em passar de um discurso singular, apropriado a uma utilizacdo privada, respeitante a interlocutores definidos, para um discurso geral ¢ inteligivel para outros, podendo assim servir fins colectivos (educati- vos, comerciais, politicos, organizacionais...) Para efectuar esta passagem, uma ordem geral substitui a ordem (ou desordem) que preside ao discurso original. Mas que ordem, senao a que ¢ definida pelos modelos socioculturais incorpo- rados pelo analista, impostos ¢ transmitidos pela educagio desde muito cedo, mantidos e refor- sados depois por todos os meios, na escola, na Vida do dia-a-dia, na rua...? A objectividade da descricio pretendida, rela- tiva a esta mesma «ordem» social, por oposisa0 a subjectividade (anrquica) dos individuos, su- pe assim uma racionalidade universal, comum, a0 texto, & organizacio social ¢ ao pensamento dos analistas. Analise do discurso como produc de discurso e de sentido ‘Tanto na pratica quotidiana como na pratica profissional, a anslise do discurso traduz-se pela continuagio (ou substituicio) do discurso feito por terceiros pelo de um analista, i pero ou co- municado verbalmente ou por escrito. Assim, coloca-se uma primeira questao: porqué preten- der proceder a tal substituicio? Por ourras pala- ANALISE DE DISCURSO vras: porqué estabelecer um discurso sobre 0 discurso de terceiros, em que é que isso é titil para acrescentar ou retirar alguma coisa a0 que foi dito? Ou para o melhorar? Pensa-se que é ne- cessirio exprimir mais claramente do que os au- tores 0 que estes quiseram dizer? Que legitimi- dade hé em substituir 0 discurso de um autor por outro discurso que dé sentido ao discurso inicial? Ou em dizer por outras palavras ¢ em lugar delas 0 que os proprios autores disseram? ‘Uma razdo muitas vezes invocada € a da sus- peita (teorizada por Ricozus, 1965): por detris do enunciado explicito existiria um enunciado escondido, oculto, que tem de ser desvendado, pois encerra segredos que o autor’ no ousa con- fessar, ou confessar-se. Nesta hipétese, a andlise seria uma espécie de intrusao ou de efracga0 no universo intimo do sujeito, e o papel do analista — confessor ou investigador — o de forgar ou aju- dar a essa confissio, e libertar sujeito do peso da sua culpabilidade ou do recalcamento. Pode por exemplo evocar-se 0 caso, frequente, dos «subentendidos», por meio dos quais um lo- cutor, ao mesmo tempo que introduz furtiva- mente uma segunda mensagem sob a mensa- gem principal, indica an mesmo tempo que se tem de fazer como se 0 nao tivessem compreen- dido, e que nao deve ser referida nem levada em consideragao, sob pena de exposigao a um des- mentido formal. Por outro lado, retomar a palavra de outro, desvelar 0 que ele preferiu calar ou dizer por meias palavras, sob o selo da privacidade, con- siste de facto em romper uma espécie de pacto de siléncio, transgredir uma regra, nio menos constrangedora por estar implicita. E sobretudo trair a confianga dada, obrigando-o a reconhe- cer que sabe o que nao quer de facto saber ou dar a saber. Nas trocas em sociedade, tal prética deve ser mancjada com muitas precaugdes; essa pritica marca o limite daquilo que La Roche- foucauld apelidava de «comeércio das pessoas ho- estas», mesmo que a intengao seja convidar © outro a prosseguir a sua confidéncia e a dizer mais‘, No quadro das relagdes profissionais ® Designaremos pelo terme autor ou locutor © sujcito que enuncia um discutso, de modo oral ou escrito. PodemosfalarIhes de coisas que thes dizem respeito. ras apenas quanto eles permititem. ¢ deveremos fazé-lo om muita cautea; Ii delicadeca e por vezes mesmo huma- ridade, a0 nio entrar demasiado nos recantos do seu cara 0; muitas veres cles tém dificuldade em dar a ver tudo 0 ue saber, e mais ainda quando se penetra no que eles no saber. 233 DICIONARIO DE PSICOSSOCIOLOGIA (revelagéo dos resultados de um inguérito, por exemplo), a questio também se coloca: saber até onde, em que termos, quando, a quem ¢ com vista a qué deve a anélise ser comunicada. Vol- taremos a este aspecto mais a frente. Mas existem outros modos de encarar a and- lise do discurso, levando preferencialmente em conta a sua natureza complexa e polissémica e com vista a um deslocamento do seu significado, € nao apenas 0 desvelar do sentido que estaria es- condido. ‘Todos os discursos comportam de facto uma pluralidade de significagoes, de que uma apenas é privilegiada pelo locutor em fungéo da sua in- tengdo de comunicacio a destinatarios suposta- mente identificados e identificéveis. Com efei to, € também um objecto social, organizado se- gundo outros factores que nao os contetidos que € suposto transmitir ou estruturas linguisticas proprias a lingua: normas culturais que regu- lamentam as trocas, representagées, desejos de reconhecimento reciproco, os objectivos masca- rados de poder, vivéncias emocionais partilha- das, etc Sucede 0 mesmo, tanto com as