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RESENHAS
vocou quanto a sua “tese”, não é possí- ver alhures ao ser morto ou pelos brasi-
vel que os que “erraram” sobre ele te- leiros ou pelos Waiãpi; e que viu, na
nham “acertado” quando se trata das imagem de Cristo preso à cruz, na pró-
relações entre protestantismo e capita- pria pele de Tupã, os resíduos do san-
lismo? gue que serviu de tinta para a escrita
Enfim, o livro de Disselkamp cons- primordial, inventada por Ianejar, recu-
titui um recurso valioso para a com- sada pelos Waiãpi e apropriada pelos
preensão crítica do texto de Weber e brasileiros.
para o acompanhamento dos debates Esse é o tema principal dessa cole-
que se seguiram, além de trazer aportes tânea comentada de narrativas Waiãpi
interessantes sobre a história inicial do acerca de sua relação com os brancos.
protestantismo. No entanto, nem explo- Através de surpreendentes variações
ra as várias perspectivas aplicáveis ao históricas dos mitos de fundação do
campo intelectual em que se desenvol- mundo, criação e dispersão da humani-
veram a formulação e recepção daque- dade; estratégias de invenção de um
le texto, nem responde totalmente às subgrupo Waiãpi extinto para a ele in-
questões que levanta a propósito da va- corporar um artesão solitário das ruas
lidade dos argumentos weberianos. de Macapá que se diz descendente de
um povo aruaque extinto; e inscrições
muito acuradas de hábitos culturais dos
GALLOIS, Dominique Tilkin. 1994. Mai- brasileiros, observados por mulheres
ri Revisitada. A Reintegração da Forta- Waiãpi submetidas, no final do século
leza de Macapá na Tradição Oral dos XIX, ao serviço doméstico junto a famí-
Waiãpi. São Paulo: NHII-USP/FAPESP. lias brasileiras, a coletânea apresenta
92 pp. processos de construção da auto-ima-
gem dos Waiãpi e seus esforços de in-
terpretação do contato. Esse povo tupi-
Tânia Stolze Lima guarani habita a região do alto curso
Profª de Antropologia, ICHF-UFF dos rios Jari e Oiapoque, com uma po-
pulação aproximada de mil pessoas,
Mairi é uma panela de barro gigantes- organizadas em pequenas aldeias, tan-
ca, de fundo pontiagudo e boca virada to no território brasileiro quanto na
para baixo, que os humanos, improvi- Guiana Francesa. O livro trata particu-
sadamente, ergueram para ali se pro- larmente dos grupos que se encontram
tegerem primeiro do incêndio e depois no território brasileiro. Suas terras são
do dilúvio provocados por Ianejar, o cercadas por garimpos, ameaçadas por
(re)criador Waiãpi desse mundo onde invasores, cortadas pela Rodovia Peri-
vivemos e agimos como ramos inconci- metral Norte, ocupadas por postos da
liáveis da humanidade. A Fortaleza de Funai e pela Missão Novas Tribos. Es-
São José de Macapá foi erguida pelos ses postos, atuando como focos de atra-
portugueses em 1688 e reconstruída em ção, impõem um padrão de ocupação
1765, à margem do Amazonas. Mairi é, territorial novo: a concentração de um
muito provavelmente, a Fortaleza de conjunto de grupos locais nas proximi-
Macapá. Prova: a narrativa da expe- dades dos mesmos, concentração que
riência de um finado que esteve preso atualmente tem sido contrabalançada
na Fortaleza e entendeu que ali ou Tu- por uma política de ocupação temporá-
pã ou Ianejar deixou sua pele para ir vi- ria das fronteiras a fim de controlar as
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a dicotomia analítica seria a determina- Kuresisi, o Waiãpi que viu que Mairi es-
ção etnográfica das categorias em ter- tá de pé e é a Fortaleza, mostra a imbri-
mos das quais a tradição oral é ordena- cação na mesma (talvez seja melhor di-
da. Com efeito, a autora mostra como os zer a ligação umbilical operada por
Waiãpi concebem uma dupla bipartição uma) narrativa do mito e da história. Ou
do tempo: de um lado, duas idades seja, a distinção etnoconceitual conhe-
constituídas como tempos qualitativa- ce suas próprias limitações e, para a
mente diferentes, das quais a mais anti- análise, representaria uma dificuldade
ga é marcada pela presença de Ianejar mais do que uma solução.
