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MANA 3(1):179-205, 1997

RESENHAS

DISSELKAMP, Annette. 1994. L’Éthi- mente na exigência do isolamento en-


que Protestante de Max Weber. Paris: tre essas duas dimensões.
Presses Universitaires de France. 217 A reconstrução detalhada do argu-
pp. mento de Weber na Ética Protestante,
embora ocupe a segunda das três partes
em que se organiza o livro, adquire, de
Emerson Giumbelli um ponto de vista lógico, precedência
Doutorando, PPGAS-MN-UFRJ sobre todo o resto. Essa reconstrução as-
sume uma forma basicamente descriti-
A Ética Protestante e o Espírito do Capi- va, qualificada, no entanto, pelo esforço
talismo, texto de Max Weber publicado em destacar os pontos e as articulações
originalmente em 1904, foi e continua conceituais que constituem uma “tese”
sendo uma referência fundamental em a respeito das relações entre protestan-
se tratando de questões que problema- tismo e capitalismo. Em primeiro lugar,
tizam as relações entre religião e socie- viria a distinção entre capitalismo e “es-
dade. Isso se aplica igualmente a situa- pírito do capitalismo”: Weber, na Ética
ções tão opostas quanto a constituição Protestante, não estaria preocupado se-
histórica das cosmologias que definem não com o segundo, ou seja, com uma
a “modernidade” ocidental e o signifi- mentalidade e um modo de conduta de-
cado e impacto dos novos grupos pen- terminados, problematizados em suas
tecostais no Brasil. A importância de características essenciais e em sua gê-
seu assunto e a repercussão de que go- nese e singularidade históricas. A rela-
za – aliadas ao prestígio de seu autor – ção desse “espírito” com o capitalismo
conferem-lhe, enfim, um lugar certo en- enquanto sistema econômico e social
tre os “clássicos” das ciências sociais. teria, nesse texto, permanecido indeter-
Esse texto é o tema do livro de Annette minada. Em seguida, Weber aponta as
Disselkamp, resultado de sua tese de respectivas contribuições do luteranis-
doutorado, apresentada à Sorbonne e mo e do calvinismo/puritanismo para a
orientada por Raymond Boudon. A au- constituição e conformação desse “es-
tora tem uma pretensão crítica, que de- pírito”: enquanto o primeiro, através da
senvolve tanto sobre o argumento ex- associação do Beruf religioso (vocação)
posto no texto de Weber e algumas ou- às ocupações seculares, teria aberto o
tras partes de sua obra, quanto sobre o caminho para a valorização do trabalho
modo pelo qual o mesmo texto foi apro- e de seus frutos; o segundo, através da
priado por outros autores. E, como ve- noção de predestinação à salvação, te-
remos, a peculiaridade dos resultados a ria imprimido ao trabalho (e aos seus
que chega sua análise reside exata- ganhos) um sentido de ascese. Se no ca-
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so do luteranismo, as conclusões de We- resgatar a especificidade e autenticida-


ber decorrem da análise de textos dou- de da Ética Protestante manifesta-se
trinários, já o impacto do calvinismo/ quando Disselkamp procura inserir o
puritanismo é pensado sob a forma de texto de Weber entre percepções ante-
uma motivação psicológica. Assim, da- riores e contemporâneas sobre a rela-
do que a insondabilidade dos desígnios ção entre protestantismo e progresso
divinos tornava-se insuportável em um econômico. Revela-se que esse vínculo
tempo no qual a certeza da salvação era já era sustentado por textos do século
indispensável, formulou-se, nos meios XVII e tornara-se, no século XIX, um
puritanos, a idéia de que o sucesso pro- dos dogmas da propaganda burguesa
fissional consistia um sinal visível da protestante, mas segundo fórmulas dis-
eleição. Por fim, Disselkamp procura tintas daquelas utilizadas por Weber.
mostrar que Weber postula uma relação A autora, portanto, quando formula
necessária entre as disposições produ- os critérios de sua tipologia, desloca o
zidas por exigências religiosas e o “espí- foco da mera postulação da existência
rito do capitalismo”, na qual as primei- de relações entre protestantismo e capi-
ras ocupam precedência causal sobre o talismo para o plano bem mais comple-
último. xo dos termos em que se colocam essas
Partindo dessa reconstrução, com relações e da sua lógica. Essa interes-
seus três pontos fundamentais, é que a sante estratégia é, porém, contrabalan-
autora elaborará uma “tipologia críti- çada por uma perspectiva estreita, que
ca” de várias referências bibliográficas chega a resultados quase sempre nega-
que teceram considerações e avaliações tivos expressos na intenção de revelar
sobre a Ética Protestante. Trata-se da os “mal-entendidos” sofridos pela tese
primeira parte do livro, na qual Dissel- weberiana na sua apropriação por ou-
kamp contempla dezenas de trabalhos, tros autores. Daí que a tipologia consi-
organizando-os de modo a constituir ga cobrir apenas os autores que com-
uma espécie de jogo dos erros: várias preenderam mal a Ética Protestante,
formas de mal-entendidos a respeito do deixando de fora todos os demais. Ou-
argumento efetivo de Weber. Assim, há tra possibilidade a partir do mesmo ma-
diversos autores que pensam estar refu- terial continua sendo a investigação do
tando Weber quando mostram que a re- “Weber” que as apropriações produzi-
lação entre protestantismo e capitalis- ram ao longo do tempo, ou, paralela-
mo não é, de uma perspectiva histórica, mente, mas partindo dos mesmos prin-
constante ou necessária, deixando de cípios, a elaboração de uma leitura de
perceber a autonomia conferida ao “es- Weber informada por questões atuais.
pírito” na Ética Protestante; há os que o Disselkamp, ao contrário, optou por
defendem em termos teóricos, afirman- uma incursão visando restabelecer o
do que tal relação é postulada enquan- Weber de 1904 no que considera ser a
to afinidade, quando Weber procurava especificidade de sua “tese”. É a uma
apontar uma causalidade; e há os que o crítica dessa “tese”, devidamente de-
atacam pela análise do ensinamento purada dos “mal-entendidos”, que se
moral protestante explícito, mostrando dedica a terceira e mais extensa parte
sua distância da ética capitalista, sem do livro de Disselkamp.
atentar para que Weber estava interes- Um primeiro tipo de crítica à Ética
sado nos efeitos psicológicos desses en- Protestante incide sobre a lógica do ar-
sinamentos. A mesma preocupação em gumento, apontando certas contradi-
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ções. A principal delas estaria no duplo formas distintas. De um lado, compila


caráter assumido pela ética puritana, si- autores cujas análises da história do
multaneamente uma perversão do dog- protestantismo, ainda que divergentes,
ma da predestinação e um sinal de dis- apontam para a necessidade de incor-
tinção expresso no sucesso profissio- porar o “contexto social”. De outro, re-
nal. Mais detalhadas são as críticas his- corre a um outro texto do próprio We-
tóricas, elaboradas pelo recurso a histo- ber (As Seitas Protestantes e o Espírito
riadores do protestantismo e pelo exa- do Capitalismo), o qual, segundo ela,
me dos escritos de Calvino, de prega- permite explicar a disseminação do
dores puritanos e de livros populares. ethos burguês pelos anseios de reco-
Elas procuram mostrar que a idéia de nhecimento social dos indivíduos, aten-
predestinação não gerou os efeitos afir- didos pela sua adesão às rigorosas sei-
mados por Weber: o desespero em que tas puritanas.
caíam muitos fiéis convencidos de sua Vista em seu conjunto, a trajetória
danação significa que, para eles, a pre- percorrida por Disselkamp em sua críti-
destinação era fielmente aceita; nas pre- ca a Weber parece inacabada e, em cer-
gações puritanas, a exortação às “boas tos aspectos, equivocada. Depois de de-
obras” nelas aparecia como antídoto terminar qual seria sua “tese”, depu-
contra o relaxamento ético, enquanto a rando-a dos “mal-entendidos”, propõe
certeza da salvação viria através da fé. uma avaliação que refaça o argumento
Disselkamp considera que Weber tinha weberiano e, portanto, se inicie por
razão ao aproximar as virtudes purita- uma análise da história das doutrinas
nas da ética burguesa (ambas concor- protestantes. O resultado dessa análise
davam no estímulo ao trabalho lucrati- é negativo: o ethos burguês não se vin-
vo, na condenação da perda de tempo, cula necessariamente nem com os efei-
nas exigências de ordem e disciplina), tos da idéia de predestinação, nem à
mas refuta-o em se tratando de Lutero, doutrina luterana. Um empreendimen-
pois uma análise dos escritos do refor- to que produzisse uma resposta positi-
mador demonstra que nada há de mo- va sobre as relações entre protestantis-
derno nos significados atribuídos à ca- mo e capitalismo é substituído pela me-
tegoria Beruf. ra exigência de que o “contexto social”
Há, por fim, as críticas de viés teó- ou o “reconhecimento social” sejam le-
rico e metodológico, repetidamente vados em conta. O problema é que exis-
anunciadas no livro: a “tese” da Ética tem muitas formas de se fazer isso e es-
Protestante, em sua própria formulação, sa questão não é enfrentada por Dissel-
peca ao aceitar a possibilidade de ex- kamp, nem mesmo na forma de uma sis-
plicação de uma mudança nas atitudes tematização, também crítica, das contri-
econômicas pela sua remissão a uma buições dos autores que investem nessa
crença religiosa, independentemente linha. A apresentação de um segundo
das “circunstâncias sociais e econômi- texto de Weber, ao contrário de resolver
cas efetivas” em que isso ocorra. Ou se- questões, cria mais um problema: como
ja, Weber equivoca-se tanto ao distin- o mesmo autor pôde formular respostas
guir uma mentalidade de suas condi- tão distintas (no entender de Dissel-
ções concretas de existência, quanto ao kamp) a respeito de um único tema? Fi-
postular sua relação unívoca com a dou- nalmente, a distinção entre suas duas
trina protestante. As alternativas pro- críticas torna-se prejudicial às próprias
postas por Disselkamp assumem duas intenções da autora: se Weber se equi-
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vocou quanto a sua “tese”, não é possí- ver alhures ao ser morto ou pelos brasi-
vel que os que “erraram” sobre ele te- leiros ou pelos Waiãpi; e que viu, na
nham “acertado” quando se trata das imagem de Cristo preso à cruz, na pró-
relações entre protestantismo e capita- pria pele de Tupã, os resíduos do san-
lismo? gue que serviu de tinta para a escrita
Enfim, o livro de Disselkamp cons- primordial, inventada por Ianejar, recu-
titui um recurso valioso para a com- sada pelos Waiãpi e apropriada pelos
preensão crítica do texto de Weber e brasileiros.
para o acompanhamento dos debates Esse é o tema principal dessa cole-
que se seguiram, além de trazer aportes tânea comentada de narrativas Waiãpi
interessantes sobre a história inicial do acerca de sua relação com os brancos.
protestantismo. No entanto, nem explo- Através de surpreendentes variações
ra as várias perspectivas aplicáveis ao históricas dos mitos de fundação do
campo intelectual em que se desenvol- mundo, criação e dispersão da humani-
veram a formulação e recepção daque- dade; estratégias de invenção de um
le texto, nem responde totalmente às subgrupo Waiãpi extinto para a ele in-
questões que levanta a propósito da va- corporar um artesão solitário das ruas
lidade dos argumentos weberianos. de Macapá que se diz descendente de
um povo aruaque extinto; e inscrições
muito acuradas de hábitos culturais dos
GALLOIS, Dominique Tilkin. 1994. Mai- brasileiros, observados por mulheres
ri Revisitada. A Reintegração da Forta- Waiãpi submetidas, no final do século
leza de Macapá na Tradição Oral dos XIX, ao serviço doméstico junto a famí-
Waiãpi. São Paulo: NHII-USP/FAPESP. lias brasileiras, a coletânea apresenta
92 pp. processos de construção da auto-ima-
gem dos Waiãpi e seus esforços de in-
terpretação do contato. Esse povo tupi-
Tânia Stolze Lima guarani habita a região do alto curso
Profª de Antropologia, ICHF-UFF dos rios Jari e Oiapoque, com uma po-
pulação aproximada de mil pessoas,
Mairi é uma panela de barro gigantes- organizadas em pequenas aldeias, tan-
ca, de fundo pontiagudo e boca virada to no território brasileiro quanto na
para baixo, que os humanos, improvi- Guiana Francesa. O livro trata particu-
sadamente, ergueram para ali se pro- larmente dos grupos que se encontram
tegerem primeiro do incêndio e depois no território brasileiro. Suas terras são
do dilúvio provocados por Ianejar, o cercadas por garimpos, ameaçadas por
(re)criador Waiãpi desse mundo onde invasores, cortadas pela Rodovia Peri-
vivemos e agimos como ramos inconci- metral Norte, ocupadas por postos da
liáveis da humanidade. A Fortaleza de Funai e pela Missão Novas Tribos. Es-
São José de Macapá foi erguida pelos ses postos, atuando como focos de atra-
portugueses em 1688 e reconstruída em ção, impõem um padrão de ocupação
1765, à margem do Amazonas. Mairi é, territorial novo: a concentração de um
muito provavelmente, a Fortaleza de conjunto de grupos locais nas proximi-
Macapá. Prova: a narrativa da expe- dades dos mesmos, concentração que
riência de um finado que esteve preso atualmente tem sido contrabalançada
na Fortaleza e entendeu que ali ou Tu- por uma política de ocupação temporá-
pã ou Ianejar deixou sua pele para ir vi- ria das fronteiras a fim de controlar as
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invasões. Os Waiãpi experimentam ciedade waiãpi. Meus comentários vi-


