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“Estética de Almada Negreiros: Mestres e Fundamentos filosóficos”

I. Mestres de cada caso pessoal

Nós não precisamos de Mestres para chegarmos a mestres, bastam-


nos os nossos sentidos aqui na cidade. O tempo se encarregará de
acordar os nossos sentidos e de lhes trazer harmonia.1

A formação académica de Almada Negreiros realizou-se no Colégio de Campolide, de 1900 até


ao seu encerramento no advento da República - 1910. Durante seu último ano no Colégio
Jesuíta preparava-se, talvez, para entrada na universidade, recusada depois em absoluto. Ao
longo desses dez anos recebeu uma formação humanista2 que o alertou precocemente para
reflexões sobre a condição metafísica, teológica e ética do ser pessoal, os saberes da tradição
filosófica grega e da filosofia escolástica, pilares do ensino recebido, incontornáveis para a sua
obra de maturidade. Almada elaborou os conhecimentos adquiridos, seleccionou seus mestres
e proclamou o pensamento:

Almada não é o que dispensa os mestres, mas o que os traduz para


Almada, e o que aconselha aqueles que têm o instinto de liberdade
— quer dizer, os que são capazes de imaginar que o mundo foi feito
para eles — a fazer o mesmo.3

O pensamento mítico-poético grego, a tradição hermética e os fundamentos metafísicos,


cosmológicos e éticos da filosofia grega, consolidaram-lhe uma cultura ensaística fundada no
pensamento humanista. Apesar do Artista afirmar a recusa de mestres e formulações
pedagógicas, num sentido constritor, os conteúdos transmitidos foram interiorizados,
favorecendo-lhe preferências e teorizações. Baseou-se em princípios completados pela
pesquisa pessoal, comprovando suas “suspeitas” primordiais acerca do homem, Arte e Vida.

A era do predomínio racional, na construção do pensamento, esgotara-se em vinte séculos e


mais...4 Almada, em 1921, anunciava a necessidade do agir concetual, discorrendo sobre
termos antitéticos, onde raciocínio era sinónimo de hesitação. Os raciocínios, esgotados em
modalidade lógica/epistemológica, eram obsoletos — aceção utopista do conhecimento…

1“ Quanto ao resto, nós somos os intérpretes do astro pequenino que tem o hábito de apanhar encontrões.” In "Charlie
Chaplin", Artigos no Diário de Lisboa, p.26. Cf. Invenção do Dia Claro, "O Livro": "Sonhei com um país onde todos
chegavam a Mestres. Começava cada qual por fazer a caneta e o aparo com que se punha á escuta do universo; em
seguida fabricava desde a materia prima o papel onde ia assentando as confidencias que recebia directamente do
universo..." Texto inicialmente publicado no Diário de Lisboa, de 6 de Julho de 1921, constando da op. cit., cf.
pp.12-13.
2De acordo com os horários consultados das aulas no Colégio de Campolide, na altura em que Almada o frequentou,
verifica-se uma carga lectiva forte nas disciplinas de Latim, Grego, "Philosophia"; de salientar também as disciplinas
de Desenho, "Mathematica" e "Portuguez", no correspondente ao ensino secundário e complementar actuais. Almada
entrou no Colégio de Campolide em 2.XI. de 1900, sendo-lhe atribuído o nº 64, com indicação de naturalidade "s.
Tomé", de acordo com o Livro d'Ouro dos alumnos do Collegio de Campolide - 1849-1903.
3Eduardo Lourenço, "Almada, ensaísta", Colóquio sobre Almada Negreiros, p.84
4"Adão e Eva" de Jaime Cortesão", Artigos no Diário de Lisboa, p.38
Carecia agir sobre as ideias que "hoje são coreográficas, é o físico quem as experimenta e se
treina até à mímica rigorosa e inigualável.(...) Nós temos que pôr os pés sem hesitação e ir
ganhando o hábito do mais consistente; rápidos, sem irmos mais depressa do que nós;
inteiros, sólidos, com sombra própria e produzida; rigorosos de fatalidade — na certeza
consecutiva do acaso!"5 Desde a fase modernista que Almada exprimia tais convicções,
consolidadas ao longo de anos, reflexões e experiências: "Acabou-se o sêgredo das escolas, a
nossa imaginação milenária tem belo terreno para edificações ao lado das escolas. Diante de
todos vamos edificar construções para que nós e os outros fiquemos sabendo como se
improvisará melhor."6