entre os humanos e pela posse da lin- A autora tenta resolver o impasse
guagem por aqueles que hoje estão adotando, em primeiro lugar, uma pers-
destituídos dela; de outro, dois tempos pectiva mais inclusiva, capaz de abran-
diferenciados pela ausência ou presen- ger mito e história, e que se traduz na
ça de uma memória genealógica para categoria analítica “etnohistoriografia”.
com os antepassados; ou seja, um pas- As duas categorias temporais e os dois
sado remoto e um recente. Mostra ain- modos da enunciação a elas associados
da como tal bipartição se articula com a surgem, assim, como os dois mecanis-
ausência ou presença de uma explicita- mos básicos de uma historiografia waiã-
ção bastante precisa, pelo narrador, da pi. Sua complementaridade e sua deter-
fonte de informação. minação pelo contexto são as idéias
Contudo esses critérios waiãpi, condutoras de toda a apresentação de
aliás, bastante difundidos na Amazônia falas registradas em dois períodos dis-
indígena, não dão conta do caráter tintos, o da pesquisa e aquele da pes-
atemporal do mito, e, assim, de sua ca- quisa-ação.
pacidade de invadir a temporalidade Com base na complementaridade e
histórica. Como se pretendessem fugir na imbricação das categorias e dos mo-
à sua própria regra, os Waiãpi também dos de enunciação, a autora conclui que
produzem relatos que se reportam ao tais mecanismos não fundamentariam
mesmo tempo às duas temporalidades. gêneros narrativos distintos. Nesse ca-
É preciso destacar que Mairi veio a se so, o que fazer? Encontrando uma saída
tornar a Fortaleza de São José por meio inesperada para o impasse, a hipótese é
da história que se conta sobre um teste- que eles fundamentam argumentos,
munho ocular. Eixo do mito e da histó- chamados históricos e míticos. Disso re-
ria, a Fortaleza responde assim por uma sulta algo interessantíssimo, que, aliás,
continuidade fundamental entre Iane- mereceria uma atenção maior da auto-
jar e a cidade de Macapá, entre o tem- ra. Nada impede que o argumento his-
po da criação e separação dos humanos tórico seja aplicado por um narrador em
e uma atualidade marcada pela visita- um relato de fatos transcorridos com
ção freqüente à cidade ocupada pelos antepassados desconhecidos, no tempo
brasileiros. Talvez a abordagem compa- de Ianejar, inclusive. Além disso, os
rativa possa um dia lançar alguma luz mesmos fatos podem ser narrados com
nova sobre essa misteriosa necessidade ênfase no argumento mítico ou no his-
que tradições como a dos Waiãpi apa- tórico.
rentam ter de relatos que forneçam um Os dois argumentos se diferenciam
testemunho ocular moderno para fatos em termos de uma lógica de grandes e
estabelecidos na origem dos tempos. pequenos intervalos. Vem a ser chama-
De toda forma, o testemunho de tamo do mítico aquele que estabelece delimi-
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cada cidadão expressar sua opinião, nalismo puro fosse alheio à Revolução,
nem uma escolha entre opções e candi- a participação igualitária e a elabora-
datos para, com o voto, contribuir para ção democrática da lei foram princípios
a definição das grandes orientações po- da época difíceis de serem conciliados
líticas. Isso porque o sistema eleitoral com a necessidade, imperativa tam-
imaginado pela Assembléia Constituin- bém, da formação de uma “vontade ge-
te erigiu-se sobre duas concepções di- ral” que fosse o produto das vontades
ferentes de representação. Por um lado, individuais “esclarecidas” mediante
a que repousava não apenas sobre a uma “deliberação racional”. Essa ten-
idéia do voto como um direito mas, tam- são entre duas exigências contraditó-
bém, sobre o projeto revolucionário de rias – a do “número” e a da “razão”–
instituir, através do sufrágio dos cida- esteve no coração dos debates da época
dãos, o poder do povo soberano, enfim, sobre o sufrágio. Os constituintes tenta-
de substituir a usurpação de uma mo- riam, através da elaboração de algumas
narquia absoluta. Aqui, a “representa- medidas (eleição indireta em dois níveis
tividade” das assembléias devia ser a e restrições impostas à elegibilidade
mais próxima possível da diversidade dos representantes, principalmente),
característica de todo o conjunto nacio- neutralizar a influência do número, da
nal. Por outro lado, uma noção de re- qual, por outra parte, não podiam sub-
presentação que repousava sobre o trair-se.