mensagens mais complexas como com as mais simples: a mensagem registada num atendedor de chama- das, uma pergunta feita a um vendedor numa loja, a exposicéo de um programa de ensino, a adverténcia feita no metropolitano acerca da presenga de carteiristas... Todas estas mensagens podem ser ouvidas e compreendidas de diversos modos, na medida em que comportam ambi- guidades mantidas voluntariamente ou nao: so- bre a identidade do locutor, do ou dos destina- trios, mas também sobre o que € necessatio ou- vir ou reter da mensagem. Assim, nas mensa- gens de atendimento do telefone, ha quem mencione o nome, outros apenas o ntimero do telefone, outros utilizam acompanhamento mu- sical... Uma mensagem particularmente cho- cante pela sua preciso seca e que traduz uma re- cusa de comunicagao directa pode ser enuncia- da assim: «Esté a falar para um atendedor de chamadas de fullano. Por outras palavras, analisar um discurso é co- locar questées nas quais 0 locutor nao tinha qualquer razio para pensar, ou que se absteve de formular. Consiste em recusar a sua oferta de co- municagio (a carta apresentada) para olhar para as outras cartas do jogo, em situarmo-nos noutro local que nao aquele para que nos convidam, ver de outro modo o que cle diz sem necessariamen- te o saber, mas que no entanto € dito. 234 Contrariamente aos pressupostos habituais, no se trata de descobrir o que estaria para além do texto, escondido, mas de observar mais de perto © que foi diro, mesmo sem o querer, € como; respeitar & letra o dito de outro sem nos deixarmos fascinar pelo sentido que ele deseja & partida dar a entender e em relagio ao que or- ganiza o seu discurso. Nao para o fazer dizer 0 que ele nao queria di- zer ou para que o diga «melhor», mas para reco- nhecer, ¢ eventualmente fazer-Ihe reconhecer, 0 que estd na letra do texto desde que se aceite vé- -lo, para o ordenar segundo outra organizacao, outra légica latente. Assim, 0 que diz um texto sobre a personalidade do seu autor, sobre a sua historia, os seus valores, sobre o meio social e cultural no qual vive de que ¢ talvez um re- presentante, sobre as suas tensdes internas ou as suas recordagoes...? Ou ainda, que revela ele de processos de intimidacao, de manipulasao, de sedugio, de persuasio, ou mais geralmente, de posicdes respectivas e relagdes de poder ou de submissio? Ou de disposicdes psicolégicas comunicadas aqueles a quem o discurso se diri- gc (por exemplo, as dltimas instrugées aos ka- mikazes de 11 de Setembro de 2001)? Se todo 0 enunciado é enderegado, explicita ou implicitamente, sucede © mesmo com o do analista, cuja dimensio informativa nao deve servir para esquecer a dimensio performativa, ou de acgio, respeitante a destinatérios, conhe- cidos ou desconhecidos. O facto de dizer ou de exprimir 0 que era, vo- luntaria ou involuntariamente, deixado ambi- guo, implicito ou subentendido, ou de deslocar © sentido é evidentemente um acto forte, que modifica o estatuto do enunciado (do nio dito a0 dito, da sugestao & afirmacao), como o do ce- nério social onde teve lugar. Neste sentido. a andlise de discurso é um pro- cesso que se inscreve numa historia, que impli- ca o analista (profano ou profissional) enquan- to autor e actor, bem como todos aqueles, pre- sentes ou ausentes, que podem estar envolvidos. E uma «producio de discurso e de sentido», que vai muito para além de uma simples «elucida- ao» de ordem cognitiva. Tal processo, de facto, nao se desenrola ape nas no quadro de uma relagio dual, que impli- ca um ou varios analistas que enfrentam um. discurso. Hé sempre terceiros, presentes ou au- sentes, em referéncia aos quais se efecrua a ané- lise, ou aos quais ela se destina, e que continuam presentes (pelo menos virtualmente) a0 longo de todo o processo, E esse, evidentemente, 0 caso de andlises a quente em situagdes de grupo ou de entrevisra, em que os destinatérios da.andlise so os autores dos discursos produzidos num tempo preceden- te. Mas também em contextos de inquérito (na definigao do corpus, dos objectives, na escolha do caminho a seguir e dos métodos, os modos de interpretagdo € a sua formulagio), mesmo quando, em nome de uma pretense objectivida- de, se preferiria ignorar, Finalidades da andlise de discurso Depois de vista a complexidade da estrurura dos discursos e a multiplicidade dos pontos de vista segundo os quais podem ser vistos ¢ estuda- dos, ¢ impossivel analisi-los de modo exaustivo evando em conta a totalidade dos seus significa- dos. Dai a necessidade de adoptar uma perspec- tiva expecifica, um modo de questionamento de- finido, privilegiando certos elementos em rela- 0 a outros (mesmo antes de pensar em definir 0s objectivos de anlise em relagao a um referen- al re6tico, hipdteses ou finalidades de acgio). Estas perspectivas variam no entanro confor- me a perspectiva como a anilise de discurso & conduzida: pesquisa fundamental, pesquisa