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Luiz Eduardo Robinson Achutti eae Con GINO ey VIS SN cotidiano, Ione) trabalho Penny PENBELANIOL Sem| © autor desta foaiapaha ovata serene a ‘questo das relages, mas também das singulatidades do suport magico e do ‘uporie escrito na sua pretensdo mitua {em conhecer@revear os homens e as sodledades. Ofeece, desta manera, a0 ‘eu lotr dus aberturas, duas potas de entrada: este podera empreender a letura de um texto ou, vrendo o vo, mergulhar na espessura das imagens. Cada um desses registos,éverdade, Partem de uma observagdo, ambos sao ‘epresentacdes, ambos s40 Interpretagies. Resta que essas ‘bservagdes, essas represeniagbes, ‘ssa inlerprtagées conjugam-se diferentemente em fungo dos suportes utlizados.O suporte imagético nao funciona da mesma maneira que 0 suporie verbal. Cada um deles poe em obra operacSes cogniivas e afetvas singui Observei e contemplei com todo o meu {empo as folografias reaizadas e ‘rganizaas por Acut. Eu cl quo doravanle, mesmo cego, podera entar ‘na Vila Digue onde nunca tina io, Reconheceria as ruas, as cores das casas de madeira. Reconheceria as gas da tesla desta velha muher que, com um po na méo, olharia ainda par mim. Reconheceria o cheiro do xo, 0 ‘uor do labor, 0 rso das eriangas,o odor fresco do creme de barbear sobre 0 bigode do Senhor Pinheiro. Essas ‘olograiastomaram-se fragmenios de lum discurso amoraso lugares de um investimento psiquico consieravel, de lum prazere de uma dor Etienne Samain 150 95-e8205-04-5, Jin FOTOETNOGRAFIA Um estudo de Antropologia Visual sobre cotidiano, lixo e trabalho fulrama B.. Machede- ¢ Luiz Eduardo Robinson Achutti © do autor It edigio 1997 Direits reservados desta edi: ‘Tomo Faitorial Lda e Livraria Palmarinca -ditores: Joo Carneiro e Rui Diniz. Goncalves ‘Projeto Grifica: Joao Carneiro (Capa: Roberto Silva ‘evisio: Toxo Faitorial io Tor Editorial ‘Tratamento das fotagrafias para ftoitos: Willian Grillo, Umpressio e acabamento: Gera Pitts Livearia Palmarinen Lida, Rua Jeronimo Coelho, 24 (Cx Postal 102 CEP 8000-241 Porto Alegre RS Fone: (061) 226 7744 Fax: 225 2577 Distribuidora Palmarinca us Jerdnimo Coelho, 281 Fone: (051) 228 597/225 1165 Fax: (051) 228 6031 E-mail; rosn@gbnetcom br “Tomo Editorial Lida, Cx Postal 1029 Agéncia Central ‘CEP 90001-970 Porto Alegre RS Fone/Fax: (081) 227 1021 E-mail: joao@portowebcom br "AI79F_ Achutti, Luiz Pduardo Robinson Folocinografia : um estudo de antopolgia visual sobre cotidiana fixe trabalho / Liz Bauardo Robinson Achutt porto Alegre. Tomo Bditoral;Palmarinea : 1997. 208p. 1. Antopologia Visual. 2. Imagem (fotografia) na pesquisa antropoligica. 8. Catadoras de xo - Vila Dique Porto Alegse. 4. Fotoeinografia. Titulo, Sumario ‘Messios Vato de Conjanio do SubmsptvloaFotoetnagrfioct O Trabalho €0 Lixo i Retratos ‘As Casas. : Recortes, Formas e Cores, Imagens Dentro da Imagem .. Prefiicio z Introdugio.. Fotoetnografia da Vila Dique . Geeta Lara as Posse al a WA Dies © Trabalho ¢ 0 Lixo Retratos AS CASES nn Recortes, Formas e Cores Imagens Dentro da Imagem Referéncias Técnicas , aaa om ee i i ie & Per Ea Bi Erg <4 o ep E: ka af Ew EE x Prefacio O QUE VEM A SER PORTANTO UM OLHAR ? Etienne Samain* Quando Margaret Mead, em 1973, numa famosa in- fervencdo no IX Congresso do ICAES, sediado em Chicago, denunciava o “esmagador parti-pris verbal da antropologia” © a fixacdo devota - para