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ESTANTE DE PSICANALISE Laplanche, J. — A Angistia Laplanche, J. — Castracao/Simbclizacdes Laplanche, J. — A Sublimagao Tallaferro, A. — Curso Basico de Psicandlise Bion, WR. — Uma Meméria do Futuro I: — © Sonho Ferenczi, S. — Didrio Clinico Lagache, D. — A Transferencia McDougall, J. — Teatros do Corpo Laplanche, J., Cotet, P., Bourguignon, A. — Traduzir Freud Laplanche, J. — O Inconsciente e 0 Id Futuros lan Ferenczi, S, — Obras Completas ‘Outras obras de interesse Bettelheim, B. ~ A Fortaleza Vazia Blos, P. — Adolescéncia Bowiby, J. — Apego e Perda — Apego Bowlby, J. — Apego ¢ Perda — Separacto Bowiby, J. — Apego e Perda — Perda Dolto, F. — Sexualidade Feminina Braier, E. A. — Psicoterapia Breve de Orientagio Psicanalitica Goldstein, J, Froud, A., Solnit, A, J. — No Interesse da Criangs? Mannoni, M. — A Crianga Retardada e 3 Mle Spitz, R.A. — 0 Primeiro Ano de Vida Valabrega, J.-P, — A Formagao do Psicaralista Winnicott, D. W. — Privagho e Delingignsia PROBLEMATICAS IV 0 INCONSCIENTE E OID J. Laplanche seguido de O inconsciente: Um estudo psicanalitico por Jean Laplanche e Serge Leclaire m Martins Fontes Sdo Paulo — 1992 Titulo original: LINCONSCIENT ET LE GA Publicado por Presses Universitaires de France Copyright by © Presses Uriversiaires de France, 1981 Copyright © Livraria Martins Fontes Editora Ltda., 1984, para 2 presente edicdo 14 edigdo brasileira; novemibro de 1992 Tradugdo: Alvaro Cabral Revisdo da tradugdo: Claudia Berliner Revisto tivografica: Flora Maria de Campos Fernandes ‘Sandra Rodrigues Garcia Produsio grfice: Geraldo Alves Composigdo: Alexandre Augusto Nunes Copa — Projeto: Alexandre Martins Fontes Dados Intermacionas de Catlogagio na Publicaeo (CIP) “Clmara Rraslin oo Livro, SE, Brasid Tapanche, Jean ‘ nconscente eo 1 guid de: O Ineonssente = um tudo psleanalico / Jean Lplanche, 8. Lexa ; [duc ‘AWvaro Cabral. Sio Pedlo Martins Fontes, 1992. — (state de Pacandis) ISBN 85-336.0082.5 1.14 (Psicologia) 2. Subconsiente 1. Lesaire, . I ‘Tilo, 1. See 92.2009 cDp-1s4.22 Tice para eatlogosstemdtco: 1. Id: Plcloni 184.22 Todos os direitos para a lingua portuguesa reservados LIVRARIA MARTINS FONTES EDITORA LTDA. Rua Conselheiro Ramatho, 330/340 — Tel.: 239.3677 101325-000 — Sao Paulo — SP — Brasil Adverténcia Sumdrio I. Referéncia ao inconsciente: — 8 de novembro de 1977 Ensinar a psicandlise na Universidade. . A “tese””: uma contribuicdo... Romper e reatar.. — 15 de novembro de 1977 Espirais desde Bonneval. Espirais da castracdo. — 29 de novembro de 1977 A sublimagio e 0 origindrio. ... O inconsciente: cadaver ou espectro? Referéncia tedrica e pratica. inconsciente na cultura. As vias de Leclaire Realismo ou intencao significante. — 6 de dezembro de 1977 Verdade da maquinaria. O “querer significar’” ndo da lugar ao conflito. .. Esclarecimentos sobre os dois modos de escuta. . A sesso: formagio do inconsciente. 12 14 23 28 27 30 31 32. 35 36 Insuficiéncia do critério “conscitncia””....... 40 E insuficiéneia da oposi¢ao puramente “tépica”” 1 4 ee 13 de dezembro de 1977 | © modelo da metibole e suas interpretagdes........... 107 . 1 .. nas linguas naturais. oe io ‘A abordagem “funcional”. ooo . 43 | pay “an a rearesdo formal oe o Para nos situarmos exatamente 412 i 27 Oa aaca ane 7 O inconsciente de um texto? us Sonhos de em cima e sonhos de embaixo. . 50 pecan 8 ybro de 1977 | eee ees ; | — 21 de novembro de 1978 © micleo da realidade psiquica 32 7 i 0 © sonho nao é comunicagao. 35 \ ano passado: 0 inconscientee o recaleamento....... As transposigdes de um sistema a outro: as duas hipoteses 57 | O inconsciente: detido em 1915?.......... an Gog | Novidade ¢ retorno em psicandlise....+..+ ++ 120 0 ees Primeira t6pica: descoberta da “‘outra coisa’” psiquica, . 122 Hipotese funcional e recalcamento originario. 60 } Périplo do inconsciente:.“descritivo” ceceeeees 122 inconsciente e 0 id. 8 +. dindmico... 123 O recaleamento a posteriori 67 . sistémico... 124 16 de janeiro de 1978 | . heterogeneo, 125 Contra-investimento e pregnancia de uma forma. . 70 1 — 28 de novembro de 1978 Reconhecimento do Ics ¢ a hipdtese t6pica. .. "4 a Perlaboragio ou ecmnémica. 5 Motivos para uma substituicdo do inconscient 126 os a ' Sobreposigdes das fronteiras tOpicas... .... 127 ein No conifito: oinconsciente nfo é0 apandgio de um dos pélos 130 © processo primario e a retérica. 8 | | O ego inconsciente: inconsciéncia de seu funcionamento, Formacao do simbolo mnémico..... 85 | pa tanccine aie —— 131 31 de janeiro de 1978 Os contetidos Ies: fantasias ou pulsOes? + 132 Ce 88 A segunda t6pica instala-se pelo topo 134 Um modelo para o recaleamento. 90 a aoe A célula saussuriana........ecsceceeeeeeeeeeeeees OB i . Significante no inconsciente Dilteees O j Instfaciasantropomérfiase nfo mais funeionss...... 135 ji | Para introduzir um “tid” . 1 i Ue | Groddeck tal como em si mesmo... 137 . ¢ “significado?”’.... 7 | “Monismo de Groddeck e terrorismo antifiloséfico de Freud 138 © inconsciente nada comunica..... 98 i Relatividade do dualismo alma-corpo. . 139 Recalcamento e seducao.. : ve A subversao da problematica corpo-alma foi ignorada Do discurso da mae ao inconsciente da crianga: por Groddeck. = we 14 um metabolismo. 