Do contato com os Jesuítas, Almada guardou memória que contribuiu para edificação da
personalidade artística, porque focada numa pedagogia humanista, segundo testemunho do
filho, Arqtº José de Almada Negreiros. As condições facultadas para desenvolvimento do seu
dom para o desenho traduziam – antecipadamente - uma consciência pedagógica do diretor
do Colégio, do que viria a ser, mais tarde, o ensino para crianças sobredotadas.

Dentre os autores estudados, Baltasar Gracián, mestre de aforismos e argúcia concetual,


exerceu influência inestimável no jovem Almada. O autor do séc. XVII estipulou uma sabedoria
conveniente à atuação ético-social e pessoal, reguladora de superior pragmaticidade, exigência
espiritual e inteletiva. A agudeza de espírito educada pela Arte da Prudência, pela Arte do
Engenho, serviu lacunas que Almada reverteu a seu favor. A fundamentação argumentativa, a
elaboração do discurso público, a escrita insinuosa, não eram questões meramente estilísticas,
antes proposta legitimadora visando o estabelecimento de princípios convincentes. A
premência em estipular conceitos, recorria a artifícios, saboreava o requinte da consciência
epistemológica do "gosto". Os tratados de Gracián, foram definitivos para maturação,
impulsionando especulações e resguardando-o de ataques inteletuais, propiciando-lhe réplica
subtil, incisiva ou ironista …

O conhecimento, na opinião de Almada, não se adquiria nas escolas, dito pelos mestres;
resultava da solidão de cada um: "Eu tenho ainda na boca o amargo das convicções e das
sinceridades. Eu aprendi com os conselhos de Deus a estar só e inocente."7 Estar só, construir
sua educação era caso de poucos, "Ser o próprio é uma arte onde existe toda a gente e em que
raros assinaram a obra-prima!"8

5Idem, ibidem, pp.38-39


6Idem, ibidem, p.39
7"Uma reunião de artistas no banquete de homenagem ao distinto pintor João Vaz", Artigos no Diário de Lisboa,
p.57
8"Nós todos e cada um de Nós", Artigos no Diário de Lisboa, p.93. Cf. a citação de Arquitas de Tarento, "Aquele que
sabe tem que ter aprendido de outro ou achado ele só o que sabe. A ciência que se aprende de outro é, por assim dizê-
lo, exterior: o que nós mesmos encontramos, a nós pertence e em propriedade." in "Dórico, cânone da ingenuidade",
Ver, p.195.
Suas ideias encontraram fundamento e certeza, nas estipulações de Francisco de Holanda em
Da Pintura, vide os "Capitolo IX — Por onde deve aprender o Pintor" e "Capitolo X — A
segunda cousa por onde deve d'aprender"9, correspondendo aos preceitos fundamentais à
praxis artística:
— não imitar qualquer mestre;
— imitar-se a si mesmo;
— servir como modelo de imitação a outrem, em consistência da nova
maneira de fazer.

Holanda, quanto ao domínio das Ciências, aconselhava: "…as letras latinas e terladações
gregas para entender e gostar os tisouros da sua arte que polos livros stão escondidos, sem os
quaes elle não pode ter razão d'alguma cousa (...) e d'ali tomar a filosofia natural, como
filosofo excelentissimo, consirando e contemplando continuamente a propriedade e natureza
de cada cousa com mui grande descrição e cuidado." Ainda, a teologia - nobre história do
mundo, "tendo quase todas as antiguas cousas e historias recapituladas na memoria, pois pola
môr parte a operação da pintura consiste em renovar aos homens e idade presente
aqueloutros homens e idades que já passarão, e tudo para doutrina e exemplo nosso."10