postulado da existência de um interesse Contudo, é importante salientar
comum ao povo. Nessa segunda con- que, diferenciando-se da tradição histo-
cepção não importa tanto a “exatidão” riográfica que fez dos homens de 1789
da representação, mas sim encontrar os os burgueses “censitários”, Gueniffey
homens capazes de zelar pelo interesse restitui às origens mesmas da Revolu-
coletivo. Em síntese, o sufrágio repre- ção sua dinâmica democrática. Apesar
sentava para cada novo cidadão o sím- da Constituinte ter excluído do direito
bolo, por excelência, da soberania recu- ao voto um certo número de indivíduos
perada pelo povo. Seu exercício estava (mulheres, empregados domésticos,
destinado a instaurar uma autoridade não-domiciliados, não-contribuintes e
pública que garantisse a transparência mesmo os que pagam uma contribuição
indispensável à manutenção da sobera- direta inferior ao valor local de três jor-
nia popular. Mas a fórmula para garan- nadas de trabalho), Gueniffey os deno-
tir essa transparência devia passar pelo mina de “cidadãos passivos” para mar-
filtro da representação, no seu segundo car que não estão excluídos estatutaria-
sentido. Isso porque o espírito público – mente da cidadania do conjunto, nem
a virtude – não está inscrito nos costu- privados da autonomia necessária à ex-
mes, nem surge espontaneamente; ao pressão da vontade. Mesmo não votan-
contrário, a divisão do trabalho cria do, são cidadãos, quer dizer, depositá-
muitos “ignorantes” que precisam ter rios virtuais de um direito que deverá
um governo por procuração: ser repre- ser alargado em função do aumento de
sentados. renda, educação, esclarecimento etc. O
Essa concepção acerca da formação verdadeiro caráter censitário da Revo-
de decisões, que rejeitava a idéia de lução não consiste na distinção que
identificar a vontade geral na aritméti- opõe os cidadãos ativos dos passivos,
ca dos votos, estava marcada pelo ra- mas a que separa eleitores de elegí-
cionalismo da época. Ainda que o racio- veis.
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populações. O “poder tutelar” é conce- Serviço acerca dos índios estão na ori-
bido como uma forma reelaborada – gem de suas ações. Concebidos pelo ór-
com continuidades lógicas e históricas – gão como seres em transição, suas
da “guerra de conquista”. Enquanto ações estavam voltadas para proporcio-
modelo analítico, define o autor, a “con- nar a incorporação dos índios à catego-
quista” é um empreendimento com dis- ria de trabalhadores agrícolas.
tintas dimensões: fixação dos conquis- As “estratégias” e “táticas” mobili-
tadores nas terras conquistadas, redefi- zadas pelo Serviço para alcançar seus
nição das unidades sociais conquista- objetivos são discutidas na terceira par-
das, promoção de fissões e alianças no te do livro. Articuladas com as classifi-
âmbito das populações conquistadas, cações mencionadas acima, as ações es-
objetivos econômicos e empresa cogni- tavam orientadas sobretudo pela idéia
tiva. de fases. Com as expedições, buscava-
A criação do SPI(LTN) no quadro da se reunir informações sobre o virtual
administração pública é tratada na se- território de ação e elaborar um mapa
gunda parte do livro. Entre outros as- social dos conflitos existentes e das
pectos, esse movimento analítico per- alianças passíveis de serem estabeleci-
mite perceber o quanto certas propos- das localmente. Elas se prestaram, so-
tas, ações e contratempos enfrentados bretudo, à instalação administrativa do
pelo órgão decorriam de sua posição re- SPI(LTN). Dentre as fases, a pacifica-
lacional no conjunto da administração ção, pelos pressupostos assumidos acer-
pública. “Trata-se de retirar da dimen- ca dos índios e pelo capital simbólico
são de ’empresa heróica’ o que sempre dela decorrente, era apresentada como
foi parte da burocracia” (:112). Para ação exemplar do Serviço. À pacifica-
compreender como o Serviço é consti- ção, seguia a atração, termo que reme-
tuído, Lima analisa a rede de relações tia à tática de deslocamento das popu-
que liga Rondon ao MAIC. Nesse senti- lações para as proximidades dos postos
do, são destacados os vínculos diretos e de atração e incentivo ao abandono das
indiretos de Rondon com pessoas posi- práticas indígenas, o que vinha acom-
cionadas no MAIC e no Museu Nacio- panhado da criação de dependência em
nal, com membros do apostolado positi- relação aos postos. As medidas voltadas
vista, com militares e com simpatizan- para a destruição das formas nativas de
tes da campanha presidencial de Her- organização socioeconômica e política
mes da Fonseca. A aproximação dessas estão na base da ação civilizatória, que
redes ocorre em torno de algumas objetivava fomentar a passagem dos ín-
idéias como a de proteção. Entendida dios a trabalhadores agrícolas. Por fim,
como defesa física e moral dos índios, a a definição jurídica do status de índio é
proteção devia ser exercida tanto junto um “dispositivo” importante da ação
às populações indígenas quanto aos de- estatal sobre as populações indígenas.