atualmente o sentimento de que não há sarão esse segundo pólo, mas enfatizo
mais para onde fugir. Para não falar dos que nem o espírito do livro – e essa é
que estão implantados em suas terras, uma das razões de seu interesse – tem
os brancos as cercam, tendo se apode- compromisso com essa divisão entre
rado também da casa de argila, e ali pesquisa e assessoria, entre ética e tex-
fundado a cidade de Macapá. Sua his- to antropológico, nem poderei restituir
tória nos últimos três séculos é uma his- os passos e as nuanças dessa reflexão.
tória de migrações, melhor dizendo, de Há muitas maneiras de se tomar a
fugas. No século XVIII, com a invasão história como tema de investigação an-
européia do baixo Xingu, abandonaram tropológica, mas dificilmente alguma
seus vizinhos e atravessaram o Amazo- deixaria de se orientar, declaradamente
nas. Conhecendo ali a vida em aldea- ou não, ao sabor ou contra a corrente,
mentos missionários, finalmente em- pela distinção entre história quente e
preenderam novas fugas e ocuparam as fria, proposta por Lévi-Strauss. Alguns
terras onde vivem hoje, na sensação de a consideram um discurso ideológico
que não há mais para onde ir. que ultraja os nativos de todo o mundo,
Gallois os conhece há quase vinte enquanto outros admitem que ela tem,
anos. Após se dedicar ao estudo dos quando menos, o mérito de assinalar a
materiais históricos relativos à sua saí- presença de outras formas de viver e
da do Xingu – fato do qual os Waiãpi se pensar o tempo. É quase inacreditável
esqueceram completamente, situando a que se tenha tentado ultrapassá-la sus-
criação da humanidade no Amazonas, tentando que as sociedades indígenas
precisamente em Mairi-Fortaleza de têm uma história quente. Nem todo
São José – e ao estudo de seu sistema mundo é Sahlins, e, quanto ao mais, se-
sociocosmológico, a autora vem execu- ria interessante saber se os índios se
tando desde 1991 uma “pesquisa- identificam conosco.
ação”, da qual Mairi Revisitada é um Gallois não é todo mundo e não so-
dos resultados. Esse é um livro que, fre dificuldade em só aceitar considerar
conforme sublinha a autora, “não se o valor de verdade do mito com a con-
destina aos Waiãpi”. Todavia, suas dição de concluir que a história não
questões foram indiretamente coloca- passa de estória. Como proceder, pois,
das pelos Waiãpi; grande parte dos seus quando nos é dado o acesso à palavra
materiais não foram simplesmente co- viva de um povo como os Waiãpi, pala-
lhidos pela antropóloga, mas produzi- vras que produzem efeitos de sentido
dos pelos Waiãpi, a isso estimulados pe- que fulminam nossa consciência e fe-
la implantação dos programas de edu- rem nossa vaidade ao se mostrarem pi-
cação e controle territorial assessorados torescas ao nosso ouvido, obrigam-nos
pela autora, e a reflexão aí realizada a refletir sobre a possível petrificação
deve trazer-lhes outras contribuições. do saber indígena que estaríamos efe-
No pólo ação da pesquisa, o livro tuando em nossos estudos etnográficos
desenvolve uma questão ética relativa e apresentam um hibridismo escanda-
à melhor maneira de inscrever o saber loso para nossa distinção analítica entre
waiãpi para os Waiãpi. No pólo pesqui- mito e história.
sa da ação, oferece-nos uma reflexão À primeira vista, uma maneira se-
sobre a possibilidade e a impossibilida- gura e metodologicamente justificada
de de aplicar a noção de história à so- de, senão ultrapassar, ao menos abalar
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a dicotomia analítica seria a determina- Kuresisi, o Waiãpi que viu que Mairi es-
ção etnográfica das categorias em ter- tá de pé e é a Fortaleza, mostra a imbri-
mos das quais a tradição oral é ordena- cação na mesma (talvez seja melhor di-
da. Com efeito, a autora mostra como os zer a ligação umbilical operada por
Waiãpi concebem uma dupla bipartição uma) narrativa do mito e da história. Ou
do tempo: de um lado, duas idades seja, a distinção etnoconceitual conhe-
constituídas como tempos qualitativa- ce suas próprias limitações e, para a
mente diferentes, das quais a mais anti- análise, representaria uma dificuldade
ga é marcada pela presença de Ianejar mais do que uma solução.
entre os humanos e pela posse da lin- A autora tenta resolver o impasse
guagem por aqueles que hoje estão adotando, em primeiro lugar, uma pers-
destituídos dela; de outro, dois tempos pectiva mais inclusiva, capaz de abran-
diferenciados pela ausência ou presen- ger mito e história, e que se traduz na
ça de uma memória genealógica para categoria analítica “etnohistoriografia”.
com os antepassados; ou seja, um pas- As duas categorias temporais e os dois
sado remoto e um recente. Mostra ain- modos da enunciação a elas associados
da como tal bipartição se articula com a surgem, assim, como os dois mecanis-
ausência ou presença de uma explicita- mos básicos de uma historiografia waiã-
ção bastante precisa, pelo narrador, da pi. Sua complementaridade e sua deter-
fonte de informação. minação pelo contexto são as idéias
Contudo esses critérios waiãpi, condutoras de toda a apresentação de
aliás, bastante difundidos na Amazônia falas registradas em dois períodos dis-
indígena, não dão conta do caráter tintos, o da pesquisa e aquele da pes-
atemporal do mito, e, assim, de sua ca- quisa-ação.
pacidade de invadir a temporalidade Com base na complementaridade e
histórica. Como se pretendessem fugir na imbricação das categorias e dos mo-
à sua própria regra, os Waiãpi também dos de enunciação, a autora conclui que
produzem relatos que se reportam ao tais mecanismos não fundamentariam
mesmo tempo às duas temporalidades. gêneros narrativos distintos. Nesse ca-
É preciso destacar que Mairi veio a se so, o que fazer? Encontrando uma saída
tornar a Fortaleza de São José por meio inesperada para o impasse, a hipótese é
da história que se conta sobre um teste- que eles fundamentam argumentos,
munho ocular. Eixo do mito e da histó- chamados históricos e míticos. Disso re-
ria, a Fortaleza responde assim por uma sulta algo interessantíssimo, que, aliás,
continuidade fundamental entre Iane- mereceria uma atenção maior da auto-
jar e a cidade de Macapá, entre o tem- ra. Nada impede que o argumento his-
po da criação e separação dos humanos tórico seja aplicado por um narrador em
e uma atualidade marcada pela visita- um relato de fatos transcorridos com
ção freqüente à cidade ocupada pelos antepassados desconhecidos, no tempo
brasileiros. Talvez a abordagem compa- de Ianejar, inclusive. Além disso, os
rativa possa um dia lançar alguma luz mesmos fatos podem ser narrados com
nova sobre essa misteriosa necessidade ênfase no argumento mítico ou no his-
que tradições como a dos Waiãpi apa- tórico.
rentam ter de relatos que forneçam um Os dois argumentos se diferenciam
testemunho ocular moderno para fatos em termos de uma lógica de grandes e
estabelecidos na origem dos tempos. pequenos intervalos. Vem a ser chama-
De toda forma, o testemunho de tamo do mítico aquele que estabelece delimi-
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tações e contraposições entre catego- sub-reptícia, aquilo mesmo que estamos


rias genéricas, enquanto o histórico es- finalmente dispostos a pôr em questão?
tabelece relações de continuidade a fim Petrificamos Mairi e a pele de Tupã,
de reconstituir a trama dos aconteci- petrificamos até mesmo as palavras no
mentos e das relações. Eles são comple- papel, ao passo que, para o próprio Ia-
mentares e, o que não é menos impor- nejar, o nosso destino era legível/inscri-
tante, construídos ao longo da perfor- tível antes da origem da escrita. Se te-
mance narrativa, a qual é inteiramente mos como princípio que a história, na
subordinada a um padrão de transmis- acepção de devir social e humano, é ca-
são oral específico, rotulado de diálogo paz de explicar desde as mitologias que
– uma noção que, já pelos breves e pre- se concebem como atemporais até as
ciosos materiais etnográficos apresen- histórias escritas pelos historiadores,
tados, exige urgentemente uma crítica para os Waiãpi os mitos geram falas
etnográfica na mesma linha daquela adequadas para se fazer a história, nos
aqui realizada com o mito e a história. nossos e em todos os sentidos. Ainda
Poder-se-ia questionar alguns pon- que nos apareça como uma história con-
tos da argumentação da autora: a exis- tra a história, ela nos indaga sobre a ra-
tência de híbridos não é contraditória zão pela qual buscamos alguma razão
com a existência de tipos; a reformula- fora das palavras.
ção da dicotomia mito e história em ter- Barthes mostrava como os mitos
mos de argumentos é evocadora da dis- produzidos pela mídia eram uma fala
tinção levistraussiana entre mito e rito; e despolitizada. Gallois, nesse livro cuja
mais isso ou aquilo. Entretanto, dever- leitura em contraponto com Mitologias
se-ia também ressaltar que sua análise seria bastante proveitosa, dá várias in-
sugere que soluções recentemente en- dicações sobre como a política waiãpi é
contradas para explicar a imbricação do uma fala mitologizada. Depois que Lé-
mito e da história, a saber, a projeção vi-Strauss, afirmando que a distinção
dessa distinção para o plano da cons- entre história cumulativa e estacionária
ciência indígena e das formas de mani- é essencialmente relativa, transformou
pulação social, é mais do que insatisfa- essa ilusão de ótica em ponto de vista
tória. Não será transfigurando nossas de uma antropologia distanciada, é ho-
categorias em uma consciência biparti- ra de transformar o problema novamen-
da dos índios que nos aproximaremos te, unindo a ótica à política, a fim de in-
de uma compreensão mais justa de suas vestigar as razões pelas quais as falas
maneiras de viver, pensar e inscrever o mitologizadas que os índios endereçam
tempo. Note-se aí uma estranha inver- aos brancos, inicialmente desconcer-
são da direção usual do método antro- tantes, tendem a se tornar em seguida,
pológico: o procedimento que parte de e por meio dos brancos, sem efeito, in-
diferenças superficiais em busca de um clusive para os índios. Ora, a impotên-
princípio geral (não importando o modo cia dessa espécie de fala, com toda evi-
como se o concebe) é convertido em um dência, não pode ser atribuída aos mi-
procedimento que parte das semelhan- tos. Disso não há prova maior do que a
ças aparentes e busca as diferenças pro- autonomia cultural que os Waiãpi têm
fundas. Seria preciso indagar-se sobre conservado e construído, ao longo de
as verdadeiras conseqüências dessa in- séculos de fuga, por meio de falas da
versão metodológica, pois, será que não mesma espécie a eles endereçadas pe-
acabamos por restituir, de maneira los mais velhos de todas as épocas.
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GOODY, Jack. 1995. The Expansive tes para o desenvolvimento da antropo-