100 i Reabsoredo do dualismo sexual - weve 141 Célula saussuriana e hegemonia estruturalista......... 102 Harries ae ee a Gracas a Hjelmslev: desvendamento do formalismo. ... 104 © id: desconhecido. ia — 12 de dezembro de 1978 Uma dialética sem sintese.. 5 Groddeck com Freud: predominio da sexualidade O simbolismo: com Freud. . © pansimbolismo: além ou aquém de Freud? Uma metodotogia fiel a Freud Diferengas na abordagem terapéutica. ...... Centracio na finitude do sintoma. A grande tradigao hermenéurica do Renascimento © pansimbolismo... O id, tomado de empréstimo ou domesticado Confronto de opinides, ou problemética....... O id: quatro opedes: pulsional, genética, impessoal, sépiea Povoamento e despovoamento da tépica. — 9 de janeiro de 1979 0 caldeirao do id. Debate sobre o afeto inconsciente. Independente da representaco, 0 afeto vira angiistia No saco do id, as pulsées. ‘A representincia: sua linha néo € univoca. Presenca do corpo: onde sitzar a fome? As regulagdes fisiolégicas. . ‘A auloconservagao em psicaxilise: constincia e evolusao do seu estatuto. — — 16 de janeiro de 1979 O adaptativo expulso do carapo psicanalitico © adaptativo vicariado no campo psicanalitico adaptativo nos limites do campo: trés exemplos sonho ¢ a fome ‘Animais e criangas: simples sonhos alimentares? . Qs sonhos de criangas sao de tipo ‘‘infantil””? Freud sonha com “Knédel”. Duplicidade on “politica teorica”” de Freud. Rank: bode expiatério teérico A fome no pode ser recalcada — 23 de janeiro de 1979 Id e pulsio de morte: um vinculo profundo. . A destrutividade: uma descoberta contra a sexualidade? . 146 146 147 nl d7 149 150 151 152 154 155 156 157 158 159 2 160 161 1 164 1 164 165 166 168 169 170 +172 173 1174 175 176 17 178 180 180 A nossa concepeao: um aprofundamento e um remanejamento . seeeeeee ~ 181 Uma descoberta... mas nao onde se a situa. 182 A pulsao de morte: é preciso interpreté-la. . + 183 Panorama de uma “‘divergéncia”’: da recusa.. 185 - A reducho....... 8s Pulsio de morrer , 188 Modalidades de uma “‘adesfo”......0..ccceeeresees 188 Nirvana e epicurismo.... » 189 30 de janeiro de 1979 Com Melanie Klein. vee IL Esclarecimentos quanto & angustia. 193 “Primariedade” do sadismo infantil. ~ 194 ‘Atague pela pulsio de morte igual a ataque pela libido. 195 ‘A questo: “idéia”’ da morte. . wees 196 ‘Angistia (de) morte, idéia da morte: ambigiidades deKlein 197 Klein e o tempo ‘auto’: projegao ou deflexdo?.....-- 200 7 de fevereiro de 1979 © devorador interno. : = 203, Esquema de uma deflexao origindria?.......-++ 205 Klein inverossimil e Klein “observadora””..... ++ 205 Uma génese mitica 207 As oposigdes Kleinianes: um “jogo de armar”? + 208 Posigho parandide e posichio depretsiva... ..- 209 .. sua complementaridade dialética. .... sees 20 Pulsdes sexuais de vida e pulsOes sexuais de morte..... 212 Pulsio de objeto (total) e pulso de indice. .......-.++ 213 © inconsciente, um estudo psicanalitico.........e.:se50e00+ 215 por Jean Laplanche e Serge Leclaire 1 - Trés vias de acesso a0 realismo do inconsciente..... 215 a) Sentido e letra. Exame da critica de Politzer........ 215 ’) Os dois modos de escuta, As lacunas do discurso cons- ciente. A nogio de “formagdes do inconsciente”.... 222 c) O inconsciente e o problema da consciéncia.. + 224 11-0 inconscente como sistema em Freud. Orenacioe impasse das hipéteses freudianas.......- 227 a) Necessidade de uma segunda estrutura.....c..0-+++ 227 b) A hipétese da dupla inscrieao. veces BR ©) A hipétese econdmica. IIL - O “texto inconsciente” de um sonho. ... =. 232 a) Andlise de um sonho...... — +. 233 b) Da necessidade ao desejo. O problema da pulsdo..., 235 ©) Observaedes sobre os mecanismos do sonho e da interp tacdo. O “processo primério”. Ametéforaeametonimia 242 IV - O inconsciente é a condiedo da linguagem. Interde- pendéncia dos sistemas pré-consciente e inconsciente 245 a) Posigao do problema: linguagem e processo primario 245 b) Ficeao de uma linguagem em estado reduzido....... 246 c) A metafora constitutiva do inconsciente e o recalcamento originario 249 V - Estudo cltnico de alguns mecanismos fundamentais do inconsciente a 8 20, a) O recalcamento secundario e 0 recalcamento originario 256 b) A formagao do sintoma neurético. . 263 Adverténcia Desde 1962 na Ecole Normale e desde 1969 na UER® des Sciences Humaines Cliniques na Sorbonne (Université Paris, VII), venho bus- cando e expondo, num curso piblico, um método interpretativo e de levantamento de problemas, ao longo de certas eixos principais da teoria psicanalitica, Sob o titulo geral de Problématiques (Probleméticas), os cursos a partir dos anos 70-71! estio aqui reunidos. O texto oral sofreu apenas as modificagdes necessérias & sua publicagao em livro. Os temas dos anos sucessivos encadeiam-se segundo uma ldgica que nada tem de deliberada: o percurso rege-se ao mesmo tempo pelo contetido e por minha evolugao pessoal. Sé depois descortinei a possi- bilidade de, sem excessivos artificios, reagrupar esses temas num certo nuimero de volumes. O ciclo de um curso anual é iniciado, na maioria das vezes, por uma introducéo metodoldgica, mais ou menos extensa. Impressas