nao dizer fetichista que esta consa- ‘grava ds virtudes interpretativas da escrita - poucos se deram conta de que, sem querer ressuscitar a querela dos anciaos e dos modernos, Mead pressentia e intuia que chegava 0 mo- ‘mento em que nao bastaria ‘falar e discursar’ em torno do homem, apenas o ‘descrevendo’. Para conhecé-lo, haver-se- inde ‘mostri-lo’, de ‘exp6-lo’, tornd-lo Visive?, sendo a obje- tividade de tal empreendimento nao mais ameacada por um ‘visor’ do que pelo ‘cademno de campo’ do antropélogo. f no uadtro deste debate que se deve situar oestuco que Luiz Eduar- do Achutti consagra a0 cotidiano dos moradores da vila Di- que em Porto Alegre — RS (Brasil). Sem provocagio, 0 autor desta /ofoetnagrafia levanta cfetivamente a questo das relagoes, mas também das singu- laridades do suporte imagético e do suporte escrito na sua pretensio miitua em conhecer e revelar os homens e as soci- * Professor do Programa de Pés-Graduagéo em Multimeios do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP Luiz Eduardo Robinson Achutit edades, Oferece, desta maneira, ao seu leitor duas aberturas, duas portas de entrada: este poder empreender a leitura de ‘um fexto ou, virandoo livro, mergulhar na espessura das ima- gens Cada um desses registras, é verdade, partem de uma ob- servagio, ambos sio representagdes, arribos sao interpretacbes. Resia que essas observagoes, essas representagdes, essas inter- pretagdes conjugam-se diferentemente em fungao dos supor- {es utilizados. O suporte imagético ndo funciona da mesma ma- neira que o suporte verbal, Cada um deles poe em obra opera- Ges cognitivas e afetivas singulares. Nada mais paradoxal que uma folografia. Esta 4, dian- te de nossos olhos, impassivel, fixa, congelada. Miimia ador- mecida, entorpecida, enclausurada no scu quadro, fechada, silenciosa, muda. Ela nao fala e nunca falara. Vale, no entan- to, por mil palavras, como se costuma dizer. E, de fato, nos leva a milhares de discursos sobre cla, dentro dela, atras dela, ‘em torno dela, Discursos interiores na maioria dos casos. Dis cursos do silencio. Discursos por ela provocados, que surgem dos fundos da nossa interioridade, da caverna obscura de nosso pensamento, Pois, se é verdade que othamos para ela, tam- bém ela olha para nés, nos aponta, nos questiona, nos pers- cruta, nos desvenda, nos desnuda. Cativa que era na sua fixidez material, de repente, essa, ‘mesma imagem comeca a se decompor, a se dissolver. Como num caleidoscépio em movimento, ela se fragmenta, se des- pedaca, se esfacela na imaterialidade de nosso imaginario. Ela ‘nao é mais uma imagem; lornou-se um bloco de imagens, vm. folheado de imagens: imagens-lembrangas,soterradas na nossa memBria, que emergem, ressuscitam, renascem, movem-sc, ea viajar. Esta mesma imagem, embora permanecendo sempre lisa, achatada e silenciosa, vira também miisica, ou ‘melhor dizendo, pequenas miisicas, “pequenas miisicas da noi- XVI Poloetnagratia te”, miisicas das nossas noites, de nossos esquecimentos, de nossos abandonos, de nossas distragdes, de nossos siléncios, de nossos recalques e de nossas omissdes. Muisicas de nosso inconsciente, surgidas desta parte encobertada, oculta, en- terrada do ser e, no entanto, particularmente viva, presente € fecunda. Notas musicais que se sucedem, se condensam numa partitura sem fin, arrebentando-nos, como as ondas do mar, ‘em diregdo a outros cantos, a outros