Imprescindível saber: fábulas e poesia, pois na ficção e fantasia radicava verdade e razão; ouvir
a música para conhecer a verdadeira harmonia… o que exigia o estudo dos "números". Além
do conhecimento obrigatório para qualquer pintor, da geometria, matemáticas e
"prospectivas", exigiam-se muitas ciências e ofícios "que eu mando ter (...) ao desenhador"11,
sendo difícil coexistirem em muitos homens juntos, quanto mais num só, caso paradigmático
Miguel Ângelo... Donde, Holanda concluir para criação de obras, da pertinência da natureza e
da arte grega. Estes dois paradigmas: o histórico de volta à natureza, vigente desde Giotto; o
de retorno à arte clássica, através de Plínio e outras fontes antigas. Aparentemente antitéticos,

ambos paradigmas convergiam para idêntico propósito estético, presente em Vasari.12

Almada realizou a conciliação, baseando a sua teoria no paradigma da modernidade que


implicava a reinvenção do conhecimento mítico-poético e filosófico, dos gregos e demais
autores convertidos, ao longo da história da cultura europeia, em modelos da nova maneira:

9Francisco de Holanda, op. cit., pp.72 a 78.


10Idem, ibidem, pp.64-65
11Idem, ibidem, p.69
12"…la fusión de los paradigmas ya apuntados se expresaba también a través de una homologación terminológica. El
propio Leonardo, tan afecto siempre al naturalismo del Quattrocento, no encontraba dificultad alguna en conciliar
ambos magisterios."Vasari citado por Angel Gonzaléz Garcia, in Francisco de Holanda, op. cit., Nota 180, p. 75 A
conciliação realizava-se através do desenho, para o qual ambos se mostravam cúmplices.
"Nós não combatemos os antigos. Nunca se deram aos antigos provas tão sinceras e
conscientes de admiração. As irredutibilidades não somos nós que as fabricamos."13
Almada associou a perspetiva de tradição, por via do humanismo, na demanda da
ingenuidade, afeta à teorização romântica, sem exaurir impactos ou extensões exclusivas de
um paradigma ou outro: paradigma do clássico — o cânone - e paradigma da ingenuidade:
"D'ali aprenda a fazer muito pouco e muito bem..."14

Almada tomou de Francisco de Holanda grande afinidade, pois que a Renascença fora “idade”
emblemática: "havia efectivamente artistas, isto é, indivíduos enciclopédicos, indivíduos de
perfeito conhecimento geral. E sobretudo, indivíduos libertos das grades de cada profissão
porque mestres em todas. Isto quer dizer: artistas."15 Os “seus” Mestres existiam na memória
da humanidade - resíduo do entendimento, cúmplice na memória coletiva, inconsciente
mesmo, para além da cronologia:

Já há bastante tempo que os meus melhores mestres de hoje


deixaram de existir neste mundo. Encontram-se todos na
Eternidade, essa eternidade que não conhece anónimos. 16
A conciliação dos elementos substantivos do universo - pessoa humana, mundo e
Humanidade, realizada nos fundamentos do conhecimento anterior ao pensamento, fornece
termo para a superação de um saber feito, apenas, de erudição profana e "cultura livresca". O
conhecimento que pretendia era da ordem do mistério17, residindo na ingenuidade de saber,
atitude e estádio de anterioridade do humano, simultaneamente.18
A condição fundamental relaciona-se à percepção de cada um para encontrar mestres
"próprios", não ficando circunscritos aos dogmas de outrem: carecia a grande visão dos
mestres da humanidade, mostrados ao longo do tempo que, exatamente, os revela.

II. Estética da criação - metafísica para criação da obra humana

Confronta-se, em Almada, o modelo metafórico na abordagem ao tema da identidade pessoal


(auto-gnose) - "História Verde" e Invenção do Dia Claro, à enunciação metafísica do conceito;
evidencia-se a complexidade e acuidade atribuída ao longo de toda vida.