emt itdlico, essas introducdes dispensam-me de retomar agui suas idéias. Sao orelato de uma reflexio posterior sobre as modalidades de minha abor- dagem, e sobre a legitimidade de desenvolvé-la “na universidade”. Eevidente que o leitor, segundo suas disposicdes e sua disponibi- lidade, poderd reagir a esta publicacdo de duas maneiras. O classicis ‘mo das no¢ées apresentadas, o fregiiente recurso ao comentario criti £0, os retornos e as repeticoes (exigidos pelo fato de me dirigir, a cada ano, a um auditério em grande parte novo) poderdo fazer com que es- tes textos sejam considerados um exemplo da muito desacreditada “exe~ gese freudiana”. Ou entéo, creditando-me uma certa paciéncia e bene- voléncia para acertar 0 passo comigo, talvez.o leitor seja receptivo a cer- tos aprofundamentos ow a certas sondagens, na tentativa de abordar aprépria teoria levando em conta o método analitica, de modo a fazer ranger determinadas articulacdes ea derivar certos conceitos. Airavés deste método de tornar problematica a doutrina, mas também a histé- ria e a clinica, esboga-se a configuracdo de uma outra tematica. * Unité Enseignement et Recherche: Unidade de Ensino e Pesquisa. (N. T.) 1. Foram inicfalmente publicados no Bulletin de psychologic; depois, a partir de 1774-75, na revista Payehanalyse a "Université I Referéncia ao inconsciente — 8 de novembro de 1977 Todos os anos proponho-thes uma espécie de prefécio metodol6- gico que em meu intuito deveria ser breve mas que, afinal, necessita sem- pre de um certo desenvolvimento. Vocés encontrardo as marcas disto a0 longo da publicacdo destes cursos". Encontrardo particularmente — e precisamente — uma reflexdo continua sobre o sentido do que po- de significar “ensinar a psicandlise na Universidade”, com seus trés ter- mos: “ensinar”; “psicandlise”’ e “universidade”” Ensinar: 0 que pode ser um ensino digno desse nome? No fim ENSINAR A das contas, no éuma qualidade particular PSICANALISE da psicandlise merecer um ensino que ndo NA UNIVER- se resuma a um repisamento enfadonho, a SIDADE, uma repeticao, No nivel das ciéncias huma- nase igualmente no nivel da antiga mde de todas as ciéncias humanas, a filosofia, tal ensino jd constitui una exi- géncia, Iss0 quer dizer que um ensino digno de tal nome, onde quer que Se exerca, nas ciéncias humanas ou na filosofia (que ndo separo, de mo- ‘mento, deste ponto de vista), ndo pode ser outra coisa sendo 0 correla- tivo de uma pesquisa, Pode ser 0 relato, a apresentacéo formal de uma pesquisa em curso, que se desenvolve eventualmente — e em parte — num outro terreno, ou pode ser 0 proprio lugar de sua elaboragéo; 0 Presente ensino € 0 ponto de cristalizacdo da minha pesquisa, fecun- dada, evidentemente, pela experiéncia cotidiana da andlise. 1 Nesta sire das Problemdticas 2 O INCONSCIENTE E 0 1D Ensinar a psicandlise. Discuti longamente todas as prevengdes que ‘se multiplicaram contra esta formula em diferentes meios mas, em es- pecial, no meio analitico — prevenedes estas que acabaram por se de- finir numa oposicéo que nao é tao nova quanto se pretende, aquela entre 0 “saber”*ea “verdade”: a psicandlise seria 0 ugar da verdade, ao passo que o saber seria apenas 0 mododese defender, de imobilizar essa ver- dade. Se a oposicao nao é nova (ela data de hd muitissimo tempo: pense- seem Sdcrates e nos socrdticos, em sua exigéncia metodoldgica de na- da saber para chegar a uma certa verdade), certamente encontrou um novo vigor com a psicandlise e com a demonstragio precisa, na psica- lise, dos mecanismos de defesa que o saber possibilita. Subsiste, en- tretanto, 0 fato de que toda verdade pode, sem dtivida, imobilizar-se em saber, mas nao hd surgimento da verdade sem a base inicial de um certo saber. F tive acasiéo de lembrar que o mais recente pensador que retomou essa oposicio, refiro-me a Lacan, sublinhou por varias vezes que essa formula era profundamente desvirtuada se fosse utilizada co- ‘mo um dlibia fim de justificar apura e simples ignorancia. Seja como for, nao é de minha indole ir ensinar aos quatro ventos — os ventos das sociedades anallticas, dos coléquios ou da universidade — que a psi- candlise nao se ensina. O problema é apenas 0 de apurar como ela po- de ser dignamente exposta em relagao ao seu objeto, objeto que quali- Ficamos, de momento, de um modo muito extensive, o “inconsciente”: precisamente 0 tema de nossa investigagéo deste ano. Mas retorno & formula “ensinar a psicandlise na Universidade” para examinar rapidamenie o seu terceiru (erm. wa Universidade. A objeedo a ensinar a psicandlise nesses lugares, poderfamos dizer quese decompée em dois aspectos: un: individual ¢ 0 outro social, para néio dizer politico. Portanto, em relaedo aos individuos, ensinar a psicand- lise na Universidade colidiria, por definigio, com a ndo-especializagdo dos ouvintese, de um modo mais preciso, no que se refere & andlise, com 0 fato de ndo ser exigido dos ouvintes que sejam analistas e (jd que ser analista, em prinetpio, éser analisado) que sejam analisados. Essa no & em todo caso, uma condigéo necesséria; e eu diria, sobretudo: Gra- as a Deus! Gracas a Deus para a andlise, nao ser exigido que, para ou- vir falar de andlise