Moment: The Rise of Social Anthropo- logia social britânica.
logy in Britain and Africa, 1918-1970. O segundo objetivo seria derivado
Cambridge: Cambridge University do primeiro. Goody pretenderia, a par-
Press. 235 pp. tir da exposição das redes de relações e
dos movimentos que perpassam a an-
tropologia britânica neste momento,
Ana Claudia Cruz da Silva negar a tese da submissão da disciplina
Mestranda, PPGAS-MN-UFRJ às autoridades coloniais, defendendo-a
da acusação recorrente de que seria “fi-
Por ocasião da morte de Meyer Fortes, lha do colonialismo” (:3), e atribuída
Jack Goody foi convidado a escrever principalmente à antropologia america-
seu obituário. Para isto, pesquisou ar- na dos anos 60 e 70, embora Goody não
quivos em Gana (onde Fortes realizou explicite os “acusadores”.
boa parte de suas pesquisas), na Lon- O período abrangido pela pesquisa
don School of Economics e no Interna- é composto por três gerações de antro-
tional African Institute. Tendo em mãos pólogos, cujos atores principais em ca-
esse material e ouvindo recorrentes co- da uma delas são Malinowski e Radclif-
mentários de antropólogos americanos fe-Brown, na primeira; Fortes, Evans-
e russos sobre a “natureza conservado- Pritchard e Gluckman, na segunda; e o
ra” (:5) da antropologia britânica com próprio Goody, na terceira. Essas três
relação ao império colonial, Goody pen- gerações viveram o período de maior
sou em escrever The Expansive Mo- expansão da antropologia social britâ-
ment. O livro não pretende relatar a his- nica, que Goody explica como o mo-
tória da antropologia social britânica, mento em que se fez a crítica da antro-
embora possa ser uma boa fonte sobre pologia praticada anteriormente (tenta-
suas linhas de pesquisa entre os anos 30 tivas de reconstrução do passado, com-
e 60. parações globais, trabalhos de campo
A obra teria dois objetivos centrais: mal feitos etc.), e em que houve um
o primeiro, mapear as relações entre grande incremento dos financiamentos
instituições e profissionais da antropo- para pesquisa associado à presença de
logia, passando por questões que en- pesquisadores altamente motivados.
volveriam ensino, pesquisa, financia- Goody assume que ter sido um país
mento, institucionalização e expansão colonizador foi um importante elemen-
da disciplina. Apesar de suas lembran- to para o desenvolvimento da antropo-
ças pessoais e de seus contatos com logia na Grã-Bretanha, mas o mesmo
contemporâneos e membros da geração teria acontecido em outros países, não
anterior, Goody faz questão de apoiar sendo esse, portanto, um “privilégio”
sua pesquisa somente no material en- britânico. Havia realmente antropólo-
contrado nos arquivos, o que inclui, gos do governo ligados aos serviços co-
além dos documentos institucionais e loniais, mas tratava-se de administra-
papers, várias correspondências pes- dores que faziam o curso de etnologia a
soais que, como ele mesmo ressalta, fim de poder lidar melhor com os gru-
não apresentam nada que não pudesse pos que governavam. Essa era uma prá-
ser de domínio público, sendo que os tica muito comum desde o início da an-
aspectos mais pessoais somente são uti- tropologia, quando lhe foi destinada a
lizados na medida em que são relevan- incumbência de formar os funcionários
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coloniais. Goody lembra ainda que o cionárias. Essas informações poderiam


mesmo acontecia na França e na Ale- significar que o pensamento marxista,
manha, afirmando que o próprio Mauss na verdade, não tinha uma influência
deu cursos para administradores das tão forte quanto se supunha, estando
colônias francesas. Nesses dois países, mais presente entre os antropólogos em
o acúmulo de dados sobre grupos afri- início de carreira do que naqueles que
canos coletados por esses “etnógrafos” realmente dominavam a antropologia.
estaria mais avançado do que na Grã- Segundo Goody, foi Malinowski o
Bretanha, porque nessa época o inte- grande articulador da profissionaliza-
resse do governo britânico estaria con- ção da antropologia na Grã-Bretanha,
centrado na Índia. Em relação aos an- que teria ocorrido depois da Primeira
tropólogos profissionais, Goody ressalta Guerra Mundial. Sua habilidade para
que boa parte deles tinha uma linha de levantar recursos foi responsável pela
pensamento de esquerda, influenciada expansão do campo de pesquisa nessa
por Marx e Freud, e estavam envolvi- época. E, em relação a isso, um dos pon-
dos com os movimentos pela indepen- tos importantes na argumentação de
dência dos países que estudavam. Al- Goody é que o maior financiador das
guns teriam, inclusive, optado pela an- pesquisas, a Fundação Rockefeller, era
tropologia em conseqüência de sua par- americano. A ajuda de órgãos estran-
ticipação nesses movimentos. geiros somada aos demais aspectos já
Além disso, Goody chama a atenção apontados implicaria uma grande des-
para o fato de que uma parte considerá- confiança por parte dos administrado-
vel dos antropólogos apoiados pelos res das colônias em relação aos pesqui-
programas de financiamento não era de sadores, negando ainda mais a possibi-
origem britânica, o que também trazia lidade de uma relação de cooperação
problemas em uma sociedade como a entre eles.
inglesa. Esses dois elementos – a forma- Goody alega que, financeiramente,
ção de esquerda e a nacionalidade não a antropologia não era dependente do
britânica dos antropólogos beneficiados governo colonial e, por isso, não estaria
com recursos para pesquisa – são outro subordinada a ele. Inicialmente, os re-
argumento importante de Goody contra cursos provinham de um órgão filantró-
a idéia da colaboração entre a antropo- pico da Fundação Rockefeller, o The
logia e o governo. Laura Spelman Rockefeller Memorial,
Aqui vale registrar que o autor pro- que mais tarde passou a ser a Division
põe uma problematização do que re- of Social Sciences. A criação do Colo-
presentava, nesse contexto, ser “de es- nial Social Science Research Council na
querda” ou “de direita”. Goody susten- Grã-Bretanha e, algum tempo depois,
ta que Fortes e Evans-Pritchard, por do International African Institute fazem
exemplo, foram mudando suas idéias parte de uma política da Fundação Roc-
ao longo de sua trajetória, sendo que o kefeller que estimulava a criação de vá-
primeiro tinha uma posição mais “radi- rios conselhos de pesquisa no mundo,
cal” do que o segundo que, principal- para os quais repassava fundos. Ainda
mente devido à sua origem social, per- que não ocupasse nenhum cargo, Mali-
manecia mais próximo da classe gover- nowski influía de maneira significativa
nante. É sabido também que Malinows- nessas instituições: na primeira seleção
ki e Radcliffe-Brown nunca demonstra- dos pesquisadores que seriam benefi-
ram tendências propriamente revolu- ciados, apenas um não era seu aluno;
188 RESENHAS

todos os financiados eram obrigados a ção ao dizer que os aspectos utilitários


assistir seus seminários e recebiam trei- da antropologia britânica são resultado
namento de trabalho de campo; além “dos desejos de seu patrão americano
disso, Goody relata que Malinowski di- dominante, a Fundação Rockefeller”
rigia a distribuição dos recursos (exer- (:145, ênfases minhas). As referências
cia “patronagem” (:26)) e estes eram aos desejos do patrão americano signi-
sempre negados, por exemplo, para ficam mais que uma pequena submis-
Evans-Pritchard, que fazia oposição a são sem interferência no trabalho.
ele, o que o teria levado a estabelecer O mesmo ocorre com as informa-
uma forte ligação com Radcliffe-Brown ções relativas à participação efetiva de
(:16). Este, por sua vez, foi diretor de antropólogos pertencentes ao Interna-
outro conselho de pesquisa, também tional African Institute junto aos gover-
criado pela Fundação Rockefeller, o nos coloniais e à ligação de Evans-Prit-
Australian National Research Council. chard com o governo colonial do Sudão.
Outro argumento de Goody a favor Esse tipo de envolvimento poderia con-
da autonomia da antropologia social se- tradizer, ou ao menos problematizar, a
ria o de que os interesses da Fundação tese central de Goody. De fato, não é
Rockefeller não coincidiam com os inte- possível determinar com precisão que
resses da antropologia e ambos não os antropólogos não colaboravam com
coincidiam com os do governo britâni- o governo porque eram de esquerda ou
co. Os pesquisadores não estavam inte- porque dele não recebiam verbas, nem
ressados em estudar as relações de con- que colaboravam porque deveriam
tato cultural – objetivo da Fundação –, obedecer aos “patrões” financiadores
mas em fazer um estudo profundo das para continuar recebendo os fundos.
sociedades nativas às quais estavam se Penso que todos esses fatores fazem
dedicando, até mesmo porque não que- parte das determinações que guiavam
riam conflitos com as autoridades lo- as ações sociais e os destinos da antro-
cais, o que certamente ocorreria caso pologia britânica. O problema é o fato
estudassem os impactos causados nas de Goody fornecer todas essas informa-
populações pela presença do coloniza- ções sem relacioná-las entre si.
dor. No entanto, creio que tal autono- Enfim, The Expansive Moment é um
mia tinha limites e que, se os pesquisa- livro instigante na medida em que ex-
dores não perseguiam o tema recomen- põe, para falar como Bourdieu, as “lu-
dado pela Fundação, ao menos apre- tas de classificação” da história social
sentavam resultados que lhe satisfa- da antropologia, que geralmente não se
ziam. Penso que a aproximação entre a percebe como um campo social a mais,
Fundação e Malinowski não se deu tendendo a pensar-se como imune aos
apenas pela identificação da primeira mecanismos que agem nos demais
com os métodos do segundo, como su- campos sociais e que ela própria se atri-
gere Goody, já que toda relação é uma bui como tarefa descobrir e analisar.
via de mão dupla. Assim, é possível es-
pecular que a própria ênfase malinows-
kiana na questão do trabalho de campo
tenha se dado também em função dos
interesses da Fundação enquanto fi-
nanciadora dos projetos. No capítulo fi-
nal, Goody chega a apontar nessa dire-
RESENHAS 189