aplicada ou pesquisa clinica. ‘Tratando-se da pesquisa fundamental, é ¢s- sencialmente objecto das ciéncias da linguagem., A sua diversidade ¢ a sua riqueza sero aqui ra- pidamente evocadas: andlises de interlocugies ou de interacgéo verbal, andlise estrutural, and- lise conversacional, actos de linguagem, etno- metodologia... ‘Apoiando-se a maioria das vezes em sequén- clas de discursos breves (uma frase ou um frag- mento de frase, uma série de algumas interlocu- g6es...), no em discursos no sentido em que o definimos, estas pesquisas visam compreender melhor, em situagées concretas, o funcionamen- to da linguagem (como é construida, como per- mite ou io atingir objectivos de comunica- Go...). De um modo geral nao se interessam di- rectamente pelos processos sociais nem pelas relagdes entre esses processos ¢ 08 processos dis- cursivos, com algumas excepg6es, como por exemplo os trabalhos da rede Langage et travail (Borzeix, 1987; Borzeix ¢ Frankacl, 2001). No ‘entanto mostraram ser muito fecundas para as ciéncias sociais, em particular psicossociolégicas, durante demasiado tempo, na verdade, indinadas a referitem-se a nogoes tais como atitude, tepre- sentagio, imagindrio, condura.... negligenciando ANALISE DE DISCURSO 0 facto de os processos serem essencialmente processos discursivos, estrururados como tal, Conjugados com os ensinamentos da psicandli- se (Freudiana ¢ lacaniana) no que respeita ao pa- pel determinante da linguagem na estraruragio do inconsciente, estas obras contribuiram por- tanto de modo poderoso para renovar e enrique- ceras andlises dos processos psicolégicos e sociais, Centrando-se este artigo de modo privilegindo em perspectivas clinicas e psicossocioldgicas da andlise de discurso, remietemos 0 leitor, para co- her mais informagées sobre obras muito diver- sas, para as referencias citadas na bibliografia no final do artigo. Nos casos de pesquisas aplicadas, a andlise de discurso pode ser posta ao servigo de objecti- vos de pesquisa definidos no quadro de outras disciplinas: sociologia, hist6ria, psicologia social ¢€ psicossociologia, etnologia. Muitos estudos, que se apoiam em inquéritos no terreno, corres- pondéncia, histérias de vida (cf., por exemplo, Thomas ¢ Znaniecki, 1918), tém assim a sua base em dados discursivos. Algumas dessas obras, concebidas fora de qualquer intuico de aplicagio ou de mudanga, tentam esclarecer cer- tos processos sociais, representagées colectivas, funcionamentos institucionais... Outros (por exemplo, inquéritos de opinio ou de motiva- 40) tém explicitamente por objecto reunir ele- ‘mentos que permitam uma melhor previsio dos comportamentos de uma dada populagio — consumidores, eleitores, membros de uma cate- goria social... —e acrescer assim a pertinéncia de decisées ou de acgdes que lhes digam respeito. No entanto, a andlise de discurso ¢ muito par- ticularmente utilizada para a andlise de inquéritos psicossociolégicos ou socioldgicos conduzidos no quadro de pesquisas-acg6es de um certo tipo ou de intervens6es em organizages. Neste 380, 2 anilise das entrevistas ou discuss6es de grupo ser- ve para estabelecer um diagndstico que ¢ objecto de uma comunicagao («restituigio») aos mem- bros envolvidos na organizacéo e a partir do qual um trabalho pode depois ser desenvolvido. Colocamos entre parénteses este termo, wtes- tituiggo», habirualmente empregado, porque coloca implicitamente, ¢ indevidamente segun- do nés, as relagdes dos pesquisadores com os ac- tores sob o signo de uma obrigacio (de ordem moral), a de «devolver> o que Ihe foi previa- mente confiado, parecendo omitir que, na sua comunicagio, cles fazem muito mais do que urestituirs de modo idéntico o que receberam: transformam-no, interpretam-no. Ora, é preci- samente af que a questio atrés levantada se 238, DICIONARIO DE PSICOSSOCIOLOGIA coloca com acuidade: que comunicagio, sob que forma, com quem e para fazer 0 qué, com que designio? Ao utilizar 0 termo «restituigao», evita-se ter de se colocar a questo, como se a resposta fosse evidente. Como se nao houvesse andlise do discurso, implicando portanto o pes- quisador, mas simplesmente reprodugao dos contetidos, restituidos. Quer se refiram as metodologias da anélise de conteiido quer as da andlise de discurso, estes trabalhos colocam no entanto questdes de fun- do. Apoiando-se em discursos escritos ou orais, pressupdem sempre, necessariamente, uma re- lagio entre a estrutura e 0 contetido dos discursos produzidos por um individuo, um grupo ou uma colectividade, ¢ 0 fiuncionamento ou a estrutura real dessas pessoas ou colectividades. Pressupdem sobretudo uma teoria dessas relacaes, permitindo deduzir a partir da andlise dos discursos conhe- cimentos respeitantes is colectividades nas quais sao produzidos. Ora, € necessério notar que esta teoria se mancém no geral informulada (com ex: cepgio de Freud ¢ Lacan, que tentam explicar como a