Revista Critica de Ciénetag Sociais n* 4/5 Outubro 1980
FREDRIC JAMESON (*)
REIFIOAGAO E UTOPIA NA CULTURA DE MASSAS
A teoria da cultura de massas — ou cultura para o grande
pablico, cultura comercial, cultura «popular», indtistria da cul-
tura, as diversas formas como é conhecida —tendeu sempre
fa definir o seu objecto em oposigao A chamada alta cultura,
sem Teflectir sobre o estatuto objectivo desta oposigio. Como
to frequentemente acontece, as posigdes neste campo redu-
zem-se a duas imagens que se espelham uma a outra, e sio
apresentadas essencialmente em termos de valor. Assim, 0 mo-
tivo corrente de elitismo argumenta a favor da prioridade da
cultura de massas devido & quantidade imensa de pessoas que
cla atingo; estigmatiza-se entio a prética de uma cultura supe-
Tior ou hermética como sendo passatempo de casta de pequenos
grupos de intelectuais. Como o seu pendor anti-intelectual deixa
entender, esta posi¢éo essencialmente negativa tem pouco con-
telido tedrico, mas responde claramente a uma conviegio funda-
mente enraizada da esquerda radical americana e articula uma
pereepeao bem alicergada de que a alta cultura é um fenémeno
do sistema, irremediavelmente manchado pela sua ligagio &s
instituigdes, em particular & Universidade. O valor invocado é,
por conseguinte, um valor social: seria preferivel tratar de pro-
gramas de televisio, O Padrinko ou o Tubardo, em vez de Walla-
ce Stevens ou Henry James, porque aqueles falam claramente
(2), Fredric Jameson ¢ actualmente professor da Universidade de Yale
(EU.A). Becreveu, entre outres obras, Martism and Form (1811), The Prison
“House of Language. A Critical Account of Structuralism and Russian Forma
lism (1972) ¢ Fables of Aggression: Wyndham Lewis, The Modemist as Fascist
(1579), assegurando, alsin disso, uma ‘colaboragio regular a numerosas publi-
Sagdet, O presente esto fol tadurido do. nimero Maugural da revista Norte-
‘americana Social Test (Winter 1979), pp, 1306148,18 Fredric Jameson
‘uma linguagem cultural que tem signifieado para estratos da
populagio muito mais amplos de que 0 representado socialmente
pelos intelectuais, Os radicais, porém, aio também intelectuais,
de modo que esta posi¢ao tem ressonineias suspeitas de mi
conseiéneia, ao mesmo tempo que no se da conta da atitude
anti-social e eritica, negativa (embora geralmente nio-revolu-
ciondria), de boa parte das mais imporiantes formas da arte
moderna; finalmente, nao fornece nenhum método para a Jeitura
sequer dos objectos culturais que valoriza e pouca coisa de inte-
esse tem tido a dizer sobre o seu contetido.
Esta posigio inverte-se na teoria da cultura elaborada
pela Hscola de Frankfurt; como seria de esperar desta antitese
exaeta da posigéo radical, a obra de Adorno, Horkheimer, Mar-
cuse e outros é uma obra intensamente tedrica ¢ fornece uma
metodologia operatéria para a andlise pormenor'zada precisa-
mente dos produtos da indiistria da eultura que estigmatiza e que
a perspectiva radical exaltava, Resumidamente, esta concepgac
pode ser caracterizada como a extensio ¢ aplicagio de teorias
marxistas da reif.cagio na forma da mereadoria as obras da
cultura de massas, A teoria da reifieacéo (aqui fortemente im-
pregnada da anilise da racionalizagao por Marx Weber) descreve
a Maneira como, no capitalismo, as antigas formas tradicionais
da actividade humana so reorganizadas e «taylorizadas> ins-
trumentalmente, fragmentadas analiticamente e reconstruidas
segundo varios modelos racionais de eficiéncia, ¢ reestruturadas
essencialmente segundo as linhas de uma diferenciagio entre
meios e fins, Mas esta 6 uma ideia paradoxal: s6 podemos apre~
cié-la devidamente depois de compteendermos até que ponto a
cisio meios/fins pbe de facto entre paréntesis ou suspende os
proprios fins, e dai o valor estratégico do termo —
quer dizer, sobrenatural ou divina — perfeitamente diferente.