mais grupos humanos dispersos pelo Ao recuperar as discussões em torno do
território nacional. Para tanto, o Serviço Código Civil (1917) e do Decreto 5484/
reivindicava o “monopólio e uso da vio- 28, o autor conclui que a legislação
lência legítima em prol das populações atende especialmente a interesses ad-
nativas” (:128). ministrativos do SPI(LTN). Trata-se de
Ponto de partida do exercício do po- instrumento para enfrentar as popula-
der tutelar e ao mesmo tempo seu pro- ções não-índias e as redes sociais pre-
duto, as classificações elaboradas pelo sentes no aparelho de Estado com as
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quais não era possível estabelecer ali- tor no “Caderno Iconográfico”. Embora
anças. não haja referências a cada uma das fo-
Destaque-se que as indicações apre- tos, o fato de que quanto mais se avan-
sentadas acerca de como as ações do ça na leitura do livro melhor se com-
Serviço introduziram mudanças nas po- preende o que está em jogo nas ima-
pulações contatadas têm uma conse- gens, parece-me indicativo da força da
qüência importante, ou seja, o fato de as análise produzida por Lima.
análises realizadas sobre as populações
indígenas, ou a partir delas, necessita-
rem incorporar uma reflexão sobre os MICELI, Sergio. 1996. Imagens Nego-
efeitos que têm sobre essas populações ciadas. Retratos da Elite Brasileira
(sobre o seu modo de se autoconcebe- (1920-40). São Paulo: Companhia das
rem, conceberem ao outro e se organi- Letras. 174 pp.
zarem socialmente) as ações dos diver-
sos poderes, em particular, o estatal.
A última parte do livro tem como fo- Gustavo Sorá
co de análise a estrutura organizacional Doutorando, PPGAS-MN-UFRJ
do órgão e as tarefas desempenhadas
durante sua inserção nos distintos Mi- Em seu último livro, Miceli estuda o
nistérios. A articulação do Serviço nos processo de autonomização relativa dos
planos nacional (subdiretorias e se- campos artístico e literário em face do
ções), regional (inspetorias) e local (pos- mundo da política e dos consumos cul-
tos, povoações indígenas, centros agrí- turais de diferentes frações constituti-
colas e delegacias) é discutida, assim vas do campo de poder entre as déca-
como suas atribuições. Levar em conta das de 20 e 40. Para a análise de proble-
na análise do Serviço sua inserção dife- mas teóricos clássicos, o autor cria uma
renciada nos Ministérios, permite ao forma concisa de abordagem empírica:
autor perceber suas mudanças de sta- um ponto de ataque que experimenta
tus e orientações. indefinidamente até o final do livro.
Produto de um conjunto de investi- Ao propor uma interpretação socio-
gações desenvolvidas ao longo de onze lógica da produção retratística de Cân-
anos, o livro de Lima traz à luz parte da dido Portinari, enfoca uma classe de ob-
história esquecida da relação entre po- jetos que permitem uma leitura privile-
der estatal e populações indígenas. His- giada da relação entre formas legítimas
tória que apesar de não ser objeto de de produção plástica e consumos cultu-
reflexões (acadêmicas ou administrati- rais distintivos, destinados a prover be-
vas), e talvez graças, sobretudo, a isso, nefícios de afirmação social às elites. A
permanece presente nas opções, pro- forma final de cada um dos retratos de-
postas e ações implementadas junto às ve tanto à competência estética do pin-
populações indígenas. Longe de com- tor, quanto à busca de solidificação de
prometer o livro, lamenta-se, contudo, a uma imagem de classe entre represen-
falta de uma revisão mais cuidadosa do tantes de diversas frações dominantes:
texto. Em alguns períodos, palavras e os retratos podem ser compreendidos
frases soltas trazem um certo prejuízo à como imagens negociadas.