GRAHAM, Laura. 1995. Performing de ao crescente corpo de estudos dispo-


Dreams. Discourses of Immortality níveis sobre a história xavante, deli-
among the Xavante of Central Brazil. neando ao mesmo tempo o pano de
Austin: University of Texas Press. 290 fundo do contexto imediato do sonho de
pp. Warodi. Introduz-nos então nessa socie-
dade através da exploração de sua pai-
sagem sonora (soundscape). Começa
Marcela Stockler Coelho de Souza pelos silêncios, com uma rica descrição
Doutoranda, PPGAS-MN-UFRJ dos padrões de interação verbal dos
afins, traçando em seguida um mapa
Em 1984, retornando à aldeia de Pi- dos diferentes gêneros vocais segundo
mentel Barbosa para dar continuidade seus contextos, ritmos diários e sazonais
à pesquisa iniciada em 1981, Laura e ciclo de vida, com ênfase no tema da
Graham presencia uma intrigante per- eficácia das formas expressivas no en-
formance, envolvendo toda a comuni- gendramento de um “sense of conti-
dade, de três cantos-dança ensinados nuity or and persistence through time,
em sonho pelos ancestrais míticos ao from day to day, from season to season,
chefe Warodi. Essa cerimônia será o ob- and across generations” (:92).
jeto do livro: através dela, a autora vai Os capítulos seguintes focalizam
enfatizar o lugar das diferentes práticas mais estreitamente os gêneros mobiliza-
expressivas que a integram na consti- dos na performance em questão: cantos-
tuição e perpetuação da identidade xa- dança, discurso político, relato mítico.
vante – o foco num evento específico Os cantos (capítulo 4) ensinados a Wa-
permite-lhe examinar os processos pe- rodi pelos imortais pertencem a uma
los quais “meanings unfold in perfor- classe de cantos-dança coletivos, da-ño-
mance” (:5) no plano micro em que a re- re, que são recebidos em encontros oní-
corrência da forma garantiria, além das ricos com espíritos por homens inicia-
alterações de conteúdo, o sentimento dos, especialmente adolescentes soltei-
subjetivo de continuidade cultural e ros, e incorporados por sua classe de
agência histórica. idade – um gênero no qual tudo colabo-
Após uma introdução em que são raria para promover a solidariedade dos
apresentadas premissas teóricas, méto- participantes, representando visual e
dos e colaboradores nativos, os capítu- acusticamente a fusão de suas identida-
los 2 e 3 desenham os contextos históri- des individuais. O relato do sonho (ca-
co e etnográfico. Entre os Xavante que pítulo 5) é feito num estilo que remete à
transpuseram o Araguaia em meados “fala dos velhos”, gênero que modela a
do século XIX, os de Pimentel Barbosa oratória política e cujas características
constituem os descendentes daqueles formais, assim como as convenções que
que permaneceram na área da grande organizam seu exercício no fórum públi-
aldeia de Tsorépre, na região do rio das co das reuniões masculinas na praça
Mortes, os primeiros visitados por May- (warã), produzem um efeito de desper-
bury-Lewis. Sob a liderança do célebre sonalização que, “decoupling individual
Apöw˜e (pai de Warodi) esse foi o pri- authorship from speech” (:145), faz dele
meiro grupo xavante a estabelecer con- “a strikingly literal institutionalization
tato pacífico com a sociedade nacional of Bakhtin’s polyvocality” (:141) – numa
na década de 40. Graham adiciona a representação pragmática do discurso
perspectiva particular dessa comunida- como produção intersubjetiva que con-
190 RESENHAS

trabalançaria assim as forças centrífu- pendentemente: “By embedding his


gas do faccionalismo xavante. Por fim, o personal quest for a distinguished im-
relato mítico (capítulo 6) é também in- mortality within the very practices that
corporado ao discurso de Warodi, numa ensure the future of them all, Warodi
forma fragmentada e elíptica que con- celebrated community values together
trasta com a das narrativas “teatrais” es- with his personal interests. […] The
cutadas em contexto familiar, mas que very same discursive practices that
opera uma identificação progressiva en- guarantee the Xavante’s cultural survi-
tre o ponto de vista do narrador e o dos val are those that will give Warodi, as a
protagonistas míticos, numa fusão que creator, the gift of a distinguished im-
antecipa a metamorfose dos demais par- mortality” (:224).
ticipantes da cerimônia, dessa vez atra- O modo de exposição nos remete
vés também de elementos visuais e ci- continuamente da performance em foco
nestésicos (decoração corporal, dança), a outras performances, como se Gra-
objeto do último capítulo. ham procurasse em certa medida simu-
A descrição amplia e reelabora da- lar, em sua escrita, a experiência que
dos presentes numa análise anterior- constituiria, em sua concepção, o “qua-
mente publicada que dispunha o la- dro interpretativo” utilizado para atri-
mento ritual, os cantos da-ñore e a ora- buir significados a eventos expressivos,
tória num continuum entre os pólos da a saber, a exposição anterior a outros
musicalidade e da semanticidade cor- eventos do mesmo tipo (:7). O resultado
respondente à organização cosmologi- é um estilo narrativo que reconstrói vi-
camente informada do espaço social xa- vamente a atmosfera sonora da vida na
vante entre os pólos da “natureza” e da aldeia, numa etnografia do universo
“cultura”. Agora, contudo, o fio que acústico xavante que demonstra ampla-
une as várias formas discursivas é a du- mente o refinamento da descrição etno-
pla dinâmica expressão individual/co- gráfica possível ao se tomar os aspectos
letiva, invenção/continuidade cultural, formais e contextuais do discurso, e não
implicada no modo particular e original apenas seu conteúdo, como objeto.
como estas se realizam e combinam A discussão é um pouco frustrante
nessa performance inovadora, a partir para quem esperou encontrar, estimu-
do projeto de Warodi e seu contexto ime- lado pelo título, algo sobre as teorias
diato (cisão da aldeia, competição entre xavante do sonho e da pessoa. Por con-
comunidades, presença da pesquisado- ta dessa falta, a origem onírica dos can-
ra). Da transformação de uma experiên- tos acaba esvaziada de um sentido mais
cia onírica subjetiva numa experiência específico, além de exemplificar o jogo
coletiva através da transmissão do can- entre “inner experience” e “outward
to, passando pela despersonalização do expression” que caracterizaria toda ati-
discurso narrativo e culminando na vidade expressiva. Na análise do “dia-
identificação do narrador e, pela perfor- logic process” entre “the individual’s
mance, de toda a comunidade com os conscious experience of a dream and
“imortais”, é o mesmo processo que es- the social context that influences the
tá sendo descrito. Este processo é o que way a dream is outwardly expressed
faz das instâncias analisadas “discour- [or] publicly re-presented” (:115), não
ses of immortality”: da imortalidade parece haver lugar para uma descrição
pessoal de Warodi e da imortalidade da de como essa experiência, assim como
cultura xavante, construídas interde- seu próprio sujeito são concebidos cul-
RESENHAS 191

turalmente, insistindo-se sobre o cará- tuam noutros registros. Graham apóia


ter subjetivo e “pessoal” do sonho, ora sua descrição na etnografia xavante
em termos analíticos, ora como repre- existente, mas em suas interpretações
sentação indígena, de modo um tanto não dialoga com as questões postas ali
ambíguo. Paralelamente, a apresenta- ou na etnologia jê e sul-americana em
ção de práticas discursivas específicas geral, como se a economia simbólica
como representações pragmáticas de constitutiva das identidades pessoais e
uma concepção “bakhtiniana” da lin- coletivas, que tanto a produção recente
guagem e do discurso (:166-167), contra de nossa subdisciplina tem tentado elu-
Habermas e a filosofia da linguagem cidar, fosse irrelevante para a com-
(:140-142), não acabaria reduzindo o sig- preensão da performance em foco. Isso
nificado dessas práticas aos termos de reflete provavelmente a atitude crítica
um debate concebido sobre outras pre- dos adeptos do “discourse-centred ap-
missas? Por fim, o tratamento das cate- proach to culture” diante da inspiração
gorias de espíritos que Graham glosa estruturalista de muitos desses estudos.
como “imortais” é igualmente breve Temo, no entanto, que o princípio de
(discrepâncias notáveis entre sua des- que “the ‘system’ is a precipitate of past
crição e a de Maybury-Lewis sequer expressive performances”, de que a
são registradas), sobretudo diante da langue é um “precipitate of instances of
centralidade do tema da oposição vi- parole” (:7), não seja suficiente, qual-
vos/mortos na etnologia comparativa quer que seja seu valor último, para
do continente. Contestando a caracteri- abolir a complexidade dessa ordem de
zação das sociedades jê como “this- fenômenos que a antropologia tem ten-
world oriented”, em contraste com gru- tado apreender sob as suas noções de
pos amazônicos cuja vida ritual centra- cultura – de modo que nossas melhores
se no xamanismo, ela sugere que “the chances continuam postas nas tentati-
problem for ethnographers has been vas de combinação e ajuste das diferen-
that this other world is not a world that tes perspectivas e instrumentos de ob-
is seen: the world of the immortal crea- servação disponíveis.
tors is a world that is heard” (:100) – um
diagnóstico que além de não fazer justi-
ça a Seeger, fonte citada do contraste, GUENIFFEY, Patrice. 1993. Le Nombre
descarta de modo sumário a intuição de et la Raison: La Révolution Française
uma diferença importante, que deve ser et les Élections (prefácio de François
certamente melhor determinada e devi- Furet). Paris: Éd. de l’École des Hautes
damente modulada, mas que seria pre- Études en Sciences Sociales. 560 pp.
cipitado abandonar.
Não se trata aqui de ceder ao recur-
so fácil de cobrar a um autor aquilo que Gabriela Scotto
ele não tentou fazer, mas de inquirir so- Doutoranda, PPGAS-MN-UFRJ
bre os limites de qualquer “abordagem
da cultura” que confunda a seleção de Técnica de seleção, princípio de insti-
um nível privilegiado de análise com a tuição e instância de legitimidade, a
descoberta de um nível privilegiado de eleição ocupou um lugar central no no-
significação, e se furte assim à necessi- vo sistema político instaurado na Fran-
dade de confrontar seus resultados com ça após a Revolução de 1789. Ao subor-
aqueles obtidos por estudos que se si- dinar toda delegação de autoridade ao
192 RESENHAS

livre sufrágio, ao definir a virtude, os ta- (distrito eleitoral), elegia os eleitores;