estrutura do discurso esta relacionada com a realidade psiquica) Na auséncia de tal ceoria, as transposicées fei- tas correm o risco de reproduzir representagdes dominantes expressas pelos sujeitos identifican- do-as com a realidacle & qual se referem (confu- so entre mapa e territério). Por outras palavras, dar uma legitimidade pseudocientifica as repre- sentacoes da realidade social ou psicolégica ex- pressas pelas pessoas que compoem a amostra. E facil ver o que este risco implica quando (como sucede tantas vezes) essas pessoas sio membros do grupo dominante, que a si mesmo atribui precisamente o monopélio de declinar o que éa ecealidade» e que dispoe do poder de impor essa representagdo como verdadeira. No entanto estas questdes remetem para o quadro referencial, nocional, em fungao do qual um texto é lido ¢ interpretado. O necessdrio deslocamento do analista, o seu descentramen- to cm relagio as intencdes de comunicagio do locutor, supée também um descentramento em relagdo ao seu quadro de referéncia. Nao se pode conceber nenhuma andlise, nenhuma in- terpretacao do discurso, sem que seja referida a ral quadro, quer ele seja prévio ou em parte ela- borado a medida que se desenvolve. Admite-se com facilidade que 0 sentido a descobrir nao pode ser postulado a priori, deve sim resultar da andlise. E continua a acontecer que se coloca a questo de saber em qué e em relagdo a qué é que isso faz sentido. Ora, este qué faz referéncia, 236 senao a respostas possiveis (a hipdteses), pelo ‘menos a quest6es, a uma problematica. Qual € 0 estatuto desta problematica, portan- to do referencial tedrico, no caso das pesquisas aplicadas fundadas em anlises do discurso? Po- deremos fiar-nos em utensilios de andlise defi- nidos previamente para explorar um campo que s6 um conhecimento desse campo pode forne- cet? Orientarmo-nos num territério que ignora- mos, enquanto se estabelece © mapa? Veremos mais adiante como a perspectiva de andlise cli- nica tenta responder a estas questées. A dificuldade de resolver tal paradoxo é tanto maior quanto os trabalhos utilizem metodolo- gias de anilise de contetido tematicas, portanto a formalizacao, a ordenacao, a classificagao em categorias das significagdes explicitas ow impli- citas dos discursos dos sujeitos (opinises, repre- sentagdes, atitudes...). Pode em certa medida ser atenuada se a amostra for composta de modo a incluir representagoes de diferentes categorias da populacao. Mas nao deixa de ser verdade que tais andlises tendem mais para uma descriga0 € uma reprodugio das representagdes dos actores do que para a sua «andlise» ou interpretacao. A dificuldade, como é evidente, cresce mais ainda quando, como se pode constatar demasia- das veres, as anilises sao feitas a partir de resu- mos, notas ou parifrases, isto é, textos rescritos ¢ rearranjados para melhor se prestarem & apli- cagao dos métodos de anillise ¢ as hipéteses ted- ricas prévias, mais do que a protocolos tao figis e€ precisos quanto possivel ‘Na perspectiva clinica, a andlise de discurso entende-se a principio ¢ sobretudo no quadro de uma relagio que implica a co-presensa de um sujeito ou de um grupo envolvido na verbaliza- 520 dos seus contetidos de pensamento ¢ de um analista — psicélogo, terapeuta, psicossociélo- go... — que 0 auxilia na realizagao deste processo, Neste caso, ela esté ligada a uma pritica — en- revista, intervengao, formagio, pesquisa-acsio, anilise de grupo. Efectuadas no contexto de um processo de mudanga e de tomada de conscién- cia, as analises a quente dos discursos dos prota- gonistas favorece o seu descentramento em rela- 40 ao que eles querem dizer, envolvendo-os num processo de elaboragio do sentido do seu discurso das suas condutas. Andlise do discurso nas situagées de intervengao A intervengao psicossociolégica traduz uma abordagem especifica de escuta de probleméticas individuais e colectivas solicitadas e canalizadas pelas vias oferecidas em sicuacdes sociais em que individuos e grupos tecem ligacoes de signi ‘20 no jogo do desconhecimento ¢ da surpresa, da indignagio e da decepcio, do entusiasmo ¢ dos reencontros. Neste sentido, o discurso é uma criagio que ~ mesmo quando é um simples resumo de acontecimentos ~ atesta o reconheci- mento proprio como sujeito que fala a um ou- tro para dar existéncia a uma representacao da realidade. Neste contexto, esta assim aberta a possibilidade de analisar as dimensoes da reali- dade nas configuragdes em que se misturam dis- cursos explicativos, emergéncias inconscientes, mecanismos de defesa, condutas, relagdes, etc., produzidos em contextos diferentes que lhe ser- vem de ponto de apoio. Mais generalizadamente, trata-se de estabele- cer de modo diferenciado as modalidades segun- do as quais o sujeito se pde de acordo com as si tuagées que atravessa, Trata-se também de iden- tificar como constrdi 0 sujeito as suas represen tages num confronto