na Universidade, se possua um certificado de andli- se, 0 que seria muito simplesmente 0 fim da andlise como proceso in- dependente, atépico, nao normativo. O dia em gue a andlise se torne objeto de um certificado que outorga um direito— néo como resulta- do de seu processo mas como sancio puramente formal em decorrén- cia de ter sido feita —, entio trata-se de qualquer outra coisa menos de anélise. Resta um problema de natureza mais metodoldgica, mais REFERENCIA AO INCONSCIENTE _ “técnica”: que jd ndo tem nada a ver com a objegao formalista: 0 que que significa e implica falar de andlise aos “‘ndo necessariamente ana- lisados”’? A um puiblico ndo selecionado seguncio win critério como po- de ser o de uma sociedade de analistas, onde, em principio, um ensino administrado a pessoas que, de um modo ou de outro, tém em sua bagagem uma andlise pessoal? Pois bem, tenho-me perguntado mui- tas vezes o que significava essa oposiedo, se mantida em toda a sua ri- gidez, com essa espécie de exclusividade que tem sido fregiientemente pronunciada pelos analistas (ndo falo de Freud mas de outros analis- tas depois dele e de todas as correntes); exclusividade que pode traduzir- sede mil maneiras: distingdo entre um ensino exotérico e um ensino eso- ‘érico, um semindrio aberto e um semindrio fechado, seminérios de ini- ciagdo e semindrios reservados aos alunos, etc. Creio que isso manifes- fa muito pouca fé na andlise e, no que se refere ao ouvinte deste ensino, na receptividade, na reatividade do seu inconsciente. A andlise esté lo- calizada num espaco e num tempo, 0 espaco de tratamento eo tempo de sua duracép, se hem que, precisamente, essa limitacdo jé provoque uma outra péfeunta: quem nao sabe que a andlise se prolonga em auto- andlise e, diria eu, que jd € precedida por uma auto-andlise? Mas, de um ponto de vista mais geral, 0 que seria da andlise se ela nao se refe- risse a algo acessivel em cada wi e que, precisamente, extravasa dos limites do tratamento analtico? Havia “andlise”’ é bom quese persua- darn disso, antes da andlise e antes de Freud, tal como havia inconsciente ow transferéncia. A menos que se adote af uma visto epistemoldgica — cujo representante mais eminente e mais elogitente é Michel Foucault — que pessoalmente considero insustentdvel no seu idealismo histori- cista; dizem-nos, por exemplo, sem outra forna de proceso, que 0 ho- ‘mem (e ndo apenas uma certa idéia de homem) nasceu no séeulo X VIIT emorreu no séewlo XX, que a vida (e nao a biologia) nao existia antes do século XVIII; ou ainda, para voltarmos ao nosso terreno, que o in- consciente nada significa antes de Freud, que néo se pode falar deuma existéncia do inconsciente antes de Freud. Sem nos alongarmos sobre essa questdo de historia da humanidade e para tampouco falar da hu- ‘manidade mas de cada um de nds, existe, do mesmo modo, andlise fo- rado espaco mais restrito da pratica analitica, e néio foi apenas por um capricho que fornulei as coisas nestes termos: vocés todos sio, nds to- dos somos “os que estiveram, 05 que estdo ou os que vao estar (futu- ri)” em andlise, mesmo que, em sua vida, nenhum de vocés tenha ja- mais se estendido num diva. Renunciar a ensinar a andlise a ndo-ana- listas, a ndo-necessariamente-analistas como é 0 caso de vocés (mes- ‘mo se, por outro lado, estivessem todos, por acaso, “em andlise”: nao 4 O INCONSCIENTE E 0 ID o estariam necessariamente, em funcdo da presenca aqui), é renunciar @ inventar, a reinventar incessantemente um modo de ensino que seja permedvel & inspiracio da andlise, permedvel ao inconsciente. E um pro~ blema que terei de voltar a evocar quando chegar 0 momento de expli- car como passei este ano das pesquisas e desenvolvimentos respeitan- tes & simbolizacao ou @ sublimac4o” para o tema que hes proporei ago- ra: 0 do inconsciente. Com efeito, nesimbolizacdo e na sublimagao uma importante questo que, em ultima instancia, supera todas as outras, consiste em saber se hd simbolizagdes nas quais, poder-se-ia dizer, 0 incons- ciente penetra, sublimages que permanecem permedveis ao inconsciente. Dizia eu que a repugnancia em falar de andlise na Universidade pode assumir uma outra forma; nao mais em relagdo aos individuos (sa- ber se eles sdo ou nao analistas, portanto, ouvintes possiveis, abertos deste discurso) mas em funcdo da Universidade, considerada agora co- mo instituigdo. Objeca, no mais amplo sentido da palavra, “politica” ‘e que poderia ser assim formulada: ao ensinarmos psicandlise na Uni- versidade, ndo estaremos participando de uma institucionalizacéo da psicandlise? O que me interessa nessa objecdo é 0 problema de uma po- Iitica de andlise (nao o problema politico no sentido geral e habitual do termo, no sentido cfvico), ou seia, na sua possibilidade de se man- ter numa certa atopia, numa certa ndo-institucionalidade, sem cai, en- tretanto, no esoterismo, sem se dar ares de sociedade secreta (alids, a “‘sociedade secreta”’ nao seria uma outra forma de instituieao?). Fala- ‘se, por vezes, como sea era das caiacumisas, 0 momento de entrar no maquis, se divisasse no horizonte para a andlise. No fim das contas, é uma eventualidade imagindvel, numa sociedade elvil que estaria com