siléncios. As fotografias sdo viajantes vagueantes que nos cativam, medusas fantas- magoricas que nos fascinam. Segredos revelados e mistérios do outro, que nos acuam e nos transfiguram intimamente, Pequena queimadura de luz sobre uma superficie sen- sivel (Como uma alma) ~ 0s nitratos de prata, pele e pelicula a0 mesmo tempo - a fotografia é, na sua materialidade, tanto uma ferida como uma cicatriz, uma fenda aberta no tempo, uma rachadura do espago, uma marca, um rastro, um indi- cio. Corte e golpe, cla ¢ essa superficie de signos miltiplos e complexos, aberta a um pasado que ja nao existe maise a um futuro que nao chegow a ser. As fotografias sio tecidos, ma- thas de silencios e de ruidos, os envelopes que guardam nos- ‘08 segredos, as pequenas peles, as peliculas de nossas viven- cias, As fotografias so memérias e confidéncias, Observei e contemplei com todo o meu tempo as foto- _grafias realizadas ¢ organizadas por Achutti, Eu sei que dora- vante, mesmo cego, poderia entrar na Vila Dique onde nunca tinha ido. Reconheceria as ruas, as cores das casas de madei- ra, Reconheceria as rugas da testa desta velha mulher que, com um pao na mao, olharia ainda para mim. Reconheceria o cheiro do lixo, 0 suor do labor, o riso das criancas, o odor fresco do creme de barbear sobre o bigode do Senhor Pinhei- ro. Essas folografias tornaram-se fragmentos de um discurso amoroso, lugares de um investimento psiquico considerdvel, de um prazer e de uma don, xx le Eduardo Robinson Achat HA mais de quinze anos que Roland Barthes entregava~ sed morte. Até hoje, eu niio sabia claramente por que 0 seu. {iltimo livto me incomodava tanto na época e porque tinha ‘até conseguido me irritar. Por uma misteriosa necessidade, reli varias vezes A Camara Clara no decorter destes iltimos ‘meses. A ternua do olhar humano que atravessa o livro, des- concerta-me e me “anima”, como Barthes sabe repeti-lo, quando fala da “Fotografia” com este “F” maitisculo que deli- objeto de sua pesquisa. co see livro, Pe dizia, em fevereiro de 1980, numa entrevista a Angelo Schwarz. ¢ Guy Mandery, 0 seguinte: “ Um. livro modesto... que vai decepeionar 0s fotdgrafos.. (am livro) que nao é nem uma sociologia, nem uma estética, nem uma historia da foto. £, antes, uma fenomenologia da fotografia. Toro ‘0 fendmeno folo na sua novidade absoluta dentro da historia do mundo... Em torno de 1822, aparece um novo tipo de ima~ ‘gem, um novo fendmeno iconic, inteira e antropologicamente novo. Festa novidade que procuro questionar (interrogat) ¢, assim, recoloco-me na situacdo de um homem ingenuo, no cultural, um tanto selvagem que nao cessaria de se admirar (espantar?) com a fotografia”. Sem dizé-lo mais claramente, Barthes aludia ao Pensamento Selvagem, que Claude Lévi- Strauss escrevia em 1962 e onde procurava delinear “dois ‘mods distintos do pensamento cientifico... dois niveis estralé- sgicos, onde a natureza deixa-se atacar pelo conhecimento ci- entifico: (,.) © primeiro, aproximadamente ajustado ao da per- ccepeiio ¢ da imaginacio, eo outro, deslocado como se as rela- Ges neoessirias, objetivo de toda ciéncia... pudessem ser atin- ‘das por dois caminhs diferentes: um muito proximo da in- {uicao sensivel, o outro mais afastado”. ‘Aoempreender A Cimara Clara, sua descida no imagi- nirio do signa, Barthes nao sonhava, Despedia-se ¢ despia-se do semidlogo, do autor do Império dos Signas, para