constante com as que sao oriundas das légicas do contexto, incluindo, bem entendido, a da propria intervenga0. Con- texto que deve ser compreendido, no sentido su- getido por Jean-Pierre Vernant ¢ Pierre Vidal- -Naquet a propésito da tragédia grega (1981), no apenas como justaposta ao texto mas como subjacente a ele; subrexto a decifrar no proprio discurso, Esta perspectiva, que se apoia no dis- curso tal como ele ¢ elaborado, apreciado na sua singularidade e situado na diversidade dos seus contextos, da acesso a um conjunto de significa- ses ligadas dinamicamente O metodo de anilise dos discursos consiste em referir as priticas do sujeito, 0 uso que faz das solicitages sociais, as crengas organizadoras dese uso, sucessivamente em duas fontes: 0 contexto sociocultural, por um lado, e a confi- guracio psiquica, por outro. Isto é destacar se- gundo que modalidades a organizagao social se escora na dinimica psiquica do sujeito ¢ como, num vaivém reciproco, os contetidos psiquicos investem elementos socioculturais Do ponto de vista dos processos psicossociais, aanalise visa, em particular, compreender como © sujeito (individualmente ou em grupo) reor- ganiza os scus investimentos ¢ que processos presidem aos rearranjos destes no decurso dos acontecimentos que sobrevém na sua existéncia. Quando ¢ convidado a exprimir-se, 0 sujeito faz uma descrigio racional. Da dos seus cend- rios fantasméticos um tratamento explicativo que se coloca como saber. A pesquisa incide na ca- ANALISE DE DISCURSO relagio que 0 sujeito mantém com a imagem que constréi do objecto nos beneficios que re- tira de tal construcio para a stia economia afec- tiva. Trata-se de elaborar uma compreensio da dinamica psiquica que o discurso apresenta na articulagao das imagens e das emogoes, ¢ uma inteligibilidade da construgao imagindria elabo- ada pelo sujeito a partir da recolha particular de objcctos sociais retirados da sua cultura. Mais precisamente, caprar cenérios de que se susten- ta 0 seu autor através da sua narrativa, sabendo que a mensagem nao se encontra num local es- titico do discurso mas no movimento que o constitu Esca leieura tem por arefa esclarecer a forma- io, por um ou varios individuos, da represen- tagao das estruturas sociais em fungio dos inte- resses fundamentais da economia subjectiva que opera num dado momento. ‘Assim, por exemplo, adesdes institucionais es- tao ligadas, numa narrativa, a um sentimento de seguranca num periodo da hist6ria do sujei- 0. Os elementos associados podem num outro periodo prescrever ou desfazer-se em proveito de novos arranjos.. No discurso, crata-se de caprar uma configu- ragio afectiva, de relevar ama representagio so- cial e procurar 0 principio de ordenacao dos dois registos. Foi assim que se tornou possivel por em evidencia que mudancas sofridas pelos sujeitos (evolucio da organizagao da economia subjectiva, deslocagées nas inscrigées imagind- rias sociais) se exprimiam numa mudanga de linguagem. Visto que o sujeito jé nao faz uma representacio da sociedade do mesmo modo, no se defende das mesmas ameagas, 0 que ele tem a dizer evolui, Se a mudanga ¢ importante, 0 sujeito mudaré o seu quadvo de formulasao das situagdes (Giust-Desprairies, 1989). O que pode ser enunciado, por exemplo, num quadro hierérquico, nio pode mudar profundamente no mesmo quadro de formulacio, Desde que 0 sujeito faz uma representagao das lutas pela con- quista do poder como um elemento dinimico da vida social, nao pode dizer essa mudanga sem modificar 0 quadro de enunciacio dos seus in- vestimentos, Assim, a iniciativa apresenta-se como uma abordagem da mudanga: que mudangas de qua- dros de formulagio e de definicao dos abjectos caracterizam os diferentes momentos de uma histéria contada numa entrevista ou no decurso da intervengio? Porque a Ieitura do discurso é clinica, indica como a economia afectiva se revela através da 237 DICIONARIO DE PSICOSSOCIOLOGIA utilizagio de certos qualificativos, através do modo de atrair certas imagens numa representa- 20, por intermédio de um modo singular de as- sociar termos e argumentagoes. No entanto, a passagem do pormenor do tex- toa uma configuragio psiquica interior do sujei- co da narrativa néo pode ser senao sugestiva As andlises feitas aos discursos sao hipéteses interpretativas. A finalidade nio é provar mas desvelar sentidos possiveis fundados na lingua gem do desejo. O objectivo consiste em dara en- ender relages complexas que se estabelecem entre mensagens insticucionais, ideologias, pro- dugdes sociais de ordem cultural ¢ construgées singulares de uma interioridade e de uma vida afectiva O analista coloca-se na situagio de ouvie fun- cionar dois sistemas concomitantes: a vida social do sujeito ea sua relagao individual com as suas cenergias afectivas. A linguagem exprime essa concomitincia, pois falar é ~ em variadas modalidades, por vezes repetitivas, por