pletamente confundida com asua instituigao, mas é uma eventualida- de desreal no estado atual. Seja como for, essa relagdo “politica” en- tre a andlise ea Universidade é, emiiltima instdncia, na minha opinido, avicissitude propria de uma relagie de forcas. Uma instituicdo — a ins- tituigdo universitdria — fortementeestruturada, muito integrada social- mente, estreitamente finalizada do ponto de vista de seus objetivos, nao deixaria lugar para um ensino da andlise digno desse nome. Felizmen- te, a Universidade em certos momentos — ela talvez o fosse mais ha alguns anos — e em certos setores — precisamente este setor mal fina- lizado, pouco rentével, que é 0 das ciéncias humanas —, a Universida- de, dizia eu, permanece um pouco aberta a todos os ventos. E prin palmente 0 caso deste DEA** inclusive deste 3° ciclo, a cujo respeito direi, = Ver Problematicas I, Castrac#~/Simbolleagdes, ¢ Problemdticas I, A sublima- ‘0, Martins Fontes, 1988 ¢ 1989. (N. T.) **DEA: Diplome d'Etudes Approfordies, obtido ao fim do primeiro ano de pre- paragiio do 3° cielo. (N. R.) REFERENCIA AO INCONSCIENTE 5 para que vocés se desesperem, que, a bem da verdade, tém apenas uma utilidade social muito duvidosa e marginal, néo thes servirdo de muito no mercado de trabalho, a menos que se arquitete alguma saida um tanto fraudulenta, o que tampouco é imposstvel, Mas, tomados ao pé da le- tra, sao diplomas que conferem o direito a efetuar pesquisas e, even tualmente, um documento de apoio para postular um cargo docente. Pois bem, dessa relacdo de forcas que faz, com que a Universidade es- teja aberta a todas as correntes, com que este 3° ciclo seja ele préprio ‘marginal, a andlise deve tirar todo 0 proveito que puder, enquanto durar essa relacda, desde que cada analista docente faca regularmente uma ava- liagio de sua participacdo no trabalho universitério; isso para nao correr o risco de perder a alma, Por certo, ndo se tome esta apologia do ndo- finalizado, do ndo-rentdvel, por uma tomada de posicao a favor de “qualquer coisa’’; ndo € isso 0 que pretendo dizer, em absoluto: a aber- turaa todos os ventos, a todas as correntes, ndo significa 0 arbitréria.. Eis, pois, um “DEA’, eis um “3° ciclo” e, A TESE": UMA com muita freqiléncia, ougo indagar, quan- CONTRIBUIGAO do recebo um estudante: quais sio as suas exigéncias para uma tese, 0 que éum traba- Jho universitdrio? Tal tema me interessaria, mas serd realmente “‘uni- versitério””? E, até, quantas paginas se devem propor para que seja real- ‘mente uma tese? Interrogacées e ansiedades perfeitamente concebiveis es quais é preciso tentar responder. Mas respondo-Ihes dizendo logo, com firmesa esem demagogia, que nesse nivel sou suficientemente pow- co universitdrio para nao saber o que é ser universitdrio eo que éfazer um trabatho “universitério”; ou ainda, para defender os “‘bons” uni- versitdrios (pois hd bons e maus, como em todo lugar), que recuso essa espécie de assimilacao, que aqui se vishimbra, entre universitdria, pe- dantismo, exigéncias puramente formas, até mesmo “academicismo”’ Academicismo? No fim das contas, assim como existem universitérios ‘que sao pedantes e outros que procuram néo 0 ser, hd, sem dtivida, bons e maus académicos. Mas quando se fala de academicismo nao € tanto da Academia Francesa que se fala mas das “academias”; das escolas que ensinam desenko a partir do “modelo” nu, e que pretendiam ter alcancado essa espécie de formalismo a que se dd precisamente 0 no- ‘me de academicismo, Consultem o diciondrio de Robert e ai encontra rao esta frase exemplar, que resume todo o processo da Academia, até ‘mesmo da Universidade: “Acusou-se por vezes Ingres de academicis- ‘mo, sem compreender a sua profunda originalidade.”” 6 O INCONSCIENTE E 0 1D O que é uma tese de 3? ciclo? No fim das contas, esta é uma inter- rogacéo legitima; mais precisamente, o que é uma pesquisa consigna- a ern tese? E $6 encontro um terms para designar o que deve ser a nossa dermanda em relacdo a esses trabelhos: 0 termo “contribuigéo”. Para ‘mim, uma tese de 32 ciclo deve ser uma contribuicao, 0 que permite efini-la em relacdo a certos termos simultaneamente vizinhos e anti- ndmicos. Um dos principais seria, sem dhivida, “dissertacdo”: A di sertac&o é um género que ndo deixa de ter seus méritos. Nao joguemos fora a dissertacdo; talvez thes pecam uma dissertacdo, justamente no Final deste ano de ensino. E um exercicio onde podem brithar a inteli- géncia, otalento... mas é um género por definicao repetitive e niio con- tributivo. Em algum momento dos estudos, a todos vocés foi proposto dissertar sobre “o amor em Corneille” ou “‘o Cogito em Descartes ¢ em Kant": O “Cogito'em Descartes” pode-se repetir; foi certamente repetido centenas de mithares de vezes. E ndo ereiam que estd assim to ausente nos dias de hoje. Rimos do “Cogito em Descartes ¢ em Kant”, ‘mas rirdo, tanto, ou nio haverd entre vocés alguém que rird amarelo, seeu disser que também hd “osujeito em Freud e Lacan’? Isso equiva- Te ao “Cogito em Descartes e em Kant”! Ou ainda, nuim tridngulo com permutas bem divertidas: “corpo e linguagem”, “‘linguagem e institui- a0"; “instituicdo e corpo”. Podem ser feitas dezenas de milhares. A