colocar- se novamente na situacio e na postura de um homem xx Polocinagratia ingé(nu)o, “nao cultural, um tanto selvagem”. Precisava re- encontrar o grau zero de seu othar sobre o mundo, Seri que Barthes nao tinha suas razdes para encarar do ponto de vista do observador, o mundo dos homens e dos seus fatos, dos seus dados e dos seus delitios? “Antropélogo” fora do ninho, Bar- thes nos alertava ¢ nos convidava a pensar o mundo nao ape- nas a partir desta pretensao 4 racionalidade pura, nao apenas a partir de modelos gerais ou tedricos, nao apenas através da linearidade da escritae, sim, a redescobri-lo, também, na im- petuosicade de nossos afetos, no tumulto das imagens ¢ no horizonte de um imagindrio social, latente em cada um de 16s. © trabalho de antropologia visual que Luiz Eduardo Achutti nos oferece, participa desta “aventura” humana que Barthes anunciava, desejava e fez, Resta-nos entrar na Céma- 1a Clara, talyez, refletir sobre 0 que escreve Evgen Bavcar, fotégrafo esloveno, cego desde os onze anos de idade, no seu admirivel O Voyeur Absolute “Quando discernia ainda alguns bocados de luzes de cores, estava feliz porque via ainda: guardo a lembranga muito viva desses momentos de adeuses ao mundo visivel. ‘Mas a monocromia invadiu a minha existéncia e devo fazer um esforgo para conservar a paleta das nuancas, para que 0 mundo escape a monotonia ¢ A transparéncia, Dou cores a0 objetos ¢ as pessoas que apreendo: conheco uma mulher cuja vor ¢ tao azul que ela conseguic colocar o azul sobre um dia que cu sei ser cinza do outono. Encontrei um pintor que ‘tinha uma voz, vermelha escura, e 0 acaso quis que ele gos- tasse desta cor, o que me alegrou muito... O que vem a ser portanto um olhar? £ talvez a soma de todos os sonhos de que se esquece a parte de pesadelo quando a gente pode se por a olhar diferentemente...”. Campinas, 15 de outubro de 1997 XxI INTRODUCAO A fotografia é um aprendizado de obscrvagio paciente, de lahoragiio minuciosa de diferentes estratégias de aproximagio.com © objeto, de desenvolvimento de uma percepeao seetiva, de uma vigilincia conslante ¢ de prontidao para caplar o acontecimeno ‘no momento do acontecimento. A dupla capacidace da camara de subjetivar e objetivar a realidade, a constante consciéncia de que se € responsivel por este processo, por uma técnica de apreensio da realidade, de que se € sujeito deste conhecimento, é um. ensinamento epistemoléaioe, (eal, 1986:16) Quero propor mais um angulo para o olhar. Actescen- tar mais um angulo a grande tarefa da antropologia que se quer mergulhada na realidade do outro, buscando interpre- far os seus valores e experiéncias. ‘Quando se pesquisam pessoas que trabalham com o lixo, imagina-se, de antemo, a facilidade do estranhamento. Es- franhar 0 lixo ¢ de certa forma natural para as pessoas que produzem-no cotidianamente, mas que no viabilizam seu Cotidiano através dele. O lixo por si sé provoca uma experi- éncia de estranhamento radical. Seoestranhamentoera natural, além de necessério num primeiro momento, vivenciei num segundo momento uma experiéncia arrebatadora, apesar do lixo: passei a descons- trui-lo, enxergando 0 “meu campo” por suas partes. Comecei também a enxergar particularidades nas pessoas que com ele trabalhavam, chegando a considerd-las como estando numa lia Eduardo Robinson Achat situagdo apenas contingente. La no lixo, uma seqiiéncia de olhares