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Hermenéutica constitucional ‘Cetso Basros Professor de Direito Constitucional da, PUC-SP 1. Interpretar ¢ extrair o significado de um texto. Embora possa se afigu- rar como uma insuficiéncia da linguagem, cis que a primeira idéia que nos acode ao espirito é a da lastima de significado de textos téo impor- tantes nio ser de evidéncia inquestiondvel, 0 fato de ser a interpretagio sempre indispensdvel, quer no texto constituefonal, quer nas leis em geral. ‘Transbordaria os limites do presente trabalho aprofundar as razSes desta imprescindibilidade. Hé duas, entretanto, a que nao nos furtamos de meneionar, Uma € a de que os preceitos normativos séo sempre abstracées da realidade, Para que possam cumprir o seu propésito de disciplinar um mimero infindével de situagdes, necessitam de apelar para um alto nivel de generalidade ¢ abstragio, Isto acarreta a conseqii€ncia de que, diante de uma dada situagéo concreta, seré sempte possivel a pergunta: estard ela abarcada pelo preceito normative? Sé pela interpretagio chegaremos a uma resposta. 2. A interpretagdo faz 0 caminho inverso daquele feito pelo legislador. Do abstrato procura chegar a preceituagées mais concretas, 0 que 86 6 factivel procurando extrair o exato significado da norma. A outra razio consiste no fato de que as Constituigdes séo auténticos cédigos encerrando muitos preceitos. A significado destes nio € obtenivel pela compreensio isolada de cada um. E necessdrio, também, levar-se em Ro Inf. legis, Brasilia. a, 24 n, 96 out./dex. 1987 53 conta em que medida eles se interpenetram. E dizer até que ponto um preceito extravasa 0 seu campo préprio para imiscuir-se com o preceituado em outra norma. 3. Disto resulta uma interferéncia reciproca entre normas € principios, que faz com que a vontade constitucional sé seja extraivel a partir de uma interpretago sistemética, o que por si s6 ja exclui qualquer possibili- dade de que a mera leitura de um artigo isolado esteja em condigées de propiciar a desejada desvendacao daquela vontade. Hé alguns prinefpios de obediéncia obrigatéria na interpretagdo cons- titucional. 4. O primeiro deles ¢ 0 da unidade da Constituigao. De certa forma, este principio traduz 0 que acima estavamos a expor. EF necessério que o intérprete procure as recfprocas implicagées de preceitos e principios. Até chegar a uma vontade unitdria na Constituiggo. Ele teré de evitar as con- tradig6es, antagonismos ¢ antinomias. As Constituigdes, compromissérias sobretudo, apresentam principios que expressam ideologias diferentes. Se, portanto, do ponto de vista estritamente Iégico, elas podem encertar vet dadeiras contradigdes, do ponto de vista juridico sao sem diivida passiveis de harmonizagio desde que se utilizem as técnicas préprias do direito. A simples letra da lei € superada mediante um proceso de cedéncia reciproca. Dois principios aparentemente contraditérios podem harmoni- zarse desde que abdiquem da pretensfo de serem interpretados de forma absoluta. Prevalecerio, afinal, apenas até 0 ponto em que deverdo renun- ciar & sua pretensio normativa em favor de um principio que the € anta- g6nico ou divergente. 5, Um segundo principio basico de interpretaglo € 0 de que na Consti- tuigdo nfo devem existir normas tidas por nfo juridicas. Todas tém de produzir algum efeito. Com mais rigor ainda afirma JORGE MIRANDA, citando ligio de THOMA: “A uma norma fundamental tem de ser atribuido © sentido que mais eficdcia the 4”. 6. De outra parte, figura o principio segundo o qual os preceitos cons- titucionais hao de ser interpretados segundo nac s6 © que explicitamente Postulam, mas também de acordo com o que implicitamente encerram. Embora pareca dbvio, convém também consignar que as normas constitu- cionais tém de ser tomadas como normas da Constituigao atual ¢ nado como preceitos de uma Constituigéo futura destituida de eficécia imediata. No aa R, Inf. logisl. Brosilia @, 24 9. 96 ut./dex. 1987 entanto, como pondera JORGE MIRANDA, tampouco podem reconduzir-se a0 absurdo de impor aos seus destinatdrios o impossivel. Finalmente, cumpre observar que, nada obstante 0 fato de as Consti- tuigdes conterem conceitos exdgenos, isto ¢, provenientes de outras searas do direito cu mesmo do campo exirajuridico, desde que apreendidos em disposigdes constitucionais, devem ser interpretados no sentido que adqui- rem por forga desta nova insercdo sistemética. 