lentos e a capacidade como os únicos estes, por sua vez, nucleados em depar-
critérios de admissão, os constituintes tamentos, designavam os representan-
instituíram o princípio democrático de tes. A partir de fontes e dados diversos
seleção. As honras e as responsabilida- (atas de sessão eleitoral, testemunhos
des deixam de ser o fruto do nascimen- de época, decretos e regulamentos elei-
to, do favor ou da intriga, para ser a re- torais, debates consagrados à organiza-
sultante do mérito pessoal consagrado ção das novas instituições), Gueniffey
pela opinião. Em 1790, com exceção do analisa as modalidades eleitorais para
poder executivo confiado ao rei, não compreender como os princípios e pro-
existe função pública para a qual seus cedimentos foram aplicados concreta-
depositários não tenham sido eleitos. mente.
O trabalho do historiador Patrice O livro, abundante em dados histó-
Gueniffey aborda um momento especí- ricos muito pormenorizados – o que tor-
fico e conturbado da história política na a leitura, por vezes, um tanto densa
francesa: o período que se estende da –, ao invés de seguir a ordem cronológi-
Revolução de 1789 até 1795 quando, ca das sucessivas eleições e das rela-
após a morte de Robespierre, instaura- ções destas com os acontecimentos, or-
se a breve experiência da República ganiza-se em torno de algumas ques-
Constitucional. Período de mutação, tões centrais: o desenrolar de uma elei-
ruptura e dissolução da ordem existen- ção, desde a definição das condições
te, mas durante o qual, ao contrário do exigidas para votar até a proclamação
que ocorre em um golpe de Estado, ve- dos resultados (capítulos 1-2). Quais
rificou-se um modo de instituição da eram os fins da “democracia das elei-
autoridade e de regulação dos conflitos ções”? Que representações envolviam o
políticos que requeriam a construção de voto (capítulo 3)? Quantos eleitores
um consenso, ao menos relativo, acerca exerciam seus direitos políticos e como
do caráter das novas instituições. explicar a abstenção nos casos em que
Gueniffey dedica-se à análise de esta era significativa (capítulos 4-6)?
um objeto tradicionalmente negligen- Quais as modalidades dos sistemas
ciado pela historiografia: o momento do eleitorais e como era feita a escolha na
voto – o instante em que as pessoas vi- ausência de candidatos declarados (ca-
ram cidadãos, independentemente das pítulos 7-8)? Quais foram os resultados
circunstâncias que cercam a convoca- e como avaliar sua importância política
ção dos eleitores, e dos resultados do (capítulos 9-10)? O último capítulo, de-
escrutínio. Assim, a proposta do autor é dicado ao período da República Consti-
analisar o desenvolvimento das elei- tucional (1795-1797), encerra o livro na
ções nas assembléias primárias, no que forma de conclusão.
elas têm de particular, e não apenas co- A tese principal, que entrecruza a
mo um fator suplementar a serviço da obra, é a de que, apesar do sufrágio
compreensão das peripécias da história constituir um elemento central do ima-
política durante a Revolução. O regime ginário político revolucionário, as elei-
eleitoral adotado pela Constituinte re- ções não tiveram, na definição dos acon-
pousava num modo de eleição indireta tecimentos revolucionários, o papel de-
em dois níveis: o conjunto dos “cida- cisivo que comumente se lhes atribui. A
dãos ativos”, congregados em assem- eleição foi apenas uma técnica de sele-
bléias primárias reunidas num canton ção e legitimação e não uma forma de
RESENHAS 193

cada cidadão expressar sua opinião, nalismo puro fosse alheio à Revolução,
nem uma escolha entre opções e candi- a participação igualitária e a elabora-
datos para, com o voto, contribuir para ção democrática da lei foram princípios
a definição das grandes orientações po- da época difíceis de serem conciliados
líticas. Isso porque o sistema eleitoral com a necessidade, imperativa tam-
imaginado pela Assembléia Constituin- bém, da formação de uma “vontade ge-
te erigiu-se sobre duas concepções di- ral” que fosse o produto das vontades
ferentes de representação. Por um lado, individuais “esclarecidas” mediante
a que repousava não apenas sobre a uma “deliberação racional”. Essa ten-
idéia do voto como um direito mas, tam- são entre duas exigências contraditó-
bém, sobre o projeto revolucionário de rias – a do “número” e a da “razão”–
instituir, através do sufrágio dos cida- esteve no coração dos debates da época
dãos, o poder do povo soberano, enfim, sobre o sufrágio. Os constituintes tenta-
de substituir a usurpação de uma mo- riam, através da elaboração de algumas
narquia absoluta. Aqui, a “representa- medidas (eleição indireta em dois níveis
tividade” das assembléias devia ser a e restrições impostas à elegibilidade
mais próxima possível da diversidade dos representantes, principalmente),
característica de todo o conjunto nacio- neutralizar a influência do número, da
nal. Por outro lado, uma noção de re- qual, por outra parte, não podiam sub-
presentação que repousava sobre o trair-se.
postulado da existência de um interesse Contudo, é importante salientar
comum ao povo. Nessa segunda con- que, diferenciando-se da tradição histo-
cepção não importa tanto a “exatidão” riográfica que fez dos homens de 1789
da representação, mas sim encontrar os os burgueses “censitários”, Gueniffey
homens capazes de zelar pelo interesse restitui às origens mesmas da Revolu-
coletivo. Em síntese, o sufrágio repre- ção sua dinâmica democrática. Apesar
sentava para cada novo cidadão o sím- da Constituinte ter excluído do direito
bolo, por excelência, da soberania recu- ao voto um certo número de indivíduos
perada pelo povo. Seu exercício estava (mulheres, empregados domésticos,
destinado a instaurar uma autoridade não-domiciliados, não-contribuintes e
pública que garantisse a transparência mesmo os que pagam uma contribuição
indispensável à manutenção da sobera- direta inferior ao valor local de três jor-
nia popular. Mas a fórmula para garan- nadas de trabalho), Gueniffey os deno-
tir essa transparência devia passar pelo mina de “cidadãos passivos” para mar-
filtro da representação, no seu segundo car que não estão excluídos estatutaria-
sentido. Isso porque o espírito público – mente da cidadania do conjunto, nem
a virtude – não está inscrito nos costu- privados da autonomia necessária à ex-
mes, nem surge espontaneamente; ao pressão da vontade. Mesmo não votan-
contrário, a divisão do trabalho cria do, são cidadãos, quer dizer, depositá-
muitos “ignorantes” que precisam ter rios virtuais de um direito que deverá
um governo por procuração: ser repre- ser alargado em função do aumento de
sentados. renda, educação, esclarecimento etc. O
Essa concepção acerca da formação verdadeiro caráter censitário da Revo-
de decisões, que rejeitava a idéia de lução não consiste na distinção que
identificar a vontade geral na aritméti- opõe os cidadãos ativos dos passivos,
ca dos votos, estava marcada pelo ra- mas a que separa eleitores de elegí-
cionalismo da época. Ainda que o racio- veis.
194 RESENHAS

Ao longo do livro, Gueniffey desen- cia Invisível?”). Noções caras à antro-


volve essa tese de forma um tanto de- pologia política tais como poder local,
sordenada. Ao mesmo tempo que reto- facções, clientelas etc., são usadas fe-
ma, recorrentemente, essa linha de ar- cundamente por Gueniffey para abor-
gumentação, o autor abre um leque de dar o cenário político local da época. E
questões diversas e interessantes que mais ainda, para analisar a maneira
nem sempre são amarradas umas às ou- complexa pela qual essas formas “pré-
tras. Esse traço, que reduz a possibili- políticas” não só continuaram coexistin-
dade de sintetizar o livro em poucos pa- do com os intentos para constituir um
rágrafos sem injustiçar a riqueza da “espaço político democrático nacional”,
análise das diversas questões, é ao mes- mas, e paradoxalmente, como as carac-
mo tempo uma das características mais terísticas do sistema eleitoral reforça-
estimulantes da sua leitura. ram a dimensão local da competição
Duas dessas questões merecem es- política. As novas formas, aplicadas aos
pecial menção: o problema da absten- “velhos conteúdos”, geraram uma nova
ção eleitoral tratado nos capítulos 4, 5 e linguagem e estabeleceram outras re-
6; e a relação entre política e eleições gras de jogo para as lutas entre paren-
no âmbito local (capítulo 9). Em relação telas e clientelas locais, as quais passa-
ao problema da abstenção eleitoral, ram a ser arbitradas pelo sufrágio dos
Gueniffey desmancha e rebate minu- eleitores.
ciosamente os argumentos que situam Le Nombre et la Raison é muito
as causas da pouca participação “cida- mais do que uma história das eleições
dã” na ignorância ou na falta de civis- durante o período revolucionário fran-
mo do eleitorado. Assinala, antes, a res- cês; o livro propõe uma abordagem me-
ponsabilidade do próprio espírito do todológica no melhor sentido antropo-
sistema eleitoral que dissuade muitos lógico, um olhar de dentro que permite
cidadãos de fazer sua parte: basicamen- a restituição de uma experiência nos
te a estrutura de assembléias (reminis- seus múltiplos aspectos, culturais, inte-
cência do período pré-revolucionário), lectuais, sociológicos e políticos. Assim,
a separação entre eleição e deliberação, a compreensão do papel ocupado pelo
e a ausência de uma “oferta” política. A sufrágio no imaginário político revolu-
acepção moderna de eleição que, além cionário e o estudo das práticas eleito-
de ser um procedimento para a seleção rais outorgam às modalidades da ação
de dirigentes, permite ao eleitor – atra- política uma especificidade freqüente-
vés da opção entre diversos candidatos mente ignorada nos estudos tradicio-
– “expressar sua opinião” é alheia à Re- nais, ao mesmo tempo que evitam o ris-
volução. Nesse sentido, não é a análise co de expor a compreensão das premis-
dos resultados eleitorais da época o sas e os fundamentos da vida política
meio adequado para reconstituir as cor- da época aos métodos de análise e às
rentes de opinião, mas sim a relação en- categorias de um contexto diferente: o
tre participação e abstenção. Abster-se da sociedade contemporânea.
de votar representou, também, uma for-
ma de manifestar a vontade individual.
A análise das relações e interações
políticas no plano local no contexto do
período pós-revolucionário é o tema
central do capítulo 9 (“Uma Aristocra-
RESENHAS 195

LIMA, Antonio Carlos de Souza. 1995. plementadas pelo Serviço a partir de


Um Grande Cerco de Paz. Poder Tute- um paradigma que ressalta a sua di-
lar, Indianidade e Formação do Estado mensão de aparelho estatal e matriz mi-
no Brasil. Petrópolis: Vozes. 335 pp. litar, o que leva a uma revisão do que
foi elaborado em termos de “indigenis-
mo” e “política indigenista”, é uma das
Marcos Otavio Bezerra grandes contribuições do livro.
Prof. de Sociologia, UFF O estudo das ações estatais que in-
cidem sobre as populações indígenas
A partir de documentação interna do implica também uma ruptura com a his-
Serviço de Proteção aos Índios e Loca- tória oficial, dominante e reproduzida
lização do Trabalhadores Nacionais acriticamente em distintos domínios so-
(SPILTN), Antonio Carlos de S. Lima de- ciais, acerca da origem e atuação do
senvolve, em Um Grande Cerco de Paz, Serviço. Centrada na idéia da iniciativa
uma análise fina da organização e ação pessoal de Rondon e no caráter huma-
do primeiro poder estatal dirigido às nitário do empreendimento, a versão
populações concebidas como indígenas oficial, que teve em Darcy Ribeiro seu
distribuídas pelo território historica- principal propagador, é tomada como
mente denominado e imaginado como constitutiva do próprio Serviço, ou seja,
brasileiro. Criado em 1910, o órgão é instrumento de sua legitimação. Assim
transformado em Serviço de Proteção considerada, ela dá lugar a uma inter-
aos Índios em 1918 e extinto em 1967, rogação acerca da origem, estrutura e
sendo suas responsabilidades e acervo funcionamento do aparelho, sua com-
transferidos para a Fundação Nacional posição e mudanças, suas orientações e
do Índio (Funai). Com uma história seu lugar na totalidade da administra-
marcada por continuidades e desconti- ção pública. Como parte desta, é desta-
nuidades em termos de organização cado o fato de o Serviço contribuir para
funcional, atribuições, peso institucio- a criação de significados e a construção
nal e composição social, o órgão fez de uma comunidade política represen-
parte de distintos Ministérios: da Agri- tada como nacional.
cultura, Indústria e Comércio (MAIC, Essa forma de poder exercida a par-
1910/30); do Trabalho, Indústria e Co- tir do SPI(LTN) é intitulada pelo autor
mércio (MTIC, 1930/34); da Guerra “poder tutelar”. Trata-se de um poder
(1934/39); e da Agricultura (1939/67). estatizado, exercido sobre populações e
As “diferentes formas de relaciona- territórios, que busca assegurar o mo-
mento entre populações indígenas e nopólio dos procedimentos de definição
aparelhos de poder oriundos da invasão e controle sobre as populações indíge-
européia no continente” (:61) têm pa- nas. Para tanto, são meios importantes
decido da ausência de investigações e ao mesmo tempo seus produtos, a for-
construídas tanto do ponto de vista da mulação de um código jurídico acerca
historiografia quanto das ciências so- das populações indígenas e a implanta-
ciais. No que concerne às relações en- ção de uma malha administrativa insti-
tre essas populações e o Estado brasi- tuidora de um governo dos índios. O
leiro, os estudos realizados têm sido exercício do “poder tutelar” sobre os ín-
classificados comumente sob as rubri- dios possui características específicas
cas “indigenismo” e “política indige- que não devem ser confundidas com
nista”. A análise das idéias e ações im- outras formas de poder dirigidas a essas
196 RESENHAS