francos, firmes e fortes de mulheres vaidosas que, apesar do cotidiano escrutinio daquilo que a sociedacle rejei- ta, carregam o mundo em si. Elas tem orgulho, planos, enten~ dimentos, problemas ¢ sonhos. Ciente de estar de certa maneira ousando, desenvolvo, em termos de énfase descritiva, uma forma narrativa - foto- etnografia - de relatar a vivencia cultural de um determina. do grupo. Optei por recolher, guisa de contextualizagio para a narrativa visual que se segue, trechos do meu difrio de campo ¢ depoimentos coletados no trabalho. Permitin- do-me uma comparagio metaférica, diria que estes textos com “imagens brutas” eyocativos da experiéncia de campo no fazer antropoldgico, funcionam aqui como uma espécie de “negativo” do relato etnogratfico, mais precisamente, fo- foctnografico, que se segue, Como forma de oferecer uma vyisao de conjunto, na seqiiéncia do sumdrio, apresento em ‘um mosaico de tamanho reduzido todas as fotografias agru- padas por subcapitulos. FOTOETNOGRAFIA DA VILA DIQUE Contextualizando e Legendando: do didrio de campo a narrativa visual da Vila Dique De uma maneira geral, nos trabalhos etnogrificos clés sicos as fotografias tém uma funcio de registro, uma funedo auxiliar no trabalho de campo. Evocadora da meméria elas também apoiam a construco do texto. Minha intenao verter, fazer com que trechos de meu diario de campo influ- am na criagdo ¢ legendem, sirvam de apoio a leitura de meu Jexto fotoetnogritico. “Yai fazer sete anos aqui dentro do galpio. A Dona Ana (Cristina, o Antonio, Dona Matilde, eles que comegaram a chamar _nds pra igreja pra comecar reunito pra fuzer o galpao. Ali na reja eles fizeram reunito com nds. Nés achamas bow idéia porque ld antes a gente trabalhava no eho, no sol. Todo mundo ‘catava li. Agora ndo ficamos na chuva nem no sol, comegamos ‘em cinco mulheres. Agora ta cada vez metliorarido mais. Q arto passado fui visitar minha gente, aqui té bom, mas de vez em ‘quando tem que ir dar uma ofhad ld nos que ficaram”. (Alma Fisher, trabalhaddora do galpao de coleta dle Lixo) Uma tarde das mais quentes, inicio de dezembro, tarde Juminosa especial para trabalhos fotogrifices. Compro tes fil- mes da marca Agfa e vou mais uma yez. a campo. Chego de Laie Bduarde Robinson Achuti carro ¢, como de costume, procuro estacionar junto a borra- charia, tum dos poucos lugares com espaco ja que a vila se de~ senha em linha refa junto @ avenida Dique. Esta avenida, que liga a zona norte da cidade a avenida dos Estados, passa nos fundos do Aeroporto Salgado Filho. As casas dos moradores estenclem-se pelo espaco estreito que existe entre a estrada ¢ 0 valio, Estio de frente para o perigo e o barulho do transito de automveise caminhes pesados que transportam produtos que chegam a Porto Alegre, ¢ de costas para o vaio onde jogam seus esgotos. Avila, apesar de ter gua encanada (cerca de uma forneira por unidade doméstica) e luz elétrica, no possui rede de esgotes, correndo os deritos diretamente para o valio. Carrego comigo, além de meu equipamento fotograti- 0, algumas das fotograiastiradas da iltima vez. em que la estive. Vem a minha lembranca a primeira visita, no princi- pio do ano de 1992. Fui fotografar as mesmas pessoas sobre as quais hoje realizo um trabalho académico de pesquisa. A rimeira ver. foi uma incursdo por conta de minhas fungdes @ fotojornalista. Fiz uma reportagem para uma revista espe- cializada de Sto