dis- sertagio pode, por vezes, desembocar numa contribuicao, Pensem que Rousseau comecou ase fazer conhecido por duas dissertagdes sobre “as sunto proposto”’ por “academias” — precisamente — e que o primeiro texto de Kant que rompe com seusescritos dogmdticos foia famosa “‘dis- sertacdo de 1770”. Mas, enfim, digamos que essas sao excecées, e é pre- ciso que conserve em mente essa inéia de que a contribuiedo ndo éuma dissertacdo e que ndo se trata de propor o tratamento retdrico de um te- ‘ma que paira no ar do nosso tempoe que poderia ser retomado por cen- tenas de estudantes sem que a questo se mexa um miliimetro sequer. Is- so ndo é wma tese de 3° ciclo, pelo menos tal como eu a entendo. Outro termo antindmico, que tenho mais dificuldade em definir, e que designarei como testemunha isto é, 0 depoimento sobre urn per- curso, uma experiéncia, uma conferéncia, etc. Tal como a dissertacéo, 9 testemunho ndo pode ser jogado fora. O simples testemunho ndo é desprezivel, o percurso é indispensdvel: como um psicanalista, um cli- nico, poderia negd-lo? E antes dos psicanalistas pode-se pensar em al- guéni como Hegel, para quem verdade e histéria do desvendamento de verdade so, essencialmente, uma s6 coisa. Apagar o percurso seria 0 ‘modo de negar o testemunha. Existem formas de abordagem, uma me- todologia da pesquisa, existem os preliminares, todo um trabalho pre- REFERENCIA AO INCONSCIENTE 7 paratério e depois, finalmente, retiram-se os andaimes e temos um be- Io edificio a apresentar, pronto e acabado. Nao me facam dizer que com- partitho dessa concepcdo: sei muito bem que entre belo edificio e fa- chada, entre fachada e elaboracdo secundéria, existem comunicagdes que Freud trouxe magistralmente para a luz, mostrando a relacdo en- tre a elaboracdo secundaria e o desaparecimento do processo de elabo- ragio primédria. O que eu quero dizer, portanto, ndo é quese deva apa- ‘gar o percurso e negar todo o testemunho; uma contribuicdo pode le- agitimamente e deve deixar ver 0 seu percurso; mas no pode ser apenas testemunho do seu percurso, Em ultima instncia, eu diria que se real- ‘mente ndo fosse mais do que isso, a tese no estaria destinada a comu- nicar fosse o que fosse; ela seria um documento clinico que teria de ser julgado como tal, em que o autor tornar-se-ia objeto de uma avalia- ‘edo clinica e néo interlocutor. Seria (e ds vezes &) uma produgdo pura- mente nareisica, ndo aberta para uma comunicacao. Ouve-se com fre- giiéncia — e com raziio — dizer que os estudantes freqilentam 0 3? ci- clo com a intengdo primordial de “ler Freud” Isso € inteiramente legé- timo, cada um deve fazer seu percurso em Freud, cada um deve, de acor- do.com sua capacidade, fazer 0 seu Freud. Maso “‘meu Freud”; amenos ‘que se seja, como Valéry, capaz de fazer 0 “meu Fausto”; ndo pode ser objeto de uma tese. Ou ainda, para ir ao outro extremo, ndo do lado da documentagao livresca mas da clinica: a “minha experiéncia da ins- tituigdo asilar’” nao pode ser, como tal, objeto de uma tese. ‘O que quero entéio dizer com “contribuicéo’? Quero evidentemen- te dizer com isso que, no nosso dominio, 0 da andlise ou da psicapat logia, ou das ciéncias humanas em geral, existe uma certa cumnulati dade; que ndo estamos num labirinto onde cada um, de maneira pura- mente individual e incomunicdvel, traca um caminho aseu modo e de- ois fim. Este tipo de pereurso é tinico, por definigéo ndo pode servir aninguém mais, a um outro rato que, posto no mesmo labirinto, tra- card um caminho muito diferente para chegar, talvez, ao mesmo resul- tado, Tampouco afirmo que néo estejamos num labirinto: no existe poucos no que fazemos e temos todos de fazer essa espécie de percurso absolutamente individual. Mas 0 postulado da contribuigdo e da cumu- latividade envolve, apesar de tudo, uma outra dimensdo: mesmo que haja, sobretudo, contetidos da ordem da repeti¢do, do individual, do ndo-capitalizdvel, néo hd apenas isso. Que uma tese seja uma contri- buiedo, o que é que isso significa? Quer dizer, concretamente, que esse texto queserd “‘defendido”, que serd objeto de uma “apreciagdo” e de um “atestado”’ (“doutor de 3° ciclo”), deve ser wn documento, ou se~ ja, uma referéncia posstvel para um outro investigador. Isso quer dizer 8 O INCONSCIENTE E 0 ID que, se alguém pretender daqui a cinco anos dedicar-se a um determi- nado ponto de psicopatologia clinica ou tedrica, ou de psicandlise apli- cada, ou ao estudo de tal ou qual autor, poder-se-d apresentar-the esta condigao prévia: entdo vd dar uma olhada nas teses destestltimos anos, af encontrard tal e qual pesquisa relativa ao seu assunto e serd de seu interesse levd-la em conta, Esse aspecto cumulativo da produedo inte- lectual — no entanto tao evidente e indispensdvel — é um tanto vexa- t6rio ter de sublinhd-lo, como se, nos nossos domtnios, cada um ima- ginasse poder e dever recriar tudo por obra e graca de seu prdprio cére- bro, Apoiar-se no trabalho e nos resultados de outros pesquisadores| ‘no entanto, win imperativo, vélido nao sé em relacéo as pesquisas pas- sadas, mas também para as pesquisas em curso. Que a sua tese, a sua pesquisa, possa tornar-se uma contribuicdo, uma referéncia possivel pa- ra outrem, é algo