vezes méveis ¢ evolutivas — ligar relacées sociais a uma economia psiquica. O su- jeito que fala da sua situagao inscreve-o num sis- tema de representacées sociais, e ao mesmo tem- po implica o seu imaginario: o seu discurso sobre a sociedade, por momentos, simboliza a sua re- lacao consigo mesmo. E se fala dos seus desejos, das suas expeccativas, das suas contradigdes, 30 mesmo tempo simboliza a sua situacao num si tema de representagdes colectivas. Os mesmos dadlos servem portanto para iden- tificar construgées, processos psiquicos ¢ meca- nismos, légicos, construidos, sociais. O conteti- do do discurso inclui as condigées da sua pro- dugio. O referencial psicanalitico pode ajudar 20 reconhecimento dos indices das leis psiquicas que organizam o discurso sem conhecimento do seu autor, De modo anglogo, uma leitura socio- logica pretende desvelar os elementos de signifi- cago que entram em homologia com outras ex- pressdes da organizacio social. Numa aborda- gem psicossociolégica, trata-se igualmente de desvelar a dimensio social-histérica na qual se inscreve 0 autor do discurso feito, isto é, 0 con- texto colectivo de referéncia. A pesquisa incide entao numa exploragio dos objectivos que o su jeito, actor social, prossegue, estrategias que uti- liza, meios de que se serve para se inscrever na ordem das trocas sociais e das relagdes de poder: E uma determinagao dos grupos de pertenga ¢ de referencia, ¢ das envolventes nas quais estio implicados, isto é, os motivos mais profundos de que estes grupos sio portadores, ideolégica e idealmente 238 Esta abordagem dos discursos pode ter em vis- ta, por exemplo, evidenciar as novas formas de investimento encontradas no campo social e nas suas ligagdes com os cendrios imagindrios; esta- belecer uma distingio entre a mudanga na orga- nizagio defensiva € as diferentes utilizagoes do contexto social; compreender a evolugio dos sis- temas de defesa que permitem ao sujeito aquisi- Ges estruturantes ou novos recursos, Visa tam- bém dar conta dos conflicos e da sua natureza por meio do estabelecimento das representages ¢€ das posicoes que contribuem para determinar no individuo o sentido dos acontecimentos. ‘A anilise efectua-se a medida que o discurso se desenrola, Trata-se de captar 0 que se estabe- lece para o sujeito na sua relagio com aquilo de que fala, tornando-se e tornando-o sensivel as rupturas, as retomas, as hesitagGes, que acom- panham o relato. Podem distinguir-se varios ti pos de andlise: identificagao de ligacées de cau- salidade, de processos de objectivacao, de coisas Sbvias que fundam posigées naturalizadas, ins- critas na histéria e confundidas com a realidade; questionamento das formas mais conscienciali- zadas destas representagdes proclamadas, até mesmo argumentadas, com apoios ideoldgicos ou factos dados como objectivos ou incontesté- veis; desenvolvimento de légicas internas, en- volventes ¢ conflitos, que presidem a esta orde- nagao da situacao apresentada ¢ que cm parte escapam a consciéncia dos actores; esclareci- mento sobre a parte imagindria dos sistemas ex- plicativos, pelo destaque dos modos de constru- io das representagoes ¢ dos significantes-chave; exame das relagées que existem entre a natureza dos discursos feitos © de quem os produz. A perspectiva clinica da andlise de discurso pode também conceber-se, em certas condigées, no quadro de pesquisas efectuadas numa poste- rioridade, aplicando-se a0 conjunto de um di curso a partir de retranscrigdes de entrevistas ou de protacolos de discussio de grupo, ou mesmo de varios, ou outros documentos escritos, por exemplo cartas, narraoes de vida... Nesta pers- pectiva, as interpretagoes podem ser restivuidas 9s locutores ¢ autores num outro rempo, mas servir também a um proceso de elaborasao te6- rica respeitante a questées de ordem geral e nao apenas as que sao relativas as experiéncias dos sujeitos directamente implicados. Estas duas modalidades da anélise clinica de dados podem ser contradit6rias em varios planos: = situagio relacional, actores implicados; ~finalidades: = condigdes de execugio. Situacao relacional Anélise a quence numa situagio de interacgio directa, carregada afectivamente, sujeita a efei: tos transferenciais e contratransferenciais, a identificagées projectivas ou introjectivas, € que produzem efeitos imediatos, ou andlise na pos- tetioridade, efectuada pelos analistas individual- mente ou em relagio com outros pesquisadores ‘em textos escritos, textos a que é possivel voltar e que se podem reler. Aplicado ao discurso de um sujeito singular, individuo ou grupo, incidindo num corpus alar- gado e diversificado. Finalidades Anilise centrada na ajuda, facilitagio de to- madas de consciéncia e rearranjos subjectivos, ou centrada num aprofundamento de significagoes latentes que dao lugar a elaboragées tedricas. Condigées de execugao Comunicagio imediata das anilises e