Paulo, chamada Dirigente Municipal. A re- vista havia decidido fazer o relato desta inicativa que se ins- crevia na pauta dos interesses sobre formas de organizacao Popular, além dos aspoctos ecoldgicas em jogo. Sito 4 horas da tarde. Vou direto para o galpao. Encon- {ro as trabalhadoras em seu periodo de descanso. Ocorre-me que posso estar roubando o pouco tempo de folga que elas tem. Dou boa tarde ¢ logo trato de dstribuir algumas das fo- fografias que, de fato, se constituiram no meu principal ins- trumento de insergao no seu meio. Sei que conquistei atengao delas sobre meu trabalho pelo lado do inusitado, etalvez, da vaidade. Nao ¢ todo dia que chega um sujeito estranho aa fotografias € trazendo como tinico custo, uma cer ‘avon nas questées de identidade do grupo. Penso que ‘las neste momento nao avaliam esse custo, XXVI Poiecinogeatia Como sempre, a recepcao é muito boa. Meu olhar bus- a pela Rose que estava grivida de oito meses na tiltima veo em que ld estive, A Rose € a tinica trabalhadora negra em meio as intimeras Fischer, com seus cabelos claros e olhos auuis. Ex-agricultoras que agora vem aumentar o leque de etnias que habitam os cinturdes de miséria das grandes cida- des brasileiras.Entrego a Rose seu retrato feito na ttima vez, exibindo sua barriga, tendo como ‘“fundo infinito” as tdbuag do galpio, talver, para ela, também infinito. Mais uma vez, procedo ao ritual de entrega de presentes, assim como alguns fazem com tribos ainda ndo acostumadas i Dresenca de forasteiros ou pesquisadores. Fologratias sio muito nals do que espelhos, so espelhos ideais, so espelhos migicos, espelhos que espelham para trds, para um tempo anterior que J Passou, De qualquer forma sinto que ofereco algo em troca do ato de “roubar-Ihes as. almas”, Uma “moderna troca de pre- sentes”: a imagem real - matéria prima que me oferecem . pela ‘Imagem fotogrdfica - a cristalizacao de um momento com um determinado recorte. Ambos decididos por mim. Chego ¢, além de atrapalhar o trabalho das catadoras, interfiro em todo o meu campo de pesquisa. Como vou traba. har se estio todas a olhar fotografias em vez de selecionar 0 lixo? Que etnégrafo mais narciso traz para campo elementog due levamn-no a fazer parte das cenas a serem fotogratadas? Fasso a fotografi-las olhando fotografias. A Rose chegou a desmontar uma moldura para colocar as suas fotos. O qua dro foi parar em cima da mesa principal do galpio, perio do ugar onde fazem o repouso e o acerto de contas, Passo tam. bem a fazer parte do lugar onde fica uma espécie nara de santudrio polissémico: miscaras, Cristo, Mickey, cruz, flores, te. Todos apanhados no lixo, menos minhas fotos. Para nao atrapalhar mais o trabalho de coleta, decido Visitar seu Pinheiro e dona Leonida, pioneiros na vila, A casa dos pioneiros fica quase ao lado een tenho também “espethi- XXVIE Junie Bduarde Robinson Achat nhos” para eles. Chego perguntando pelo seu Pinheiro. Esto sentadas no alpendre Dona Leonida e uma conhecida. Ela me diz que seu marido nao esta bem, que esta de cama devido a ‘um problema no pé. Logo pergunto pela perna que sabia que jd nao estava muito boa, e ela me responde tratar-se de um novo problema. Depois de chamado, chega bem “arrumado”, ccom 0 cabelo bem penteado, mancando mais do que de cos- ‘ume. Eles so 0 casal ancestral. Como uma espécie de mito de origem: no comego era 0 caos, nao havia nada. Vieram para a