B s6 com’a transformagio geral da forca de trabalho numaCultura de Masses 19
mereadoria, que O Capital de Marx designa como condigio
prévia fundamental do eapitalismo, que todas as formas de
trabalho humano podem ser precipitadas da sua diferenciagao
qualitativa irredutivel como tipos distintos de actividade (a
exploragio mineira oposta A agricultura, a composi¢ao de 6pe-
ras diferente da manufactura téxtil), e serem todas ordenadas
‘sem excepgio sob o denominador comum do quantitativo, isto
6 sob o valor universal de troea do dinheiro, Neste ponto,
portanto, a qualidade das diferentes formas da actividade
humana, os seus «fins» ou valores irredutiveis e distintos, foi
efectivamente posta entre paréntesis ou suspensa pelo sistema
do mercado, deixando todas estas actividades & mere€ de uma
reorganizagio impiedosa em termos de eficiéncia, como simples
meios ou simples instrumentalidade,
‘A forea da aplicagio desta idela a obras de arte pode ser
medida em contraposiedo com a defini¢io da arte pela filosofia
estét'ea tradicional (especialmente por Kant) como uma «fina-
lidade sem fim», quer dizer, como uma_actividade orientada
para um objectivo que, no obstante, nfo tem qualquer pro-
pésito ou fim pratico no «mundo real» dos negécios ou da
politica ou da praxis humana conereta em geral. Esta definigo
tradicional é seguramente valida para toda a arte que funciona
como tal: nao para histérias falhadas, cinema caseiro ou rabis-
cadelas poéticas sem tino, mas sim para as obras bem sticedidas
tanto da cultura de massas como da alta cultura, Suspendemos
as nossas vidas reais e as nossas preocupacses priticas imedia-
tas tdo completamente quando vemas O Padrinko como quando
lemos The Wings of the Dove ou ouvimos uma sonata de
Beethoven.
Neste ponto, contudo, 0 eoneeito de mereadoria introduz
a possibilidade de uma diferenciagio estrutural e histériea
naquilo que era concebido como deseri¢ao universal da expe-
rigncia estética como tal e fosse sob que forma fosse. O conceito
de mercadoria intersecta 0 fendmeno da reifiea¢do — descrito
atris em termos da actividade ou de producio —de um Angulo
diferente, 0 do consumo. Num mundo em que tudo, ineluindo
a forga de trabalho, se transformou numa mereadoria, os fins
nfo permanecem menos indiferenciados do que no esquema da
produgio; esto todos rigorosamente quantificados e torna-
ram-se comparaveis abstractamente por intermédio do dinheire
—o seu prego ou salirio respective, Podemos, contudo, expri-
mir a sua instrumentalizagéo, a sua reorganizacio segundo a
cisio meios-fins, de nova forma, dizendo que, pela transfor-
macio em mercadoria, uma coisa, seja de que tipo for, fol
reduzida, a um meio para o seu proprio consumo, Jé nao tem20 Fredric Jameson
qualquer valor qualitativo em si prépria, tem-no apenas na
medida em que pode ser : as diversas formas de acti-
vidade perdem as suas justificagdes intrinseeas imanentes
enquanto actividade e tornam-se meio para um fim. Os objectos
do mundo de mercadorias do capitalismo perdem também o seu
«ser» independente ¢ as suas qualidades intrinsecas e transfor-
mam-se noutros tantos instrumentos de satisfagio enquanto
mereadoria: exemplo corrente 6 o do turismo — o turista ame-
ricano j4 no deixa a paisagem «ser no seu sendo», como teria
dito Heidegger, mas tira um instanténeo dela, transformando
assim graficamente 0 espago na sua propria imagem material.
A actividade conereta de olhar para uma paisagem — inchuindo,
sem diivida, o desnorteamento inquietante perante a propria
actividade, @ ansiedade que necessariamente se gera quando
seres humanos, postos perante 0 nfio-humano, se interrogam
sobre o que estio a fazer ali e sobre qual poderia ser, antes do
mais, a razio ou 0 objectivo de uma tal confrontagio— é assim
substitufda confortavelmente pelo acto de tomar posse dela e
converté-la numa forma de propriedade pessoal. E este o sen-
tido da grande cena em Las Carabiniers de Godard em que os
novos conquistadores do mundo exibem o produto do seu saque:
a0 contrario de Alexandre, possuem apenas as imagens de tudo
e mostram triunfantemente as suas fotografias do Coliseu, das
Pirdmides, de Wall Street, de Angker Wat, como se fossem
fotografias pornogréfieas. & também este o sentido da afirma-
Gao de Guy Debord num livro importante, A Sociedade do Espec-
téculo, segundo a qual a forma suprema da reificagio na forma
de mercadoria na sociedade de consumo contemporanea 6 preci-
samente a prépria imagem. Com esta transformacio geral do
nosso mundo de objectos em mereadorias, fazem-se também
as andlises bem eonhecidas da orientagio-para-o-outro do con
sumo exibicionista préprio do nosso tempo e da sexualizacio
dos nossos objectos ¢ actividades: 0 carro de novo modelo é,
essencialmente, uma imagem pata os outros terem de nés, ¢
consumimos menos a propria coisa do que a sua ideia abstracta,
susceptivel dos investimentos libidinosos que a publicidade
habilmente nos arranja.