que jd implica ums porgao de coisas, em sua redagao, sua composicio, seu método; implica wim propdsito claramente defini- do e submissio as exigéncias mininas da comunicacdo. Tenko um outro modo de dizer isso, que serd mais cru, Uma tese tem, pelo menos, trés leitores: sdo leitores mercendrios, pagos pelo Es- tado para ler essa tese e emitir um julgamento, para discuti-la. Adiitamo-lo por um momento, ainda que existam motivos para recha- gar a idéia de que uma remuneragdo qualquer erie para mim a obriga- do de ler atentamente um escrito que néo estd precisamente destina- do a comunicar seja o que for, e que ndo me toma como interlocutor. Enfimn, admitamos até que possam existir leitores assalariados: os trés professores da banca examinadora. Pois hem, ao redigirem suas teses, Para que sejam contribuicdes dignas desse nome, vocés deverio ter em ‘mira o quarto leitor ou, 0 que vem adar no mesmo, entre os trés, aque- Je que se tiver interessado em ler esses trabathos, mesmo que néo fosse obrigado a fazé-lo por sua fungao na Universidade, em virtude de ser ‘seu funciondrio, Cada uma dessas contribuicdes pode ser mais ou me- nos importante; raramente genial, por vezes modesta: uma referéncia, um enfoque inédita, uma bibliografia, uma visio nova, evidentemen- te, a exumacao de alguns documentos interessantes, clinicas ou outros; ‘mas que haja nesse trabalho algum elemento digno de ser arquivado eque, uma vez arguivado, nao seja definitivamente recoberto pela poeira dos manuscritos jamais consultados! Visem, pois, por favor, esse quarto leitor, visem-rio pelo contetido do que expéem mas respeitem-no tam- bém como leitor, eé al que chegamas as exigéncias pretensamente fo) mais. As negligéncias de estilo, de apresentacdo, 0 fato de que uma te- se as vezes pode ser, em tiltima andlise,ilegtvel pelos erros, pelas biblio- grafias mal escolhidas, pelas referéncias inexatas, eis alguns defeitos in- REFERENCIA AO INCONSCIENTE 9 tolerdveis; ndo em virtude de um formalismo obsessivo e obsoleto, mas em raziio do desprezo que revelam pelo leitor a quem pretendem co- municar alguma coisa. Se assistirem a uma defesa de tese, ouvirdo por vezes da boca dos membros da banca reflex6es deste género: na pdgina 50 hd tal erro, hd tal expressao, serd que néo quis empregar tal palavra em vez de tal outra? Tal niimero ndo remete a nota correspondente, etc. Essa atencao aos detalhes pode parecer um tanto divertida e assim se- ria, de fato, se 0 professor ndo tivesse eriticas a formular sobre o fun- do. Mas se as negligéncias se acumulam... Quanto a mim, nao me con- sidero um mercendrio e sinto-me no direito de fulminar com a minha célera um texto que ndo manifeste um minimo de respeito pelo inter- locutor, portanto, um minimo de atencdo pelas regras da comunicagao e do didlogo. Eis, pois, um comeco de introdugdo metodolégica para este DEA, apesar de tudo muito particular, que se intitula Psicopatologia clinica e psicandlise, e para estes cursos tedricos. Com o primeiro destes cur- sos, introduzi, de uma certa maneira, os trés?. Cada um dos irés do- centes concebe, aseu modo, o que faz, mas nenhum pretende, em todo caso, trazer-lhes 0 saber, nem mesmo a base ou os instrumentos neces- Sdrios ao seu trabalho. Compete a vocés delimitar uma base, forjar seus instrumentos no campo que escolherem. Estes ensinamentos tedricos 18m muito pouco a ver, em tiltima andlise, com a transmnissao de ele- mentos de base. Com efeito, devem ser concebidos mais como amos- tras de diversos pensamentos, amostras de uma pesquisa que um ou ou- tro esté realmente desenvolvendo (e que methor lugar haveria para comunicd-ta do que este nivel, precisamente, 0 3? ciclo?), wr winwos- tra que pode ser estimulante, instrutiva, seja pelo conteiido, seja tam- bém pelo testemunho de uma abordagem e de um método. Escolhi para este ano um tema que comen- ROMPER E. tei num titulo um pouco longo; nao o in- REATAR consciente mas a referéncia ao inconscien- te, sua comprovaedo na prdtica e na teoria. E, uma vez mais, quero interrogar-me com vocés: por que esse tema? Mas perguntemo-nos primeiro: como se escolhe um tema? Talvez.al- guns professores nao se fagam tal pergunta, mas, apesar de tudo, é um problema. Ponhamos de lado o assunto do “programa”; acabamos de ver que isto ndo est em questo, uma vez que nao existe programa do DEA, nao existe programa da psicanalise, a nao ser em certos institu- tos de psicandlise, em certos momentos de sua histéria, quando real- bito do DEA 1977-1978: J. Gage, Idéotogie ivénenrent, ¢este aqui publicado, "2 TBs cursos foram realizados n et théorie, M. Dayan, Le fantasme et 10 (0 INCONSCIENTE E 0 ID mente se tratava de abarcar a psicandlise esquadrinhando todo o cam- po do conhecimento possivel a seu respeito, Num extremo da gama de motivos de uma escolha pode-se, portanto, escolher um assunto por- que esta “‘no programa”, porque isto ajudard as pessoas, porque é fun- damental, sei lé. Na outra extremidade, frente ao programa, haveria, digamos, 0 “desejo”, as motivagdes mais secretas: por que nesse mo- mento de sua vida, de sua pratica, de sua andlise, de sua auto-andlise, por que escolher este assunto? Isso nunca é feito por acaso. Penso