Dique que hoje tem umas quarenta farailias de parentes rm to proximos. Penso ser fundamental uma entrevista, além de um retrato exemplar deste casal formado por um homem, com ascendéncia india e portuguesa, e uma mulher de as- cendéncia alema. “No die 13 de erecta fez dez anos que nis viemos de {alba meu ma une age fem 12 anos Miers pro ‘banco, empréstimo pra zero plantio do feito, sora, ¢milho na (errs do meu sro. Aino dew. Chuvarad, seca sol mata tudo A gente fentou dar uma cabecads,viemos asin, a gente moro 13 dias na Parrapos, em casa alugada, Seren, coincidéncia, néo sabiumes que outs jd moravann aqui. 2s so Pte, sso outs rach ge tem dos es tipode Fisher endo so parente. Meu mario tabathou oftoanos meio na Ceasa. Bu fabalhava mums fbrica de esto pistco ‘para fitacassete, fz um an, sa de bi para teabalharno galpio. melhor porque aqui nao fem o pairio, nio tem 0 chete em ima, a gente trabalha por livre eespontinea Yona, ta trabatha como tu quer, nioestio em cima, Tado mundo trabala unio, ringuém no manda ninguém ali dentr, tem a dietora, em ‘ado, até eu sou da diretoria, que mu de dots er dois anos?. (Malvina Fisher, trabelhadora do galpio de coleta de liso) Volto para o galpao. A casa do seu Pinheiro é muito escura, ndo foi dessa vez que aproveitei para fotografar seu interior. Deparei com uma cena muito interessante: a chega- dade mais um caminhio de lixo da prefeitura e 0 conseqiien- XXVIII CE EEEEEESSE'S': S$ rrr rrr FPotoctnogratia. te reinicio dos trabalhos, Uma das mulheres descobre no lixo uma boneca bastante inteira, boneca a pilha, destas que fa- Jam, choram ou caminham, no si Imediatamente tento aju- dar a ver sea boneca funciona e fotografar ao mesmo tempo, Sugiro : “vamos ver o que ela faz. ?” Ela vai logo buscar, nos seus guardados, pilhas que lembrara havia recolhido do lixo em outra oportunidade, Tento dividir-me entre ajudar, foto- grafar © consolar, antevendo um provavel desapontamento, Nesse momento, eu mais do que ninguém, gostaria que a bo- neca nao fosse apenas uma “safadeza” aplicada pelo mundo do consumo aquelas mulheres que operam num dos seus li- Iites: 0 lixo. A boneca deveria agin, dizer algo, mesmo que fosse em inglés. Queria que ela ressuscitasse como uma metii- fora de vida, ainda que alimeniada por enfraquecidas pilhas também encontradas no lixo, Enquanto auxilio sugiro-Ihe que as pilhas provavelmente devam estar descarregadas, mas que a boneca parece ter chance de Voltar a “viver”, j4 que parece fer bom aspecto. Ela aciona o botio “on/off” levando-a ao ouvido dizendo: “a boneca nao faz nada”, Lembro-me dos filmes onde aparecem tentativas de reanimacao boca a boca, Sem saber o que fazer, sugiro-lhe que busque auxilio de al. ‘gum destes curiosos que consertam tudo. A vivencia desta me- tafora visual me comove, atrapalho-me um pouco com as fo- fegrafias. Recomposto, percebo, no segundo plano, Rose com seu filho recém nascido no colo. ‘A gente acha bastante cofsinha: roupa, calcado, louga, A douca vem embruthada, Tem lengol de cama, tem de tudo, Ques acta é dele. E és vezes vem os cara e também dio coisa ‘pra gente, data gente divide, Se sobrar, aquilo vai pro sorteio, a .Senle fz um sorteio. Bota o nome de todos que trabalham ¢ dai 4 gente faz um sorta, pra um niio ganhar mais e outro menos, entio é tudo assiny, tudo junto. Aid rancho. Minha cunhade

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