evidente que esta deseri¢aio do processo de transfor-
magio em mereadorias tem uma relevineia imediata para a
estética, quanto mais ndo seja por implicar que, na sociedade
de consumo, tudo adquiriu uma dimensio estética, A forea da
anilise da indistria da cultura por Adorno-Horkheimer reside,
contudo, na sua demonstracio da introducio inesperada e im-
perceptivel da estrutura da mercadoria na propria forma e
contefido da obra de arte, Isto é, no entanto, algo de semelhanteCultura de Massas 21
& absoluta quadratura do cfreulo: o triunfo da instrumentali-
zagio sobre a
Ned Land a explodir finalmente de firia), organizando as suas
frases em paragrafos, cada um dos quais constitui por si s6
um sub-enredo, ou em torno da estase propria de objecto da
frase ou. do quadro «dramatico»; todo o ritmo de uma
tal leitura é entretanto, sobredeterminado pelas suas ilustra-
cées intermitentes, que, antes ou depois do facto, confirmam
de novo a nossa fuuncio de leitores, que é transformar o fluxo
transparente da linguagem tanto quanto possivel em imagens
e objectos materiais que possamos consumir.
Esta é no entanto, uma fase ainda relativamente primi.
tiva da transformagio da narrativa numa mercadoria, Mais
subtil e interessante & a forma como, desde o naturalismo, 0
best-seller tendeu a produzir um nas diversas sagas podem
ser vistos como outras tantas mereadorias para cuj consumo
as narrativas pouco mais sio que meios, sendo a sua material
dade essencial confirmada e encarnada na miisiea que acom-
panha as suas versdes para a tela, Esta diferenciagio estrutural
entre a narrativa e um clima de pressentimento consumivel 6
uma manifestacio mais ampla ¢ histérica, ¢ formalmente mais
significativa, da espécie de do passado. Assim, se a tragédia grega, Sha-
Kespeare, 0 Don Quijote, a liriea romantica ainda muito lida
do tipo da de Hugo ou romances realistas de grande éxito como24 Fredric Jameson
os de Balzac ou de Diekens forem enearados como combinando
um amplo piblico «popular» com uma elevada qualidade esté-
tica, fiea-se fatalmente preso em falsos problemas como o do
valor relativo — medido em relacio a Shakespeare ou mesmo a
Dickens —de auteurs contemporineos populares de alta quali-
dade como Chaplin, John Ford, Hitchcock, ou mesmo Robert
Frost, Andrew Wyeth, Simenon ou John O'Hara. O absoluto
sem-sentido deste interessante assunto de conversa torna-se
claro quando se chega conelusio que, de um ponto de vista
histérico, a tinica forma de nova por si sé: nao apenas é a mercadoria
a forma primeira em enjos termos, ¢ 86 neles, 0 modernismo
pode ser estruturalmente compreendido, mas os préprios ter-
mos da sua solugio—a concepe%o do texto modernista como
produgao e protesto de um individuo isolado, e da légica dos
seus sistemas de signos como outras tantas linguagens parti
culares ( ou da «producao textual> pela
tradigéo francesa, que baseia a sua autoridade em Althusser
e Lacan, Se se est disposto a jogar com a possibilidade de a
que nao tém original) caracteriza a
producio de mereadorias do capitalismo de consumo e marca
‘0 nosso mundo de objectos com uma irrealidade e uma ausén-
cia A deriva do ereferente> (por exemplo, o lugar ocupado até
agui pela natureza, pelas matérias-primas e pela producio
priméria, ou_pelos «originais» da producio artesanal ou ma-
nual) que nfo tem absolutamente nenhuma semelhanga seja
com o que for da experiéneia de qualquer formagio social
anterior.
Se isto é verdade, entio esperariamos que a repeticio
constituisse mais uma caracteristica da situacio contraditéria
da produefio estética contemporanea & qual tanto o modernismo
como a cultura de massas, de uma maneira ou de outra, nio
podem sendo reagir. Aasim é de facto, ¢ basta evocar a posicio
ideoldgiea tradicional de toda a teoria e pritica modernizantes
desde os rominticas até ao grupo Tel Quel, pasando pelas for-