inter- pretacies parciais, ao mesmo tempo, ¢ inscre- vendo-se no proceso de dislogo estabelecido entre analisandos ¢ analistas, ou formulagao oral ‘ow escrita que implica um trabalho de elaboragio prévio e que dé lugar a apresentaces formaliza- das, centradas numa problemitica de pesquisa. Sempre reconhecendo a importancia descas diferengas, importa no entanto sublinhar que estas priticas se inscrevem num mesmo projec- to de compreensio e de mudanga. Profunda- mente intricadas ou interdependentes, estao as- sim na origem de tens6es intensamente vi pelos analistas clinicos, permanentemente em luta com exigéncias contraditérias que no en- tanto é necessario articular. Obedecem de facto aos mesmos principios metodolégicos directores, de que vamos fazer um breve resumo. as Principios directores da andlise de discurso Fazer emergir do discurso significagoes novas, imprevistas, por meio de atengao aos indices concretos presentes no texto, de ordem grama- tical, sintactica, estilistica, ou semantica, reme- tendo para outros niveis de significagGes além das que o texto revela de imediato, Por exemplo, as repetig6es, as incongruéncias, as rupcuras ou ANALISE DE DISCURSO cesuras, os siléncios, as hesitagdes, as mudangas de tom ou de ritmo, as associagGes, os encadea- mentos no desenvolvimento da argumentagio ou na exposigio temitica, as transigées, as am- biguidades, etc. Por outras palavras, a anilise procede segundo um trabalho de desconstrugao do texto, cuja organizagdo ou arquitectura ma- nifesta, orientada para finalidades de orclem es- tratégica, de argumentasio, de persuasio, que visam impor significagdes (construgoes ideolé- gicas, defensivas ou ofensivas), é quebrada para permitir a revelagao de outras significagées. Para fazer surgir esta outra organizagao, esse outro discurso de que o discurso analisado € de certo modo um «pré-texto», pata deslocar os significantes, uns em relago aos outros, 0 ana- lista deve ele mesmo deslocar-se, circular no dis- curso adoptando outro lugar que néo aquele a que 0 discurso (ou o locutor) 0 convida. Colo- cado num outro contexto, num outro corpus, 0 discurso fala de outro modo, Dizer como cle fala, quem o fala e a quem, é jf, de certo modo, analisi-lo, A identidade do sujeito da enuncia- Gio de facto nio se confunde forgosamente com 6 do sujeito do enunciado, de que pode ser sim- plesmente o porta-voz, do mesmo modo que 0 destinatério nem sempre é aqucle a quem o dis- curso explicitamente se dirige. Ou ainda, a mes- ma carta, lida considerando ourras cartas escri tas por outros na mesma situagao, falard de ou- tro modo do que se estivesse situada na cortes- pondancia do mesmo autor. ‘Tal crabalho comporta no encanto um custo psiquico importante: necessita, por parte do analista, de ultrapassar resisténcias internas que aagem a maioria das vezes de modo inconsciente. Nao somos neutros nem indiferentes perante um texto. E importante que nos desprendamos das identificagdes que suscica ou do fascinio que exerce sobre nds o que é dito, quer a ele se adira quer haja um choque. De facto, o tema explici- to coloca um ceri ao que esté implicito, ao que esti em causa de modo consciente ou incons- ciente. Assim, numa discussao de grupo, o tema do debate oculta facilmente envolventes e preo- cupagies relativas as relagdes no grupo ou no contexto das trocas. Se a andlise consiste em questionar um dis- curso, este também nos questiona. Trabalhar tum texto consiste portanto & partida em deixar- mo-nos trabalhar por ele, tentar compreender 0 que faz sentido para nds e porqué, deixar emer~ gir as associagies, as recordagoes, as impressoes ou sentimentos que evoca, estar atento aos mo- vimentos internos que suscita e de que se pode 239 DICIONARIO DE PSICOSSOCIOLOGIA esperar que fornecam pontes que ultrapassem os nao-ditos do discurso, permitindo ligar 0 que parece nao ter relacdo. Tal trabalho sobre as nos- sas préprias resisténcias consome naturalmente tempo, ¢ 86 trocas com outros analistas podem facilitar a tarefa Tratando-se de manejar um texto, de modifi- car 0 seu arranjo, trituré-lo, recompé-lo, por outras palavras, apland-lo, qualquer método pode ser bom a partir do momento em que per- mita ao analista a aquisigao de uma certa fami- liaridade com o texto. Este aplanamento constitui de facto um mo- mento necessirio. Consiste em passar de uma leitura «vertical» do discurso, no que respeita a0 seu percurso linear segundo um vector temporal (a «flecha» irreversivel do tempo), a uma leicura horizontal», a-temporal (cenérios imagindrios). E necessério no entanto evitar ficar prisionei- ro destes métodos ou técnicas, ceder & tentagio de crer que s20 susceptiveis, por si mesmos, de modo «automaticor (Pécheux, 1969), de liber- tar o sentido ou a verdade de um texto, De fac~ to, 0 essencial consiste em conservar a possibili- dade de uma reversibilidade do processo de ani lise, de estar em