compreensão. Enfim, se o leitor me per- Os retratos são interpretados como
mite, sugeriria que a leitura fosse ini- esforços do pintor, uma espécie de so-
ciada pelas fotos reproduzidas pelo au- ciologia pré-reflexiva voltada para mo-
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Para realizar essa empresa, alia a uma nos círculos de sociabilidade masculi-
perspectiva metodológica hermenêuti- na, na esfera pública. Este seria um mo-
ca o conceito de habitus de Pierre Bour- mento dramático, de ruptura, inexisten-
dieu, bem como as reflexões desse au- te na trajetória feminina, caracterizada
tor – e de Anthony Giddens – sobre a pela continuidade. É possível observar,
relação entre estrutura e prática. no entanto, certa incongruência nesse
Múltiplas seriam as formas possí- ponto: se os antropólogos sabem que a
veis de ser masculino, donde o autor fa- feminilidade, em Pardais ou outro lu-
lar em hegemonia de um certo modelo. gar, não é essência, mas acontecimento
Porque há outros. A narrativa de um ex- cultural, os pardalenses tomam a iden-
põe algo de sua motivação pessoal para tidade masculina como algo tão “dado”
realizá-lo: “Um dia, ouvi um rapaz, zan- quanto a identidade feminina. Quem
gado com um outro, gritar: ‘não és ho- diz que ser homem segundo o modelo
mem, não és gaiato [rapaz], não és na- hegemônico é estar cotidianamente
da!’ Gostaria de imaginar que este tra- “por um fio” é o antropólogo.
balho o ajudasse a perceber que as coi- Enquanto modelo ideal, a masculi-
sas não têm de ser necessariamente as- nidade hegemônica exerceria controle
sim” (:239). O autor propõe, portanto, sobre o processo de constituição das
um ousado exercício de desnaturaliza- identidades masculinas, sendo ela pró-
ção de seu objeto, aquilo que não pode pria, como todo modelo, realizável ape-
deixar de fazer toda boa antropologia. nas parcialmente. À questão sobre os
Uma idéia central no livro é que a modos de reprodução desse modelo,
relação entre os gêneros seria assimé- Vale de Almeida responde com o con-
trica e contextualmente hierarquizada, ceito de habitus, de Bourdieu, propon-
isto é, se a diferença de gênero pode ser do que a teoria da prática seria uma al-
entendida como um princípio classifica- ternativa promissora para a solução de
tório apto a dar sentido a qualquer ser alguns problemas nesse campo. Dentre
(pessoas, objetos, atividades), é também as implicações dessa escolha teórica lis-
passível de ser politicamente apropria- tadas pelo autor, menciono duas: a com-
da como instrumento ideológico para a preensão do caráter dinâmico e recipro-
legitimação da dominação de um gêne- camente instituidor da relação entre es-
ro sobre o outro. Esse uso da diferença trutura e prática e a multiplicidade dos
de gênero a aproximaria das diferenças modos possíveis de estruturação das re-
de classe e de idade, por exemplo. lações entre os gêneros, segundo os va-
Eis uma passagem onde o autor lores e interesses em jogo.
compara os modos de construção das O livro, segundo o próprio autor, es-
identidades masculina e feminina no tá organizado em capítulos relativa-
Alentejo: “Em geral, pode-se dizer que mente independentes, tratando de dis-
a masculinidade tem de estar sempre a tintos aspectos da identidade masculina
ser construída e confirmada, ao passo hegemônica e das relações entre os gê-
que a feminilidade é tida como uma es- neros em Pardais – alguns com um en-
sência permanente, ‘naturalmente’ rea- foque mais etnográfico, outros de incli-
firmada nas gravidezes e partos”. O au- nação mais teórica. Três momentos me-
tor refere-se, então, ao momento do recem atenção especial: a análise do
processo de socialização em que o gaia- universo social do trabalho nas pedrei-
to deve deixar a segurança da casa ma- ras, no capítulo 2; a leitura do ritual da
terna para se lançar definitivamente tourada como um texto sobre a, e uma
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