13Almada Negreiros in "Diálogo entre Almada Negreiros e Fernando Amado", separata dos nºs. 5-6 da Revista
Cidade Nova, p.12
14Francisco de Holanda, op. cit., p.76
15"Arte e Artistas", Ensaios, p.83
16"Vistas de SW", Textos de Intervenção, p.120
17"O saber é pouca coisa para quem conhece. O saber desencanta o mistério. O conhecimento vive cara a cara com o
mistério." Almada Negreiros, "Prefácio ao livro de qualquer poeta", Poesia, p.39
18 “A unanimidade em conhecimento não pode deixar de ser o simples mesmo, desde o primeiro instante da
humanidade igual ao primeiro instante de cada um.” Almada Negreiros em entrevista a António Valdemar, Diário de
Notícias, 23.06.1960
"Poesia e Criação" (1962) fundamenta-se em Heidegger - Introdução à Metafísica, invocativa
do 1º canto do Coro na Antígona de Sófocles. A incursão de Almada, nas fenomenologias da
existência, expõe-se em três pontos, segundo Fernando Guimarães: "a desvelação da
realidade, a fuga ao inautêntico, o desocultamento ontológico ou "em linguagem", a poesia
como criação."19 A análise configura três direcções20. 1ª, de procedência vitalista — Nietzsche;
2ª retoma o pensamento arcaico grego; 3ª de ordem existencial, justificada na obra almadiana,
constante evocação — como sugere Guimarães, invocação do "nosso íntimo pessoal", da
"vida", da "humanidade", acrescendo a invocação da "existência”.

Almada apelou à “condenação” do homem para criar, estabelecendo seu lugar21, por ordem
imperativa, decorrente da herança mitológica: Prometeu22. À semelhança do pensamento
sobre a Humanidade, a pessoa, a estética e/ou a poética23 — é consignação do antropológico,
na ordem de criação realizável pelo humano, por roubo do "fogo "metafórico, para a obra de
arte ou de poesia. Na aceção metafísica, o homem é "o mais pavoroso, o que inspira terror
pela sua violência"24, referindo-se àqueles que "não se resignam a ficar dentro do já desoculto,
do familiar e do ordinário."25 Nos comentários filosóficos, Almada apresenta-se cúmplice da
argumentação heideggariana:

Escreve o tradutor: "Na Introdução à Metafísica, Heidegger encontra


no primeiro coro de Antígona a concepção donde o homem é
designado o mais pavoroso, o que inspira terror pela sua violência.26

Heidegger acudiu à pergunta ontológica originária, embora agindo através de propostas


teóricas diversas de Almada, quanto à intecionalidade da demanda metafísica — e hermética
(caso Almada). Almada usou as considerações metafísicas, para justificar a irrevogabilidade do
ato de criação, o "acto vitalício do Poesia"27, conciliador do conhecer e da ingenuidade.28

19Fernando Guimarães, "Almada Negreiros, poeta", Almada — Actas do Colóquio Almada, p.115
20Cf. "Almada Negreiros, poeta", Almada — Actas do Colóquio Almada, p.112.
21"Poesia e Criação", Textos de Intervenção, p.167
22Almada em "Poesia e Criação" escreveu precisamente que o lugar que o homem passou a ter de encontrar, o "seu
onde", decidiu-se inevitável porque "Tinha roubado o Fogo onde o Fogo estava no seu lugar." Leia-se aqui mais uma
referência ao mito de Prometeu. Cf. op. cit., p.167
23 …porque do homem…
24"Poesia e Criação", Textos de Intervenção, p.166; Segundo indicação do próprio Almada neste texto, a versão que
seguiu do livro de Heidegger, foi uma tradução para castelhano de Emílio Estiu. Para esta Tese consultou-se a
tradução francesa de Introduction `a la Métaphysique, de Gilbert Kahn e a versão portuguesa de António Manuel
Couto Viana, da Antígona de Sófocles. Constata-se algumas diferenças nas traduções relativamente ao qualificativo
empregue para ajuizar sobre a qualidade quase substantiva do homem: na versão portuguesa a mesma frase surge na
seguinte tradução: "Há coisas prodigiosas, mas nenhuma como o homem!" (p.21); a versão francesa é como segue:
"Multiple l'inquiétant, rien cependant/ au-delà de l'homme, plus inquiétant, ne se soulève en s'élevant."(p.153)
25"Poesia e Criação", Textos de Intervenção, p.166
26"Poesia e Criação", Ensaios, p.166. Tendo-se consultado a versão castelhana mencionada por Almada Negreiros,
transcreve-se o original castelhano da citação acima realizada: "En la Introducción a la metafisica, Heidegger
encuentra esta concepción en el primer coro de Antígona, donde el hombre es designado(...), lo más pavoroso, el que
inspira terror por su violencia." Emilío Estiu, "Estudio preliminar", Introducción a la Metafísica, p.29
27"Prefácio ao livro de qualquer poeta", Poesia, p.36
A coincidência manifesta-se no encontro do arcaico, acedendo a "un retorno al pensamiento
presocratico."29 Retorno à madrugada do pensamento filosófico repondo, no caso de
Heidegger, a perspetiva de revisão das ideias tradicionais sobre o passado mítico-filosófico dos
gregos – vide Nietzsche. Urgia recuperar a autenticidade dos conceitos e palavras, desviados
do sentido originário devido às traduções latinas do grego - na era cristã.