que, no entanto, émuito dificil chegar at8 esse ponto de desvelamento; ath ca coisa que se pode fazer é ndo o encobrir sistematicamente (e isso jd é muito). Entre esses dois extremos, 0 do trabalho sob encomenda ¢ 0 das motivacdes profundas, tentei por mais de uma vez definir uma es- pécie de camada intermédia, que interessante na medida em que po- de servir de guia para uma certa interpretacdo da obra, Na leitura de uma obra, em particular, digamos, a de Freud, poderiamos encontrar cesses trés nfveis: 0 nfvel da racionalidade; no outro extremo, o nivel, em iiltima instancia, da andlise de Freud tal como se possa tentar reconstitui-la (mais de um tenta ou tentou faz8-lo, e nao critico essa ini- ciativa; penso especialmente nos trabalhos de D. Anzieu); ¢, enfim, es- se nivel intermedirio* que designo como 0 da exigéncia. E ja que me refiro ao exemplo de Freud, tive oportunidade de ressaltar esse nivel da exigéncia a propésito do que se chama a “virada de 1920” e, mais pre- cisamente, das razées pelas quais Freud, nesse exato momento, come- cou a falar de pulsao de morte. Neste caso, pode-se delimitar facilmente 0s trés niveis, Pode-se ir diretamen‘e ao plano que pretende set o mais profundo, Nao se deixou de dizer a Freud — e ele nao deixou de negé- To do modo mais veemente: vocé fala da pulsdo de morte porque a sua filha querida acaba de morrer, porque houve o choque da guerra de 1914, etc. Tratar-se-ia nesse caso do “trauma” mais proximo do tempo; mas como sabernos que o trauma sé vale pelo fundo do **jé ali” sobre o qual se inscreve, ¢ possivel colocar em evidéncia, em sua especificidade, es- sa relagdo mais antiga de Freud com a morte (como 0 fez Max Schur em seu livro La mort dans la vie de Freud), que entraré em jogo na mutacao tedrica de 1920. Em contraste com essa tentativa de andlise do nivel mais profundo, sempre muito arriscada, temos as racionaliza- Oes de Freud. E se existe alguém que “destréi os andaimes”” é bem ele: €0 fez no sentido préprio, ao ponto de queimar tudo 0 que pudesse * Intermédivire shude simultaneamtente ao cardter de mediador e 20 Iago que une ‘0s fermos. No semtiniio de “A sublimagao" (Problemadtieas I11, Martins Fontes, 1989) este conceito € amplamente desenvoivido. iN. R.) 3, M. Schur, La mort dans fa vie de Freud, Paris, Gallimard, 1975, REFERENCIA AO INCONSCIENTE ul ser um documento que permitisse fazer a histéria de seu pensamento. Praticava gigantescos autos-de-fé de sua correspondéncia, de seus ma- nuscritos, de suas notas, como para cortar de antemao as pontes para o futuro analista. Portanto, se se pode falar a respeito de uma obra, de fachada, de racionalizacao e de destruicdo de testemunhos, o “mestre” €0 primeirissimo modelo desse género de “trabalho”. Em todo caso, permanecendo (como Freud o fez com freqiiéncia para relatar a histé- ria do seu pensamento) no nivel mais racional, pode-se mostrar que a pulséo de morte era um dos tempos necessérios da teoria, que era pre- ciso integrar novas constatagGes clinicas, correndo o risco de ter de res- ponder a esta objeco: mas entdo, por que, durante anos, voce recusou apulsdio de destruicdo ou de agresso que Adier Ihe propunha? Ele lhe oferecia esta ajuda hd varios anos e a sua resposta invariavel era “no”; e eis que agora retoma esta teoria, pretendendo que nao se trata da mes- ma coisa, que nao é a mesma pulsdo de agressao (¢, com efeito, n&o € ‘a mesma; mas é preciso demonstré-lo!). E depois ha, sempre a propésito dessa virada de 1920, o que cha- mo a propria exigéncia do pensamento; ndo é a racionalidade de um desenvolvimento cronologicamente identificavel, numa temporalida- de que seria simples progressio, acumulacdo sem fallas, sem regres- so, em suma, a temporalidade de um progresso do conhecimento. Tam-) pouco éa temporalidade intemporal do desejo, do inconsciente, que te-} mos de encontrar entre a a-temporalidade da repelicdo e essa tense | lidade muito particular que é a do trauma. Com o nosso termo exigén- ia poderiamos dizer que a temporalidade em questo , desta vez, de uma espécie muito mais estreitamente Vinculada a uma certa estrutura da experigncia e do pensamento. Uma temporalidade em que ¢ permi- tido introduzir algo como uma dialética, Assim, todo o sentido do que pude dizer para interpretar a “‘virada de 1920” foi o de mostrar como a pulsdo de morte era a renovagao de algo jé existente ¢ que tinha ne- cessidade de ser reafirmado de um outro modo porque o conjunto do equilfbrio do pensamento freudiano se deslocara e, em particular, por- que aparecera toda a dimensao do narcisismo e do eros nareisico e era indispensAvel liberar a sexualidade em relagdo ao eros narcisico. Portanto, uma exigéncia nao inclui a ruptura, se se trata de dialé- tica, e adoto 0 verbo “‘romper”” em todas as suas acepedes, incluindo aquela que se usa em esgrima [desfazer a posicdo para um novo assal- to]. Perguntaram-me: “por que rompeu coma sublimagao, o tema dos seus tiltimos cursos; ainda nfo estava concluido, estava to interessan- te, precisava continuar!”” Ora, eu rompo para reatar; espero explicar, em parte, por que e como, da préxima vez. Rompo, mas sem perder 0

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