populações. O “poder tutelar” é conce- Serviço acerca dos índios estão na ori-
bido como uma forma reelaborada – gem de suas ações. Concebidos pelo ór-
com continuidades lógicas e históricas – gão como seres em transição, suas
da “guerra de conquista”. Enquanto ações estavam voltadas para proporcio-
modelo analítico, define o autor, a “con- nar a incorporação dos índios à catego-
quista” é um empreendimento com dis- ria de trabalhadores agrícolas.
tintas dimensões: fixação dos conquis- As “estratégias” e “táticas” mobili-
tadores nas terras conquistadas, redefi- zadas pelo Serviço para alcançar seus
nição das unidades sociais conquista- objetivos são discutidas na terceira par-
das, promoção de fissões e alianças no te do livro. Articuladas com as classifi-
âmbito das populações conquistadas, cações mencionadas acima, as ações es-
objetivos econômicos e empresa cogni- tavam orientadas sobretudo pela idéia
tiva. de fases. Com as expedições, buscava-
A criação do SPI(LTN) no quadro da se reunir informações sobre o virtual
administração pública é tratada na se- território de ação e elaborar um mapa
gunda parte do livro. Entre outros as- social dos conflitos existentes e das
pectos, esse movimento analítico per- alianças passíveis de serem estabeleci-
mite perceber o quanto certas propos- das localmente. Elas se prestaram, so-
tas, ações e contratempos enfrentados bretudo, à instalação administrativa do
pelo órgão decorriam de sua posição re- SPI(LTN). Dentre as fases, a pacifica-
lacional no conjunto da administração ção, pelos pressupostos assumidos acer-
pública. “Trata-se de retirar da dimen- ca dos índios e pelo capital simbólico
são de ’empresa heróica’ o que sempre dela decorrente, era apresentada como
foi parte da burocracia” (:112). Para ação exemplar do Serviço. À pacifica-
compreender como o Serviço é consti- ção, seguia a atração, termo que reme-
tuído, Lima analisa a rede de relações tia à tática de deslocamento das popu-
que liga Rondon ao MAIC. Nesse senti- lações para as proximidades dos postos
do, são destacados os vínculos diretos e de atração e incentivo ao abandono das
indiretos de Rondon com pessoas posi- práticas indígenas, o que vinha acom-
cionadas no MAIC e no Museu Nacio- panhado da criação de dependência em
nal, com membros do apostolado positi- relação aos postos. As medidas voltadas
vista, com militares e com simpatizan- para a destruição das formas nativas de
tes da campanha presidencial de Her- organização socioeconômica e política
mes da Fonseca. A aproximação dessas estão na base da ação civilizatória, que
redes ocorre em torno de algumas objetivava fomentar a passagem dos ín-
idéias como a de proteção. Entendida dios a trabalhadores agrícolas. Por fim,
como defesa física e moral dos índios, a a definição jurídica do status de índio é
proteção devia ser exercida tanto junto um “dispositivo” importante da ação
às populações indígenas quanto aos de- estatal sobre as populações indígenas.
mais grupos humanos dispersos pelo Ao recuperar as discussões em torno do
território nacional. Para tanto, o Serviço Código Civil (1917) e do Decreto 5484/
reivindicava o “monopólio e uso da vio- 28, o autor conclui que a legislação
lência legítima em prol das populações atende especialmente a interesses ad-
nativas” (:128). ministrativos do SPI(LTN). Trata-se de
Ponto de partida do exercício do po- instrumento para enfrentar as popula-
der tutelar e ao mesmo tempo seu pro- ções não-índias e as redes sociais pre-
duto, as classificações elaboradas pelo sentes no aparelho de Estado com as
RESENHAS 197

quais não era possível estabelecer ali- tor no “Caderno Iconográfico”. Embora
anças. não haja referências a cada uma das fo-
Destaque-se que as indicações apre- tos, o fato de que quanto mais se avan-
sentadas acerca de como as ações do ça na leitura do livro melhor se com-
Serviço introduziram mudanças nas po- preende o que está em jogo nas ima-
pulações contatadas têm uma conse- gens, parece-me indicativo da força da
qüência importante, ou seja, o fato de as análise produzida por Lima.
análises realizadas sobre as populações
indígenas, ou a partir delas, necessita-
rem incorporar uma reflexão sobre os MICELI, Sergio. 1996. Imagens Nego-
efeitos que têm sobre essas populações ciadas. Retratos da Elite Brasileira
(sobre o seu modo de se autoconcebe- (1920-40). São Paulo: Companhia das
rem, conceberem ao outro e se organi- Letras. 174 pp.
zarem socialmente) as ações dos diver-
sos poderes, em particular, o estatal.
A última parte do livro tem como fo- Gustavo Sorá
co de análise a estrutura organizacional Doutorando, PPGAS-MN-UFRJ
do órgão e as tarefas desempenhadas
durante sua inserção nos distintos Mi- Em seu último livro, Miceli estuda o
nistérios. A articulação do Serviço nos processo de autonomização relativa dos
planos nacional (subdiretorias e se- campos artístico e literário em face do
ções), regional (inspetorias) e local (pos- mundo da política e dos consumos cul-
tos, povoações indígenas, centros agrí- turais de diferentes frações constituti-
colas e delegacias) é discutida, assim vas do campo de poder entre as déca-
como suas atribuições. Levar em conta das de 20 e 40. Para a análise de proble-
na análise do Serviço sua inserção dife- mas teóricos clássicos, o autor cria uma
renciada nos Ministérios, permite ao forma concisa de abordagem empírica:
autor perceber suas mudanças de sta- um ponto de ataque que experimenta
tus e orientações. indefinidamente até o final do livro.
Produto de um conjunto de investi- Ao propor uma interpretação socio-
gações desenvolvidas ao longo de onze lógica da produção retratística de Cân-
anos, o livro de Lima traz à luz parte da dido Portinari, enfoca uma classe de ob-
história esquecida da relação entre po- jetos que permitem uma leitura privile-
der estatal e populações indígenas. His- giada da relação entre formas legítimas
tória que apesar de não ser objeto de de produção plástica e consumos cultu-
reflexões (acadêmicas ou administrati- rais distintivos, destinados a prover be-
vas), e talvez graças, sobretudo, a isso, nefícios de afirmação social às elites. A
permanece presente nas opções, pro- forma final de cada um dos retratos de-
postas e ações implementadas junto às ve tanto à competência estética do pin-
populações indígenas. Longe de com- tor, quanto à busca de solidificação de
prometer o livro, lamenta-se, contudo, a uma imagem de classe entre represen-
falta de uma revisão mais cuidadosa do tantes de diversas frações dominantes:
texto. Em alguns períodos, palavras e os retratos podem ser compreendidos
frases soltas trazem um certo prejuízo à como imagens negociadas.
compreensão. Enfim, se o leitor me per- Os retratos são interpretados como
mite, sugeriria que a leitura fosse ini- esforços do pintor, uma espécie de so-
ciada pelas fotos reproduzidas pelo au- ciologia pré-reflexiva voltada para mo-
198 RESENHAS

delar em linguagem plástica os sinais enche de tempo e espaço as obras, ali


da posição ocupada e as expectativas onde as imagens representadas falam
de ascensão social do retratado: “O que dos dilemas da trajetória e das expecta-
está em jogo é o sentido atribuído e per- tivas de posicionamento.
petrado pelo artista ao expressar uma Portinari consagrou-se como um au-
definição compacta aliando uma fisio- têntico modelo de artista modernista à
nomia, aquela modelada na tela, a uma medida que avançava o regime de Var-
significação simbólica, que tanto pode gas e as empresas de descobrimento
ser uma pretensão política, uma qualifi- cultural das figuras de brasilidade, e
cação institucional, uma afirmação de sua carreira é exemplar para visualizar,
prestígio, uma filiação doutrinária ou por contraste, o sistema de produção ar-
confessional, uma habilitação erótica ou tística circundante e suas possibilidades
mundana, ou quaisquer misturas des- de expansão. Filho de imigrantes mo-
ses investimentos sociais” (:64). Os re- destos do interior paulista e casado com
tratos expõem um jogo de legitimida- uma uruguaia, o pintor só contou com
des em tensão: do artista em relação ao sua competência artística para ocupar
campo artístico; do retratado em rela- um lugar no mundo (a capital). Desse
ção ao campo literário e/ou político; um modo, representa ao mesmo tempo o ti-
necessitando do outro como embasa- po de personagem decisivo para a auto-
mento de projetos afins. nomização de um campo de produção
Essa passagem resume a idéia de cultural e de uma classe de agentes dis-
que o livro trata da construção de uma poníveis para as empresas de relativa
forma específica de poder rentável para “cooptação” no campo de poder.
a época, não redutível ou determinável A introdução mostra a matéria-pri-
por outras; com seu código pictórico, ma, arma o leitor de uma intenção in-
simbólico, sutil: seus próprios termos de terpretativa, mas já o encaminha a um
negociação. Com obstinação Miceli per- molde gramatical que se repete quase
segue uma interpretação densa dessa sem interrupção até a última página.
linguagem, recupera a especificidade Miceli escolhe o retrato de uma perso-
sociológica dessa prática cultural e po- nagem. Assinala as circunstâncias que
lítica. aproximaram o pintor do retratado. In-
O livro pode ser lido como uma in- terpreta densamente o retrato como um
terpretação sociológica negociada. Mi- arbitrário pictórico dentro de um arbi-
celi constrói um quadro como filigrana trário cultural-nacional. Dessa mecâni-
que amplia as possibilidades de com- ca extrai indícios sobre os problemas
preensão dos retratos de Portinari. Rom- sociológicos do livro, aludindo sempre a
pendo com os moldes clássicos da mo- um plano geral implícito e a um outro
nografia, especialmente com a obriga- específico detalhado.
ção de explicitar cada idéia ou fonte de Para cada quadro aplica-se uma
inspiração, a introdução mostra o méto- mesma lente sistemática que enfoca,
do em ação, partindo dos indícios que é em primeiro lugar, a proximidade/dis-
possível extrair dos retratos de Maria, a tância entre Portinari e o retratado. Em
mulher de Portinari. Analisando virtua- diversos casos, percebe-se uma ênfase
lidades pictóricas à luz da ascendente demasiado forte na interpretação esté-
posição do pintor no incipiente campo tica (p. ex.: retratos de Jorge de Lima),
artístico brasileiro e do casal Portinari para a qual o autor está dotado de uma
na estrutura do espaço social, Miceli percepção e linguagem de especialista.
RESENHAS 199