condigdes de, em qualquer mo- mento, caminhar em sentido inverso daquele que foi seguido, e portanto modificar as esco- thas feitas 3 partida quanto aos modos de d composi¢ao ou composigao do corpus e de conseguir assim chegar a outros resultados. Mas ha um momento em que € necessirio por termo 4 anilise. Esse momento ¢ em parte arbitririo (0 sentimento de ter conseguido des- velar um significado que merece ser comunica~ do) e em parte esté também dependente de cir- cunstancias exteriores (tempo e financiamencos disponiveis, urgéncia expressa pelos destinaté- rios da andlise...). De qualquer modo, 2 andlise nunca pode ser considerada terminada, 0 que importa é decerminar 0 momento mais apro- priado para a comunicagao das interpretagdes, 0 seu modo de formulacao (explicativo, descriti- vo, sugestivo ou questionador), bem como as pessoas a que dizem respeito. No caso de andli- ses a quente ~ grupo de formagio ou situagio terapéutica =, a questao do timing & de facto central: ndo basta que a interpretacao seja justa, & também necessirio que possa ser entendida € que seja proveitosa. Na medida em que, como ja referimos, a for- mulagio da analise é também uma produgao de discurso, deve ser dita de modo € no momento em que seja susceptivel de relangar 0 discurso de outro modo e de modo mais profundo, evi- 240 tando tanto quanto possivel que seja entendido como uma conclusio que encerra 0 processo de elaboragio, esterilizando a palavra e reduzindo 0 discurso apenas ao sentido construido e apre- sentado pelo analista. E ficil perceber como estes principios se afas- tam daqueles em que a andlise de discurso ¢ en- carada como um meio ou um método que per- mite dele extrair saberes, numa perspectiva mais positivista do que clinica No que respeita & implicagao pessoal do ana- lista: como vimos, essa implicagao constitui um elemento central da andlise clinica de discurso, que insiste na necessidade que 0 analista tem de se interrogar sobre a sua posiggo em relacao 20 discurso, aos seus autores € aos seus destinaré- rigs, bem como aos destinatérios da andlise. Nas perspectivas classicas adoptadas pela maioria dos pesquisadores, incluindo os que se situam na perspectiva etnometodolégica e que colocam o cerne da questo nos «actos de palavray, a im- plicagao do analista é vista como um obstéculo 4 objectividade e fica portanto reduzida ou é controlada ao maximo, No que respeita & fungao das técnicas, dos métodos e da teoria, um dos meios mais seguros de evitar esta implicagio € considerar como prioritarios os métodos de andlise formais, por vezes extremamente sofisticados, que permitam decompor ¢ recompor o discurso segundo prin- cipios tedricos ¢ metodolégicos definidos pre- viamente. Por outras palavras, considerando os discursos como um corpus de dados aos quais poderao ser aplicadas (para os validar ou invali- dar) hipéteses estabelecidas a partir de uma pro- blematica tedrica dada (segundo um caminho hipotético-dedutivo). Isso consistiria em atribuir um quadro de pen- samento a0 que esté ainda impensado (pois que ndo dito) e a circunscrevé-lo, como se 0 pensa- mento fosse preexistente a linguagem. E certo que no € possivel conceber uma anillise do discurso sem fazer referéncia a um corpo nocional. Mas isso nao pode suceder sem que se corra.o risco de esterilizar a andlise e de a reduzir ao ja conheci- do, considerado definitivo ou definitivamente estabelecido. Pelo contrério, importa que seja posto & prova ¢ rearranjado por meio do proces- so de anilise, em fungio do que este proceso permita fazer surgir de novo e de imprevisto, A anilise destas diferengas permite por o acento no que caracteriza a perspectiva clinica da andlise de discurso, muito particularmente na pritica psicossociolégica. Nao € apenas um método de pesquisa, que se coloca em paralelo com outras, Esti de facto no centro desta pritica ¢ das questdes de toda a ordem que ela suscita. De facto, 0 que € 0 discurso senio esta maté- tia viva ¢ complexa por meio da qual as subjec~ tividades se constroem ¢ onde se tecem as liga- {goes intersubjectivas e sociais? E 0 que é a pratica psicossociolégica senio um trabalho sobre os discursos produzidos, compreendidos, recusados, trabalhados € retra- balhados, reenviados, analisados por sujeitos singulares que se inscrevem numa hist6ria social que nela se reflecte ¢ que nela se reconstréi em permanéncia? Scria uma ilusio pensar que os discursos po- dem ser desligados do real de que falam ¢ em re- lagio ao qual se constroem. Oriundos do real, por meio da analise, a ele voltam, para a modi- ficar e enviar para outras vias. Analisar 0 disc so consiste portanto em tomar parte na hist social tal como cla se labora, contsibuir para Ihe dar outro sentido, fazer emergir outros mo- dos de falar dela, outros modos de falarmos uns com os outros. Bibliogratia AUSTIN, J-L. 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