No capítulo "Limitação do ser" da Introdução à Metafísica, o 1º Coro é introduzido a propósito


da cisão entre ser e pensar. Heidegger aprofundou a questão, quanto aos termos do devir e da
aparência — pensamento oposto ao ser30; traçando três percursos interpretativos plausíveis.
O primeiro31 constituir-se-ia como autêntica substância do poema, atravessando-o como todo.
Consigna o violento, o prepotente, como caráter essencial da predominância de ser,
constituindo a potência do ser. Assim, o homem realiza a violência, vendo-se a sua razão nela
exercida, prevalecendo o aspeto decisório do ser: "Ao homem é-lhe impossível uma atitude
passiva radical, já que a prepotência do ser o arrebata do conformismo consigo mesmo,
evitando que seja como as coisas são."32 O inquietante, a prepotência projetam o homem fora
da sua quietude; afastam-no do íntimo, do habitual, do familiar, da segurança tranquila;
auferem uma impositividade decisiva, ordenadora de toda sua vida.33

28Heidegger, ultrapassando numa das suas últimas obras, o estado de deliberação sobre as posições metafísicas
anteriores sobre o ser. Como sucedeu em Almada, não realizou esse propósito de forma linear, simples e directa, pois
"esforzarse por llegar a las cosas mismas, la filosofia no las facilita, sino que las agrava con dificultades.(...) se
substituyen las cosas por esquematismos abstractos, que alejan de la naturaleza de las mismas, dificultar significará,
sobre todo, retornar a la originario." CF. Emílio Estíu, "Estudio preliminar", Introducción a la Metafisica, p.7
29Idem, ibidem, p.14
30Heidegger, Introduction à la Métaphysique, Chap. IV "La limitation de l'être", III — Être et penser, p.124.
Considerando que a palavra "ser" tem uma significação bem delimitada, havia que enunciar os termos em que se
devia compreender. Reconstitua-se então o percurso que levou Heidegger até Antígona: nos primórdios do
pensamento filosófico grego estava a origem da determinação do ser, pelo que procurou em Heráclito —o origem da
filosofia ocidental —, uma primeira interpretação, iluminada pela referência fundada na acepção veiculada na
Antígona. "L'être est l'objectif, l'objet. Le penser est le subjectif, le sujet. Le rapport du penser à l'être est celui du
sujet à l'objet."(Cf. p.143) Heidegger presume que nos primordios do pensamento grego não se evidenciava
propriamente uma oposição ainda, pois não tinham recebido uma formação epistemológica suficiente, concebendo a
relação de modo ainda bastante primitivo. Em Parmenídes, o ser é unificado em si mesmo — pensar e ser são a
mesma coisa. O ser predomina e como aparece, é preciso que haja a sua apreensão; para que o homem esteja
interessado no acontecimento dessa apreensão, exige-se que o próprio homem "seja", que pertença ao ser. (Cf. p.147)
Heráclito ao questionar o que é o homem envolve como termo oposicional os deuses, deles provindo a irrupção do
próprio ser. A questão, segundo Heidegger, nesta sequência, seria de ordem metafísica e não antropológica, pois
deveria procurar a essência do ser, ao sendo do homem, e portanto ultimamente ao ser.(Cf. p.151) Necessariamente
procurou então o esboço poético do ser-homem nos gregos, a partir da leitura precisamente do 1º Coro de Antígona.
31No primeiro percurso, o ser do homem como "inquietante" só podia ser descoberto pelo projecto de poesia e do
pensamento: qualificá-lo como tal, é colocar o homem nos "limites extremos e abismos abruptos" do seu ser. Como
notou Heidegger, se nos gregos não existia ainda a noção de personalidade, a delimitação do ser do homem tinha de
ser realizada pela asserção extrema de suas acções e dos sentimentos.
Inquietante é o assustador, o verdadeiramente terrível, não dos pequenos medos, mas a potencialização do prepotente,
o que provoca o terror, o pânico, o violento. Cf. Heidegger, op.cit., p.156
32"Poesia e Criação", Ensaios, p.166. Este excerto pertence ao "Estudio preliminar" de Emílio Estiu que segue: "Al
hombre le es imposible una actitud pasiva radical, ya que la prepotencia del ser lo arrebata del conformismo consigo
mismo, evitando que sea como las cosas son." Emilío Estiu, "Estudio preliminar", Introducción a la Metafísica, p.29
33""...être ce qu'il y a de plus inquiétant, c'est le trait fondamental de l'essence de l'homme, auquel les autres traits
doivent toujours être rapportés." Heidegger, Introduction à la Métaphysique, p.158
Atuando em “violência”, os homens destacam-se na polis, solitários, eminentes na sua
paradigmaticidade trágica; revelam-se criadores, homens de ação por excelência: "ils
deviennent en même temps des hommes sans frontières, sans architecture ni ordre, parce
que, comme créateurs, ils doivent toujours d'abbord fonder tout celà."34