Às vezes insiste-se no sentido do retrato No entanto, longe das armadilhas


na trajetória política e/ou intelectual do do estruturalismo, a análise enfoca a
retratado (p. ex.: retratos de Jorge Ama- singularidade de Portinari e as suas fór-
do); em outros, trabalha-se o tempo to- mulas de sucesso. A individualidade do
do em cima dos elementos de negocia- artista não é redutível a um modelo ge-
ção (p. ex.: Patrícia Galvão). ral e seu êxito não se deve à aplicação
O livro avança em mosaico, pelo es- racional de fórmulas-resultados. Miceli
tudo de séries que o autor reúne para repisa as ambigüidades, os dilemas, as
pôr de manifesto gêneros de negocia- dificuldades, as pulsões, as energias so-
ção ajustados a épocas particulares: re- ciais condensadas nas telas. Dá conta
lativas às competências do pintor e sua do estado difuso em que eram vividos
posição no sistema de relações que im- os atos para fazer-se em uma profissão
primia valor às suas obras; relativas às e das tentativas das elites na busca in-
clientelas preferenciais (escritores; es- cessante da distinção social, para a qual
critores-funcionários; pintores; presi- um retrato de Portinari criava uma dis-
dentes da República; damas da elite tância insuperável.
tradicional; diplomatas; intelectuais fe- O trabalho prossegue diferenciando
ministas etc.) e às espécies de capital estilos mediante técnica de justaposi-
por elas mobilizados. Por outro lado, ção de problemas suscitados pelas telas
presta-se atenção às variantes dentro a partir dos contrastes, como retomando
de cada série, de onde se extraem rela- indícios dos sinais pré-sociológicos que,
ções estruturais inéditas para com- em clave plástica, Portinari deixou à
preender um modo de produção cultu- mercê do sociólogo. Embebido pelas
ral dominante até 1945, período de for- virtudes do método, um trabalho simi-
te subordinação ao mundo da política e lar deve realizar o leitor à medida que
de um estado difuso de interligação das prossegue a leitura. Perto do final Mi-
variadas práticas legítimas, entre as celi abre uma das poucas passagens de
quais transitavam fluidamente os pro- síntese explicativa. Em “Gênese de
dutores culturais: poesia, pintura, ro- uma Fórmula Retratística” exterioriza o
mance, crítica, jornalismo etc. foco de construção sociológica, temati-
A forma de análise pode ser sinteti- zando os fundamentos do sucesso cul-
zada como estrutural. Consiste na ex- tural e comercial de Portinari: a confi-
tração de indícios ao gerar contrastes guração de propriedades únicas por ele
sistemáticos que vão do particular ao reunidas e seu sentido de orientação no
geral. Primeiro, entre diferentes versões sistema de relações artísticas e sociais
de retratos de uma mesma pessoa, fei- de sua época. Já nas últimas páginas o
tos por Portinari e por outros artistas, autor volta-se para o percurso interpre-
com fotografias, caricaturas e outros su- tativo, para contabilizar as operações
portes possíveis de transmissão de ima- empregadas e avaliar o rendimento ana-
gens. Depois, contrastando as variantes lítico de sua proposta.
dentro de um mesmo conjunto ou sub- Este livro se singulariza, entre ou-
gênero. As oposições dominantes são tros aspectos, ao demonstrar como é
pautadas em termos de “parecença”/fi- possível estudar processos de diferen-
guração pictórica; distância/compro- ciação social e cultural, transmitindo co-
misso com o retratado; presença/ausên- mo eram vividos a consagração e o fra-
cia; figura/fundo; elite/paisagem popu- casso, as inclusões e as exclusões. Mos-
laresca. tra a autonomização de práticas e esfe-
200 RESENHAS

ras de atividade, recuperando o estado preocupação, multiplicaram-se os estu-


difuso em que se travam as relações, se dos sobre mulheres realizados por mu-
produzem os atos, os limites, seus pode- lheres. Isso caracterizou um novo cam-
res e as possibilidades de ultrapassá- po de estudos, a chamada antropologia
los. do gênero, ou women’s studies.
Por isso, sem mencionar uma só vez Vale de Almeida, no entanto, a em-
as palavras método e teoria, Imagens prega com outro objetivo: chamar a
Negociadas é uma forte contribuição atenção para a escassez de estudos so-
metodológica e teórica. O livro destaca bre gênero que abordem questões es-
a importância de pensar, antes de es- pecificamente pertinentes à identidade
crever, objetos e pontos de ataque es- masculina. Sua pesquisa, realizada na
tratégicos. Os retratos são espaços de aldeia de Pardais, no Alentejo (Portu-
cruzamento onde se condensam ener- gal), tem como primeiro objetivo ofere-
gias que unem o maior espectro possí- cer uma contribuição para o preenchi-
vel de sentidos culturais e relações so- mento dessa lacuna. Para realizá-la, no
ciais. Quando esse ponto é “rentável”, melhor estilo “pesquisa participante” –
o livro se torna pura interpretação, flui. expressão utilizada pelo autor –, mu-
O leitor se sente negociando a intenção dou-se para uma casa da aldeia e pas-
de conhecimento com o autor. sou a freqüentar os cafés, principal re-
duto para o exercício da sociabilidade
masculina adulta. Uma vez relativa-
VALE DE ALMEIDA, Miguel. 1995. Se- mente integrado a certa rede de socia-
nhores de Si. Uma Interpretação An- bilidade local, constituída basicamente
tropológica da Masculinidade. Lisboa: por cabouqueiros (a categoria profissio-
Fim de Século. 264 pp. nal mais baixa na hierarquia que orga-
niza o trabalho na indústria do mármo-
re, maior fonte de emprego e base da
Eliane Tânia Martins de Freitas economia regional), passou a investigar
Profª de Antropologia Social, UFRN os valores, costumes e discursos me-
diante os quais pudesse ir aos poucos
Miguel Vale de Almeida acredita que o desvendando os códigos que regem a
feminismo foi um marco. Um marco pa- construção e a reprodução do que de-
ra a história recente e, em particular, nomina identidade masculina hegemô-
para a história do pensamento antropo- nica.
lógico. Ao sacudir os clichês acerca da A pesquisa tem uma motivação bá-
família, do casamento, da sexualidade sica: até então, os raros antropólogos
e das formas de relacionamento entre que haviam se dedicado a pensar a
homens e mulheres – dentre tantos ou- masculinidade no campo dos estudos
tros –, teria forçado a antropologia a re- sobre gênero haviam se voltado, sobre-
ver alguns de seus conceitos mais tradi- tudo, para as identidades desviantes,
cionais e a construir instrumentos teóri- principalmente para a homossexualida-
cos mais adequados a essa nova reali- de. Vale de Almeida traz em seu traba-
dade social. lho uma outra proposta: que seja o mo-
Uma das críticas mais constantes delo hegemônico de masculinidade o
das antropólogas feministas incidia so- objeto de estranhamento, como costu-
bre o que diagnosticavam como o male mam dizer os antropólogos; que seja ele
bias da disciplina. Como efeito dessa o exótico a ser desvendado pelo estudo.
RESENHAS 201

Para realizar essa empresa, alia a uma nos círculos de sociabilidade masculi-
perspectiva metodológica hermenêuti- na, na esfera pública. Este seria um mo-
ca o conceito de habitus de Pierre Bour- mento dramático, de ruptura, inexisten-
dieu, bem como as reflexões desse au- te na trajetória feminina, caracterizada
tor – e de Anthony Giddens – sobre a pela continuidade. É possível observar,
relação entre estrutura e prática. no entanto, certa incongruência nesse
Múltiplas seriam as formas possí- ponto: se os antropólogos sabem que a
veis de ser masculino, donde o autor fa- feminilidade, em Pardais ou outro lu-
lar em hegemonia de um certo modelo. gar, não é essência, mas acontecimento
Porque há outros. A narrativa de um ex- cultural, os pardalenses tomam a iden-
põe algo de sua motivação pessoal para tidade masculina como algo tão “dado”
realizá-lo: “Um dia, ouvi um rapaz, zan- quanto a identidade feminina. Quem
gado com um outro, gritar: ‘não és ho- diz que ser homem segundo o modelo
mem, não és gaiato [rapaz], não és na- hegemônico é estar cotidianamente
da!’ Gostaria de imaginar que este tra- “por um fio” é o antropólogo.
balho o ajudasse a perceber que as coi- Enquanto modelo ideal, a masculi-
sas não têm de ser necessariamente as- nidade hegemônica exerceria controle
sim” (:239). O autor propõe, portanto, sobre o processo de constituição das
um ousado exercício de desnaturaliza- identidades masculinas, sendo ela pró-
ção de seu objeto, aquilo que não pode pria, como todo modelo, realizável ape-
deixar de fazer toda boa antropologia. nas parcialmente. À questão sobre os
Uma idéia central no livro é que a modos de reprodução desse modelo,
relação entre os gêneros seria assimé- Vale de Almeida responde com o con-
trica e contextualmente hierarquizada, ceito de habitus, de Bourdieu, propon-
isto é, se a diferença de gênero pode ser do que a teoria da prática seria uma al-
entendida como um princípio classifica- ternativa promissora para a solução de
tório apto a dar sentido a qualquer ser alguns problemas nesse campo. Dentre
(pessoas, objetos, atividades), é também as implicações dessa escolha teórica lis-
passível de ser politicamente apropria- tadas pelo autor, menciono duas: a com-
da como instrumento ideológico para a preensão do caráter dinâmico e recipro-
legitimação da dominação de um gêne- camente instituidor da relação entre es-
ro sobre o outro. Esse uso da diferença trutura e prática e a multiplicidade dos
de gênero a aproximaria das diferenças modos possíveis de estruturação das re-
de classe e de idade, por exemplo. lações entre os gêneros, segundo os va-
Eis uma passagem onde o autor lores e interesses em jogo.
compara os modos de construção das O livro, segundo o próprio autor, es-
identidades masculina e feminina no tá organizado em capítulos relativa-
Alentejo: “Em geral, pode-se dizer que mente independentes, tratando de dis-
a masculinidade tem de estar sempre a tintos aspectos da identidade masculina
ser construída e confirmada, ao passo hegemônica e das relações entre os gê-
que a feminilidade é tida como uma es- neros em Pardais – alguns com um en-
sência permanente, ‘naturalmente’ rea- foque mais etnográfico, outros de incli-
firmada nas gravidezes e partos”. O au- nação mais teórica. Três momentos me-
tor refere-se, então, ao momento do recem atenção especial: a análise do
processo de socialização em que o gaia- universo social do trabalho nas pedrei-
to deve deixar a segurança da casa ma- ras, no capítulo 2; a leitura do ritual da
terna para se lançar definitivamente tourada como um texto sobre a, e uma
202 RESENHAS

performance da, masculinidade hege- VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo (org.).