7. Problema interessante consiste em saber da real significasio, quanto a0 texto constitucional, de dispositivos que, a nivel de legislagao subcons- titucional, estabelecem regras de interpretagdo. Nossa atual Lei de Introdu- 40 ao Cédigo Civil dispée de norma neste sentido, 8. E lgico que a rogra & que a Constituigéo nao pode ser interpretada a partir da legislagao infraconstitucional. Trata-se de particularidude pr6- pria da Lei Maior, nfio poder ela tomar por referencial interpretativo outras normas do sistema. Tal fenémeno deflui do seu caréter inicial e inovador. 9. A Constituicio 6 0 marco a partir do qual se erige a otdem juridica. Seria um contra-senso admitirse que o que Ihe vem abaixo —~ devendo, portanto, sofrer o seu influxo — viesse de repente a insurgir-se contra esta ordem S6gica, fornecendo critérios para a inteligéncia do proprio preceito que Ihe serve de fundamento de validade. Cremos que, mantida esta postulago fundamental, as ponderagies de JORGE MIRANDA sobre o tema podem ser aceitas, Em primeiro lugar, a de que normas como estas so vilidas ¢ eficazes nao por constarem do Cédigo Civil — pois este ndo ocupa nenhum lugar proeminente no sistema juridico —, mas, diretamente, enquanto tais, por traduzirem uma vontade Iegislativa néo contrariada por nenhuma outra disposigo a respeito dos problemas de interpretagio (que ndo so apenas técnico-{uridicos) de que curam. 10. Em segundo lugar, a idéia bastante sugestiva de que matérias como as tratadas por normas deste tipo podem considerar-se substancialmente constitucionais e que, em assim sendo, no repugnatia mesmo vé-las algadas & Constituigdo em sentido formel. 11, Em consonéncia com o exposto, parece também ficar claro que inter- Pretagio auténtica da norma constitucional s6 pode ser editada por uma emenda & prépria Constituigo. O que é licito sem diivida A lei ordindria Re in, legisl, Brasilia 0, 24 m. 96 out./dex. 1967 35 € concretizar e desenvolver certos comandos constitucionais, sobretudo aqueles nfo dotados de aplicabilidade imediata. Ao assim proceder, no entanto, deverd ater-se ao sentido da norma constitucional. E a questo ultima de saber se se manteve ou nio dentro deste balizamento € um problema afeto ao Judicidrio. Da interpretacdo conforme a Constituigio Federal Se, por via de interpretacao, pode chegar-se a varios sentidos para a mesma norma, € muito compreensivel — uma vez que colabora de forma decisiva para a economia legislativa — que se venha a adotar como valida a interpretagdo que compatibilize a norma com a Constituicdo. Temos, pois, por forca deste principio de interpretagéo conforme a Constituig&o, que se deve, dentro do possivel, elastecer ou restringir a norma de molde a tornéla harménica com a Lei Maior, Na verdade, esta interpretagao conforme a Constituicéo vai além da escolha entre varios sentidos possiveis e normais de qualquer preceito, para distenderse até 0 limite da inconstitucionalidade, Aqui, tenta-se encontrar, neste espago, um sentido que, embora nfio o mais evidente, seja aquele sem o qual nfo hé como ter-se a lei compatibilizada com a Constituigo. E um problema deli- cado este, porque, se levado além de um nivel de razoabilidade, desemboca em wma fungdo criadora por parte dos érgios fiscalizadores, muito além daquela tida por aceitavel ¢ até mesmo desejavel. Pasa que se eliminem distorgdes e insegurancas, é necessério deixar certo que toda vez que a lei encampe critérios e solugdes manifestamente em contrariedade com os adotados pelo constituinte, sem duivida deveré ser declarada inconstitucional ¢ nio transmudada de forma radical para, 86 entdo, beneficiar-se da auséncia do vicio méximo; no entanto, parece que, sem incidir-se neste extremo, é licito aceitar-se que, dentro ainda de uma atividade meramente interpretativa, seja possivel ajustar uma signifi- cacdo & norma, ainda que néo a mais intuitiva, mas que Ihe confira a possibilidade de ser tida por constitucional. ‘Assim se deverd proceder toda vez que os perigos da inseguranca juridica ndo sejam mais temiveis que os objetivos a que se almeja alcangar em nome da economia legislativa. A declaragio de inconstitucionalidade deve, sem diivida, ser deixada como medida extrema, dadas as profundas repercussdes que um ato desta natureza sempre acarreta. 36 R. inf, fegial. Brovilie a. 24 1. 96 out./dex. 1997

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