2º percurso: acompanhamento das estrofes, ladeando o sofrimento do homem no


desvelamento que consiste em revelar, pela atuação, o mais inquietante. Enuncia-se o mar e a
terra em sentido cosmogónico e matricial. A terra é deidade suprema, predominância
indestrutível. O homem, sobre ela exercendo sua violência, perturba a calma da germinação.
Leva à maturação e prodigaliza, "com superioridade tranquila", o inesgotável para além de
todo esforço. Como nos ciclos da natureza, o ser do homem renova-se sempre sob várias
formas, mantendo-se numa via única: enquanto vivo, insere-se na predominância do mar e da
terra, impondo-lhes seu jugo.35

A cronologia do Humano, aconteceu pelo originário: o mais inquietante e violento. Neste facto
reside a compreensão do carácter misterioso da origem, autenticidade e grandiosidade do
conhecimento histórico — a mitologia. Nesta análise de Heidegger coincide Almada. O ser
descobre-se como elemento primordial: mar, terra, animal. Pelo entendimento, nomeação das
coisas e linguagem, acrescenta-lhe força, consolidando o domínio: a prepotência exerce-se
gerando a ação criadora, a fundação edificadora - o ato poético exige um saber realizador, no
que acha coincidência ao estudo sobre Prometeu, dádivas de Atena. Saber, significa "ser
visto".36
A obra de arte só é Obra, quando feita, efetuando o ser no sendo. Efetuar, significa operar,
colocar em obra: Kunswerk, segundo Heidegger, é considerada como das seiende Sein37, tudo
o que aparece como outro, significante e inteligível. A arte é saber realizador, adquirindo
forma de sendo, em si, ajustado à forma apreensível, inteligível.
3º percurso respeita ao enfrentamento entre Seiend prepotente, em totalidade, e Dasein
exercendo a violência do homem conducente à delimitação extrema, à ruína.38 Escreve
Almada:

34Idem, ibidem, p.159


35Ao enunciar, descrever e ilustrar os diferentes campos de actividade e de comportamento, próprios do homem,
trata-se "en réalité d'un projet poétique de son être à partie de ses possibilités et de ses limites extrêmes." Cf. Idem,
ibidem, p.161. Heidegger não segue a opinião daqueles que nestas estrofes encontram um canto que narraria a
evolução da humanidade, desde o caçador selvagem, do construtor de pirogas até ao construtor de cidades, enfim, ao
homem civilizado.
36 Como nota Emílio Estiu, colocar em obra o ser, operacionalizá-lo como algo determinado, realizar o ente
especificamente em obra. CF: « Si les Grecs appellent tout particulièrement et au sens fort l'art proprement dit et
l'oeuvre d'art, c'est parce que l'art est ce qui porte le plus immédiatement à stance en un adestant (en l'oeuvre) l'être,
c'est-à-dire l'apparaître qui réside en soi-même. » Idem, ibidem, p.165
37 “o ser, sendo”…Cf. Heidegger, Op. cit., p.166. Veja-se igualmente, na versão castelhana o "Estudio preliminar"
quando Estiu, citando Heidegger, faz notar que, "Entre los griegos el "ser mismo
38 "Or, l'homme est nécessité à un tel être-là, jeté dans la nécessité d'un tel être, parce que le prépotent
comme tel, pour apparaître dans sa perdominance, a besoin pour soi du site de l'ouverture au prépotent."
Por necessidade está destinado ao desocultamento ontológico. Os
poetas e os pensadores são os assinalados pelo signo da
insatisfação: não se resignam a ficar dentro do já desoculto, do
familiar e do ordinário.39

A essência do homem, experimentada no ato de criação poética - obra pela prepotência,


exclui-o da polis, levando-o para longe, decisão legitimada pelo Coro, voltando-se contra o
inquietante: "Un tel être-Là ne peut pas être vu dans le train de vie ordinaire, dans un
comportement quelconque."40 Esta perspetiva heideggariana, para onde conflui a
indiferenciação, reencontro dos dizeres poético e filosófico, interessou Almada quanto ao
conceito metafísico de ser homem/pessoal, naquilo que melhor expressa o institutivo do
originário. Pela poesia, pelo pensamento, pela criação achava-se um povo, Heidegger dixit - o
povo grego. Almada vislumbrou no último Heidegger, a intenção — em aparência — afirmado
por Emílio Estíu no estudo preliminar à tradução castelhana: a "suposta contemporaneidade
do arcaico"41

A acção violenta exercida pela palavra, em linguagem poética, atingia a insatisfação pela
passividade; exigindo o ser inquietante a ação, pois: "el ser de los entes se le revela al hombre
en cuanto éste dice lo que son."42 O poeta, o pensador, os mais pavorosos — prepotentes ou
inquietantes — acham ação na obra feita. Não deixam "as coisas tais como são", nem estão.
Nas palavras de Fernando Guimarães: "o homem perde o essencial; pela poesia, procura
reavê-lo"43, transposto Almada: "O homem perde-se e a linguagem faz-se."44 A poesia exige
ocultamento do desoculto, ato estético individual, pois do poeta, condição para a criação que
é única, pessoal e intransmissível. Pela prepotência verificada no homem, através do ato
criador, configura-se a individualidade do homem, nos limites extremos que lhe impedem
aquietar-se.

Maria de Fátima Lambert

E : « L'essence de l'homme ne s'ouvre à nous que lorsqu'elle est comprise à partir de cette nécessité par
l'être même. » Idem, ibidem, pp.168-169
39"Poesia e Criação", Ensaios, p. 166, citando Emílio Estiu, op. cit., p.29: "Por necesidad está destinado
al des-ocultamiento ontológico. Los poetas y los pensadores son los señalados por el signo de la
insatisfacción: no se resignan a quedar dentro de lo ya des-oculto, de lo familiar y de lo ordinario."
40Heidegger, Introduction à la Métaphysique, p.170. Veja-se quando Almada cita ainda Estiu: "Por isso
constituem um perigo para os amantes da estabilidade e eles — como dizem as últimas linhas do texto de
Sófocles citado por Heidegger — não estão dispostos a conviver com semelhantes homens." "Poesia e
Criação", Ensaios, p.166
41Emílio Estíu, "Estudio preliminar", Introducción à la Metafísica, p.14
42Idem, ibidem, p.29
43Fernando Guimarães, "Almada Negreiros, poeta", Almada — Actas do Colóquio, p.115.
44"Poesia e Criação", Ensaios, p.167

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