mônica, no capítulo 6; e, finalmente, a 1995. Antropologia do Parentesco –
análise da poesia popular, as décimas, Estudos Ameríndios. Rio de Janeiro:
como modo legítimo de expressão de Editora UFRJ. 382 pp.
emoções femininas pelos homens, seus
principais produtores e divulgadores,
no capítulo 7. Denise Fajardo
Vale de Almeida encerra seu traba- Mestranda de Antropologia Social, USP
lho chamando a atenção para as dificul-
dades das pesquisas em torno de obje- Em busca de uma estrutura que dê con-
tos como os processos de incorporação ta da variabilidade e complexidade dos
(embodiment) – por definição não-cons- sistemas das terras baixas sul-america-
cientes para os atores sociais – e que, nas, Antropologia do Parentesco é, cer-
como a sua, envolvam o emprego de tamente, uma obra de caráter inédito
uma metodologia baseada, ao menos na história da etnologia amazônica, tan-
parcialmente, em histórias de vida, tan- to por sua abrangência, quanto por sua
tas vezes reinventadas pelos narradores competência.
ao longo do período em que é realizado A abrangência etnográfica alcança-
o trabalho de campo. Tais dificuldades da é fruto de um trabalho em equipe:
decorreriam, em alguma medida, do um grupo de pesquisa, constituído por
que ele denomina “império do verbo”, antropólogos formados no Programa de
que prevaleceria na antropologia tanto Pós-Graduação em Antropologia Social
nos métodos de coleta de dados quanto do Museu Nacional, que se integraram
em sua exposição. Indo ao encontro de ao projeto “Etnografia e Modelos Ana-
tendências atuais da disciplina, sugere líticos: Tipos de Estrutura Social na
que a antropologia visual seria um ca- Amazônia Meridional”, coordenado por
minho possível para a superação desse Eduardo Viveiros de Castro, a partir de
problema. Por fim, deixa para seus co- 1984. Pelo escopo das sociedades estu-
legas leitores uma última sugestão: Par- dadas, percebe-se que o projeto deu
dais bem mereceria um estudo sobre os prioridade a grupos indígenas até então
processos de construção da feminilida- pouco explorados etnograficamente:
de, hegemônica ou não, estudo que po- Waimiri-Atroari, Parakanã, Mura-Pira-
deria ser realizado através de um fe- hã, Arara e Wari. A exceção são os gru-
cundo diálogo com o seu. pos xinguanos e Kayapó, também in-
cluídos na coletânea.
Se levarmos em conta que até 1985,
época em que o projeto estava apenas
no início, o tema do parentesco parecia
estar longe de ocupar uma posição de
destaque na etnologia indígena brasi-
leira – principalmente se comparado ao
peso dos estudos sobre contato interét-
nico –, é impossível deixar de constatar
que, atualmente, o campo dos estudos
do parentesco vem sendo qualitativa e
quantitativamente revigorado e que, na
base dessa renovação encontramos Vi-
RESENHAS 203

veiros de Castro e seus alunos. A dedi- O que é dito na introdução, sob a


cação desses pesquisadores a um pro- forma de um “sobrevôo” no parentesco
grama de estudos voltado para o paren- ameríndio, somado aos comentários ini-
tesco certamente fortaleceu não só suas ciais do artigo que abre o livro, “Siste-
pesquisas individuais, como o tema pa- mas Dravidianos na Amazônia”, consti-
rentesco ameríndio. tui-se em uma boa porta de entrada pa-
Antropologia do Parentesco é uma ra o que segue. Nesse primeiro artigo,
coletânea cujos artigos aparentemente Márcio Silva mostra, de forma breve
encerram-se em si mesmos, sem dialo- mas instrutiva, o modo como, ao longo
gar uns com os outros. Isso porque cada da história da antropologia, certas ter-
um deles, com exceção do texto de minologias de parentesco foram sendo
Marcela Coelho de Souza, analisa as- abordadas sob perspectivas distintas,
pectos de uma única sociedade indíge- desde Morgan, passando por Radcliffe-
na. Entretanto, se o leitor tiver fôlego Brown, Lévi-Strauss, Dumont, Yalman
para ler artigo por artigo, será recom- e Trauttman, até chegar aos autores que
pensado com uma outra dimensão que possibilitaram um diálogo entre os con-
emerge do conjunto do livro, na forma textos sul-americano e indiano, a saber,
de um diálogo interno. Peter Rivière e Joanna Overing.
Cabe ressaltar que os artigos tradu- E é justamente nesse diálogo que
zem uma discussão de especialistas a repousa o projeto dos autores da coletâ-
respeito do parentesco amazônico, den- nea, a começar pelo próprio artigo de
tro de um modelo teórico inovador, ain- Márcio Silva, em que a distinção básica
da em construção, inspirado nos estu- entre sistemas de parentesco, como o
dos sobre os sistemas dravidianos da dos Waimiri-Atroari, e sistemas india-
Índia, pelas semelhanças entre ambos nos, como os estudados por Dumont,
os contextos, no que diz respeito às re- Trauttman e outros, é atribuída ao cál-
gras de casamento e à estrutura social, culo de classificação social. Adiante,
com filiação indiferenciada e inexistên- passa-se pelo artigo de Marcela Coelho
cia de unidades permanentes de troca de Souza, “Da Complexidade do Ele-
exogâmica. Por isso mesmo, exigem por mentar: Para uma Reconsideração do
parte do leitor um mínimo de familiari- Parentesco Xinguano”, em que o mate-
dade com o vocabulário utilizado. Nes- rial bibliográfico disponível sobre o pa-
se sentido, uma sugestão útil é recorrer, rentesco xinguano é analisado à luz das
prévia ou posteriormente, aos ensaios hipóteses teóricas do grupo. Trata-se de
do próprio organizador, citados na bi- um artigo de fôlego que passa em revis-
bliografia. ta as sucessivas interpretações propos-
Um esboço geral da paisagem socio- tas para a organização social dos gru-
lógica da Amazônia e do Brasil Central pos xinguanos, discute suas implica-
encontra-se na introdução de Viveiros ções e propõe um novo tratamento para
de Castro, e o modo como esse esboço é os sistemas de aliança desses grupos.
traçado – por um lado, atentando para a Até chegar ao artigo de Vanessa Lea,
variabilidade e complexidade dos siste- “Casa-se do Outro Lado: Um Modelo Si-
mas de parentesco ameríndio e, por ou- mulado de Aliança Mebengokre (Jê)”,
tro, propondo uma estrutura que dê con- cuja inclusão no livro se justifica pela
ta de tamanha diversidade – parece re- afinidade de seu trabalho com o que es-
fletir o duplo movimento constitutivo da tá no horizonte do projeto em questão,
empreita desse grupo de pesquisadores. ou seja, o estabelecimento de relações
204 RESENHAS

entre os sistemas sociais amazônicos e os termos de parentesco que ocupam o


centro-brasileiros. cenário das relações interpessoais. De
Tomando como parâmetro o para- tal forma que, nesse caso, a mera ob-
digma tamil utilizado por Dumont como servação do modo como as pessoas se
modelo de terminologia dravidiana, a designam mutuamente não basta para
maioria dos artigos da coletânea con- que se conheça os termos de parentes-
duz suas análises no sentido de eviden- co. Marco Antônio Gonçalves explica
ciar em que aspectos o dravidianato en- que foi necessário dar um passo além
contrado nas sociedades indígenas ao da observação e induzir seus infor-
amazônicas se diferencia do dravidia- mantes a reproduzirem suas classifica-
nato indiano. ções. De posse dessa terminologia, pas-
Na seqüência do artigo de Márcio sa a analisar o sistema de parentesco
Silva, Carlos Fausto, em “De Primos e pirahã e o faz tomando como ponto de
Sobrinhas: Terminologia e Aliança en- partida o modo como se dá a transmis-
tre os Parakanã (Tupi) do Pará”, desen- são da aliança de uma geração a outra.
volve sua argumentação com o objetivo Na seqüência, analisa tanto os termos
de mostrar em que aspectos o caso pa- quanto os comportamentos e institui-
rakanã se distancia, complexificando, ções que definem as relações entre
do modelo dravidiano simétrico, na me- pessoas casáveis, buscando explorar,
dida em que, se opera com as distinções nesse terreno, o papel da afinidade no
terminológicas básicas, previstas pelo sistema pirahã.
modelo clássico, o faz de maneira sin- Partindo de uma análise do sistema
gular, ou seja, através de uma articula- terminológico, bem como das regras de
ção entre duas estruturas terminológi- casamento e residência entre os Arara
co-matrimoniais: a dravidiana (horizon- (Caribe), Márnio Teixeira Pinto, em
tal) e a avuncular (oblíqua). Além de “Entre Esposas e Filhos: Poliginia e Pa-
explicar como essa articulação opera na drões de Aliança”, discute o estatuto do
lógica parakanã, Carlos Fausto lança casamento polígamo nessa sociedade.
mão do recurso estatístico, analisa as Para tanto, recupera o modo pelo qual
práticas matrimoniais e demonstra ha- diferentes autores, como Murdock e Lé-
ver um alto grau de congruência entre vi-Strauss, definem a instituição da po-
essas práticas e as prescrições e prefe- ligamia em suas teorias de parentesco e
rências dos Parakanã em torno de um casamento, procurando mostrar que,
regime de aliança avúnculo patrilate- apesar de possuírem perspectivas teóri-
ral. cas distintas, tanto um quanto outro
Guiado pelas particularidades da consideram a poligamia enquanto um
etnografia pirahã, Marco Antônio Gon- composto de várias uniões monogâmi-
çalves, em “A Produção da Afinidade cas, como se todas as relações de alian-
no Sistema de Parentesco Pirahã”, as- ça envolvidas nesse composto fossem
sim como os demais autores, também homogêneas entre si. Em seu artigo,
está interessado em analisar um siste- Márnio Teixeira Pinto se contrapõe a
ma de parentesco em particular. Entre- essa visão e – a partir de seus dados so-
tanto, diferentemente dos demais casos bre terminologias, padrões de aliança
analisados na coletânea e, com certeza, e residência entre os Arara – procura
ao contrário do que ocorre na maioria mostrar que a poliginia, nessa socieda-
das sociedades indígenas da Amazô- de indígena, resulta de “uma composi-
nia, entre os Pirahã são os nomes e não ção de duas instituições matrimoniais
RESENHAS 205

diferentes: os casamentos ‘primários’ e ciedade, tais como na cosmologia, na


os ‘casamentos ‘secundários’”, as quais escatologia, nos rituais.
correspondem à presença de dois siste- E me parece ser justamente essa a
mas de classificação paralelos, um – porta aberta pelos autores de Antropo-
que o autor define como “horizontal” – logia do Parentesco, ao se empenharem
atuando no nível das relações entre não só em contribuir para aumentar o
pessoas que se originam de um mesmo corpus etnográfico sul-americano, mas,
grupo residencial, e outro, “oblíquo”, sobretudo, por fazê-lo buscando uma
atuando entre pessoas que se originam renovação nos estudos de parentesco.
de grupos residenciais distintos. Ambos
os sistemas, por sua vez, geram dois for-
matos matrimoniais correlatos: o patri-
lateral e o avuncular.
“O Sistema de Parentesco Wari’” é
o título do artigo de Aparecida Vilaça.
Os Wari’, comumente conhecidos como
Pakaa Nova, habitantes do Estado de
Rondônia, apresentam uma série de
particularidades em seu sistema de
classificação social. Em primeiro lugar,
trata-se de uma sociedade amazônica
com terminologia de tipo crow, associa-
da à presença de um princípio omaha e
sem prescrição matrimonial. Não obs-
tante isso, entre os Wari’, inexistem os
mecanismos de descendência unilinear
freqüentemente associados a essas ter-
minologias. Mais interessante do que as
próprias conclusões é o percurso analí-
tico adotado pela autora no decorrer do
artigo: ao invés de analisar o material
wari’ à luz das teorias disponíveis sobre
sistemas crow e omaha, Aparecida Vi-
laça inverte o jogo e examina aquelas
teorias que considera mais importantes
à luz do material wari’. E, nesse senti-
do, o artigo vale mais pelas questões
que coloca do que pelo nível de com-
preensão a que chega a respeito do sis-
tema wari’. Mesmo porque, como a pró-
pria autora sugere, o problema não são
os fatos wari’, e sim a necessidade de se
buscar novos parâmetros mais adequa-
dos à compreensão e classificação de
um sistema de parentesco, mesmo que
seja necessário buscá-los em outras di-
mensões da vida simbólica de uma so-

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